Editorial e apresentação
Dossiê: Violência, segurança pública e violência policial
O dossiê temático “Violência, segurança pública e violência policial” foi organizado ao longo do ano de 2016. A chamada se ancorou em três eixos básicos, mas não exclusivos: a) a abordagem da violência; b) a segurança pública em perspectiva; c) a violência policial.
No primeiro eixo – violência – foram selecionadas tanto análises teóricas que dialogam com as teorias já existentes quanto aquelas que apresentam novos pressupostos. Os textos escolhidos para esse eixo temático abrangem teorias referentes à criminalidade violenta e às várias formas de violência: materiais, simbólicas e culturais. Esse eixo recebeu um maior número de trabalhos, por ser o mais amplo entre os três.
O segundo eixo – segurança pública em perspectiva – abriu espaço para análises críticas e avaliações de programas de governo e de políticas públicas. Os textos discutem modelos de abordagem, questões operacionais e possibilidades de implementação de boas práticas, assim como temas correlatos à gestão da segurança pública.
Por fim, o terceiro eixo – a violência policial – focou na discussão do papel e da atuação da polícia dentro do sistema de segurança. A revista recebeu muitos trabalhos, e toda a seleção se baseou no procedimento do duplo-cego. Os pareceristas ad hoc, selecionados entre doutores com notório saber, analisaram os trabalhos com base nos seguintes critérios: pertinência do trabalho, valores éticos, rigor, cuidado metodológico e científico, relevância do conteúdo para o debate acadêmico, além da originalidade.
Do Eixo 1, foram selecionados quatro artigos. O primeiro, “Risco, mercado criminal e interações violentas: etnografia de um conjunto habitacional periférico numa cidade média do estado de São Paulo”, de Luís Antonio Francisco de Souza, Bóris Ribeiro de Magalhães, Gabriel de Sousa Romero e Mariana Franzolin Valera, tem como foco o estado mais populoso do Brasil. Em particular, aborda as estratégias de sobrevivência utilizadas pelos moradores de periferia diante dos conflitos entre jovens envolvidos no tráfico de drogas e a ação policial. Pela técnica de pesquisa etnográfica, os autores demonstraram o distanciamento do chamado estado de direito como garantidor dos direitos civis, sobretudo para os moradores das periferias brasileiras. Um dos problemas apontados foi a ênfase dada pela segurança pública aos modelos punitivista e repressor, que privilegiam o enfrentamento bélico e são muito propensos à letalidade na ação policial.
O segundo artigo, “La ideología de la inseguridad en la Argentina actual”, de autoria de Gisela Catanzaro, Gabriela Seghezzo e Sebastian Elisalde, discute criticamente a construção atual do problema da (in) segurança, com base em resultados obtidos em uma pesquisa intitulada Problemas da democracia na Argentina no período pós-convertibilidade: transformações socioeconômicas e reconfigurações ideológicas. Essa pesquisa teve por pano de fundo uma pergunta acerca dos dilemas enfrentados por democracias na contemporaneidade, em que a insegurança serve como uma figura ideológica. A figura da insegurança tem seu significado estruturado por relações com um conjunto de posições na avaliação da política, de conflitos e de hierarquias sociais, sob uma configuração que tem o potencial de prejudicar a convivência democrática.
O terceiro, “Transformações em torno do fenômeno da violência homicida no estado de Alagoas”, de Emerson Oliveira do Nascimento, tentou compreender o expressivo crescimento da violência homicida naquele estado, que, desde 2006, está ranqueado entre os mais violentos do Brasil. O autor fundamenta-se em uma constelação de bases tais como os dados oriundos do Núcleo de Estatística e Análise Criminal da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Alagoas (SSP-AL) e os dados alfanuméricos do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde (MS) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com base nessas fontes, ele apontou de que forma o sistema de segurança pública tem se mostrado negligente em compreender os dados disponíveis e, por conseguinte, em construir uma política de prevenção ao crime de homicídio.
No quarto e último artigo do Eixo 1, “O linchamento de Gilbercan Mezini e a narrativa midiática: notas sobre a transformação do indivíduo em homo sacer”, Humberto Ribeiro Júnior e Felipe Machado Veloso realizam uma crítica à abordagem midiática sobre o linchamento que dá título ao artigo: um caso ocorrido no ano de 2013, no estado do Espírito Santo. Os autores afirmam que os meios midiáticos se transformam em um órgão de produção de julgamentos que contribui para legitimar ações violentas. Isso ocorre por meio da suspensão dos valores sociais e jurídicos, na qual o suspeito se transforma – antes de qualquer investigação e julgamento – em acusado, criminoso, maníaco ou psicopata, ou, nas palavras dos autores, em uma pessoa matável, descartável e sem direitos.
No Eixo 2, temos três artigos, o primeiro, intitulado “O que determina a ocorrência e/ou o registro de um crime em Minas Gerais?”, de Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro e Luiza Meira Bastos. As autoras questionam em que medida a ampliação de recursos humanos e institucionais de segurança pública e justiça criminal contribui para a redução dos registros de criminalidade e do crime. O estudo demonstrou que a elevação dos recursos humanos permite uma ampliação dos indicadores. Conforme esclarecem as autoras, a teoria da dissuasão, que tem destaque na literatura nacional e internacional, leva a supor que a presença de mais policiais e de maior aparato de justiça criminal concorre para a redução das práticas criminais. Apesar desse pressuposto, elas concluem que investir no aumento da quantidade de recursos humanos e institucionais de segurança pública e justiça criminal não assegura necessariamente uma redução da criminalidade violenta. Ressalvam, entretanto, que, nessa questão, cabem muitas outras interpretações, como a de que uma maior oferta desses recursos poderia facilitar o acesso a serviços que antes não eram procurados; ou seja, melhorar o serviço pode ser uma forma de dar maior visibilidade para o que estava invisível.
O segundo artigo do Eixo 2, “Do GPAE à UPP: uma proposta de interpretação das percepções de moradores de favelas acerca dos projetos de policiamento comunitário ou de proximidade”, de Marcus Cardoso, analisou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), implantadas no Rio de Janeiro. Para o autor, a avaliação dessa política pode ensejar diversos enfoques, embora, para o senso comum, prevaleça a ideia de que as UPP, finalmente, estão conseguindo controlar a criminalidade no Rio de Janeiro. Entretanto, na avaliação da população das comunidades envolvidas, as UPP ainda guardam muitos resquícios da chamada polícia repressora, violenta, além de estarem distantes socialmente das comunidades onde atuam. Esse cenário se torna evidente, sobretudo, após o ano de 2013, em que ocorre o desaparecimento forçado do pedreiro Amarildo de Souza, na Favela Rocinha, Rio de Janeiro. No processo de avaliação do modelo de política pública de segurança, o autor traz à tona a experiência anterior chamada Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE) e aponta que os moradores tendem a avaliar as ações policiais classificando-as como “respeitosas” ou “desrespeitosas”.
O terceiro trabalho acolhido no Eixo 2, “Incidência e representações do uso de drogas lícitas e ilícitas nos câmpus da Universidade Federal de Goiás: desafios para a proposição de uma política”, é de autoria de Dijaci David de Oliveira, Guilherme Borges da Silva e Michele Cunha Franco. O artigo expõe os dados coletados em uma pesquisa survey, realizada na comunidade acadêmica da Universidade Federal de Goiás (UFG). O objetivo da pesquisa teve como pilar a discussão sobre as práticas de violência e conflitos nos câmpus da UFG. Como boa parte da discussão inicial acerca da suposta ampliação dessas práticas estava ancorada no crescimento do uso e da venda de drogas nos câmpus, os autores optaram, neste artigo, por concentrar-se nas percepções da comunidade sobre esse problema específico. Os dados foram extraídos por meio de três técnicas: survey, entrevistas com grupos focais e entrevistas em profundidade. Com base nesses dados, os autores perceberam que os discursos da comunidade universitária não se distanciam da visão do senso comum e de bases moralistas, em que prevalece a defesa de soluções pautadas no modelo proibicionista.
No Eixo 3, temos o artigo “Cultura policial e adolescente suspeito: a normalização na Gerência de Polícia em Recife”, texto que adotou como metodologia a teoria das representações sociais. No artigo, Érica Babini Machado, Murilo Sobral Neto e Iana Lira Pires buscaram compreender as práticas dos agentes policiais no processo de registro do flagrante nos casos em que o sujeito do ato é um adolescente. O trabalho de pesquisa chamou a atenção para o fato de que as práticas policiais acabam por girar não em torno da investigação do fato, mas da confirmação do status do adolescente como infrator.
Por fim, acreditamos que este dossiê trouxe uma boa coletânea de temas, com abordagens teóricas e metodológicas que representam contribuições substantivas para a continuidade do debate sobre violência e práticas criminais. Ao propor os três eixos iniciais, tínhamos a consciência de que perderíamos em foco, mas ganharíamos em diversidade de abordagem. Assim poderíamos construir uma visão mais ampla sobre os temas, indicando, sobretudo, a direção para onde apontam os dilemas das pesquisas sobre conflitos, violência e criminalidade na sociologia contemporânea. Esperamos que todos tenham uma boa leitura.
Autor notes
Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás