Resenhas
Vidas em movimento: trabalho, consumo e subjetividades na trama dos migrantes. MARTINS JUNIOR, Angelo. Lives in motion: notebooks of an immigrant in London. Helsinge: Whyte Tracks, 2014.
Recepção: 07 Julho 2017
Aprovação: 14 Setembro 2017
Publicado em 2014, o livro Lives in Motion: notebooks of na immigrant in London é resultado da pesquisa de mestrado de Angelo Martins Junior. No entanto, a experiência individual desenvolvida em pesquisa sociológica não se originou com tal propósito. Ela começa com o movimento de um estudante brasileiro de Ciências Sociais que viaja à Inglaterra com a intenção de estudar inglês e experienciar a vida no exterior. A partir de então, inicia-se uma jornada pelas redes de inserção ocupacional dos brasileiros migrantes que se engajam em trabalhos de baixa qualificação em Londres.
Pode-se dizer que o livro é uma tradução em linguagem sociológica da experiência vivida. Durante o tempo vivendo em Londres,Martins Junior conduziu uma espécie de “etnografia espontânea”, realizada por meio da observação, participante em vários tipos e ambientes de trabalho – ou melhor, uma “participação observante” (Wacquant, 2002) tratada reflexivamente na medida em que a experiência se delineava enquanto pesquisa. Junto às observações, somam-se descrições e relatos das trajetórias de brasileiros vivendo na capital inglesa, recuperadas através da realização de entrevistas em profundidade. Grande parte do material de campo foi também coletado em contato com migrantes fora do ambiente de trabalho, permitindo a reflexão sobre suas estratégias de fixação, mobilidade, adaptação e sobrevivência na vida cotidiana.
A pesquisa é concebida, então, a partir da experiência do autor enquanto estrangeiro em Londres e do contato com muitos outros brasileiros que migraram pelos mais diversos motivos, e que se encontram nas redes de mediação e contratação de mão de obra de trabalhadores migrantes. Universo este em que as estratégias e práticas gravitam em torno de variados estatutos de legalidade, a partir dos quais constroem-se discursos, identidades, estigmas e preconceitos.
O livro é sobre isso, sobre as condições, possibilidades, estratégias e estruturas de mobilidade ocupacional de migrantes brasileiros. Mas é também sobre as percepções, expectativas, sonhos, interesses e angústias dessas pessoas que, como o próprio autor, encontraram-se, em algum momento da vida, na complexa situação de migrante em Londres, vivenciando tanto uma intensa inserção no mundo do consumo quanto situações de trabalho exaustivas e precárias.
No pano de fundo da discussão, em debate com“teóricos da mobilidade” como John Urry (2013), Sassen (1988) e Castells (1999), são reconhecidos os grandes processos de ordem tecnológica e sociocultural que possibilitaram e favoreceram tanto a intensificação da mobilidade global quanto a construção de um “ethos geral de movimento”, marcado pelo protagonismo dos projetos individuais. É nesse quadro que se inserem as jornadas de muitos brasileiros que planejam migrar para o Reino Unido, trabalhar por alguns anos e voltar ao Brasil com status de “vencedor”. Contudo, como observado no livro, uma vez que o planejado é frequentemente reelaborado diante das condições objetivas encontradas e das metamorfoses pessoais resultantes das oportunidades percebidas, muitos tendem a se tornar migrantes permanentes, vivendo em distintos estatutos de legalidade, e sem mais saber ao certo o momento do retorno.
No primeiro capítulo, The detachment: arriving and adapting, o autor descreve o processo de deslocamento e chegada de alguns dos sujeitos entrevistados, juntamente com o relato da própria experiência de entrada no país estrangeiro. Nesse trânsito, a ansiedade e insegurança presentes no deslocamento rumo a uma nova vida são acentuadas pelas situações de discriminação e constrangimento que muitos estrangeiros sofrem ao passar pelas instituições que controlam a migração.
A partir de recorrências nos relatos, é construído o argumento de que a experiência no Controle de Imigração funciona como um rito de passagem, uma forma simbólica de tortura que gera uma sensação de constante vigilância. Na chegada ao aeroporto de Londres, e após ser seletivamente interrogado por um longo tempo, o autor conclui:
[…] Toda a rede de pessoas, os atributos e capitais (materiais e simbólicos) que sempre estiveram por trás de mim, começaram a parecer inúteis: eu era um migrante implorando pela permissão para entrar em um país (Martins Junior, 2014, p. 25, tradução própria).
Essa experiência de controle teria fortes impactos na construção das identidades, uma vez que o ato de migração é pensado não apenas como um movimento espacial, visto ser necessário também que o migrante, em alguma medida, desengaje-se de si mesmo, da sua identidade social forjada no lugar de origem – em determinadas condições objetivas e idiossincrasias próprias –, para então reconstruir gradativamente sua individualidade na nova sociedade.
Nesse processo, um espaço fundamental para a adaptação do migrante à nova vida é a primeira casa. Como observa o autor, a maior parte dos brasileiros em Londres tem como sua primeira casa uma “casa brasileira”, ou seja, habitada por outros brasileiros. É ali que trocam experiências, compartilham as dificuldades encontradas, desabafam, relatam os cotidianos. A casa é importante tanto para conseguir os primeiros trabalhos quanto para acessar os “códigos” da sociedade local.
Obviamente, o processo de adaptação e chegada também varia com as características de cada trajetória pessoal. Quando se analisa a trajetória daqueles que chegaram a Londres sem falar inglês, por exemplo, é notório como as ruas se tornam um espaço ainda mais desconhecido e perigoso, e como a mobilidade desses migrantes é mais limitada quando comparada a daqueles que falam pelo menos um pouco da língua local.
Essa variedade nas jornadas percorridas pelos migrantes é tratada com maior detalhe no segundo capítulo, Social networks and work. Aqui, além de caracterizar os trabalhos de faxineiro, auxiliar de cozinha e garçom – três ocupações hierarquizadas entre si e comuns nas trajetórias de trabalhadores migrantes –, o autor também foca na importância dos laços sociais para obter o primeiro emprego, assim como para garantir a mobilidade entre ocupações. Essa mobilidade certamente varia de acordo com os atributos pessoais, e é demonstrado como as mesmas redes de contatos que mediam essa mobilidade funcionam como ferramentas de controle e exclusão no mundo do trabalho.
Ainda nessa dimensão, vale mencionar do livro a complexificação da ideia de comunidade étnica – no caso, a rede de brasileiros – como inerentemente solidária. A partir de observações e relatos, Martins Junior apresenta situações de exploração no interior dessas redes, a instrumentalização das relações de confiança, e mesmo a frequente falta de confiança entre os brasileiros no exterior. Inclusive, através das entrevistas, o autor recupera percepções que sugerem a necessidade de escapar da rede de brasileiros para conseguir maior mobilidade entre diferentes redes de contatos, e, com isso, outras possibilidades de trabalho e vida.
O terceiro capítulo, Extending the stay: experiences, comsumption, tactic sand body, apresenta inflexões nas expectativas, avaliações e projetos dos migrantes, discutindo como estes frequentemente começam a refletir e reformular seus objetivos no momento em que ampliam sua experiência na capital inglesa.As narrativas apontam para a regularidade de um início da jornada migrante marcado pela “fome por trabalho”, em que muitos começam a fazer longas jornadas, cobrindo vários turnos semanais, mesmo os que não migraram com o intuito principal de acumular dinheiro.
Muitos se engajam,então,num ritmo de vida marcado por longas jornadas de trabalho, consumo de bens materiais e simbólicos e viagens. Esse ritmo, consequentemente, é sentido no corpo, com dores e doenças advindas dos excessos de trabalho, como o autor descreve a partir da própria experiência de adoecimento.Tudo isso, obviamente, impacta nas condições de vida, visto que esses migrantes se tornam força de trabalho menos eficiente, num mercado em que os corpos são transacionados como commodities.
O autor discute, ainda, as táticas de sobrevivência e permanência no exteriormobilizadas pelos trabalhadores migrantes, que tentam sempre reduzir os riscos de se viver na fronteira do ilegalismo. Aqui, a noção foucaultiana de “ilegalismo” (Foucault, 2010) é recuperada justamente para acentuar a transitividade desses migrantes entre expedientes formais, informais, legais e ilegais.
De fato, o estatuto legal é um elemento importante para a vida prática do migrante, visto que influi nas condições de trabalho na qual este pode se inserir, em termos de situações mais ou menos exploratórias. Além disso, o autor demonstra no livro como a condição de ilegalidade tende a tornar os trabalhadores mais dóceis e disciplinados, pelo medo da denúncia. Fica evidente, então, a necessidade de desenvolver táticas de permanência no exterior que introduza o migrante em algum estatuto regulado. Nesse sentido, é destacada a fluidez com que muitas vezes estratégias “ilegais” são mobilizadas para manter o migrante numa condição de “legalidade”.
O quarto capítulo, Community coexistence: status, discrimination and prejudice, é focado no cotidiano desses migrantes, nas relações que estabelecem uns com os outros. A primeira parte discute como a ideia de “migrante” é influenciada pela “cultura do vencedor”; o indivíduo migra e, por isso, precisa sempre manter a imagem de vencedor, tanto para aqueles que vivem em Londres quanto para aqueles que ficaram no Brasil. A segunda parte apresenta imagens que os brasileiros, realizando trabalhos não qualificados, fazem de seus compatriotas vivendo em Londres.
Nesse ponto das narrativas, a questão do consumo emerge como ponto fundamental para os trabalhadores migrantes, sobretudo para aqueles que prolongam a estadia. É através do consumo de bens materiais e simbólicos que os indivíduos transmitem a imagem do vencedor, tanto para aqueles que compartilham seu cotidiano como para os parentes, amigos e conhecidos que ficaram no Brasil.
É com muita sensibilidade que o autor transita pelos relatos, demonstrando que, junto com as tentativas de transmitir a imagem do vencedor, convive o medo do fracasso e da solidão. Um medo que está presente de maneira muito marcante nos primeiros períodos após a migração – em que as redes de contatos e as possibilidades de trabalho ainda são frágeis –, mas que nunca está totalmente ausente.
Cada foto postada, e os consequentes comentários positivos recebidos, desviam a atenção de uma outra parte da vida, muito menos glamourosa, ou seja, o tempo que se passa limpando banheiros, recolhendo lixo nos estádios e os momentos de insegurança e solidão:
Quando uma pessoa migra, ela migra para vencer, para melhorar sua vida, seja economicamente, culturalmente, ou por questões privadas ou familiares. A pessoa se muda para construir uma vida melhor, portanto, precisa manter essa imagem para aqueles que ficaram para trás: o consumo de bens e viagens frequentemente serve para justificar socialmente sua posição em um contexto onde são desempenhadas as mais diversas formas de trabalho não qualificado, tipos de trabalho que eles dificilmente realizariam no Brasil. (Martins Junior, 2014, p. 127, tradução própria)
O autor também chama a atenção para a heterogeneidade das experiências eperfis desses migrantes. Existem diferentes “tipos” de brasileiros realizando trabalhos desqualificados em Londres, e essa diferença é tanto elaborada discursivamente quanto objetivamente vivida no cotidiano. Entre os próprios compatriotas, é reproduzida uma imagem do brasileiro como alguém não confiável. Comumente, é uma figura representada como alguém física e moralmente inferior. Essa é uma clivagem que leva em consideração não apenas a relação com os europeus, mas indica uma hierarquia interna à “comunidade” dos brasileiros migrantes. Sendo a própria noção de “comunidade” tratada criticamente ao longo de toda a discussão.
Um dos maiores méritos do livro me parece ser justamente essa atenção em observar as distinções e hierarquias no interior da comunidade étnica, geralmente tratada pelos estudos de migração a partir de seu viés solidário e da positividade do capital social proporcionado pela rede étnica (Portes, 1995). Martins Junior destaca que as distinções entre os brasileiros passam pelos diferenciais já mencionados entre os que possuem documentos e os “ilegais”, entre os que dominam a língua estrangeira e os que não. Mas, também, observa-se que junto ao deslocamento das pessoas é possível identificar a migração de marcadores sociais da diferença que operam em território brasileiro, como as hierarquias de classe, raça e região de origem. O reconhecimento de que todo imigrante é, antes de tudo, um emigrante (Sayad, 2004), ou seja, mesmo que o migrante passe por um processo de reconstrução identitária no processo migratório, ele carrega consigo marcas do seu background construído na sociedade de origem. É nesse sentido que os marcadores da diferença que operam no Brasil migram junto com os brasileiros e são ressignificados, negociados e efetivados nas experiências dos trabalhadores migrantes para a construção da imagem do “brasileiro inferior”.
O capítulo cinco, Negotiating the return: freedom, loneliness and permanent present, retrata o momento em que a ideia de retorno começa a ser negociada reflexivamente. Nesse momento, a solidão é destacada como um dos piores problemas para muitos migrantes, e as igrejas brasileiras aparecem como suporte para alguma elaboração coletiva e subjetiva desse sentimento.A falta de confiança nos compatriotas brasileiros, vistos como aproveitadores e individualistas, é apontada como um fator importante para o crescimento do sentimento de solidão, que, em certos momentos, chega a confrontar os benefícios da vida londrina, marcada pela facilidade de consumo e pela distância do medo da violência.
Ao longo da fluida trama de situações empíricas vivenciadas, análise de trajetórias individuais e reflexões teóricas, o autor levanta questões e desenha argumentos que contribuem para complexificar a análise dos processos migratórios. São iluminados elementos para a compreensão dos processos contemporâneos de mobilidade internacional que apontam para além do glamour de quem “vai morar fora”, ao mesmo tempo em que se tensiona a centralidade da figura, muitas vezes redutora, do “migrante econômico”, ou seja, do pobre migrante explorado e vitimizado.
Em linhas gerais, Lives in Motion apresenta outra perspectiva para os estudos de migração ao ler à contrapelo as relações intracomunitárias estabelecidas pelos brasileiros migrantes em Londres. Ao fazê-lo, nos mostra como cada elemento de distinção no país de origem – classe, raça, região – pode ser mobilizado para estabelecer hierarquias no novo espaço social, em geral, no sentido de afastar-se da figura estigmatizada do“migrante econômico”. O argumento ganha força quando se reconhece que os brasileiros migrantes são, de fato, um grupo diverso, com diversas origens sociais, graus de escolaridade e motivações para migrar. Por isso, o autor busca analisar o processo migratório sem centrar esse movimento em um único fator – não se excluem as razões econômicas, mas busca- se trazer para a análise outras variáveis. Claramente, uma gama de decisões subjetivas, considerações sobre os contextos socioculturais, e relações históricas entre a sociedade de destino e a de origem devem ser levados em conta na pesquisa com grupos migrantes.
Nesse sentido, a análise se insere em uma perspectiva teórica que difere substancialmente de alguns estudos sobre migração, na medida em que considera que, mesmo em um mundo em movimento, as pessoas não simplesmente “fluem” (Urry, 2013). Em suas jornadas, elas esbarram umas nas outras, mudam de direção, voltam atrás (Knowles, 2014). É precisamente dessas inflexões, dos sentidos das mudanças de rota, que Martins Junior vai extrair a riqueza de sua análise. Uma investigação que traz para a cena contrastes marcantes entre o deslumbrante mundo das viagens e festas e a precariedade e estigma que circunscrevem os trabalhos que proporcionam essas satisfações. Situações quase paradoxais que só podem ser compreendidas olhando para a positividade das experiências e conferindo valor epistemológico aos relatos dos sujeitos, sem perder, no entanto, a materialidade desses corpos migrantes, os efeitos físicos e psicológicos que o próprio autor pôde conferir realizando trabalhos de faxineiro, ajudante de cozinha ou garçom, às margens de uma sociedade pouco acolhedora e numa comunidade de compatriotas nem sempre solidária.