Resenhas
Recepção: 20 Novembro 2016
Aprovação: 01 Abril 2017
A impotência – permanente ou ocasional – é um dos grandes tabus da sexualidade masculina. Falhar durante o ato sexual representa, para a grande maioria dos homens, a concretização de um temor, visto como ameaça à virilidade, à autoridade, à supremacia que o macho acredita possuir, e cujo símbolo máximo é seu membro ereto, rígido, impassível. Confessar publicamente o insucesso no momento crucial e a flacidez indesejada do falo é inconcebível para muitos; algo equivalente a uma grande humilhação, perante seus semelhantes e, principalmente, diante das mulheres. O que pensar, então, de um autor que, enveredando pelas “escritas do eu”, aborda, em sua segunda obra literária, os próprios fracassos sexuais?
Pois é este o mote que Jacques Fux adota em Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor (menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria Romance). Publicado em 2015 pela Editora Rocco, o livro do mineiro, de 39 anos, configura-se como uma verdadeira “Ilíada da brochada” (Fux, 2015, p. 9), como define o autor. Em 240 páginas, Fux constrói um enredo com precisão quase matemática, fiel à sua formação acadêmica (antes de enveredar pelas Letras, o escritor cursou Matemática). Dessa simbiose, entre cálculos nem sempre exatos e histórias sem garantia de final feliz, nasceu Brochadas.
Os capítulos se intercalam metodicamente: curiosidades, lucubrações filosóficas e dados históricos acerca da sexualidade e, principalmente, dos famigerados episódios de impotência de personalidades como Platão e Hitler (resultados de uma intensa pesquisa e fértil imaginação), verdades falseadas envolvendo seus muitos encontros (e delírios) amorosos e, por fim, com a palavra, as mulheres. Sim! No relato de Fux, as figuras femininas também têm destaque, posicionam-se a respeito das frustações de alcova, admitem que brocham e apresentam suas explicações para os infortúnios amorosos.
E, se o matemático parece adotar um rigor aritmético na estrutura de sua “epopeia”, a errante verve literária, da mesma forma, faz-se presente. É neste sentido que aflora o escritor Jacques, que também é crítico literário, com doutoramento em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, tendo sido pesquisador visitante da Universidade de Harvard e autor residente na Ledig House, em Nova York. Essa trajetória sinuosa (Fux é ainda mestre em Ciência da Computação!) pode ter contribuído para a adoção do estilo multifacetado e até difícil de definir. Afinal, quais os limites da literatura? Para Fux, eles talvez não existam. O que explicaria, inclusive, o trânsito entre a matemática e as letras, a história e a ficção, entre a tradição judaica (marcante em sua vida e expressa em suas obras) e a pluralidade e multiculturalidade de nossos tempos.
Como característica peculiar do mineiro, pode- -se citar o caleidoscópio de estilos e referências que se somam, na tarefa de compor um texto que agrega aspectos ensaísticos, teoria literária, reflexões sobre sua cultura e o dilema da resistência/assimilação. Tendo Jorge Luís Borges e George Perec como duas de suas grandes referências intelectuais, Fux parece ter absorvido, de seus mentores, a capacidade de, engenhosamente, agregar estilos, fragmentos da própria vida e das reminiscências de seu povo, misturados a invencionices que, conjuntamente, resultam em um constructo instigante, reflexivo (sem abdicar da irreverência) e, por que não dizer, universal. O lócus enunciativo é bem delineado, mas se trata, enfim, de um judeu que reconhece a abrangência de questões que suplantam o âmbito cultural e étnico (nada mais democrático que as brochadas, as desilusões amorosas, as frustrações afetivas).
Brochadas parece, portanto, ratificar o caminho escolhido pelo autor, em sua incursão pela literatura (ao menos, até aqui). Em seu primeiro livro, intitulado Antiterapias (lançado em 2012; vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2013), ele já tinha optado por um enredo autobiográfico, híbrido e obnubilado. Havia o narrador-personagem, homônimo de Jacques, também judeu, galgando seu percurso intelectual e amoroso. Porém, várias pistas assinalavam tratar-se de uma mescla de rememorações e falseios (Fux, 2012, p. 51-53): “Preencho meus esquecimentos com literatura. Com ficção. Acontecimentos que realmente aconteceram? (...) A vontade de lembrar e de ficcionar me motiva.”
A estratégia do amálgama entre reminiscências ocorridas e inventadas se mantém no segundo trabalho. Mais uma vez, elementos autobiográficos estão presentes, como a coincidência entre nome de autor e personagem, elaboração em primeira pessoa e até o clássico recurso das escritas íntimas, de reprodução de correspondências pessoais, com o destaque para e-mails trocados entre o personagem e suas muitas mulheres de outrora. Entretanto, o escritor trata de enevoar este que seria o entendimento de uma clássica autobiografia e, a partir da epígrafe, sentencia: “Tudo aqui é verdade, exceto o que não invento” (Fux, 2015, p. 3). Este e vários outros alertas, que aparecem ao longo do livro, são a senha que nos indica: estamos diante de uma autoficção.
Segundo o crítico francês Jacques Lecarme (2014), a vantagem da autoficção é justamente proporcionar o questionamento da relação de identidade ou alteridade entre autor e narrador – algo extremamente cabível na literatura atual. O teórico Philippe Gasparini acrescenta que se trata de um recurso aplicado, “em primeiro lugar e antes de tudo, a textos literários contemporâneos” (Gasparini, 2014, p. 181). De fato, o conceito de autoficção é relativamente novo – foi proposto por Serge Doubrovsky em 1977. Passadas praticamente quatro décadas, a concepção de ficcionalização do eu mantém-se mais atual do que nunca. O próprio Doubrovsky, em ensaio publicado originalmente em 2010, reconhece a autoficção como a forma pós-moderna de autobiografia (Doubrovsky, 2014).
Em tempos de fakes, avatares e com a tendência de pessoas adotarem múltiplas personas na internet (e até mesmo na vida “real”), a literatura parece acompanhar essa vertente com afinco. Os exemplos são muitos, com adeptos de países diversos: Cristine Angot (França), Marie-Sissi Labrèche (Canadá), Paul Auster (Estados Unidos) e César Aira (Argentina), entre outros. No Brasil, temos “autoficcionistas” célebres, como Silviano Santiago, João Gilberto Noll, Cristóvão Tezza, Márcia Denser e Sérgio Sant’Anna. Fux seria, portanto, um dos mais jovens escritores nacionais a engrossar as fileiras desse campo literário.
Ademais, Brochadas não tangencia apenas a questão da autoficção; aguça a reflexão a respeito da (des) construção de arquétipos e estereótipos. À primeira vista, temos a figura do narrador-personagem, típico machista, que, muitas vezes, assume que suas brochadas foram motivadas pelo desejo não correspondido de ter uma companheira perfeita: sem conflitos, sem questionamentos, sem defeitos, sem cheiros desagradáveis... Tal suposto machismo, que poderia dar o tom da obra e resultar em um enredo reprovável, é neutralizado, graças à estratégia de Fux, de alternar as vozes que reverberam no texto. Assim, após os capítulos em que o personagem lamenta os diversos malogros amorosos e expõe, segundo sua ótica, a parcela de culpa de suas parceiras, seguem-se as versões delas, invariavelmente, furiosas perante a conduta do rapaz e de seu ímpeto em revelar tamanhas intimidades.
Talvez sejam, essas, as passagens mais divertidas do livro. É quando a figura do garanhão se desconstrói, e as “verdadeiras brochadas” acontecem. Jacques é literalmente derreado, esculhambado por suas musas, em sua posição de macho, e até mesmo de escritor. Só para citar um exemplo, temos a reação de Carla às indiscrições relatadas pelo personagem:
Uma noite triste com um bobão e sou “premiada” com esse belíssimo “capítulo” falando mal de mim. Me respeite. Eu não sou invenção, eu não sou esse tanto de mentira que você conta, que você tenta florear. Eu não sou o motivo da sua brochada. Você, autor-de-merda, é que brochou, e não fui eu não. (Fux, 2015, p. 59).
Por mais que haja convicção de estarmos diante de verdades inventadas (algo, nem sempre, compreendido pelos leitores), há que se ressaltar a ousadia do autor e a coragem de se expor. Não há pudores para o (anti)herói Jacques. Em suas revelações, cujo teor poderia denotar uma tentativa de diminuir ou subjugar o papel feminino nas relações, há, afinal, uma crítica à visão androcêntrica acerca do sexo. A maneira patética com que analisa suas desventuras afetivas e sexuais acaba gerando esse efeito “feminista”. A redenção do personagem acontece, com mais ênfase, no último capítulo, no qual, ao ficcionalizar a circuncisão de Cristo (arquétipo da incompletude masculina), assume, enfim, que as mulheres é que estariam mais aptas a discorrer sobre as relações humanas:
Acredita-se, no entanto, que a verdadeira santificação do corpo acontece, todos os dias, nos corpos das mulheres. Elas é que deveriam contar e narrar as legítimas histórias, o prazer original, o amor sem limites, as brochadas, e as mais profundas desilusões. Jesus, e outros homens incompletos, estão começando a finalmente entender isso. (Fux, 2015, p. 162).
Neste momento derradeiro da obra, quem enuncia: Jacques autor ou Jacques personagem? Provavelmente, os dois, considerando-se a acepção (ainda nebulosa) de autobiografia pós-moderna... Para entender esse novo tipo de escrita, da qual a literatura de Jacques é signatária, uma proposta: recorrer às lucubrações do jovem escritor, a essa “cadeia de significações” ainda incipiente, titubeante, mas que se mostra reveladora. Em Antiterapias, Fux já filosofava:
Continuo inquietado com a Literatura e com toda a rede de referências que ela cria e plagia. Esse foi o mesmo amor que tive por todas as mulheres que me incomodaram. Que não me revelaram, a princípio, sua beleza e seus encantos. Mulheres que me deixaram cabreiro e me excitaram. Assim como a literatura. (Fux, 2015, p. 158).
Talvez seja essa a essência de Brochadas: uma ode ao desafio diante da literatura e das mulheres, pelas quais Jacques demonstra todo o seu fascínio – tão imenso, que o compele a seguir em frente, continuar arriscando, mesmo com adversidades, brochada após brochada... O mesmo encanto que a escrita é capaz de despertar, ainda que se apresente de modo incerto, hermético, desafiador: “Eu não entendo a minha literatura. Mas eu a amo. Amo o mistério. O segredo. O não saber. O estranhamento.” (Fux, 2012, p. 158). Afinal, o livro de Jacques Fux nos aventa que brochar pode não ser tão ruim...
Referências
DOUBROVSKY, Serge. O último eu. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
FUX, Jacques. Antiterapias. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
GASPARINI, Philippe. Autoficção é o nome de quê? In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
LECARME, Jacques. Autoficção: um mau gênero? In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
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