RESENHA

Lodge e Wegrich em “The Problem-Solving Capacity of the Modern State”.

Bruno Queiroz Cunha
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Lodge e Wegrich em “The Problem-Solving Capacity of the Modern State”.

Sociedade e Cultura, vol. 20, núm. 1, pp. 313-317, 2017

Universidade Federal de Goiás

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LODGE Martin, WEGRICH Kai. The Problem-Solving capacity of the modern State – governance challenges and administrative capacities.. 2014. Oxford: Oxford University Press. 308pp.

Recepção: 05/02/2017

Aprovação: 06/06/2017

The problem-solving capacity of the modern State – governance challenges and administrative capacities (doravante, Problem-Solving) é um compêndio que, tendo por base um recorte particular acerca das capacidades estatais, reúne capítulos tanto teórico quanto de corte empírico – no segundo caso, voltados a áreas de política e problemas públicos de relevo. Destaca-se o fato de que o livro propõe uma abordagem inovadora e desagregada de capacidades estatais, de caráter finalista ou teleológico e focada na resolução de problemas.

O livro se divide em três partes, além da introdução e da conclusão, ricamente apresentadas pelos organizadores. A primeira seção traz capítulos que versam sobre cada uma das quatro capacidades administrativas que compõem a tipologia lançada pelo livro, quais sejam, a capacidade de entrega (delivery capacity), a capacidade de coordenação (coordination capacity), a capacidade regulatória (regulatory capacity) e a capacidade analítica (analytical capacity). A segunda seção traz estudos acerca dos desafios atinentes a áreas específicas de política, enquanto a terceira seção traz contribuições sobre desafios de governança e inovações que transcendem unicamente o aparato estatal. A tipologia das capacidades estatais apresentada na obra é, certamente, o ponto de maior destaque.

Os organizadores da obra, Martin Lodge e Kai Wegrich, são pesquisadores internacionais reconhecidos no campo da política e gestão públicas, com trabalhos que se voltam essencialmente ao estudo do Poder Executivo e suas nuances. Lodge é professor do Departamento de Governo da britânica London School of Economics and Political Science, enquanto Wegrich integra a Hertie School of Governance, sediada em Berlim,Alemanha.

Trabalhos mais recentes dos dois organizadores, por vezes em co-autoria, têm ado-tado como ponto de partida a atual crise político-financeira global. A partir desse quadro de referência, Lodge e Wegrich vêm examinando os reais entraves que a conjuntura contemporânea impõe ao Estado, desenvolvendo um olhar crítico sobre as implicações internas e sistêmicas que emergem disso.A obra Problem-Solving, sem tradução em português, é, em si, um produto dessa trajetória desses dois pesquisadores.

Problem-Solving, ademais, é resultado de um projeto mais amplo, encapsulado na iniciativa denominada The Governance Report. A ação, liderada pela Hertie School of Governance, produz, anualmente, análises teórico-aplicadas sob o enfoque da governança governamental.A cada ano, um tema central orienta a elaboração de estudos por diversos e variados especialistas.Além de um relatório final que reúne os estudos produzidos, sempre se gera um compêndio adicional, publicado em forma de livro pela Oxford University Press. O Problem-Solving consiste no livro de 2014, quando a temática central foram as capacidades estatais, ou, mais propriamente, as capacidades administrativas do Estado.

Como mencionado, o livro avança uma proposta analítica que parte do diagnóstico acerca da atual conjuntura de crise global, a qual termina por conferir um caráter cumulativo aos principais desafios correntes (wicked-problems). Um exemplo nesse sentido – bastante aderente à realidade brasileira – estaria na aguda necessidade de aprimoramentos em áreas de infraestrutura, como energia e transporte, concomitantemente ao risco ambiental que alguns potenciais projetos nessas áreas representam.Tal como no caso das mais acentuadas “mega-tendências” contemporâneas, como o aquecimento global, o envelhecimento populacional e o terrorismo internacional, problemas cumulativos requerem, segundo os autores, capacidade de intervenção multissetorializada do Estado. Simultaneamente, também demandam habilidade inovadora do Poder Público, em especial no tocante a novas e efetivas soluções na esfera da governança decisória. Isso tudo, por fim, aponta para a essencialidade de determinadas capacidades administrativas específicas, ponto que é densamente explorado no livro.

Problem-Solving também se fundamenta numa postura em certa medida crítica de modelos hegemônicos de funcionamento e reforma do Estado. Os organizadores sublinham, já no capítulo de introdução, as limitações de mecanismos meramente focados em “boa governança”, assim como daqueles calcados na autonomização ou agenciamento do Estado.

No que concerne às capacidades estatais, os organizadores do livro propõem, por um lado, uma visão, na qual recursos – entendidos de maneira ampla e abarcando inclusive arranjos institucionais – levariam à formação de capacidades administrativas. Essas capacidades, entretanto, adquirem em Problem-Solving uma acepção algo mais dinâmica do que a usualmente encontrada em estudos nesse campo, na medida em que a tipologia proposta,de quatro capacidades, interliga-se à cumulatividade de problemas contemporâneos e à necessidade (ou oportunidade) da emergência de inovações institucionais para enfrentá-los.

Por outro lado, e de modo complementar à primeira visão, que é de natureza formativa e tem nas capacidades estatais variáveis resultantes da combinação prévia de recursos do Estado, o livro também indica a possibilidade de uma segunda visão, na qual sobressai a relevância de também se reter as capacidades administrativas enquanto variáveis independentes. Nesse caso, elas operariam, na prática, como antecedentes e viabilizadores da estratégia de intervenção estatal adotada em cada circunstância. Aqui, as capacidades se veriam associadas aos diferentes tipos de instrumentos de intervenção do Estado (policy instruments), de modo a lhes dar efetividade. Segundo os organizadores,“qualquer discussão sobre as capacidades de resolução de problemas do estado precisa abordar a interde- pendência mútua das capacidades administrativas e dos instrumentos de política pública”1 (Lodge;Wegrich, 2014, p. 18, tradução nossa).

Assim, Problem-Solving avança no sentido de atenuar certa limitação frequentemente identificada em grande parte da literatura sobre capacidades estatais, que reside na ênfase precípua em componentes (infra)estruturais do Estado e na utilização de lentes interpretativas de viés estático para aferi-los. Tal postura tradicionalista, em geral, repercute em propostas de mensuração de capacidades estatais que buscam determinar, de maneira categórica ou mesmo binária, a existência ou não de atributos conducentes à formação de capacidades administrativas. Ocorre que um exame de checagem nesses moldes pode vir a ignorar elementos dinâmicos, procedimentais e conjunturais, além de aspectos informais.

Compreendidas essas importantes particularidades subjacentes ao quadro teórico lan-çado no livro, passemos a observar o que ali se propõe acerca de cada uma das quatro capacidades. Sem que haja qualquer hierarquização entre elas, destaca-se primeiramente a capacidade de entrega (delivery capacity). Ela diz respeito ao poder de “fazer acontecer”, ou seja, à efetiva entrega de bens e serviços públicos ou à implementação de políticas. Isso pode ser feito tanto diretamente, por intermédio da atuação mobilizadora ou produtiva do Estado, quanto indiretamente, por meio de terceiros, como os delegatários de serviços. Ou seja, a “entrega” pode advir do poder discricionário ou soberano do Estado ou de seu poder normatizador e sancionador. Em todos os casos, a responsabilidade final recai sobre o Poder Público, suportado por recursos e institucionalidades próprias.Vale notar que formas de provisão de serviços e desenhos institucionais que repercutam a influência de reformas gerenciais e da privatização de serviços colocam pressão adicional sobre os requisitos da capacidade de entrega, na medida em que retiram boa parte do protagonismo do Estado.

A segunda capacidade é a de controle, ou regulatória (regulatory capacity). Aqui, há grande influência da noção de Estado regulador, que, como sucedâneo das reformas gerenciais e da privatização de ramos do Estado, elevou a percepção de que o Estado, ao reduzir seu papel interventivo direto, deve deter capacidade de controle indireto sobre dinâmicas sociais e especialmente econômicas. A capacidade regulatória, tal como definida pelos autores, interliga-se a problemas de tipo agente-principal, e à habilidade do Estado de, por um lado, assegurar previsibilidade e transparência regulatória, e, por outro, reagir a circunstâncias reais que impõem interdependências e mudanças frequentes.A financeirização e a complexificação econômica mundial, por exemplo, submetem Estados-nação à dinâmica dos mercados internacionais de maneira profunda, requerendo, no âmbito da capacidade regulatória, que a previsibilidade de viés apriorístico coexista com a habilidade do Poder Público de internalizar maior fluidez, discricionariedade e o exercício das multissetorialidades (boundary-spanning issues) na prática da regulação estatal.

A terceira capacidade é a de coordenação (coordination capacity). Ela também dialoga com a relativa caducidade de modelos de reforma do Estado que foram hegemônicos nas últimas décadas e que, em certa medida, subtraíram do Estado (hollowed-out) componentes importantes de aglutinação e coesão interna. Em tempos pós-gerencialistas, a capacidade de coordenação vincula-se à nova tendência de debate quanto à recentralização do Estado, cujo propósito seria o de corrigir problemas de coordenação causados por fraturas deixadas por sucessivas ações desconcentradoras, inclusive a agencificação. Além dessa correção de erros pontuais, a conjuntura atual de cumulatividade de problemas, aliada à crescente complexidade das relações de governança multiatores e mesmo intra-estatais, faz com que a capacidade de coordenação deva se traduzir na habilidade, inclusive individual, de atuar em sistemas dispersos e diversos, e em criar aparatos institucionais – formais e informais – para isso. Tanto atributos institucionais quanto culturais são importantes para fins de capacidade de coordenação.

A quarta e última das capacidades é a analítica (analytical capacity). Mais uma vez, o alargamento de pautas públicas e, também, das raízes dos problemas atuais postos à con- sideração estatal reivindica que instâncias decisórias retenham capacidade de cognição, análise e comunicação. Nesse quesito, a relação entre políticos, burocratas e “especialistas” externos, como consultorias e think-tanks, além de atores sociais e empresariais variados, aponta para a problemática de como Estados se estruturam para coletar, organizar e disse- minar informação. Se, por um lado, a multiplicidade do cenário atual, por si só, demanda capacidade analítica e a análise de políticas, o que resta de generalismo na estrutura de Estado – e não é pouco – pressiona continuamente por políticas baseadas em evidências, o que também requer capacidade analítica.

Ao elencar as quatro capacidades administrativas que, segundo os autores, permeariam qualquer tentativa de ação resolutiva do Estado nos dias atuais, os organizadores do livro sintetizam que essas capacidades “podem ser organizadas, financiadas e dotadas de forma diferente, e variam de acordo com as necessidades funcionais e com o domínio de doutrinas particulares sobre outras”2 (Lodge; Wegrich, 2014, p. 10, tradução nossa). Para tanto, no que concerne à mensuração dessas capacidades, Lodge e Wegrich defendem também uma abordagem mais procedural e dinâmica, distinta da instrumentalização calcada na aferição estática e categórica de inputs e outputs. Isto é um desafio empírico, segundo os autores. Porém, poder-se-ia afirmar também que se trata de um desafio de validade do framework proposto em Problem-Solving.

Delimitados os contornos das quatro capacidades estatais na primeira parte do livro, a segunda e terceira seções de Problem-Solving são, em larga medida, aplicações do quadro teórico pré-definido, seja quanto às capacidades administrativas em si, seja quanto à noção de governança pública. As contribuições dos diversos autores são ricas e nuançadas e abordam essencialmente questões afetas a áreas de política de conteúdo empírico, como políticas sociais, ambientais e de infraestrutura, e problemas transnacionais ou continentais (no âmbito europeu).

Todavia, a se destacar como mais inovador e oportuno ao objetivo dessa edição especial é mesmo a tipologia de capacidades estatais lançada em Problem-Solving. É sabido que arcabouços desagregados dessa natureza, que procuram tratar determinadas capacidades estatais de maneira independente, não são usuais. Isso se deve, provavelmente, à aridez do tema e à complexidade de reduzi-lo a categorias prévias de capacidades.

Nesse sentido, o livro é não só inovador como arrojado, pois consegue fazer essa desagregação de forma consistente, na medida em que opta por situar a discussão do ponto de vista conjuntural e epistêmico.Ao mesmo tempo, na esfera das limitações da obra, observa-se que ao fazer o movimento de, por um lado, categorizar capacidades e, por outro, sublinhar o caráter dinâmico e orientado ao contexto, não resolve plenamente questões relativas à aplicação do framework das quatro capacidades na prática. Por outro lado, são oferecidas preciosas orientações e indicativos de operacionalização.

Julga-se que essa primeira limitação é menos de natureza restritiva e atentatória à qualidade da obra do que permissiva a trabalhos adicionais e derivados dela. Ou seja, percebe-se um desafio futuro aos aplicadores da abordagem teórica contida no livro em voltá-la a casos concretos de políticas públicas, áreas de política etc. ou a estudos comparados nessas e em outras dimensões, por exemplo.

Outra limitação de escopo semelhante advém da escolha tanto da audiência quanto do material empírico contemplado pelo livro, que reserva espaço quase que exclusivo a contextos de nações industrializadas e principalmente europeias. Há que se reconhecer, nesse caso, que tal limitação deve ser compreendida como opção dos autores e do projeto de pesquisa, aos quais coube circunscrever o trabalho e seus objetivos. Adicionalmente, assim como no caso anterior, essa limitação também pode apontar para uma oportunidade a estudos futuros que, focando em contextos não europeus e especialmente no Brasil, testem a amplitude e potência do quadro teórico lançado em Problem-Solving.

Notas

1 Texto original em inglês.
2 Texto original em inglês.
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