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A noção de redes sociais aplicada a pesquisas em espaços de trabalhadores migrantes
Marilda Aparecida de Menezes; Maciel Cover
Marilda Aparecida de Menezes; Maciel Cover
A noção de redes sociais aplicada a pesquisas em espaços de trabalhadores migrantes
The notion of social networks applied toresearch in spaces of migrant workers
La noción de redes sociales aplicada a las investigacionesen espacios de trabajadores migrantes
Sociedade e Cultura, vol. 20, núm. 2, pp. 95-113, 2017
Universidade Federal de Goiás
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Resumo: A noção de redes sociais tem sido aplicada em estudos de migrações nacionais e internacionais. Nesse artigo, mobilizamos essa noção para compreender as interações sociais cotidianas em espaços de moradia de trabalhadores migrantes. Fundamentamo-nos na concepção de“redes sociais” da Escola Antropológica de Manchester, construída para compreender a organização de grupos e espaços sociais diversos,especialmente de trabalhadores migrantes em minas de ouro e plantações de cana-de-açúcar. Utilizaremos dois casos empíricos, o primeiro de camponeses paraibanos que trabalharam em usinas de cana de açúcar do Estado de Pernambuco nas décadas de 1980-90; o segundo, de camponeses paraibanos que trabalharam em usinas da região de Campinas, Estado de São Paulo, nas décadas de 2000-2010. A análise é fundamentada na etnografia, em especial a análise situacional, e história oral.

Palavras-chave:Redes sociaisRedes sociais,trabalhadores migrantestrabalhadores migrantes,alojamentos de trabalhadoresalojamentos de trabalhadores,análise situacionalanálise situacional,etnografiaetnografia,história oralhistória oral.

Abstract: The notion of social networks has been applied in studies of national and internationalmigration. In this article, we mobilize this notion to understand everyday social interactions inhousing spaces for migrant workers. We are grounded in the concept of “social networks” ofthe Manchester Anthropological School, built to understand the organization of diverse groupsand social spaces, especially migrant workers in gold mines and sugarcane plantations. We willuse two empirical cases, the first of Paraiba peasants who worked in sugarcane mills in the Stateof Pernambuco in the 1980s and 1990s; the second case, of peasants from Paraiba who workedin mills in the region of Campinas, state of São Paulo, in the decades of 2000-2010. The analysisis based on ethnography, especially situational analysis, and oral history.

Keywords: Social networks, migrant workers, workers accommodations, situacional Analysis, ethnog- raphy, oral history.

Resumen: La noción de redes sociales ha sido aplicada a los estudios de migraciones nacionales einternacionales. En este artículo, utilizamos esa noción para comprender las interacciones socialescotidianas en espacios de vivienda de trabajadores migrantes. Nos basamos en el concepto de“redes sociales” de la Escuela Antropológica de Manchester, construida para comprender laorganización de grupos y espacios sociales diversos, especialmente de trabajadores migrantes enminas de oro y plantíos de caña de azúcar. Utilizaremos dos casos empíricos, el primero es sobrelos campesinos del estado de Paraíba, que trabajaron en las usinas del estado de Pernambuco, enlos años 1980-1990; el segundo caso se refiere a los campesinos de Paraíba que trabajaron en lasusinas de la región de Campinas, estado de Sao Pablo, en las décadas de 2000-2010. Este estudioestá fundamentado en la etnografía, en especial en el análisis situacional, y en la historia oral.

Palabras clave: Redes sociales, trabajadores migrantes, alojamientos de trabajadores, análisis situacional, etnografia, historia oral.

Carátula del artículo

Dossiê

A noção de redes sociais aplicada a pesquisas em espaços de trabalhadores migrantes

The notion of social networks applied toresearch in spaces of migrant workers

La noción de redes sociales aplicada a las investigacionesen espacios de trabajadores migrantes

Marilda Aparecida de Menezes
Universidade Federal do ABC, Brasil
Maciel Cover
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Sociedade e Cultura, vol. 20, núm. 2, pp. 95-113, 2017
Universidade Federal de Goiás

Recepção: 21 Julho 2017

Aprovação: 14 Setembro 2017

Introdução

A noção de redes sociais tem sido aplicada em estudos de migrações nacionais e internacionais. Nesse artigo, mobilizamos essa noção para compreender as interações sociais cotidianas em espaços de moradia de trabalhadores migrantes. Nos fundamentamos na concepção de noção de “redes sociais” da Escola Antropológica de Manchester, construída para compreender a organização de grupos e espaços sociais diversos, especialmente de trabalhadores migrantes em minas de ouro e plantações de cana de açúcar. O estudo de redes exige um registro meticuloso e sistemático de dados de interações sociais para um determinado grupo. Entre os temas de estudos de antropólogos e sociólogos na África do Sul e Central, entre as décadas de 50 a 80 destacavam-se os que tratavam das mudanças nos espaços agrário e urbano e das migrações de camponeses, povos tribais e outras populações tradicionais como fenômeno constitutivo desses espaços e não como um movimento de transição de um espaço a outro. Entre pesquisas mais recentes, nas décadas de 1980 e 90, destacamos as de Moodie (1991), e McNamara (1980) que etnografaram espaços de trabalhadores migrantes nas minas de ouro e plantações de cana-de-açúcar na África do Sul.

Para desenvolver nossa argumentação no presente artigo, utilizaremos dois casos empíricos, o primeiro de camponeses paraibanos que trabalharam em usinas de cana-de- açúcar do Estado de Pernambuco na década de 1980-90 (Menezes, 2002) e camponeses paraibanos que trabalharam em usinas da região de Campinas na década de 2000-2010 (Menezes, 2012; Cover, 2011). A pesquisa e análise é fundamentada na etnografia, em especial a análise situacional, e a história oral. Utilizamos uma variedade de fontes, tais como narrativas orais, notas de trabalho de campo e alguns documentos do SPM (Serviço Pastoral dos Migrantes). O uso de diferentes fontes de evidência tem sido considerado por Moodie (1983, p. 178) como um método apropriado para analisar as interações sociais em alojamentos de trabalhadores.

Estruturamos o artigo em três partes. Primeira, uma breve revisão bibliográfica da noção de redes sociais de antropólogos britânicos e sul-africanos e o método de análise situacional; segunda, algumas expressões das interações cotidianas em alojamentos de trabalhadores migrantes em usinas da Zona da Mata Norte do Estado de Pernambuco; e terceira, as expressões das interações cotidianas em alojamentos de trabalhadores migrantes em usinas no município de Santa Barbara D’Oeste, região de Campinas/SP.

Redes Sociais: uma velha forma de relacionamento social

A noção de redes tem sido mobilizada para explicar diferentes situações sociais no século XXI. Como bem diz Castells: “A nova sociedade é constituída de redes”. Entre suas vantagens, estão a flexibilidade e adaptabilidade, que constituem características fundamentais na orientação de ações em um mundo tão volátil e mutável como o nosso (Castells, 2000, p. 695). No entanto, Castells reconhece que as redes constituem uma velha forma de organização social, que, portanto, remete a outros tipos de sociedades ou de sociabilidades, sistemas de trocas, comunicação, de organização da produção e do comércio. Recuperamos a construção da noção de “redes sociais” da Escola de Manchester, a qual resulta de uma relativa insatisfação com modelos convencionais de análise estrutural, sejam os definidos pelas fronteiras grupais institucionalizadas comorelações de parentesco, categorias de trabalho, pertencimento religioso ou espaciais como bairro, sítio, município, estado, região e país, conforme nos explica Mitchell (1969, p. 8)

Um ponto importante no uso da noção de redes sociais na interpretação dos dados de campo é que ela é complementar e não um substituto para quadros de análises convencionais sociológicos e antropológicos. Ela foi introduzida na antropologia social britânica em um primeiro momento porque as categorias convencionais da análise estrutural/funcional não eram adequadas quando os antropólogos começaram a realizar estudos fora das sociedades de pequena escala ou tribais.

Foi Barnes (2010) quem fez uma primeira contribuição na construção da noção ao estudar uma ilha na Noruega na década de 1950. Ele identificou que a comunidade se organizava através de duas estruturas básicas: o sistema territorial em que as atividades domésticas, agrícolas e administrativas aconteciam e o segundo demarcado pelo espaço da indústria de peixe. Estes dois campos de relações sociais, no entanto, não constituíam a totalidade das relações; e para compreender as relações que ocorriam em espaços diversos dos estruturados, Barnes propõe a noção de redes que é entendida como “um campo de relacionamentos sociais tecido de laços de amizade e coleguismo que as pessoas herdaram parcialmente, ou na maioria das vezes, os construíram” (Mitchell, 1969, p. 8). Barnes estava interessado em compreender a estrutura das relações interpessoais tanto em sociedades “de pequena escala” quanto de “larga escala”. Sua perspectiva foi seguida por vários autores, como Bott (1976) no seu estudo da influência das relações interpessoais dos casais nos papéis conjugais.

Uma questão central destes estudos é a diferença entre as redes e os grupos sociais estruturados e/ou instituições, como família, categorias de trabalho, partidos políticos, grupos religiosos. Bott (1976) e Barnes (1987) contrastam as duas formas de relacionamentos sociais, os grupos estruturados têm fronteiras bem delimitadas, enquanto as redes são flexíveis. Mitchell (1973) entende que esse critério de diferenciação é problemático, porque os grupos formais, como por exemplo, um partido político, pode se ampliar ou retrair dependendo das questões em jogo. Para Mitchell (1973, p. 20) não há oposição entre vínculos estruturais e pessoais; eles constituem diferentes formas de tratar os dados empíricos em um quadro teórico-metodológico. Em sociedades com ampla mobilidade e transformações dos espaços, há tendência à interpenetração de grupos, categorias e espaços. Mitchell afirma: “o indivíduo é progressivamente orientado para redes e relações interpessoais que se sobrepõem às fronteiras da “village”, sub-casta ou linhagem” (Mitchell, 1973, p. 21). Em trabalho posterior, Mitchell (1974, p. 284) reafirma:

Eu argumentaria que não há real oposição entre análises conduzidas em termos de redes sociais e aquelas conduzidas em termos de definições institucionais ou da troca. Elas são meramente análises em diferentes níveis de abstração e conseqüentemente lidam com problemas essencialmente diferentes.

Concordamos com a perspectiva de Mitchell de que não há oposição entre redes e grupos institucionais definidos como o parentesco e tentaremos desenvolver esta perspectiva na análise dos dois campos empíricos. Mitchell (1969, p. 9-10) propõe compreender os relacionamentos sociais através de três ordens:

  • ordem estrutural: o comportamento das pessoas é compreendido a partir da suaposição em um espaço como a fábrica, a família, uma associação, um sindicato,um partido político ou organização similar.

  • ordem categorial: o comportamento das pessoas está relacionado com a classe, araça, etnia.

  • ordem pessoal: o comportamento das pessoas estão relacionados com os vínculospessoais que os indivíduos têm com um grupo de pessoas.

Essas três ordens são formas de realizar abstrações dos relacionamentos sociais para elaborar classificações, divisões, ordenações de modo a construir tipos de compreensão e explanação. As três ordens podem ocorrer simultaneamente nos relacionamentos sociais concretos.

O estudo das redes tem sido desenvolvido de diferentes perspectivas teórico- metodológicas,os métodos sociométricos que utilizam levantamentos quantitativos podem identificar os aspectos formais das redes, em termos das ramificações, alcance, densidade e tipos de contatos. No entanto, não resolve uma questão central que é a compreensão que os atores tem das implicações dos seus relacionamentos para o comportamento de cada um. Como bem diz Mitchell (1973, p. 28):

Rotular um relacionamento como “amizade” ou “de clã (clanship)” ou qualquer outro tipo de relacionamento social significa que os atores constróem o comportamento a ser esperado como aquele indicado pelo rótulo que eles atribuíram. Isto significa que um observador cuja dado primário sejam as ações das pessoas numa variedade de situações sociais tem dificuldades de abstrair elementos do comportamento na forma de redes parciais. Ele deve ser suficientemente familiarizado com os significados implícitos no comportamento social de modo a ser capaz de apreciar o comportamento em termos de percepções dos atores. Não apenas isto, mas o observador deve também conhecer os atores suficientemente para apreciar a influência sobre eles de pessoas que podem ser significantes para suas ações mas que não são fisicamente parte da atividade social em questão.

Para analisar os significados dos relacionamentos para os atores envolvidos, Mitchell propõe a análise das características interacionais, que podem ser divididas em quatro. O primeiro é quanto ao conteúdo, trata-se de compreender os significados que as pessoas nas redes atribuem a seus relacionamentos, que podem ser de assistência econômica, de obrigações de parentesco, de cooperação religiosa, amizade, etc. Ainda quanto a análise interacional das redes, temos três características: direção, durabilidade e intensidade.

Quanto à direção, as relações entre pessoas podem ser recíprocas ou não; quando há relações de parentesco, amizade, vizinhança, há relações de reciprocidade. Quanto à durabilidade há redes de curta ou longa duração, as redes se constituem e se desagregam. Quanto à intensidade, a relação com um parente próximo tende a ser maior do que com um vizinho.

A compreensão dos conteúdos em termos de normas, crenças e valores será captada pelo pesquisador através da observação das práticas dos atores. Para efeitos de análise, Mitchell (1973) propõe três possíveis conteúdos das redes: de comunicação ou informação, como, por exemplo, a difusão de rumor ou fofoca dentro de uma comunidade através de redes interpessoais; de transações, trocas – as conexões entre os indivíduos estão relacionadas às séries de transações que tem maiores implicações para os atores do que o simples ato da troca, pois envolve expectativas e obrigações como é o caso da relação entre candidatos e eleitores. O terceiro conteúdo seria o normativo – “refere-se àquele aspecto do relacionamento entre dois indivíduos que podem ser referidos às expectativas que cada tem do outro devido a algumas características ou atributos sociais que o outro pode possuir” (Mitchell, 1973, p. 26).

Os três conteúdos são apenas abstrações, pois nos relacionamentos concretos eles podem estar presentes concomitantemente, como bem observa Epstein citado por Mitchell:

O que nós observamos é um número de indivíduos conversando juntos, recontando experiências, trocando noticias de conhecidos e amigos, discutindo assuntos pessoais ou idéias e assim por diante. Implícitas nessas conversações estão as normas, valores e atitudes de aplicação geral ou especial reconhecida na sociedade. Como uma importante parte da conversação é constituída de fofoca, que é a discussão dos assuntos e comportamento de outras pessoas em sua ausência. Em termos do conteúdo da interação, a rede pode também ser vista como uma série de conexões numa corrente de fofocas (Epstein, 1961, p. 112 apud Mitchell,1969, p. 21).

O objetivo de Epstein ao analisar a difusão de ideias e rumores através das redes era não apenas rastrear a origem e fluxo da fofoca, mas também examinar o conjunto de normas em que as pessoas envolvidas transmitiam a fofoca. As fofocas serviam para reforçar a posição de status dos fofoqueiros (Mitchell, 1974, p. 286). Como compreender os significados implícitos no comportamento?

Mitchell (1969, p. 31-3) privilegia a observação direta e a análise situacional como praticada por Gluckman (2010), que segue os seguintes passos: 1) começa com uma série de incidentes conectados, possivelmente incidentes triviais; 2) observa como estes incidentes podem ser interpretados à luz das regularidades na estrutura social nas quais eles acontecem; 3) o pesquisador precisa conhecer: o contexto institucional e ecológico dos participantes, a história da situação; 4) registrar as observações de forma descritiva e narrativa. Nestes termos, Gluckman, elucida que:

Quando se estuda um evento como parte do campo da Sociologia, é conveniente trata-lo como uma situação social. Portanto, uma situação social é o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparada com seu comportamento em outras ocasiões. Desta fora, a análise revela o sistema de relações subjacente entre a estrutura social da comunidade, as partes da estrutura social, o meio ambiente físico e a vida fisiológica dos membros da comunidade (Gluckman, 1987, p. 238).

Esses passos para a observação da constituição, dinâmica e significados das redes sociais mostram como as ordens estrutural, categorial e pessoal podem estar amalgamadas em relacionamentos sociais concretos que se expressam em espaços, redes interpessoais e eventos. Mitchell (1974, p. 296) ressalta a importância do envolvimento do pesquisador com o grupo estudado, pois identificar o conteúdo envolve conhecer o significado que os atores em qualquer situação estão atribuindo aos sinais e símbolos presentes na interação.

Os alojamentos na zona da mata pernambucana

Os estudos, aos quais tivemos acesso, acerca de alojamentos no Brasil enfatizam as condições sociais degradantes dos trabalhadores que ali vivem,e como isto afeta a reprodução da força de trabalho (Targino et al, 1994, p. 14; Moreira; Mariano Neto, 1995). Entretanto, muito pouco tem sido abordado sobre as interações sociais entre os trabalhadores no espaço do alojamento. Apesar de serem explorados e desprotegidos, eles tentam se defender e atribuir significado para suas vidas num ambiente degradante e controlado.

Neste artigo, ao descrever as interações cotidianas dos migrantes nos alojamentos, mostraremos a composição social das redes sociais bem como os seus atributos.Adotaremos a noção de “cultura do migrante”, que se expressa em redes sociais, interpretações sobre a vida no alojamento, como proposto por Moodie (1991), para entender as interações sociais entre os “de fora”, e entre eles e os trabalhadores do local.

Referindo-se aos alojamentos de migrantes que trabalham em minas de ouro na África do Sul na década de 1980, Moodie (1991) afirma:

A própria organização do alojamento em atividades de mineração deixa espaço para adaptações culturais alternativas.Apesar do gerenciamento buscar controlar os trabalhadores nos horários livres, os moradores dos alojamentos obrigavam os chefes a deixar espaço para as suas próprias atividades. Estas atividades formavam a cultura do migrante, elas eram raramente individuais, constituiam-se pelos colegas migrantes em várias redes sociais que, freqüentemente, estendiam-se pelas áreas rurais de onde os migrantes procediam, e para onde a maioria retornaria (Moodie, 1991, p. 51).

Moodie (1991) sugere que a identidade dos trabalhadores migrantes, bem como a percepção de si mesmos é adquirida através da formação de redes sociais baseadas em laços da comunidade de origem e outras relações e nos valores dos migrantes. McNamara (1980)também aplica a noção de redes sociais para estudar as interações sociais durante as atividades de lazer num alojamento na África do Sul. Mayer, apoiado no estudo das migrações em East London, na África do Sul, nas décadas de 1950 e 1960, afirma que o migrante continua ativamente interessado e envolvido com sua família e comunidade de origem, por isto ele ressalta a necessidade de um refinamento na análise de redes sociais. Ele explica:

Há, obviamente, uma grande tarefa a nossa frente – desenvolver e refinar e análise de redes como uma técnica para o estudo de migrações. Em primeiro lugar, é necessário um quadro conceitual cuidadosamente elaborado das variáveis significativas ou atributos das redes sociais, especialmente aquelas que são significativas em relação à migração. A variável “fechada” e “aberta” é uma das significativas, mas devem existir outras. Segundo, nós precisamos técnicas metodológicas para identificar diferentes tipos de redes, ou diferentes atributos de redes no campo (Mayer, 1964, p. 34).

Mayer coloca, com propriedade, a necessidade de uma definição mais precisa de redes sociais. No caso dos trabalhadores paraibanos que trabalhavam em usinas do Estado de Pernambuco nas décadas de 1980-1990, observamos (Menezes, 2002) que eles adaptavam seus valores e relações sociais da comunidade de origem ao ambiente hostil dos alojamentos na plantation açúcareira, de modo a não se tornarem totalmente submissos ao controle dos administradores da usina e dos arregimentadores1. A observação etnográfica foi realizada nos alojamentos daVila do Engenho Água Branca, Usina São José, município de Goiana/PE, ambiente cerceado do alojamento nos campos de cana-de-açúcar.

A análise das redes sociais no alojamento se restringe aos trabalhadores provenientes da Região Agreste do Estado da Paraíba, identificados pelos trabalhadores“da rua”, moradores e pelos gerentes da usina como paraibanos. Os trabalhadores que ficam no alojamento e são de municípios do Estado de Pernambuco são identificados como pernambucanos, assim como os moradores e trabalhadores “da rua”. A categoria de “Pernambucanos” apresenta algumas ambiguidades, em algumas ocasiões inclui os assalariados que procedem de municípios distantes da usina e ficam nos alojamentos e, em outras, é utilizada para classificar apenas os moradores da Vila do Engenho e os trabalhadores “da rua”.

O dia no alojamento começa entre três e quatro horas da manhã. Os rádios são ligadose não há mais paz para aqueles que desejam continuar dormindo. Trabalhadores acordamum ao outro, aqueles que insistem em ficar nas redes são provocados pelos colegas; apósbanharem os rostos, é tempo de preparar o café da manhã e almoço, que é levado para olocal de trabalho e, também, de começar a preparar o jantar, que é, geralmente, carne secacozida no feijão. Para o café da manhã, em geral tem café preto, biscoitos e pão e umacomida de milho chamada “quarenta”, que é feita de farinha de milho cozida em água esal. Segundo os trabalhadores, a denominação de “quarenta” vem do fato de ser mexidapor quarenta vezes. É um prato típico entre os trabalhadores canavieiros, porém não écomum na região do Agreste Paraibano. É um componente da dieta alimentar muito valorizado, pois é rico em nutrientes, fornece aos homens energia para enfrentar a árdualabuta diária. Eles comem quarenta no café da manhã e, se permanecerem trabalhando atémais tarde, levam o quarenta para o almoço, acompanhado de um garrafão de três litrosde água, para beber durante o exaustivo dia de trabalho sob o sol escaldante.

Às seis horas da manhã, os trabalhadores partem do alojamento em direção aos campos de cana-de-açúcar, carregando o garrafão de água e o quarenta. O cozinheiro permanece no alojamento, para terminar de cozinhar o feijão com a carne de charque. A usina deveria contratar o cozinheiro, que é também responsável pela limpeza do alojamento, mas, muito frequentemente, ela não o faz. Nesse caso, os migrantes decidem, por conta própria, pagar um dos trabalhadores para cozinhar para eles, ou, ao menos, cuidar das panelas até que retornem do trabalho.

O término da jornada de trabalho pode variar de acordo com a quantidade deprodução que o trabalhador faz num dia de trabalho. Quando o local de trabalho é distantedo alojamento, eles são transportados em ônibus ou caminhões e podem apenas retornarquando toda a turma tenha terminado sua tarefa. Geralmente os migrantes terminam ajornada entre duas e cinco horas da tarde.

Retornando ao alojamento no período da tarde, a primeira coisa a fazer é banhar-se,é o tempo de recuperar a energia gasta durante o trabalho árduo e deplorável, e, também,representa a reapropriação dos seus corpos para si mesmos. Alguns deles retornam dotrabalho tão exauridos que não tem energia para banhar-se de imediato. Em um dosalojamentos visitados, encontrei alguns homens deitados no chão batido de barro, semenergia para levantar-se e tomar um banho. A água para o banho deveria ser providenciadapela usina, porém, na maioria das vezes, tem que ser coletada pelos próprios trabalhadoresem bicas distantes do alojamento ou em açudes próximos.

O tempo de lazer começa logo após o banho dos migrantes. Alguns preferemdescansar, dormindo em suas redes, enquanto outros se divertem jogando cartas ououtros jogos e conversando. Os grupos são formados de pessoas que gostam de um jogoespecífico, e eles tendem a ficar no mesmo grupo. Alguns se dedicam a preparar o jantare outros começam a preparar a comida para o próximo dia, escolhendo o feijão e ocolocando de molho. Antes da instalação da eletricidade nos alojamentos, os trabalhadorescostumavam ouvir rádio de bateria ou os homens letrados liam cordel para uma audiência,em geral, iletrada. Os homens costumavam sentar em grupos ouvindo a estória, bebendoe conversando. A eletricidade permitiu que alguns trabalhadores, com melhor situaçãofinanceira, trouxessem uma televisão e a instalasse nos dormitórios. O local da televisão setornou um ponto de encontro para os migrantes ao anoitecer. Eles assistem ao noticiário,a novelas e jogos de futebol.

Mayer, que estudou alojamentos em East London, na África do Sul, diz que as redes de amigos da comunidade de origem são compreendidas como “companheiros moralmente significantes”:

Os companheiros moralmente significantes são aqueles com os quais os migrantes vivem, comem, dormem, conversam, bebem e se divertem; são também os amigos em tempos de necessidade e os julgadores em casos de disputa ou comportamentos incorretos (Mayer, 1964, p. 29).

As redes de sociabilidade são organizadas nos dormitórios e em outros locais coletivos no espaço do alojamento, tais como a cozinha e o terraço da frente. Como parentesco e amizade são as bases para a organização interna dos dormitórios, há um senso de intimidade e companheirismo entre os trabalhadores.

Uma expressão da proximidade e intimidade entre os homens são as piadas. Como é um espaço predominantemente masculino, há sempre piadas relacionadas a sexo, tais como chamarem-se mutuamente “bicha” (homossexual), e algumas atitudes relacionadas ao corpo e ao sexo, como puxarem as calças um do outro e se tocarem nas partes íntimas. Um migrante contou numa roda de colegas que tinha feito sexo com animais e o prazer tinha sido o mesmo que com mulheres. Outros fazem gozação daqueles que trabalham até tarde da noite e dizem que, se eles trabalharem muito, irão perder as mulheres. Esses momentos expressam, simbolicamente, a relação entre a jornada exaustiva de trabalho e o desgaste do corpo e energia dos trabalhadores e a ameaça que isto pode trazer para a vitalidade sexual. Essas piadas e gestos raramente teriam lugar no local de origem, onde os migrantes são pais e maridos respeitosos, mas num ambiente dominantemente masculino e distante de suas famílias, suas identidades mudam, numa tentativa de se adaptarem a condições degradantes.

Outra expressão de intimidade e coleguismo entre os residentes no alojamento são os apelidos. Estes são em geral adquiridos a partir da convivência no espaço do alojamento, como por exemplo, “José da TV”, para o proprietário da única televisão no conjunto de dormitórios, ou “sorriso”, para um homem que está sempre sorrindo. Os apelidos, em algumas ocasiões, serão trazidos do lugar de origem, como por exemplo, uma família, cujo pai é chamado “boi” e o filho “garrote”. Harries (1994, p. 59) também menciona a mudança de nomes e apelidos como sendo uma indicação de pertencimento a uma comunidade de referência.

O senso de comunidade também se expressa na forma como os migrantes interpretam a convivência dentro dos alojamentos, se consideram como “irmãos”, estendendo a noção de parentesco para abranger irmãos, primos e tios fictícios. A noção de irmandade, como uma referência identitária, estimula os migrantes a formarem coalizões entre pessoas do lugar de origem, e estabelecer diferenças com outros grupos. Eles temem se relacionar com indivíduos de outras localidades pelo risco de discordâncias, conflitos e brigas. Como afirma Mayer (1964):

Eu utilizo o termo “encapsulamento” (incapsulation). Para os migrantes encapsulados em East London os amigos do lugar de origem podem efetivamente prevenir ou tornar desnecessário qualquer contato íntimo com outros (Mayer, 1964, p. 28).

A imagem de “irmandade” também é recorrente nas narrativas orais dos migrantes:

A convivência com os amigos é boa demais. Há divergência com o dono da usina, porque eles prometem muitas coisas e não dá elas. Com os amigo não tem divergência nenhuma. Se um precisa de um café, o outro tendo, um empresta o açúcar, o outro o sal, se eu não tenho a farinha agora, mas eu tenho [...] é maravilhoso. É uma turma de irmão. É, é como se tivesse aqui na sua própria casa, com esse aqui, com esse ali. Com [...] não tenho farinha, vou buscar na tua casa. É a mesma coisa lá (Geraldo, fita 1993, p. 5).

A comunidade de “irmãos” também atua como um veículo de controle social do comportamento dos indivíduos no alojamento, e em relação às responsabilidades com sua casa, especialmente quanto a levar os salários para suas famílias e respeitar suas esposas. Vários trabalhadores relataram que se alguém fica bêbado e provoca outros para a briga, seus amigos tentam acalmá-lo. O arregimentador também intervém em brigas e discussões, podendo utilizar seu relacionamento pessoal com os trabalhadores para resolver o conflito de forma conciliadora ou ameaçar com punições trabalhistas, tais como a suspensão do trabalho ou até a demissão. Os homens que bebem muito ou gastam seu dinheiro com mulheres também contam com o apoio de colegas, que os aconselham e os ajudam para que cumpram com suas responsabilidades como chefes de família. Um dos migrantes conta sobre o caso de um trabalhador que era viciado em bebida alcoólica, e os colegas tomaram o seu salário e levaram à esposa.

Sim. Peguei o dinheiro muitas vezes dele, quando ele tava bom, quando ele recebia, que ele tava controlado, que passava às vezes 15 dias sem beber. Aí ele trabalhava certo. Aí recebia o pagamento completo, aí quando começava a beber eu ia logo no bolso dele, ou senão pedia a ele, me dá teu dinheiro Benedito, prá mim levá prá Lulá, prá comprá cumê pro teu filho que está passando fome. Ele dizia: eu vou dá, eu vou dá, você é gente boa, você é filho de comadre Maria (Sílvio, fita 38, p. 21).

Mayer também ressalta o papel das redes de amigos e parentes no controle social do comportamento do indivíduo e do grupo.

O grupo exerce um controle social sobre seus membros tanto informalmente quanto através de pressões difusas, e formalmente através da assistência à casos e estabelecimento de penalidades. Providencia dinheiro ou ajuda em caso de desemprego, doença ou morte; todas estas emergências são relatadas pelo grupo de amigos e todos os que falharem em contribuir estará sujeito à sanção, ninguém contribuirá para ele se estiver em situação similar (Mayer, 1964, p. 29).

O significado de irmandade construído através dos laços pessoais do espaço de origem pode também se expressar como um demarcador das identidades dos trabalhadores em oposição aos chefes da usina. Aqueles que tentam, de todas as formas, agradar aos chefes, sendo obedientes e atendendo a todos os seus pedidos são identificados como “puxa-sacos”. Os trabalhadores tecem comentários e fazem piadas dos puxa-sacos, dizendo que eles estão do lado dos chefes, que são filhos do administrador e que desejam ser promovidos. Há dois trabalhadores que são identificados como puxa-sacos e são chamados de “filhos” do administrador, eles são considerados espiões da usina e os trabalhadores tomam precauções para não conversar livremente perto deles, porque há sempre a suspeita de que irão contar aos chefes (RAP, 1995a). Aos puxa-sacos são designadas tarefas mais leves, como levar cartões de apontamento da produção para o escritório da usina ou tomar conta dos animais. Esses espiões, além de atuarem como uma espécie de representantes informais da usina, também são distanciados e críticos da atuação sindical.

No tempo de lazer, vários grupos informais se formam, alguns se juntam em grupos para jogar dominó, outros formam pequenas rodas para conversar dentro dos dormitórios ou em outras partes do complexo residencial sobre o sindicato, política nacional e local e sobre a família (RSPM, 1994). Muitas estórias são contadas sobre os relacionamentos entre trabalhadores e administradores da usina e delas emanam diferenças na forma como o administrador, e outros chefes, lidam com os trabalhadores. As formas de responder às atitudes agressivas e desrespeitadoras à dignidade humana dos administradores são diversas, alguns trabalhadores recorrem ao silêncio, outros esboçam tentativas de externalizar o ódio e a revolta através da vingança, um grupo de trabalhadores organizou um plano imaginário de emboscada para matar o administrador. Outros, ainda, tentam expressar sua raiva através da maledicência, desejando que fatos ruins recaiam sobre o administrador, como cair do cavalo e quebrar o pescoço ou a espinha e ficar aleijado (Nelson, trabalhador canavieiro local, fita 45:4).

Outros frequentam os bares na Vila do Engenho, que é um espaço de liberdade, distante da vigilância direta dos chefes, onde eles podem desabafar e criticar a usina e trocar informações sobre os sindicatos (RAP, 1995b). Este é o momento quando eles podem se expressar livremente e criticar a usina, trocando também informações sindicais (RAP, 1995b). Harries também abordou este ponto:

os migrantes também viam o álcool e brigas como um meio de se liberar das tensões geradas por suas condições de moradia superlotadas e a demanda incessante de seu trabalho (Harries, 1994, p. 65).

É também atividade de lazer sentar nos degraus do terraço do alojamento e conversar com amigos. Todos os tipos de assuntos podem surgir nas conversas, tais como mulheres, família em casa, estórias de violência na cana e política local e nacional. Em resumo, uma grande parte da socialização dos alojamentos acontece em grupos de conversa. Harries também observou que: “Uma grande parte da socialização acontece em volta do fogo à noite quando quantidades de comida de milho, álcool e tabaco são compartilhados e consumidos” (Harries, 1994, p. 57).

Apesar do álcool ser proibido no alojamento, há sempre alguém que tem uma garrafade cachaça, compartilhada entre os colegas. Sempre ocorrem brigas causadas por pessoasque estão bêbadas (Ivo, fita 4: 21-23). Nesse caso, os colegas tentam acalmá-los e evitar que outros entrem no conflito. O álcool atua como um amenizador do trabalho exaustivoe da pressão vivida pelos trabalhadores, com as demandas de produtividade e obediência.

As várias formas de convivência no espaço do alojamento mostram que, apesar docontrole social dos gerentes de usina e do arregimentador, os trabalhadores conseguem,através de suas redes de amizade e parentesco, criar um certo espaço de liberdade, ondepara além de serem simples força de trabalho, são também sujeitos na construção daspráticas e discursos que constituem o espaço do alojamento.

As conversas, piadas, brincadeiras, a ajuda financeira entre colegas, o controle sobre o cumprimento das obrigações financeiras morais dos homens para com suas famílias constituem laços de confiança, respeito, demarcadores de imagens de indivíduos e grupos que convivem no espaço do alojamento. Seria difícil abstrair os tipos de conteúdos: informação, troca e normativo como proposto por Mitchell (1973), pois eles estão amalgamados no cotidiano da vida no alojamento.A circulação de uma informação sobre o patrão tem também o significado normativo, no sentido de identificar as posições dos indivíduos quanto ao controle sobre o trabalho e a vida dos trabalhadores.

Alojamentos de trabalhadores canavieiros em Santa Bárbara d’Oeste – SP

Em outra investigação realizada por Cover (2011) em alojamentos no interior do estado de São Paulo, no período entre maio e outubro de 2010, também utilizamos como ferramenta metodológica o “método de estudo de caso detalhado” ou também “análise situacional”, que de acordo com Van Velsen:

Isto se refere à coleta efetuada pelo etnógrafo de um tipo especial de informações detalhadas. Mas isto também implica o modo específico em que esta informação é usada na análise, sobretudo a tentativa de incorporar o conflito como sendo ‘normal’ em lugar de parte ‘anormal’ do processo social (Van Velsen, 1987, p. 345).

Através desta perspectiva teórica prioriza-se a observação dos conflitos existentes entre os sujeitos pesquisados. Tal postura não desconsidera os aspectos estruturais dos conflitos sociais, como a questão de classe. No entanto, a lente do pesquisador é voltada para as microrrelações dentro deste contexto. Como expõe Van Velsen:

A diferença, como já indiquei, pareceria estar, antes, no fato de que as descrições estruturais não nos fornecem uma série de eventos inter- relacionados que mostram como, numa estrutura específica, indivíduos lidam diante das escolhas com as quais são confrontados (Van Velsen, 1987, p. 360).

O alojamento é um espaço onde se produzem relações sociais, num contexto de um conflito social possível. Os sujeitos sociais em contato produzem diversos conflitos de ordem simétrica (com seus iguais) e de ordem assimétrica (entre subordinados e superiores). Em termos de observação destes casos na análise situacional,Van Velsen comenta que:

Um das suposições na qual a analise situacional está baseada é a de que as normas da sociedade não constituem um todo coerente e consistente. São ao contrário, freqüentemente vagas e discrepantes. É exatamente este fato que permite a sua manipulação por parte dos membros da sociedade no sentido de favorecer seus próprios objetivos sem necessariamente prejudicar sua estrutura duradoura das relações sociais. Por isso, a análise situacional enfatiza o estudo das normas em conflito (Van Velsen, 1987, p. 369).

A existência de alojamentos para abrigar trabalhadores migrantes é um antigo meio que as empresas utilizam em diversos setores da economia. No Agronegócio Canavieiro paulista, a utilização de alojamentos é intensificada nas décadas de 1980-90, com a contratação de trabalhadores migrantes. Em pesquisa realizada durante a década de 1990, na região de Ribeirão Preto/SP, Maria Aparecida de Moraes Silva (1999) atribui o fato dos empregadores rurais destinarem alojamentos para abrigar os trabalhadores migrantes como uma forma de mesclar a segregação étnico-racial com segregação de classe. Em seu estudo, a autora detecta que os trabalhadores migrantes (provenientes da Bahia e Minas Gerais), e os trabalhadores locais, sempre são colocados para trabalhar em talhões separados.A separação entre os “de fora” (migrantes) e os trabalhadores locais é constatada também no que se refere aos espaços de moradia. As novas construções de alojamentos são qualificadas pela autora como espaços que tem o objetivo de controlar a força de trabalho migrante.

A entrada em campo nesta pesquisa se deu através da mobilização de algumas pessoas chaves, que nos permitiram acessar o alojamento pesquisado. Em primeiro lugar, contatamos o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São José de Piranhas, que faz acompanhamento dos trabalhadores que se deslocam para as áreas de colheita de cana-de-açúcar. Através das lideranças sindicais, tivemos contato com alguns chefes de turma de migrantes, que nos informaram em quais usinas estariam durante o período da safra, bem como os procedimentos de contato com os escritórios da usina para permitir nossa entrada nos alojamentos. Também tínhamos o contato com os agentes da Pastoral do Migrante de Santa Bárbara d’Oeste, grupo ligado à Igreja Católica. Estes visitavam periodicamente os alojamentos dos municípios circunvizinhos para realizar celebrações e acompanhamento pastoral junto aos trabalhadores migrantes. A Usina que pesquisamos permitia que membros da Igreja Católica entrassem nos alojamentos para tais serviços. Um dos agentes de pastoral, que tem uma relação de parentesco com um dos diretores da usina, mediou a negociação que permitiu nossa moradia no alojamento. Essa permissão inédita foi o primeiro caso de uma pessoa que não faz parte das turmas de migrantes de morar no alojamento. Para se ter uma ideia, os parentes dos trabalhadores podem fazer visitas, mas não podem dormir no alojamento. A possibilidade de acompanhar os trabalhadores migrantes em seu trabalho no canavial e morar no alojamento, compartilhando os espaços e o tempo do cotidiano dos trabalhadores permitiu uma experiência privilegiada para a coleta dos dados para a pesquisa.

A usina que observamos tem cinco alojamentos, que são administrados pelo Setor de Recursos Humanos, através de uma profissional Assistente Social; e pelo setor de Segurança no Trabalho, através dos técnicos de segurança do trabalho. O alojamento é de propriedade da usina.

Estes profissionais são responsáveis pela manutenção física dos alojamentos e também pela formulação de regras para a convivência social (ordem) dos trabalhadores neste espaço. No alojamento, a pessoa responsável pela manutenção da ordem é o fiscal (turmeiro), que mora ali. A assistente social e o técnico de segurança do trabalho fazem visitas esporádicas ao alojamento.

O alojamento fica cerceado por canaviais, a 3 km da rodovia que liga Piracicaba a Santa Bárbara d’Oeste. A cidade de Piracicaba está a 7 km. A proximidade com a cidade é um elemento que facilita os deslocamentos dos trabalhadores, onde se dirigem uma ou duas vezes ao mês para comprar alimentos, roupas, depositar dinheiro no banco para as famílias no Nordeste. Nos meses finais da safra, os trabalhadores se dirigem com mais frequência à cidade para comprar eletrodomésticos e roupas para levarem às suas famílias.+

Os trabalhadores migrantes trabalham cinco dias e folgam um; e ficam no alojamento das 17 horas quando o ônibus os traz, até as 6 horas quando o ônibus os leva ao trabalho.

O alojamento consiste num complexo de prédios que são utilizados como espaços para dormitórios; banheiros e chuveiros; sala de vivência; refeitório e lavanderia. Para os dormitórios são reservados três prédios, subdivididos em quatro cômodos cada. Em cada cômodo há três beliches, porém nem todas as camas são ocupadas, e isso faz com que cada cômodo tenha entre três a quatro trabalhadores. A divisão é feita de maneira espontânea, no começo da safra cada trabalhador escolhe o quarto que quer ficar. Neste alojamento, os trabalhadores buscavam ficar em quartos que tivessem parentes ou conhecidos. Os onze quartos eram assim ocupados: 1) Ficavam dois irmãos e um cunhado; 2) Dois irmãos, um cunhado e um primo; 3) Três primos e um sobrinho; 4) Três trabalhadores da mesma localidade no Ceará; 5) Dois primos; 6) Três irmãos e um cunhado; 7) Dois irmãos e dois irmãos; 8) Dois irmãos e um afilhado; 9) Dois da mesma localidade; 10) Dois da mesma localidade; e 11) Três trabalhadores sem parentesco e nem vizinhança.

Em cada quarto (ou cômodo) além dos beliches há armários, onde são guardadas as roupas e também alimentos complementares à dieta fornecida pela usina, como suco em pó, iogurte, bolachas e rapaduras. Estes alimentos são adquiridos em mercados da região nos dias de folga, ou numa das vendas próximas ao alojamento, e estocados ali. De maneira geral, estes alimentos eram consumidos coletivamente no quarto. Essa distribuição espacial nos quartos indica a manutenção de redes de parentesco e vizinhança presentes desde as localidades de origem.

Estas redes de parentesco e amizade caracterizam a sociabilidade no espaço dos alojamentos. Servem como canais de comunicação para atitudes de solidariedade, como dividir os alimentos; manter segredos e a vigilância em casos de ser necessário descumprir as regras do alojamento, como por exemplo, para beber a proibida cachaça.

A cachaça, e outras bebidas que contém álcool, é terminantemente proibida dentro dos quartos. Mas, como colocado anteriormente, os trabalhadores encontram formas criativas de esconder as bebidas alcoólicas, geralmente adquiridas na cidade, no dia da folga, ou num bar existente ali próximo ao alojamento. As bebidas de álcool eram escondidas ou no interior de uma árvore de bambu; por baixo de algumas pedras; ou nos armários de quartos desativados.

A cachaça é consumida por volta das 17 ou 18 horas, quando os trabalhadores retornam do canavial. Neste horário, o fiscal está ocupado, porque juntamente com o medidor, eles repassam as quantidades de metros cortados de cana-de-açúcar de cada trabalhador que fora anotada no caderno para o medidor digital. Neste aparelho os dados ficam gravados num arquivo, que é transmitido aos computadores do escritório da usina, onde serão feitos os cálculos para ter os resultados da produção de cada trabalhador, para posteriormente ser convertido em salário.

Quando os trabalhadores percebem que o fiscal está ocupado, eles se comunicam com sinais, como piscadas de olhos, ou risos acompanhados de gestos, ou até mesmo conversando próximos num tom de voz baixo com algum código como “Fubuia”, ou tipo “os meninos já estão lá”. E de maneira individual, ou no máximo em grupos de dois, eles chegam ao local e bebem a cachaça. O local vai mudando, num dia é no bambu, no outro, no quarto vazio, no outro atrás do prédio dos chuveiros.

As doses de cachaça ingeridas nos finais de tarde, não interferem na produção dos trabalhadores, nem ameaçam a lucratividade da usina. Beber cachaça é um fator cultural típico de áreas rurais do nordeste e do Brasil. Na visita que fizemos aos mesmos trabalhadores, em suas áreas de origem na Paraíba, todos os dias é bebida a cachaça. Seja para receber um amigo, seja um gole antes das refeições, seja em dias de festa, seja para se embriagar. A questão é que a usina, através de seu corpo de agentes, encarregados e fiscais, proíbe o uso de bebidas alcoólicas dentro do alojamento para evitar possíveis conflitos entre trabalhadores embriagados. E o fiscal, mesmo sendo amigo e conhecido dos trabalhadores, precisará punir, caso enxergue alguém bebendo cachaça. Se o fiscal optar por não punir, seus superiores o punirão.

Em nosso entender se estabelece um pacto. O fiscal, de um jeito ou de outro sabe que seus subordinados estão bebendo no alojamento. Nas redes de parentesco e amizade, circula a informação de que os trabalhadores bebem cachaça nos alojamentos, e o fiscal tem acesso a essas redes. O fato é que se o fiscal não enxergar, não tem como ficar sabendo. E se os trabalhadores beberem e não provocarem conflitos, também não se comunica um possível problema decorrente do uso de cachaça. Então, os interesses se combinam sem haver uma comunicação oral ou um debate. O fiscal sabe que antes de tomar banho os trabalhadores gostam de “tomar uma”, então, ele se ocupa de outras coisas para não ter que enxergar tal ato e ter que punir.

Essa é uma regra que percebemos neste alojamento e que faz parte do “saber viver nos barracos”. Criar meios para “suportar” o cansaço do trabalho, as dores no corpo, a saudade da família, a carência de mulheres, faz parte da “sabedoria” aprendida socialmente para viver em alojamento. O pacto entre os fiscais e os trabalhadores também faz parte dessa sabedoria, pelo menos neste caso.

Circulava entre os trabalhadores a preocupação com os novatos, que pela pouca experiência, por ainda não estarem habituados a viver neste espaço, ou talvez por não terem demonstrado confiança suficiente para participar deste pacto, podem, em virtude de querer fazer algum tipo de relação de confiança com o fiscal, fazê-lo enxergar e punir. Essa latente ameaça dos novatos no espaço do alojamento é neutralizada através da rede social de parentesco e amizade que se estabelece desde antes da formação da turma de cortadores de cana. A referida turma já vem sendo formada a mais de uma década pelo mesmo arregimentador, que seleciona os trabalhadores das proximidades de São José de Piranhas na Paraíba. Para adentrar na turma, o arregimentador faz uma consulta prévia com parentes e amigos.A rede social que permite a entrada do trabalhador neste emprego possibilita a inserção nas regras deste novo espaço de sociabilidade, como também o aprendizado no caso de quebra das regras estabelecidas pela usina.

Considerações finais

Nesse artigo, fizemos um breve exercício para demonstrar como a análise de redes sociais pode ser um instrumento teórico e metodológico para compreender os elos sociais entre indivíduos e famílias cujas trajetórias de vida são marcadas por migrações, ou seja, por deslocamentos nos espaços. Não há, portanto, desagregação dos vínculos sociais ou isolamento dos indivíduos, mas antes, recomposições que podem ser constituídas tanto de grupos estruturados quanto de relações pessoais.

Os relacionamentos não constituem grupos fixos, estruturados como são os de família e parentesco, mas redes de relações interpessoais que organizam o espaço aparentemente caótico, desorganizado e violento dos alojamentos dos migrantes.

As interações no grupo são orientadas por valores de cooperação, fidelidade, confiança, mas também de conflitos. Solidariedade e cooperação são valores centrais nas formas como os paraibanos lidam com as condições sociais degradantes de vida nos alojamentos em usinas de cana-de-açúcar. Estes valores e práticas sociais demonstram que os trabalhadores migrantes não estão totalmente submetidos ao controle social imposto sobre eles pela hierarquia da usina, mas são capazes de criar algum espaço de liberdade e, como tal, são capazes de manter sua dignidade.

Destacamos, também, como a “análise situacional” permite ao pesquisador coletarinformações detalhadas e compreender como os indivíduos situam-se nas estruturassociais e realizam escolhas em situações cotidianas com as quais são confrontados. Aanálise situacional observa as coesões sociais, mas também incorpora a experiência doconflito como constituinte dos arranjos e rearranjos dos grupos sociais.

Material suplementar
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Entrevistas
Geraldo, fita 1993.
Ivo, fita 4
Nelson, fito 45.
Sílvio, fita 38
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