Dossiê
Apresentação
O convite para compormos um dossiê para o periódico Sociedade e Cultura para o segundo semestre de 2017 surgiu em meados de abril do mesmo ano. Em virtude de nossas trajetórias acadêmicas, iniciadas no interior de São Paulo, e nossa área de pesquisa,o tema das migrações foi, sem sombra de dúvida, definido como o alicerce central que nortearia esta edição. Não obstante, sabíamos que as migrações, como tema, ainda seguiam muito amplas para um dossiê que pudesse, de fato, deixar uma contribuição nesse campo de estudo que, apesar de seguir marginalizado na academia brasileira, cresce em grau de importância. Não é à toa que presenciamos grupos de trabalhos voltados para pesquisas migratórias em encontros nacionais das mais diversas áreas de estudos,a criação de eventos direcionados essencialmente para debater fluxos migratórios contemporâneos,bem como periódicos dedicados ao lançamento de dossiês sobre o tema (neste ano, constatamos que há, pelo menos, seis chamadas para dossiês no Brasil!). Todavia, as escolhas metodológicas empregadas na pesquisa e seus resultados, elementos capazes de tirar o sono de qualquer pesquisador, independente de seu estágio de carreira, têm ganhado pouca atenção nesses espaços de debate.
Diante disso,elegemos o desafio metodológico como o ponto central a ser contemplado neste material. Dada a intensificação dos fluxos migratórios nas últimas décadas, estudos dedicados à compreensão desses deslocamentos humanos, necessariamente, buscaram abordagens metodológicas capazes de combinar distintas técnicas de pesquisa. Afinal, tal qual salientou Sayad no final do século XX, não podemos perder de vista as multifaces e perplexidades de um fato social total. É intenção, portanto, do dossiê, dar voz e espaçoaos trabalhos que se dedicam a recursos inovadores em torno do tema migração e trocar experiências, alternativas, desafios e limitações numa perspectiva interdisciplinar.
A proposta do dossiê, portanto, foi particularmente relevante em dois aspectos: i) a possibilidade de reflexão sobre um tema que recebe cada vez mais atenção nas agendas políticas e públicas no Brasil e no mundo e, consequentemente, de trabalhos acadêmicos e discussões teóricas e ii) a discussão do tema sob uma perspectiva interdisciplinar e a partir de técnicas e métodos inovadores, fomentando um espaço de discussão específico sobre essas novas propostas. Longe de pretender cobrir todos os enfoques, o material presente no dossiê explora a mobilidade migratória a partir de perspectivas disciplinares distintas em sua origem, mas que dialogam na pesquisa empírica, na abordagem de questões migratórias de grupos diversos em contextos particulares.
O resultado superou nossas expectativas, afinal, foram submetidos artigos de distintas regiões do Brasil e dos mais diversos países para apreciação do dossiê. No total, recebemos 49 artigos abordando o tema. Isso ressalta como a metodologia é um elemento que merece atenção nos estudos migratórios e também, invariavelmente, como foi árduo o nosso trabalho e de todos os pareceristas envolvidos na criteriosa seleção dos nove artigos e uma resenha que compõem o dossiê. Sabemos que, lamentavelmente, excelentes trabalhos e análises não foram contemplados por essa proposta, o que nos incentiva a continuar refletindo sobre ela e propor novos debates acadêmicos em outras instâncias e espaços.
Assim, os artigos selecionados, apesar de trabalharem com distintos campos de pesquisa, dialogam entre si através dos incitamentos enfrentados no trabalho de campo. O primeiro artigo, de Vettorassi e Dias, de forma introdutória ao próprio dossiê, propõe traçar um percurso histórico, numa perspectiva internacional e nacional, objetivando a identificação das mais diversas possibilidades metodológicas encontradas em estudos sobre migrações. Assim, exploram desde autores clássicos da antropologia e sociologia até análises contemporâneas sobre migrações em território brasileiro, oferecendo, dessa forma, um panorama daquilo que já foi construído sobre o tema, mas também quais são seus desafios e suas novas possibilidades.
O trabalho de Martins Jr. e Knowles oferece reflexões sobre o processo de pesquisa de migração baseadas em dois projetos de pesquisa distintos sobre migração transnacional: um sobre brasileiros em Londres e outro sobre britânicos em Pequim. Ambos utilizaram ferramentas metodológicas similares e, consequentemente, encararam os mesmos desafios diante da combinação de uma nova ferramenta metodológica etnográfica itinerante (“documentando jornadas”) com entrevistas biográficas e análises históricas e contextuais. O artigo nos fornece material relevante para analisar a migração como um processo translocal, ao mesmo tempo em que providencia uma conexão entre as escalas de análise macro e micro.
Alzate e Villamar, em profundo trabalho bibliográfico, procuram verificar as oportunidades oferecidas pela etnografia nos estudos migratórios e em outros campos de pesquisa. Fizeram um resumo sobre a história do trabalho de campo etnográfico, uma descrição da etnografia como método, texto e enfoque, uma análise da etnografia nos estudos migratórios, partindo das etnografias clássicas até o desenvolvimento das etnografias multissituadas, e, finalmente, uma reflexão sobre a diversidade de campos deaplicação da etnografia e suas raízes interdisciplinares e multitécnicas. A partir das novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), abordaram também as potencialidades e os limites da etnografia da cibercultura ou etnografia digital.
Machado e Schwarcz trabalharam com as narrativas de jovens de classe média brasileira, composta por artistas, que viajaram para Nova York nos anos 2010. Com expectativas de imersão no mercado de entretenimento estadunidense, migraram com o sonho de tentar uma carreira no exterior. Preocuparam-se, em uma nova perspectiva metodológica, com a “racialização” dos corpos migrantes, especialmente num recorte de gênero, e a noção de “quebra de expectativas” no que se convencionou chamar de pesquisas multissituadas.
Menezes e Cover lançam luz à noção de redes sociais, que tem sido aplicada em estudos de migrações nacionais e internacionais e necessitam de constante revisitação e novas abordagens. Neste artigo, os autores se fundamentam na concepção de “redes sociais” da Escola Antropológica de Manchester, construída para compreender a organização de grupos e espaços sociais diversos, especialmente de trabalhadores migrantes em minas de ouro e plantações de cana-de-açúcar. Os casos empíricos utilizados são de camponeses paraibanos que trabalharam em usinas de cana-de-açúcar do estado de Pernambuco nas décadas de 1980-90 e camponeses paraibanos que trabalharam em usinas da região de Campinas, estado de São Paulo, nas décadas de 2000-2010. A análise é fundamentada na etnografia, em especial, na análise situacional e na história oral.
Ao abordar o debate acerca dos refugiados e das migrações, Fonseca e Fonseca nos levam até Angola para demonstrar os intensos deslocamentos populacionais do interior do país para a capital. Considerada a capital mais cara do mundo e que cresceu desenfreadamente nas últimas décadas, Luanda deixou de ser uma cidade de veraneio projetada para uma elite portuguesa, durante os tempos de colônia, e tornou-se uma metrópole com mais de seis milhões de habitantes. A maioria de sua população é composta por migrantes internos, oriundos das áreas rurais, refugiados das guerras de independência e civil, falantes de seis grandes línguas nativas e mais de 30 variantes linguísticas originárias do território nacional. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se também um desafio e uma conquista para os refugiados que não a dominam e necessitam dela em Luanda. Diante desse mosaico, encontramos o pesquisador e o desafio no emprego de métodos de pesquisa capazes de auxiliá-lo no estudo de campo.
A migração internacional, aliás, é uma área de crescente interesse científico e político no mundo, mas se desconhecem o volume e os tipos de artigos acadêmicos publicados nas bases de dados internacionais. Para minimizar essa carência, Navarro-Conticello e Moyano-Díaz identificam em seu artigo os enfoques metodológicos predominantes, tipo de problemas, alcance, temas e disciplinas característicos da produção científica atual nesse campo de estudos. Um total de 193 artigos indexados na Web of Science, de 2012 a 2016, que incluem em seus títulos o termo “international migration”, foram analisados, usando cinco critérios metodológicos de classificação: paradigma, tipo de problema, alcance, disciplina principal e tema.
Já Moreira, em seu artigo, teve como objetivo discutir os desafios metodológicos envolvidos na realização de pesquisas com migrantes forçados, incluindo refugiados, a partir de uma revisão da literatura dessa área de estudos. Debateu a construção de categorias em torno de migrantes, interpretadas e mobilizadas jurídica e politicamente por atores diversos. Em seguida, por meio de um panorama histórico a respeito da constituição do campo de estudos das migrações forçadas e dos refugiados, lançou luz sobre perspectivas atuais em relação ao alargamento das categorias de migrantes. Adentrando no debate metodológico propriamente dito, explorou a polarização entre as abordagens quantitativa versus qualitativa, assim como limites e possibilidades postos por elas.
Joseph, por sua vez, propõe uma discussão sobre a maneira pela qual as categorias diáspora, migrante e refugiado são, mutuamente, constituídas no mundo social haitiano, a partir da experiência etnográfica em mobilidade e múltiplos engajamentos do pesquisador em campo. Quais são os sentidos sociais e pragmáticos atribuídos pelos haitianos às categorias de diáspora, refugiado e migrante? De que modo a mobilidade se torna um conceito-chave para pensar as dinâmicas do ser diáspora, refugiado e migrante no espaço (trans)nacional e (trans)fronteiriço? Estas são algumas perguntas levantadas por este importante estudo, em que o foco foi o contingente de haitianos vindos ao Brasil pela fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, de 2010 a 2013, e os que foram para o Suriname e a Guiana Francesa nesse mesmo período.
Encerramos o dossiê com a contribuição de Rangel, que resenha a obra de Martins J r, Lives in motion – notebooks of an immigrant in London, publicada na Inglaterra. Este artigo inicia uma jornada pelas redes de inserção ocupacional dos brasileiros migrantes que se engajam em trabalhos de baixa qualificação em Londres, refletindo sobre uma espécie de “etnografia espontânea”.
Com a organização e a leitura dos trabalhos que compõem este dossiê, esperamos que seus leitores possam apreender contextos, universos temporais, espaciais e identidades multifacetadas dos fluxos migratórios, identidades e valores que são renegociados e re-presentados numa determinada formação socioespacial a partir de negociações, conflitos e interpretações. Ou seja, não há uma única interpretação possível dos contextos aqui narrados, pois eles são cambiantes, sofrem constantemente mudanças e novas possibilidades. Desta lógica, entende-se que não é possível capturar o nexo mais profundo das sociedades e relações sociais, a não ser no aprofundamento das particularidades de uma realidade empírica específica, historicamente situada e datada, para construí-la, porém, como “caso particular do possível” (Bourdieu, 1996), ou seja, como um desenho em uma infinidade de configurações admissíveis. Com essa perspectiva em mente, desejamos a todos boas leituras e reflexões!