Editorial e apresentação
Entrelaçando gênero, sexualidade e curso da vida: apresentação e contextualização
Entrelaçando gênero, sexualidade e curso da vida: apresentação e contextualização
Sociedade e Cultura, vol. 19, núm. 2, pp. 3-12, 2016
Universidade Federal de Goiás
Nos últimos anos, no Brasil, temos acompanhado um relevante florescimento do interesse acadêmico e ativista pela análise das relações de gênero e sexualidade em entrelaçamento com o curso da vida, sobretudo com ênfase no envelhecimento. Este dossiê, refletindo esse momento e essa ênfase, reune artigos que versam, de maneiras diversas, sobre tais entrelaçamentos com base em abordagens socioantropológicas.
A expansão do interesse pela temática, aliás, se expressa também em um número crescente de publicações, assim como em organizações de grupos de trabalho, simpósios temáticos e mesas redondas em alguns dos principais eventos acadêmicos da área nos últimos anos, como o Encontro Anual da ANPOCS, a Reunião Brasileira de Antropologia, a Reunião de Antropologia do Mercosul, o Seminário Internacional Fazendo Gênero e o Seminário Internacional Desfazendo Gênero. Algo que pode ser visto igualmente como um fruto desse processo é o número expressivo de submissões de artigos para este dossiê – foram 57 no total – o que se configurou em um desafio aos organizadores e aos pareceristas no que compete ao processo de seleção final de textos, haja vista a qualidade dos trabalhos submetidos.
Resultado da interlocução entre pesquisadores integrantes de três núcleos de pesquisa com reconhecida tradição em estudos acadêmicos de gênero e sexualidade no Brasil (Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero, da Unicamp; Numas – Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença, da USP; e o Ser-Tão – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade, da UFG), o presente dossiê objetiva apresentar um retrato de parte das investigações recentes nas temáticas de gênero, sexualidade e curso da vida. Assim sendo, faremos uma contextualização sucinta de algumas das principais tendências nas investigações concernentes a gênero, sexualidade e curso da vida, em especial na sua vertente relativa a análise de envelhecimento e velhice.
Gênero, curso da vida e envelhecimento
No que diz respeito às reflexões teóricas que se debruçam sobre gênero, curso da vida e envelhecimento nas últimas décadas, é possível constatar, em termos gerais, uma forte tentação de tornar uma oposição binária um dado, um estado da natureza, remetendo a uma suposta condição feminina universal, a hipotética universalidade da condição da velhice. Desta perspectiva, a teorização segue caminhos diversos, fechando o debate num círculo sem saída. O foco central, nesse caso, como mostram Debert e Henning (2015), é o de saber quem está melhor nessa etapa da vida, os homens ou as mulheres, os velhos LGBT ou heterossexuais / cisgêneros, e é importante realçar que não há uma unanimidade nas respostas apresentadas.
Para alguns autores, como mostra Debert (1999), na velhice, as mulheres experimentariam uma situação de dupla vulnerabilidade, com o peso somado de dois tipos de discriminação, como mulher e como idosa. Sendo a mulher, na maioria das sociedades, valorizada quase exclusivamente por seu papel reprodutivo e pelo cuidado com as crianças, sua passagem à velhice seria marcada por desprezo, desvalorização e desdém. Essa passagem, antes de ser contada pela referência cronológica, seria marcada por uma série de eventos associados a perdas, como o abandono pelos filhos adultos, a viuvez ou o conjunto de transformações físicas trazidas pelo avanço da idade. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a esse conjunto de perdas se deve somar o subemprego, os baixos salários, o isolamento e a dependência que caracterizariam a condição das mulheres de mais idade.
Outros autores, no entanto, tendem a olhar com mais otimismo o envelhecimento feminino. A velhice feminina seria mais suave que a masculina, na medida em que a mulher não experimentaria uma ruptura com relação ao trabalho tão violenta como a dos homens na aposentadoria. Os vínculos afetivos entre filhos e mães seriam mais intensos e por isso os filhos estariam mais dispostos a cuidar delas que de seus pais idosos. Os controles sobre a mulher seriam afrouxados, posto que ela já não deteria a função de procriação e, mesmo nas sociedades em que são elas as transmissoras de herança, o controle sobre a mulher seria sempre maior ao longo de sua vida jovem e adulta que na velhice. Habituadas a mudanças drásticas em seu organismo e em sua capacidade física por causa da procriação, da gravidez, da lactância e da menstruação, as mulheres teriam mecanismos que lhes permitiriam enfrentar melhor as transformações que ocorrem com o avanço da idade.
A hipótese de que a velhice é uma experiência homogênea funda a gerontologia, que poderia ser concebida, em termos sintéticos, como a ciência que estuda os velhos. A perspectiva que orientou os primeiros estudos na área considerava que os problemas enfrentados pelos idosos eram tão prementes e semelhantes que minimizavam as diferenças em termos, por exemplo, de etnicidade, classe, gênero, religião e sexualidade. Em oposição à noção de que essa etapa corresponderia a um acúmulo de sabedoria, a velhice era então pensada pela ideia de ausência de papéis sociais – a sociedade moderna não prevê uma posição específica ou uma atividade para os velhos, abandonando-os a uma existência sem significado. Os velhos seriam uma minoria desprivilegiada ou comporiam uma subcultura com um estilo próprio de vida, o qual se sobreporia às outras diferenças como ocupação, sexo, religião ou identidade étnica.
Os anos 1970 assistiram a uma revisão desse pressuposto. As diferenças de classe social, de etnicidade e de gênero dariam à experiência de envelhecimento, em uma mesma sociedade, conteúdos distintos que mereceriam investigação. Como afirmado anteriormente, a hipótese da diversidade é um convite a uma série de pesquisas preocupadas com a elaboração de medidores sofisticados e com a definição de instrumentos capazes de avaliar a qualidade de vida na velhice. A perspectiva que tem orientado a maioria desses trabalhos, entretanto, é a de que grupos sociais distintos se adaptam diferencialmente à experiência comum de envelhecimento e a tarefa então passa a ser a de propor explicações para as diferenças constatadas. No que diz respeito a gênero e envelhecimento, a tendência das pesquisas que enfatizam os fatores psicológicos na velhice é a de considerar que a androginia caracterizaria as etapas mais avançadas da vida.
Dessa forma, papéis sociais, valores e atitudes considerados tipicamente masculinos ou femininos tenderiam a se misturar na velhice. Ou ainda, o envelhecimento envolveria uma “masculinização das mulheres” e uma “feminização dos homens”, de forma que as diferenças de gênero se dissolveriam na “normalidade unissex da idade avançada”. Homens idosos desenvolveriam atitudes mais afetivas que os jovens e as mulheres, por sua vez, atitudes mais assertivas. A divisão tradicional do trabalho doméstico em tarefas masculinas e femininas tenderia a diminuir com a idade. Alguns autores explicam essa convergência como um produto das mudanças hormonais. Nessa visão, a androginia, portanto, caracterizaria as etapas mais avançadas da vida.
A Gerontologia LGBT,1 por sua vez, também esteve marcada pela questão de saber quem vive melhor a velhice, os heterossexuais / cisgêneros ou os velhos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros). Igualmente nessas pesquisas não há um consenso entre os autores em questão. Para alguns, o fato de boa parte dos velhos LGBT viver só, não tendo filhos, presenciando muitas vezes uma diminuição drástica de apoio familiar devido ao preconceito quanto às identidades sexuais e de gênero, faria com que a experiência de envelhecimento fosse mais trágica do que a dos heterossexuais / cisgêneros (De Vries, 2015). Para outros autores valeria o inverso e a tendência é ver com mais otimismo a “velhice LGBT”. A criação de redes de amizade que funcionam como uma espécie de família de adoção, as “famílias do coração” (Henning, 2014), nas quais prevalece a solidariedade tanto na velhice como na doença (haja vista exemplos expressivos na crise epidêmica do HIV – Aids – entre meados de 1980 e 1990), bem como a possibilidade de acumulação de bens materiais e financeiros dada a ausência relativamente comum de gastos com filhos, permitiria um enfrentamento mais suave dos problemas da velhice.
Assim sendo, ao olharmos em retrospectiva os debates pretéritos de boa parte das pesquisas sobre gênero, sexualidade e velhice, é possível constatar que elas estiveram, em termos gerais, voltadas para a reflexão sobre as diferenças entre homens e mulheres, entre heterossexuais / cisgêneros e LGBT nessa etapa da vida; e o foco central era o de saber quem se adaptaria melhor a esse momento. A velhice, nesse caso, era tida muitas vezes como envolvendo um caráter imutável e universal, independente das transformações históricas e das dimensões socioculturais que têm caracterizado a reflexão histórica, sociológica e antropológica sobre a velhice ou sobre os demais períodos em que a vida se desdobra em diferentes contextos. Ademais, desse ponto de vista universalizante, perde-se a dimensão da biopolítica, das formas de classificação e hierarquização dos seres humanos, que têm na idade cronológica um dos elementos fundamentais na gestão das populações nos estados modernos.
Curso da vida, envelhecimento e identidades sexuais e de gênero
Já no que diz respeito ao entrelaçamento de identidades sexuais, envelhecimento e relações intergeracionais, as pesquisas socioantropológicas sobre indivíduos com práticas sexuais homoeróticas, que se consideravam “entendidos” ou “homossexuais”, já remontam há mais de cinco décadas no Brasil, ao menos desde a pesquisa do sociólogo José Fábio Barbosa da Silva (2005 [1960]). Em termos gerais, essas investigações documentaram tais transformações e parece que se adensaram paulatinamente a partir de fins da década de 1970, ganhando corpo no decorrer dos anos 1990 e dando um salto expressivo na primeira década do novo século.
Entretanto, conquanto questões concernentes ao envelhecimento, homoerotismo e homossexualidade masculina tenham sido pontuadas lateralmente de distintas maneiras em importantes trabalhos pioneiros, elas não chegaram a ganhar um estatuto de centralidade nas análises.2 A etnografia clássica de Néstor Perlongher (2008 [1987]): O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo, por exemplo, punha em relevo as expressivas diferenças de idade (assim como de classe, cor e nível educacional) entre os michês e seus clientes, estando os primeiros entre os 15 e os 25 anos e os últimos geralmente tendo mais de 35 anos de idade.
Já no livro O homossexual visto por entendidos originado da dissertação de mestrado de Carmen Dora Guimarães (2004 [1977]), a condução da pesquisa de campo acompanhava um grupo de homens com práticas sexuais homoeróticas na cidade do Rio de Janeiro, a maior parte relativamente jovem, embora alguns fossem um pouco mais velhos. Nesse caso a atenção se voltava, entre outras questões, aos processos de reconfiguração identitária associada à sexualidade, o que se dava em moldes mais igualitários, conforme debatido por Fry (1982).
Há também nesse mesmo período a (infelizmente) pouco conhecida etnografia que resultou na dissertação de mestrado de Regina Maria Erdmann (1981) – a primeira defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do CFH/UFSC – intitulada “Reis e rainhas no Desterro: um estudo de caso”. Essa etnografia pôs em relevo a análise, na cidade de Florianópolis, das interações erótico-sexuais entre menores de idade do sexo masculino e homens homossexuais adultos, alguns deles “maduros”. Interações essas mediadas, muitas vezes, por intercâmbios materiais ou financeiros.
Façamos uma pausa e arrisquemos considerar o conjunto de sujeitos retratados por tais etnografias. Muitos desses homens, em termos gerais, poderiam ser vistos como aqueles que se reconheceram como “entendidos”, assim como aqueles que integraram as primeiras coortes brasileiras que passaram a se identificar como “homossexuais” na acepção mais moderna do termo. Ademais, esses indivíduos, obviamente com importantes assimetrias e diferenças entre si, poderiam ser vistos na atualidade como os que experimentam, à sua maneira, processos potencialmente idiossincráticos de envelhecimento e velhice. É significativo, portanto, que embora questões concernentes às relações intergeracionais, ao envelhecimento e à homossexualidade masculina tenham sido citadas com distintas intensidades nesses trabalhos pioneiros, uma atenção particular e sistemática aos processos de envelhecimento e velhice desses homens só viria a se materializar muitos anos mais tarde.
Por conseguinte, apesar de essas questões terem composto no passado um pano de fundo por vezes difuso no contexto das investigações fundacionais do campo de estudos socioantropológicos sobre sexualidade e gênero no Brasil, foi apenas recentemente que a inter-relação entre homossexualidade, envelhecimento e velhice ganhou centralidade e foi problematizada como questão balizadora em pesquisas nacionais. Nesse marco, o artigo “Homossexualidade masculina e curso da vida: pensando idades e identidades sexuais” de Julio Assis Simões (2004) apresenta um olhar em perspectiva para os principais debates relativos à temática e propõe interessantes sugestões e questionamentos. Enfocando a velhice e o envelhecimento homossexual, Simões postula uma tensão entre os dois principais tipos de representações recorrentes na análise social sobre a temática: um que se direciona ao peso do estigma da homossexualidade somado ao da velhice, frisando um cenário fortemente negativo de solidão, melancolia, decrepitude e desvalorização erótica; e o outro que atenta para cenários mais positivos, postulando novas competências e habilidades sobressalentes associadas ao envelhecimento de indivíduos homossexuais.
Dialogando com a visão mais positiva sobre o processo de envelhecimento desses homens, Simões apresenta então a categoria “coroa”, um termo auto imputado que circula por alguns espaços do “circuito gay” paulistano, o qual caracterizaria um personagem sem idade definida, porém portando alguns sinais socialmente atribuídos ao envelhecimento, como cabelos grisalhos, rugas, cintura mais grossa, movimentos mais lentos. O “coroa típico”, dessa maneira, seria então “o homem maduro de modos viris, que tem saúde, disposição física, apresentação pessoal e dinheiro suficiente para frequentar alguns espaços do chamado ‘circuito gay’, encontrar amigos, beber, se divertir, e também tentar a sorte no mercado da paquera” (Simões, 2004, p. 420).
Por meio da apresentação de um movimento contemporâneo que procura “mudar as concepções do envelhecimento como processo melancólico decadente para uma visão” menos pessimista, o autor defende que os pesquisadores da área procurem estar atentos, analiticamente, à positividade que pode atravessar a experiência do envelhecimento homossexual contemporâneo (Simões, 2004, p. 442). Além disso, é oportuno destacar que muitos desses homens que hoje vivenciam a meia idade ou a velhice, estiveram também envolvidos e contribuindo vivamente nos processos de politização das homossexualidades no Brasil, assim como, concomitantemente, nos processos de transformação dos modelos relacionados às práticas sexuais homoeróticas de uma base hierárquica para bases mais igualitárias (Fry, 1982).3
Dessa maneira, dialogando com tais postulações e seguindo algumas de suas sugestões, um conjunto de investigadores também têm encontrado e analisado várias categorias congêneres relativamente espraiadas em contextos de sociabilidades homoeróticas em várias cidades do Brasil. Categorias como “tiozão”, “paizão”, “daddy”, “cacura”, “tia”, “tia velha”, “bicha velha”, “maricona”, “irene”, entre outras, as quais, de distintas maneiras, como na etnografia de Henning (2014), tendiam a posicionar, classificar e disciplinar as subjetividades e as “performances etário-geracionais” de seus interlocutores de maneiras relativamente influentes. Ademais, categorias como “tias” e “novinhas”, por exemplo, são abordadas e analisadas também neste dossiê no artigo de Vanessa Sander e Lorena Hellen de Oliveira no contexto das relações intergeracionais entre travestis na cidade de Belo Horizonte.
Considerando as reflexões e etnografias supracitadas, as quais se iniciam ainda em meados do século XX, o presente dossiê reúne em suas seções alguns artigos que são debitários desses trabalhos pioneiros. Os textos aqui reunidos dão às investigações pioneiras um prosseguimento em termos de análise de cenários que trazem consigo continuidades, mas, sobretudo, apresentam transformações e idiossincrasias contemporâneas.
Ademais, nosso dossiê oferece, como uma de suas contribuições, a primeira tradução autorizada ao português de um artigo da renomada antropóloga estadunidense Gayle Rubin. A autora produziu obras como The traffic in women: notes on the “political economy” of sex (1975) e Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality (1984), as quais foram altamente influentes e causaram impacto em amplo campo de disciplinas, estudos e investigações. Pode-se frisar, sobretudo, a antropologia feminista e o campo de estudos das relações de gênero e sexualidade, auxiliando a desenvolver e a impulsionar novas teorias e ativismos feministas e LGBT a partir dos anos 1970 e 1980. As publicações de Rubin ainda impactaram significativamente nos estudos gays e lésbicos, nos estudos queer subsequentes, assim como nas teorias feministas e de gênero pós-estruturalistas a partir dos anos 1990, como, por exemplo, a obra da Judith Butler (2003 [1990]).
Embora tenha havido ao menos duas relevantes e qualificadas traduções não oficiais desses textos clássicos da autora, as quais circularam nas últimas décadas, no Brasil, entre estudantes de graduação e pós- -graduação, a tradução ao português que apresentamos neste dossiê oferece ao público em língua portuguesa um dos textos mais recentes da autora: “Geologies of queer studies: it’s déjà vu all over again” (Rubin, 2011 [2004]).
Neste artigo a autora reflete criticamente sobre os discursos que marcam a transição entre o que seriam os estudos gays e lésbicos e os estudos queer norte-americanos. Para tanto, Rubin apresenta uma valiosa revisão de investigações – sobretudo etnográficas – relativas à sexualidade e às “comunidades homossexuais” que remontam à primeira metade do século XX. Tais investigações e etnografias, realça a autora, foram desenvolvidas em alguns casos, adiantando em algumas décadas a parte dos insights e proposições dos estudos queer a partir dos anos 1990. Tais contribuições, segundo a autora, precisariam ser levadas em consideração para que não ocorra um apagamento das produções pretéritas e um processo de “reinvenção da roda”.
O texto de Rubin é, em si, representativo de significativos câmbios intergeracionais no campo de estudos sobre gênero e sexualidade nos EUA, em particular no modo como a transição dos estudos gays e lésbicos para os estudos queer tendeu a ser pensada até recentemente. Agradecemos, portanto, a autora e a sua publisher pela autorização concedida à Carlos Eduardo Henning para a tradução ao português e a publicação do artigo nesse dossiê.
Por fim, nos voltando a uma apresentação sucinta do conjunto de artigos reunidos nesse dossiê, este poderia ser, grosso modo, dividido em duas seções: a primeira relacionada à análise de relações de gênero entrecortadas, em termos amplos, por questões do curso da vida, e a segunda mais voltada ao entrelaçamento de identidades sexuais e de gênero, envelhecimento e relações intergeracionais.
Na primeira seção figura o artigo de Andréa Lobo (UNB): “Sobre mulheres fortes e homens ausentes: pensando conjugalidades como processos em Cabo Verde”, no qual a autora aborda temáticas de afetividades e os dilemas de homens e mulheres nos processos de construção das conjugalidades no arquipélago de Cabo Verde. Lobo argumenta que as relações afetivo-conjugais são vividas de formas distintas nos percursos de vida de homens e mulheres com reflexos para os ciclos de vida dos grupos domésticos, dando atenção às formas que a conjugalidade pode assumir ao longo da vida.
Igualmente nessa primeira seção do dossiê consta o artigo de Túlio Cunha Rossi (UFF) intitulado “O feminino em mídias digitais: usos de imagens e redes sociais na construção de referências emocionais de gênero”. Nele o autor discute como imagens da feminilidade são socialmente constituídas no contemporâneo, compartilhadas e reproduzidas pelo público jovem feminino em redes sociais e mídias digitais, como no canal de vídeos Youtube. O autor põe em relevo em sua análise a manutenção de crenças e valores referentes à vida íntima e afetiva, persistindo, a seu ver, mesmo que ressignificados, ideais heteronormativos e monogâmicos de união afetiva. Nesse quesito, casamento e maternidade seriam elementos que seguiriam sendo significativos na constituição de projetos de vida femininos.
Na segunda seção do dossiê consta o artigo de Thiago Barcelos Soliva (UFRB) – “Nas tramas da amizade: tensões e limites da sociabilidade em um grupo de ‘homens homossexuais’ mais velhos, a Turma OK”. O autor analisa as tensões e os “limites da sociabilidade” de um grupo de “homens homossexuais” mais velhos da cidade do Rio de Janeiro, grupo esse com mais de cinquenta (50) anos de fundação. Soliva busca compreender as disputas de sentido sobre o grupo que são negociadas no fluxo das interações entre seus frequentadores, assim como as opiniões e propostas sobre as direções que garantiriam a continuidade ou não da associação.
O segundo artigo dessa seção, por sua vez, é de autoria de Guilherme Rodrigues Passamani (UFMS) e intitula-se “Kairós e carnaval: curso da vida, regimes de visibilidade e condutas homossexuais no Pantanal de Mato Grosso do Sul”. Passamani analisa o que chama de “particularidade do kairós do carnaval” em Corumbá, MS, destacando a relevância do carnaval para as “pessoas com conduta homossexual” que compuseram sua investigação. O autor frisa as formas como o carnaval se constitui como um tempo de protagonismo entre seus interlocutores, um “lugar das ‘bichas’”, assim como uma associação do tempo da festa com a ideia de juventude.
O terceiro artigo da seção e o quinto e último de nosso dossiê, por sua vez, é o texto “Tias e novinhas: envelhecimento e relações intergeracionais nas experiências de travestis trabalhadoras sexuais em Belo Horizonte”, o qual foi escrito por Vanessa Sander (Unicamp) e Lorena Hellen de Oliveira (UFMG). As autoras analisam as relações intergeracionais entre travestis trabalhadoras sexuais e suas noções êmicas de envelhecimento e periodização da vida. Sander e Oliveira, entre outras questões, buscam compreender nas narrativas coletadas em suas pesquisas de campo as concepções associadas sobretudo às relações intergeracionais entre as travestis – assim denominadas – “tias” e as “novinhas”. Tais categorias de nomeação trariam consigo um conjunto complexo de relações, vínculos, conflitos e afetividades que constituiriam as redes de suporte social entre travestis atravessadas pelo mercado do sexo.
Com esse dossiê, por fim, esperamos não apenas trazer artigos densos, frutos de investigações sobre o tema, mas também fazer um convite para novas pesquisas capazes de ampliar os horizontes da reflexão nessa área ainda pouco explorada de estudos empenhados em entrelaçar gênero, sexualidade e curso da vida.
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Notas