Resenhas
Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola. LINS, Beatriz Accioly; MACHADO, Bernardo Fonseca; ESCOURA, Michele. Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola. São Paulo: Editora Reviravolta, 2016.
Recepção: 28 Setembro 2016
Aprovação: 18 Agosto 2017
O livro Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola é de autoria de Beatriz Accioly Lins – doutoranda em antropologia social na Universidade de São Paulo (USP) –, Bernardo Fonseca Machado – doutorando em antropologia social na USP –, e Michele Escoura – doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O livro é um convite à reflexão e à desconstrução das normas de gênero, apontando a escola como lugar inicial onde as normas são apreendidas e espaço onde estas podem também ser desconstruídas, caso ela se tornasse um lugar democrático, seguro e inclusivo.
Olivro tem uma fácil linguagem,acessível a estudiosos e estudiosas e principalmente a não conhecedores dos estudos de gênero. Mesmo sendo informado que o livro se destina a especialistas e interessadas e interessados no tema, a abordagem feita é direcionada a profissionais da educação, que ainda não conhecem tais discussões e que supostamente alimentam uma série de “pré-conceitos” sobre elas.
Como referencial teórico, são utilizados autoras clássicas dos estudos de gênero e sexualidade, com destaque para uma vasta bibliografia escrita por mulheres feministas, a exemplo de Luiza Bairros, Simone de Beauvoir, Kimberle Crenshaw, Miriam Grossi, Beatriz Lins, Margaret Mead, Gayle Rubin, Lilian Schwarcz, entre outras.Além disso, uma série de dados estatísticos, notíciasjornalísticas e informações atualizadas é apresentada de forma a ilustrar a abordagem adotada.
Ao apresentar o livro na introdução, Lins, Machado e Escoura (2016) fazem uma breve reflexão sobre a presença das questões de gênero na escola e as consequências que esses arranjos de gênero, não raro restritivos e excludentes, têm na produção de diferenças e desigualdades. Além disso, duas grandes questões são postas logo de início: a primeira refere-se à compreensão de gênero que se aproxima da definida por Scott (1990), que o entende como um dispositivo cultural que deve ser analisado historicamente; a segunda refere-se à linguagem adotada no texto, que é percebida como dispositivo de poder que exclui e invisibiliza principalmente as mulheres, por isso o seu uso é feito na obra de forma flexionada entre masculino e feminino, flexão esta que também será adotada nesta resenha.
O primeiro capítulo tem como proposta discutir as normas de gênero e começaressaltando as diferenças preconizadas entre meninos e meninas e a construção deestereótipos em torno daquilo que seriam coisas específicas de um e de outro. O argumentoapresentado é de que são as generalizações criadas pelos estereótipos que geram as normasde gênero e, consequentemente, as desigualdades entre homens e mulheres. Utilizandoexemplos corporais, ligados à profissionalização e ao cotidiano das escolas, são ilustradasas expectativas de gênero que são criadas a partir dos estereótipos e a consequênciadestas na constituição dos indivíduos, que, não raro, são marcados por diferenciações quegeram desigualdades. Ao fim do capítulo, Lins, Machado e Escoura (2016) ressaltam aimportância do combate à desigualdade e da convivência com o diferente, ilustrando deforma bastante pedagógica a possibilidade de a diferença e a igualdade caminharem juntas.
No segundo capítulo, o conceito de gênero e a luta de mulheres por direitos iguaise cidadania são historicizados. O gênero é então apresentado como uma categoria criadadentro da teoria social, para pensar as relações entre homens e mulheres para além dobiológico, e inserido em relações de poder, podendo ser compreendido de múltiplasformas, que se diversificam a depender dos contextos e das correntes teóricas adotadas.Para ilustrar a multiplicidade de formas de compreensão do masculino e do feminino, oestudo de Margaret Mead (1935) na Nova Guiné é tomado como referência, assim comoa indicação das leituras de Gayle Rubin, Joan Scott e Judith Butler.
Mesmo antes de o conceito de gênero ser gestado, o movimento social feminista já vinha tensionando as relações entre homens e mulheres (brancas). As autoras e o autor escolheram abordar a história do feminismo a partir de Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft e suas reivindicações pelo voto, pela propriedade e pela profissionalização das mulheres, que antecederam os movimentos da primeira onda do feminismo do séculoXIX. De forma bastante sucinta, as autoras e o autor fazem um breve resumo, com textos e imagens, das três ondas do movimento feminista, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, e da participação das mulheres brasileiras nos movimentos sufragistas nacionais e na ditadura militar. Entretanto, aquilo que tange ao feminismo negro, e às demandas específicas das mulheres negras, aparece apenas no final do capítulo, com muito mais sugestões de leitura sobre o tema do que informações sobre os deslocamentos teóricos epolíticos produzidos, mesmo que ressaltando a grande crítica das feministas negras de que suas demandas eram demasiadamente diferentes das feministas brancas.
Continuando o debate sobre os direitos das mulheres, impulsionado pelos movimentos feministas, Lins, Machado e Escoura (2016) ressaltam, no terceiro capítulo, a reivindicação das mulheres por direitos, a exemplo do acesso à educação, do direito ao voto, a representação política, a saúde reprodutiva, a equiparação salarial, entre outros aspectos envoltos na discussão sobre a igualdade de gênero, que ainda hoje não foram superados, como a criminalização do aborto, a dupla jornada de trabalho (casa-emprego), a violência doméstica e a baixa representatividade política.
Esse capítulo é bastante informativo e está centrado na legislação vigente que, legalmente, garante às mulheres uma equiparação salarial igual à dos homens, punições para os crimes de violência doméstica, assédio e violência sexual, entre outras leis que protegem e/ou garantem direitos e cidadania às mulheres. Entretanto, a grande questão apontada em torno da aplicabilidade da legislação está nas normativas de gênero, que acabam sendo reproduzidas pelas e pelos profissionais de justiça, que continuam a efetivar a lei a partir de seus estereótipos e expectativas, produzindo, reproduzindo e ajudando a manter situações de violência.
Outra instituição que mantém, reproduz e atualiza as violências de gênero é a escola, e é sobre isso que discorre o quarto capítulo do livro. A noção de violência é apresentada como algo associado a poder, que está além da agressão física e, em vários casos, associada a violações de direitos civis, a naturalizações de costumes e tradições e, no caso específico do debate deste livro, aos estereótipos de gênero e sexualidade.
A maior parte do capítulo é centrada na discussão sobre a violência contra a mulher, em que são apresentados dados estatísticos sobre violência doméstica, assédio, violência sexual, além da naturalização e normalização desses tipos de violência, bem como suas conexões como as expectativas e os estereótipos de gênero. O pano de fundo da discussão está na máxima de que são as normas de gênero, e a naturalização dessas normas, que geram as violências.
Entretanto, ao contrário do que sugere o título do capítulo, “Violência de gênero e a experiência na escola”, quase não se aborda a experiência da violência de gênero na escola, estando esta resumida apenas a exemplos hipotéticos, criados pelos próprios autores, de situações nas quais haveria violência de gênero por parte dos e das estudantes e naturalização dessas violências por parte dos professores e das professoras.
Ao contrário dos quatro primeiros capítulos, nos quais se percebia uma linearidade na discussão, com links de um capítulo para o outro, o quinto capítulo se aproxima mais das discussões sobre sexualidade, em que, mais uma vez de maneira informativa e pedagógica, são discutidos aspectos básicos sobre sexo, gênero, sexualidade, práticas sexuais e desejo.
A primeira grande questão abordada são a expectativa social pela correspondência entre sexo, gênero e desejo e a contestação de que as identidades devam ser orientadas segundo uma matriz única de gênero. Lins, Machado e Escoura (2016) conceituam (sem indicação de referência) as identidades travestis, transexuais, transgênero, gays, lésbicas e bissexuais, ressaltando a variedade de combinações possíveis entre corpo, identidade, desejo e práticas sexuais.
O texto parece fazer um apelo contra a violência a LGBTs, ressaltando o “direito de existência digna desses sujeitos” (Lins; Machado; Escoura, 2016, p. 71). Isso fica nítido na ampla defesa que é feita da igualdade de direitos sociais e jurídicos – com destaque no texto ao casamento, à adoção de filhos, à troca de nome de registro e ao combate a violência – e ao questionamento que é feito aos leitores se a sexualidade é uma opção ou uma orientação, sendo assumida, então, pelas autoras e pelo autor, a noção de orientação sexual em contraposição à correlação de opção e cura.
Na segunda parte do capítulo, a partir de dois exemplos – um hipotético, de um casal de lésbicas em uma escola de Educação de Jovens e Adultos, e outro real, citado na tese de William Peres sobre uma travesti de 42 anos que foi molestada na infância –, as autoras e o autor dão uma série de conselhos e dicas sobre como agir em casos e situações parecidas e como tratar de forma correta e coerente a diversidade de gênero e sexualidade na escola.
O título do sexto capítulo,“O que a família tem a ver com isso? ”, questiona qual a responsabilidade da família com as questões de gênero e sexualidade. Entretanto, ao invés de problematizar a pergunta feita, a abordagem é centrada na forma como a escola lida com as novas organizações familiares e o impacto que o reforço da família tradicional como modelo ideal e estruturado tem na formação das crianças e dos jovens.
A discussão é iniciada a partir da problematização do conceito de família tradicional e pelo apontamento das mudanças históricas na concepção de família no Brasil, aludindo que a noção de família da Constituição Federal de 1988, por mais avanços que traga quando comparada ao Código Civil de 1916, não faz menção às famílias LGBTs. Mais uma vez, é reforçado o papel que a escola e os educadores têm no diálogo com a diversidade e o cuidado que devem ter para não se limitar à reprodução das noções tradicionais de família, que, não raro, segregam, excluem e discriminam estudantes que não contam com famílias com estruturação tradicional.
No antepenúltimo capítulo do livro, e último com discussões teóricas, Lins, Machado e Escoura (2016) discutem as diferenças sociais entre as pessoas, especificamente entre homens e mulheres. A compreensão de sexo, gênero, classe, raça, geração e religião apresentada na obra se dá a partir de categorias classificatórias, compreendidas a partir de Lilia Moritz Schwarcz (2015), e do conceito de marcadores sociais da diferença. A diferença é apontada com base na análise dessas categorias intercaladas.
Em uma das mais interessantes discussões do livro, são apresentados dados estatísticos do IBGE sobre população, taxa de analfabetismo, geração, nível de instrução, remuneração salarial e acesso à educação, analisados a partir das categorias de raça, sexo e gênero. A construção do argumento, que apresenta as diferenças entre homens e mulheres a partir desses marcadores, evidencia as desigualdades sociais, de raça e gênero e a forma como elas têm operado entre nós.
No último capítulo, Lins, Machado e Escoura (2016) reforçam o objetivo do livro e, mais uma vez, chamam a atenção para o papel da escola na manutenção das desigualdades sociais, defendendo uma proposta pedagógica que intervenha nessas desigualdades e contribua para a construção de uma sociedade sem injustiças, violências, discriminações, exclusões e marginalizações. O livro é um convite a ampliar o conhecimento e auxiliar as pessoas a nomearem as experiências de opressão e marginalização às quais estão submetidas.
Além dos oito capítulos que já foram apresentados, o livro conta ainda com sugestões de materiais audiovisuais e de leitura para as pessoas que desejam aprofundar nos estudos sobre o tema, assim como para aqueles e aquelas que desejam trabalhar com essas questões na sala de aula. As autoras e o autor trazem ainda um glossário com o significado de diversos conceitos que são comuns aos estudos de gênero e sexualidade, e que talvez sejam desconhecidos aos leitores e leitoras, e um roteiro de como não reproduzir estereótipos e discriminações dentro ou fora da sala de aula para gestores, professores e equipe técnica.
Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola é um livro que pode ser lido por qualquer pessoa, acadêmico ou não, conhecedor ou não das teorias de gênero e sexualidade. Principalmente, é um livro que precisa ser lido por profissionais da educação que, em sua formação, não tiveram contato com essas discussões.
Lins, Machado e Escoura (2016) realizaram um importante trabalho, que é o de aproximar a linguagem dessas discussões aos professores e desconhecedores do tema.Além de informar sobre a situação de discriminação e diferenças em que vivemos, as autoras e o autor defendem a construção de uma escola e de uma sociedade menos preconceituosas e mais igualitárias e seguem, para além da afirmação feita na capa, defendendo que somos sim diferentes, entretanto, isso não significa que devemos viver em condições desiguais.