Tradução
Geologias dos estudos queer: um déjà vu mais uma vez1
Recepção: 02 Novembro 2016
Aprovação: 01 Abril 2019
Pensei em aproveitar a ocasião desta palestra para refletir sobre os saberes queer e sobre as condições de sua produção. Quero usar uma experiência que continuo tendo com os saberes GLBTQ (gay, lésbico, bissexual, transgênero e queer) para acentuar a necessidade contínua de construir formas institucionais estáveis que possam garantir o desenvolvimento, a preservação e a transmissão de tais conhecimentos. Este é o déjà vu ao qual meu título se refere: quanto mais exploro esses conhecimentos queer, mais descubro o quanto já esquecemos, redescobrimos e prontamente esquecemos de novo. Eu mesma já tentei reinventar a roda em diversas ocasiões. Quero refletir aqui sobre as razões pelas quais isso tem acontecido com essa irritante regularidade. Um dos principais problemas é que ainda não temos recursos organizacionais suficientes para tornar mais rotineira a conservação de saberes previamente alcançados e a sua transmissão para as novas gerações.
Portanto, se vocês me permitem, vou bancar o Sr. Peabody e os convidarei à minha máquina do tempo pessoal.2 Estamos por volta de 1970 e eu sou uma baby dyke3 novinha em folha. A primeira coisa que quero fazer é seduzir o objeto de meu desejo; a segunda, ler um bom romance lésbico. Tendo pouca sorte em meu primeiro projeto, dirijo- -me à biblioteca da Universidade de Michigan e procuro por “lesbianismo” [lesbianism] em seu catálogo físico (isso foi antes do advento dos catálogos computadorizados). Havia duas entradas sob o assunto “lésbica”. Uma delas era para o livro The well of loneliness, de Radclyffe Hall. A outra era para um livro de Jess Stern, intitulado The grapevine, uma semissensacional história sobre a Daughters of Bilitis (DOB), organização de direitos lésbicos com base em São Francisco, fundada no período inicial do ativismo homófilo, em meados da década de 1950.4 Eu ainda não sabia, nessa época, que a DOB havia produzido uma pequena revista intitulada The Ladder, nem que a The Ladder continuava a ser produzida, ainda que não pela DOB.
Considerando que a biblioteca da Universidade de Michigan era (e ainda é) uma das melhores da América do Norte, concluí que havia pouquíssimos escritos sobre o tema e, portanto, havia uma gritante necessidade de uma bibliografia lésbica. Decidi, então, produzir uma revisão bibliográfica sobre o assunto para meu trabalho de conclusão de curso5 e passei os meses seguintes envolvida em tentar localizar toda e qualquer fonte escrita sobre lesbianismo.
O primeiro passo foi investigar, no balcão de referência da biblioteca, o porquê de haver tão poucas menções sobre lesbianismo e perguntar se alguém teria sugestões para encontrar mais referências. Deparei-me com olhares inexpressivos. Mas, ao longo das semanas seguintes, enquanto pesquisava nos cartões do catálogo da biblioteca, comecei a sentir uma presença às minhas costas. Essa presença era a de uma discreta bibliotecária que trabalhava nas referências catalogadas, sussurrando que eu poderia me interessar pela seção de mulheres filantropas ou pelos livros sobre mulheres na prisão.
Os livros sobre filantropia eram, de fato, cheios de histórias sobre mulheres ricas e bissexuais experimentando romances pelo lado feminino do registro social. A literatura sobre encarceramento estava cheia de relatos de paixões nas prisões, escritos por assistentes sociais de classe média escandalizados com as vidas erótica das mulheres sob sua supervisão, a maioria pobre e de classe trabalhadora (cujas ligações inter-raciais provocavam uma especial consternação nesses autores).
Entretanto, minha grande descoberta de pesquisa ocorreu acidentalmente, em uma visita a Boston. Deparei-me com uma cópia da revista The Ladder em uma pequena livraria perto da Harvard Square. Imediatamente escrevi uma carta para a The Ladder, explicando que estava trabalhando em uma revisão bibliográfica sobre literatura lésbica e perguntando se alguém ali poderia me auxiliar. O editor era um tal de Gene Damon, que era, obviamente, Barbara Grier.6 Ela respondeu com uma afiada reprimenda, informando-me que tal revisão bibliográfica já existia. Era a The lesbian in literature, de Gene Damon (pseudônimo de Grier) e Lee Stuart, publicada em 1967.
Também fui devidamente castigada por minha ignorância sobre o livro anterior de Jeannette Foster, Sex variant women in literature (1956). A poderosa máquina de escrever de Grier poderia ter tirado o couro de um rinoceronte e seguramente tirou um pouco do fôlego do meu entusiasmo juvenil. Fico feliz em relatar que, depois deste primeiro encontro desafiador, Barbara cedeu, compartilhando generosamente seu extraordinário e detalhado conhecimento sobre as riquezas ocultas dos textos lésbicos. Contudo, o ponto central desta história é o quão difícil era, em torno de 1970, encontrar tais publicações. O trabalho de revisão já fora feito, mas encontrar tais publicações era algo em grande medida inacessível. Os mecanismos para o compartilhamento sistemático e a aquisição do saber lésbico eram, na melhor das hipóteses, rudimentares.
Depois de saber que já existiam bibliografias lésbicas, voltei ao balcão de referências para saber se poderia acessá-las por meio de empréstimos entre bibliotecas. Alguns dias depois, um desses bibliotecários, provavelmente queer, conduziu-me a outro portal para o mundo secreto dos estudos e saberes LGBTQ. Ele sugeriu que eu subisse até a seção de Coleções Especiais e perguntasse pela Coleção Labadie [Labadie Collection]. Uma vez que o acervo da Coleção Labadie era catalogado separadamente, ele não aparecia no catálogo principal. Mas o bibliotecário achava que alguns dos materiais que eu procurava estariam com alguns dos livros raros, no sétimo andar. Segui esta trilha escadas acima até a mesa de Ed Weber.
A Coleção Labadie foi fundada em 1911, por um anarquista de Detroit chamado Joseph Labadie. A coleção era inicialmente focada em escritos anarquistas, mas gradualmente foi expandida, de modo a incluir literaturas relacionadas a protestos sociais, especialmente aqueles considerados “extremistas”. Quando Ed Weber foi contratado como curador, em 1960, ele começou a colecionar publicações homófilas e materiais gays. Como resultado, a Labadie tornou- -se um dos maiores repositórios de publicações de cunho homossexual no país, em uma época em que a maioria das bibliotecas públicas e universitárias os descartavam como se fossem lixo pornográfico. No fim das contas, quase tudo que eu procurava estava, de fato, no andar de cima, na Labadie, um “país das maravilhas” dos estudos e conhecimentos homófilos. A coleção tinha de um tudo: The lesbian in literature, de Damon e Stuart; Sex variant women in literature, de Foster; alguma bibliografia anterior compilada por Marion Zimmer Bradley, e uma quase completa tiragem da The Ladder.
Eu praticamente me mudei para a Coleção Labadie pelo restante da minha graduação, com o intuito de devorar esses documentos. Ainda me surpreende o quanto essas mulheres conheciam sobre história lésbica e o quão difícil foi, para mim, descobrir o que elas sabiam. Naquela época, eu estava bastante alheia às publicações gays masculinas, então acabei não explorando as coleções (igualmente impressionantes) da Labadie de publicações como a Mattachine Review, One e One Institute Quartely.7 Porém, descobri mais tarde, quando meus interesses se ampliaram, que a Labadie também continha imensas compilações de história gay, bibliografias, análises sociais e crítica política.
Eu também não estava ciente de que meus próprios interesses faziam parte de uma grande onda de estudos acadêmicos que emergia do movimento de liberação gay. Só compreendi em retrospecto o quanto a minha coorte construiu sua atuação a partir de um caminho que já fora traçado por nossos predecessores homófilos, mesmo que muitas vezes nós os rejeitemos por sua ostensiva falta de sofisticação teórica ou de precisão terminológica. Enquanto preparava esse texto, enviei e-mails a vários de meus antigos amigos que também faziam pesquisas em torno de temáticas gay na mesma época, e perguntei como eles haviam encontrado uma direção e suas fontes de referência. Todos admitiram um débito significativo com o campo de estudos e saberes homófilos, com os arquivos das organizações ativistas da época e com as coleções particulares.
Não é uma surpresa, portanto, que muito do material para o primeiro livro de John D’Emilio produzido sobre o movimento homófilo tenha vindo de publicações como a Mattachine Review e a The Ladder, bem como dos arquivos da Mattachine Society, em sua seção de Nova Iorque. Mas é interessante ressaltar os locais onde John encontrou tais arquivos e fontes documentais. Muitos dos documentos que ele consultou foram acumulados e preservados por indivíduos, principalmente Jim Kepner, em seu apartamento em Los Angeles, e Don Lucas, em sua garagem em São Francisco.
John também consultou os arquivos verticais no Instituto Kinsey e visitou Ann Arbor para utilizar os periódicos da Coleção Labadie. Para o seu magistral livro Gay american history (1976), Jonathan Ned Katz também se baseou fortemente na generosa bibliografia produzida por essa primeira imprensa homófila. Quando questionei Jonathan sobre como tinha conseguido os seus mapas da mina, ele mencionou The lesbian in literature, a Mattachine Review, a One e diversas bibliografias de temática gay masculina, especialmente aquelas de Noel Garde.
O e-mail de Jonathan me fez ter vontade de olhar mais de perto para o acervo de Garde, e eu já havia decidido, na preparação desta palestra, passar algum tempo com essas antigas publicações homófilas. Eu estava, por acaso, de volta a Michigan e pronta para retornar à minha paixão dos tempos da graduação, de modo a tentar espremer mais alguns insights das vozes de estudiosos queer do passado. Perdi muito da significância dessas vozes, há trinta anos, devido a uma falta de contextualização.
Leio esses textos de maneira diferente agora, porque sei muito mais hoje do que sabia então e posso filtrá-los pelas lentes dos trabalhos de pessoas como Jonathan Katz, John D’Emilio, Allan Bérubé, Jim Steakley, Estelle Freedman, William Eskridge (entre outros). Há certos temas comuns e assuntos que se repetem. Um indivíduo que lesse atentamente a The Ladder, One, Mattachine Review e One Institute Quarterly teria tido um firme domínio de questões importantes, casos legais, relatórios governamentais e polêmicas que afetaram a vida gay nos anos 1950 e 1960.
Revisões bibliográficas eram uma obsessão central compartilhada. Além da revisão detalhada e cuidadosa de Jeannette Foster, feita por Marion Zimmer Bradley em sua publicação de maio de 1957, a The Ladder incluía também a coluna bibliográfica regular de Bradley chamada “Lesbiana”. Barbara Grier eventualmente assumiu essa coluna, cujos conteúdos proporcionaram muito do material utilizado para The lesbian in literature.
De modo similar, a Mattachine Review, em 1957, começou a série Bibliografias sobre Sujeitos Homossexuais. Em 1959, Noel Garde publicou The homosexual in literature, anunciado como uma “revisão bibliográfica cronológica de cerca de 700 a.C. a 1958”, e, em 1964, a Vantage Press publicou seu livro From Jonathan to Gide: the homosexual in history. Na época de sua publicação, Garde e o compêndio de Damon/ Stuart eram o estado da arte na bibliografia gay. Enquanto o meu “eu” mais jovem teria criticado este tipo de trabalho pelo seu fracasso em interrogar a categoria “homossexual”, agora entendo esses textos como realizações consideráveis. Além disso, tais compilações tornaram possível a aplicação do armamento teórico da história social, da antropologia cultural e da sociologia urbana do fim dos anos 1960 aos temas GLBTQ’s.
Mas quais eram as suas fontes? Como pesquisadores como Garde e Grier descobriram o que eles sabiam? Ambos eram obviamente apaixonados em seu zelo bibliográfico e ambos foram capazes de construir os seus estudos a partir de trabalhos prévios. Grier e Bradley valeram-se fortemente da obra de Jeannette Foster. Foster, por sua vez, era uma bibliotecária especializada que trabalhou no Instituto Kinsey de 1948 até 1952.8 Ela era, portanto, capaz de utilizar a incomparável coleção acumulada por Kinsey. Foster seguiu muitas pistas, mas é nítido, em suas próprias citações, que ela também escavou cuidadosamente os textos de sexologia de Havelock Ellis e Magnus Hirschfeld, assim como os escritos contemporâneos de John Addington Symonds e Edward Carpenter. Em vários aspectos, o livro de Foster é uma espécie de texto de articulação conectando a geração homófila às acumulações prévias dos conhecimentos queer geradas entre fins do século XIX e início do XX.
De modo similar, o livro de 1951 de Donald Webster Cory, The homosexual in America, é uma das principais vias de articulação entre a literatura produzida antes da Primeira Guerra Mundial e a coorte de intelectuais homófilos do período posterior à Segunda Guerra Mundial. Noel Garde reconhece explicitamente as referências a Cory, assim como a bibliografia produzida pela seção de Nova Iorque da Mattachine Society. O livro The homosexual in America possui vários aspectos problemáticos, mas a obra também definiu uma agenda para muitos dos estudos homófilos que ela precedeu e prefigurou.9
Cory incluiu todos os mais importantes documentos do governo norte-americano referentes à homossexualidade, incluindo O emprego de homossexuais e outros pervertidos sexuais no governo e as regulamentações da Administração de Veteranos, que lidavam com os militares desonrosamente dispensados das Forças Armadas devido à homossexualidade. O livro The homosexual in America também listou as legislações regulando as atividades homossexuais em todos os 48 estados, à época. A própria bibliografia de Cory e sua lista de fontes permanecem notáveis, e ele incluiu nela, como um apêndice especial, uma lista de romances e dramas relacionados à homossexualidade. Foster também leu, utilizou e citou Cory, e suspeito que as bibliografias impressas na Mattachine Review começaram por uma atualização do trabalho de Cory.
Cory, por sua vez, extraiu uma parte considerável do seu material de outra grande camada sedimentar de conhecimento queer, aquela que se acumulou na Grã-Bretanha e na Europa continental no fim do século XIX e início do XX. Nomeio com frequência essa camada de “sexologia do final do século XIX”, mas essa denominação não faz jus às formas complexas pelas quais os sexólogos credenciados como médicos, os intelectuais homossexuais estigmatizados e a maioria dos membros anônimos, porém ativos, das florescentes comunidades queer se engajaram em um complicado tango de comunicação e de publicação, como está detalhado no brilhante trabalho de Harry Oosterhuis sobre Richard von Krafft-Ebing (Oosterhuis, 2000).
Talvez seja melhor pensar nesse enorme conjunto de obras como uma fusão entre os textos médicos e os escritos de intelectuais homossexuais (ou “invertidos” [invert]), que mesclou materiais de fontes polêmicas de modo a articular as críticas iniciais a respeito de injustiças sexuais e perseguições. Essas fontes incluíam biografias de homossexuais famosos, material obtido a partir de clássicos em grego e em latim, testemunhos pessoais sobre os efeitos da chantagem e da privação sexual, relatórios etnográficos, dados sobre o comportamento animal, observações sobre a vida comunitária homossexual e algumas das primeiras compilações modernas de bibliografias queer.
Tomado como um todo, o corpo de trabalhos a que chamamos sexologia é um empreendimento intensamente colaborativo entre médicos e “pervertidos” (perverts). Ele resultou em uma massiva consolidação de um enorme estrato de conhecimentos queer – às vezes fecundamente escavado, outras vezes ignorado, descartado ou esquecido. Mas uma coisa se tornou abundantemente clara: assim como minha coorte vinculada aos movimentos de liberação gay produziu suas obras a partir de publicações e fontes de arquivo reunidas por nossos predecessores imediatos, os pesquisadores da era homófila basearam-se em estratos anteriores, particularmente os de cunho “sexológico”.
Dentre os mais importantes sexólogos estavam Richard von Krafft-Ebing, Havelock Ellis e Magnus Hirschfeld. As polêmicas-chave incluíam os escritos de Karl Heinrich Ulrichs, Edward Carpenter e John Addington Symonds.10 Magnus Hirschfeld era, como Ellis e Krafft-Ebbing, um médico formado. Ele era também um brilhante polemista, alguém cuja própria homossexualidade era por vezes usada para minar a sua autoridade médica. Ulrichs e Carpenter, por sua vez, não possuíam credenciais médicas, embora fossem citados em peso em textos médicos.
O papel de Symonds é especialmente complexo. Seu nome foi removido do livro Sexual inversion por exigência de seus herdeiros, mas ele teve uma considerável contribuição nas informações históricas e em muitas das análises que atribuímos a Ellis (Bristow, 1998). O trabalho do próprio Symonds contém revisões incisivas de literatura médica, na qual, por sua vez, ele também é comumente citado (Symonds, 1896).
O tomo de mil páginas de Magnus Hirschfeld, The homosexuality of men and women (1914), é emblemático das conquistas desse período. Hirschfeld tinha como intenção construir um relato completo de todos os tópicos conhecidos sobre homossexualidade. Ele incorporou os trabalhos de outros médicos sexólogos, assim como de escritores leigos como Symonds, Carpenter e Ulrichs, bem como a sua própria pesquisa inicial. A segunda parte do livro, chamada “A homossexualidade de homens e mulheres como ocorrência sociológica”, é particularmente instigante. Ela inclui os resultados de um dos primeiros surveys estatísticos sobre homossexuais, assim como capítulos sobre homossexualidade em diferentes classes sociais e em diferentes países.
O livro de Hirschfeld também contém um relatório extraordinário a respeito da vida urbana gay no início do século XX. Por sua vez, John Addington Symonds destacou que a paixão homossexual “vibra em nossas grandes cidades. Seu pulso pode ser sentido em Londres, Paris, Berlim, Viena, não menos do que em Constantinopla, Nápoles, Teerã e Moscou” (Symonds, 1896, p. 2). Hirschfeld segue detalhando a sociologia dessa pulsação no capítulo sobre a vida comunitária e os locais de encontro de homens e mulheres homossexuais (principalmente em Berlim), incluindo círculos de amigos, clubes privados, clubes políticos, clubes de esportes e uma complexa rede de bares que atendiam a diferente subgrupos da população em questão.
Ele documentou o uso homossexual de teatros públicos, um conjunto de saunas frequentadas por homossexuais, bailes drag [drag balls] tanto para homens como para mulheres, os hotéis e hospedarias preferidos por homossexuais, as paqueras e encontros eróticos [cruising] em banheiros e parques públicos, assim como o uso de anúncios pessoais para achar parceiros (Hirschfeld, 2000, p. 776-803). E a significância dessa subcultura citadina é mostrada, ele nota, pelos “muitos que raramente foram capazes de remover suas máscaras, e que se sentem aqui tal como se estivessem libertos. As pessoas têm visto os homossexuais provenientes das províncias pisarem nesses bares pela primeira vez e violentamente irromperem em lágrimas de emoção” (p. 785).
Hirschfeld também dedicou um espaço considerável para abordar as vitimizações sociais e legais, assim como as perseguições e os processos contra homossexuais. Ele incluiu uma história detalhada do movimento organizado contrário a essas perseguições, assim como uma lista de legislações hostis aos gays ao redor do mundo.
O significado intelectual de Hirschfeld é frequentemente subestimado, como uma consequência da escassez de traduções confiáveis de sua magnífica obra (Steakley, 1997, p. 133-134). Alguns trechos de The homosexuality of men and women foram traduzidos por Henry Gerber e publicados no One Institute Quarterly, no inicio dos anos 1960, mas uma tradução completa, de Michael Lombardi-Nash, só foi disponibilizada a partir dos anos 2000. Eu não havia lido The homosexuality of men and women quando tive meu primeiro encontro com The homosexual in America. Agora, tendo lido ambos, posso ver o parentesco entre eles.
Cory leu Hirschfeld em alemão e pôde se basear nas compilações bibliográficas de Hirschfeld, assim como em seus dados históricos e táticas retóricas. Cory debateu o que chamou de “movimento Hirschfeld” e “movimento Carpenter”, no final do século XIX e início do XX, lamentando que não houvesse nada similar desde os seus declínios. Ele, provavelmente, não teria como saber que uma grande retomada desse ativismo viria à tona, nem que suas elaborações quanto ao corpus de conhecimento do período anterior à Primeira Guerra Mundial seriam posteriormente refinadas e ampliadas por um emergente grupo de pesquisadores homófilos.
A camada de conhecimentos queer gerada entre fins dos anos 1880 até os anos 1920, principalmente na Inglaterra e na Europa continental, tem continuado a inspirar novos trabalhos, conforme estudiosos escavam as suas fontes a serviço de projetos mais contemporâneos. Por exemplo, a fase inicial do trabalho de Jeffrey Weeks – especialmente o seu livro Coming out: a history of homosexual politics in Britain (1977) –, de várias formas, é uma extensa meditação sobre as obras de Havelock Ellis, Edward Carpenter e John Addington Symonds, moldada por um considerável conhecimento da obra de Krafft-Ebing.
Por sua vez, o livro História da sexualidade: an introduction, de Foucault, é em grande medida uma brilhante leitura da obra de Krafft-Ebing e da psiquiatria francesa de fins do século XIX. O trabalho de Lisa Duggan sobre o caso Alice Mitchell e a biografia de Krafft-Ebing escrita por Harry Oosterhuis tornam possíveis leituras completamente inovadoras da sexologia da época. Não obstante, acredito que tanto os textos sexológicos como o corpus de obras homófilas estão subutilizados e poderiam ainda produzir umas mil dissertações e teses.
É esse o sentido dos saberes queer em camadas sedimentadas, que busquei transmitir com o título de minha palestra esta noite. No registro geológico, certos estratos são ricos em fósseis; em parte, devido às condições que produzem formas exuberantes de vida, e, em parte, por causa das condições que favorecem a sua preservação em forma fóssil.
De maneira similar, parece haver períodos nos quais certas condições sociais e políticas favoreceram a abundante proliferação de saberes queer, enquanto outras condições, por sua vez, ditam a sua preservação ou destruição. E depende das gerações que se sucedem assegurar que essas formações sedimentares sejam identificadas, escavadas, catalogadas e utilizadas para produzir novos saberes. Infelizmente, devido à falta de mecanismos estruturais duráveis para assegurar a transferência de saberes queer, eles acabam sendo, ao invés disso, frequentemente perdidos, enterrados ou esquecidos.
Por exemplo, é difícil dar aulas a partir de referências que só estão disponibilizadas em apostilas fotocopiadas ou em coleções especiais de acesso restrito. A maior parte dos livros aos quais me referi nesta noite estão esgotados ou são difíceis de encontrar. Muitos deles estiveram disponíveis, brevemente, em edições reimpressas durante os anos 1970, como consequência da série de 1975 da Arno Press: Homosexuality: lesbians and gay men in society, history and literature. Essas edições reimpressas de textos de referência primária estiveram entre as mais importantes conquistas da onda pioneira de estudiosos associados ao movimento de liberação gay.
A série consistia em 54 livros e 2 periódicos, incluídos aí as primeiras revisões bibliográficas homófilas de Damon, Stuart, Bradley e Garde; muitos documentos-chave do governo dos EUA relacionados à homossexualidade; reimpressões de livros importantes de Edward Carpenter, Xavier Mayne, Natalie Barney, Earl Lind, Mercedes de Acosta, Blair Niles, Renée Vivien e Donald Webster Cory; clássicos lésbicos e romances de estilo pulp; textos do movimento pelos direitos gays na Alemanha; e reimpressões de edições completas da The Ladder e da Mattachine Review.11
Essa série extraordinária estava adiantada em três décadas. Infelizmente, ela também está esgotada e as edições Arno são praticamente tão raras quanto as originais. Tanto o livro Psychopathia sexualis, de Krafft-Ebing, quanto o Sexual inversion, de Havellock Ellis, foram relançados recentemente em edições de bolso mais baratas, mas quando tentei encomendá- -las, para que fossem utilizadas em minhas disciplinas acadêmicas nesse ano, elas já estavam, mais uma vez, inalcançáveis.
Quero utilizar esta breve revisão para pôr em relevo alguns pontos. O primeiro é a amnésia que prevalece sobre o passado dos estudos queer. Eu fico continuamente chocada com a afirmação de que os estudos GLBTQ só teriam começado em algum momento dos anos 1990. E escolhi a metáfora da geologia porque ela nos ajuda a pensar sobre quadros temporais mais longos e a retirar o foco somente do presente. Em tempo geológico, o presente é um piscar de olhos.
O nosso sentido do que é importante quanto aos saberes queer acadêmicos não deveria ser distorcido pelo glitter do momento, pelo que está na moda e pelo que é mais novo. Quero que nós pensemos sobre os processos mais longos que ajudaram a dar forma ao presente e nos quais o presente está fortemente enraizado. Qualquer projeto de estudos acadêmicos pode se beneficiar de um acúmulo de conhecimentos que podem ser avaliados, validados, criticados, atualizados, polidos, aperfeiçoados ou utilizados de modo a fornecer novos percursos a ser investigados. Nós precisamos estar mais conscientes da importância de incluir referências e materiais mais antigos aos cânones contemporâneos dos estudos queer.
Entretanto, as causas dessa memória limitada são mais estruturais do que estilísticas e são produzidas menos por decisões curriculares do que por impedimentos institucionais. Meu principal argumento é que precisamos atuar mais para superar as deficiências institucionais que dificultam nosso acesso aos conhecimentos mais antigos. Devemos continuar a desenvolver estruturas organizacionais que garantam a conservação, a transmissão e o desenvolvimento de saberes queer.
Como uma disciplina, os estudos GLBTQ estão institucionalizados de modo ainda muito rudimentar nas universidades, e esse é um grande desafio para a continuidade de sua viabilidade. Claramente, há uma institucionalização muito maior agora do que havia uma década atrás, como demonstrado por eventos tais como essa série de palestras e a existência de instituições como o CLAGS.12 Mas o número de departamentos de estudos GLBTQ é minúsculo, em comparação ao número de departamentos, por exemplo, de sociologia ou ciência política.
As infraestruturas de conhecimento requerem espaço físico e estruturas organizacionais duráveis – escritórios, prédios, bibliotecas, arquivos, departamentos, programas, centros, linhas de pesquisa, um corpo de professores e pesquisadores, postos para funcionários administrativos, verbas e salários. Nós devemos trabalhar para acumular mais desses recursos e construir melhores burocracias.
Muitos de nós instintivamente recuamos diante da ideia de burocratização e a consideramos desagradável. A burocracia tem muitos pontos negativos, incluindo o marasmo, o tédio, procedimentos sem sentido e burocratas mesquinhos. Burocracias, quase por natureza, não possuem entusiasmo, glamour ou carisma. Nós, com frequência, vivemos em prol de intensidades fugazes e momentos eletrizantes, assim como celebramos a marginalidade como uma forma de aspiração permanente.
Mas se a burocracia e a rotinização têm seus custos, também os tem a marginalidade e o carisma. A marginalidade e suas excitações momentâneas são intrinsecamente frágeis, evanescentes e instáveis. Parte da razão pela qual a nossa memória é falha quanto aos estratos mais antigo dos saberes queer é que as instituições e organizações que os produziram não existem mais. A vida queer é repleta de exemplos de explosões fabulosas que deixaram pouco ou nenhum traço detectável, ou cujos restos, em termos de documentos e artefatos, nunca foram sistematicamente reunidos ou adequadamente conservados.
Aqueles de vocês que me conhecem vão entender a ambivalência com que relembro uma dessas instituições desaparecidas: a figura da “comunidade de mulheres” que surgiu do feminismo e lesbianismo radical nos anos 1970. Ao final dos anos 1970, existiam dezenas de jornais feministas e lésbicos, pelo menos uma dúzia de revistas acadêmicas, várias editoras feministas prósperas e uma rede de comunidades locais com um significativo território público.
Em San Francisco, muito desse território de mulheres se concentrava ao longo da Valencia Street, onde havia bares lésbicos, cafeterias feministas, livrarias de mulheres e diversos coletivos e estabelecimentos comerciais de mulheres. Havia agrupamentos similares na região oeste de Massachusetts, na cidade de Iowa e pelo restante da Baía de São Francisco, bem como na cidade de Oakland. Hoje em dia não há mais quase nada remanescente daquele mundo. A maior parte dos jornais, revistas acadêmicas, livrarias, cafeterias e estabelecimentos desapareceram, apesar de haver alguns poucos sobreviventes teimosos, como a Lesbian Connection.
Existem razões complicadas para o colapso dessas comunidades, mas uma delas foi a fragilidade infraestrutural. Em São Francisco, por exemplo, a maioria das lojas era alugada na parte da frente de prédios e situada ao longo de um conjunto de outros negócios, tendo um baixo custo de aluguel. Quando os aluguéis comerciais começaram a decolar, essas lojas foram obrigadas a se retirar desses locais. O único remanescente dessa vibrante comunidade de mulheres de outrora é o Women’s Building e a única razão pela qual ele ainda está lá é porque o prédio foi comprado e não alugado.13 Mas o ambiente de um prédio é caro para ser adquirido e desafiador para ser mantido. A estabilidade exige recursos intensivos.
Populações queer têm uma super abundância de marginalização e uma insuficiência de estabilidade. Max Weber observou que a burocracia, quando plenamente estabelecida, está entre as estruturas sociais mais difíceis de destruir (Gerth; Mills, 1958, p. 228). Isso pode ser uma maldição. Mas nós poderíamos usar algo dessa estabilidade, e os recursos necessários para sustentá-la, nos estudos queer.
Novos quadros teóricos, novos dados e novas descobertas vão sempre forçar o repensar de nossas premissas e suposições. Devemos contar com rebeliões periódicas, assim como reformas e levantes, de modo a trazer novos ares e renovação. Mas, para parafrasear Marx e Marshall Berman, tudo o que é sólido pode se desmanchar no ar, em um simples batimento cardíaco, e para distorcer Santayana, aqueles que fracassam em garantir a transmissão de suas histórias estão fadados a perdê-las.