Resenhas
Conservantismo ilustrado Ilustrated conservantism Conservadurismo ilustrado
Recepção: 01 Março 2015
Aprovação: 01 Abril 2018
Ser conservador, portanto, é preferir o conhecido ao desconhecido, o que foi experimentado ao que não o foi, o fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado,o próximo ao distante,o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, o riso de hoje à felicidade utópica. (Oakeshott, 1981, p. 22).
O conservadorismo é um fenômeno ideológico de complexidade e sofisticação elevadas. Não parece ser por acaso o interesse de uma parcela da opinião pública, mais ampla do que a tradicional intelligentsia, pelo tema no Brasil desta segunda década dos anos 2000. Algo parece ter acontecido (e está acontecendo) para que os olhares se direcionassem, com atenção redobrada, para um ideário tomado simplesmente como negativo em tempos pretéritos – ou, na melhor das hipóteses, como irrelevante – aqui e alhures. Vários fatores contribuíram para essa mudança de rumo: antes, desconstituições de ideias definidoras de espaços e posições (o caso do marxismo, por exemplo); mais recentemente, dificuldades do liberalismo no que respeita à sustentação sistêmica -destacadamente, nos países de grandes diferenciações sociais.Mas,sobretudo,observa-se a emergência revigorada -com salientes reflexos no campo simbólico – de uma reatividade valorativa na esfera da política. De um lado, a esquerda moderada vem apresentando fragilidades; de outro, a direita – sim, assumindo-se como direita – tem se habilitado ao debate. A democracia estará sendo ameaçada? Ou é a ela que se deseja proteger?
Nesse contexto, vem a público As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários (Coutinho, 2014), compêndio de autoria do jornalista e cientista político português João Pereira Coutinho1. Professor da Universidade Católica Portuguesa e colunista dos jornais Folha de São Paulo e Correio da Manhã (Portugal), Coutinho concluiu sua (sólida) formação em Portugal, elaborando sua tese doutoral sobre o pensamento do político e escritor anglo-irlandês Edmund Burke (1729-1797).Esse é o mote à identificação de que corrente particular do conservadorismo o intelectual português fundamenta sua locução: trata-se da tradição britânica. E, pelo que se lê em – e depreende de – As ideias conservadoras, o seu redator está plenamente creditado a se manifestar pelo que conhece do objeto com o qual manuseia. Demonstra erudição, habilidade política (o próprio autor caracteriza o documento como “político”) e esbanja virtuosismo retórico. É muito agradável a leitura do livro – e, com isso, não é de se estranhar que o público interpelado, para além da atualidade do tema, venha a ser bem mais amplo do que usualmente uma obra teórica ousaria alcançar.
O livro de Coutinho é muito bem estruturado: da introdução ao primeiro capítulo (síntese dos demais), seguem-se cinco unidades e uma conclusão com os detalhamentos que perfazem o raciocínio desfilado.“Imperfeição humana”,“O sentido da realidade”,“Os testes do tempo”, “A reforma prudente” e “A sociedade comercial” – e, por derradeiro, “Conservadores ou monomaníacos” – respondem a duas dimensões expositivas que se completam no texto: a primeira funciona como um recurso de ratificação (o ponto enfrentado é sempre o mesmo); a segunda se observa nas laboriosas qualificações engendradas em cada item. Entre os conservadorismos possíveis, o propugnado por Coutinho é, sobretudo, ilustrado. Veem-se ali, em princípio, os termos-chaves do conservantismo tradicional (realismo e prática), sem prejuízo à particular contemplação daquele ideário acerca do fator tempo, submetido ao império do hic et nunc. De imediato, vislumbram-se os signos concorrentes tisnados pela negatividade: abstracionismo e teorização.
No primeiro capítulo Coutinho apresenta “A ideologia conservadora”. O conservadorismo é, antes de tudo, reação. Reação a quê? A chave à resposta está no reconhecimento da centralidade política das teses de um dos corifeus conservadores – o já citado Burke – e a sua conhecida (e reverenciada) crítica aos revolucionários franceses. A tradição e a sua ínsita sabedoria teriam sido desprezadas – na promoção da Grande Revolução naquele final de século XVIII – em nome de um construtivismo utópico e irresponsável. Esclareça-se: irresponsável porque utópico. O que Burke desejava preservar eram os valores e as instituições garantidoras do processo civilizatório, que, segundo ele, haviam sido maculados por conta do experimentalismo revolucionário.
Descortina-se, assim, o ponto teórico que demarca o entrecho discursivo de Coutinho: o conservadorismo ilustrado não se pretende uma elegia de um passado idealizado (esta é característica dos reacionários); e nem projeta um futuro otimizado (esta seria tarefa de revolucionários). O ideário de Coutinho acolhe o passado (não de per si, e sim pelo que carrega de ensinamentos ao processo civilizatório) e recolhe de bom grado ideias ao reformismo futuro; o incrementalismo controlado (e moderado) é sempre bem-vindo.
No segundo capítulo, intitulado “Imperfeição humana”, o autor direcionará os seus julgamentos denegatórios menos à razão – da qual ele faz muito bom uso, não obstante suspeite os seus poderes – e mais ao racionalismo, compreendido como uma subversão daquela. Leia-se a seguinte passagem:
Esse, aliás, é o problema epistemológico central do racionalismo moderno, tal como denuncia Oakeshott: a defesa apaixonada de que o único conhecimento válido é o “conhecimento técnico”, ou o conhecimento de uma técnica, capaz de oferecer aos homens um grau de certeza (de pureza) que o “conhecimento prático” não comporta. Foi essa confiança cega na ‘teoria’, apenas na ‘teoria’, que levou Alexis de Tocqueville (1805-1859) a denunciar nas páginas de O Antigo Regime e a Revolução (1856) a criminosa ambição dos revolucionários de fazerem uma Constituição de acordo com as regras da lógica – e não com a observação, a prudência e a experiência, que são virtudes insubstituíveis do exercício político. Aqui residia o problema fundacional da Revolução Francesa: confundir a política com um cálculo matemático; e os seres humanos de uma comunidade real com enunciados de uma mera equação. Tudo em nome de um estado perfeito que, obviamente, existia apenas na cabeça dos filósofos. (Coutinho, 2014, p. 36).
Com a sua referência negativa à racionalização, encontrando fundamentos em pensadores tão distanciados no tempo, tais como Tocqueville (século XIX) e Michael Oakeshott (século XX), o intelectual português põe em relevo questão essencial na possível irmanação do conservantismo com a política em seu sentido hard: o da dilacerante relação – melhor dizendo, tensão – entre natureza e cultura. A argúcia analítica de Coutinho não lhe concede o exílio do intelectualismo à possível elevação da vida social; a arte do argumento se esteira, precisamente, na sublinha modulação do papel de cada um. Atenta- se que a referência primeira mobilizada é Burke – e não Thomas Hobbes, por exemplo. Os imperativos da natura jamais são desprezados, ainda que os fatores simbólicos ocupem espaços nada desprezíveis – daí a necessidade da apreciação histórica. O ceticismo burkiano, incorporado à farta por Coutinho, não elide o exercício racional (o da política, por excelência); ao revés, qualifica-o em face das recomendações da prudência, da moderação e pela observação atenta e humilde das coisas do mundo.
No capítulo 3 – “O sentido da realidade” – aquelas minudências ampliam-se. O realismo é o core tanto da política quanto da ciência. Entretanto o pensador português não parece se seduzir pela objetividade crua de um cientista social vigoroso como Vilfredo Pareto (1848-1923), por exemplo – em cujo argumento a coisa antecipa necessariamente a palavra e é por esta envolta na construção da linguagem científica (Bobbio, s/d). Essa é a diferença com a feição conservadora do liberalismo econômico, com a sua recorrente dependência de um sujeito cognitivo inteiramente racional – e, por isso, universal. Com Coutinho, no prius do mundo estariam alguns valores, que denomina como “primários” (ou “naturais”), base sobre a qual se assentaria a vida social – qualquer vida social. Observa- se, no entanto, que esse quadro axiológico possui feição negativa – à semelhança do postulado por Isaiah Berlin (1958). Entre esses valores, o do pluralismo seria merecedor de maior destaque. Como efeito, poderia sobrevir robustas evidências de proximidade de Coutinho com o liberalismo de corte político – contra o qual não lança acidez. No entanto, aqui também se exigem especificações: não raro, o construtivismo legislativo ultrapassaria, segundo a perspectiva conservadora, os limites da razoabilidade.
Em Coutinho, os oxímoros são esclarecedores: a razão é poderosa porque é assumidamente limitada; o ceticismo é (e deve ser) balizador de qualquer lógica. Compreenda-se bem: a sua crítica às ideologias não reclama uma posição delas totalmente afastada, porquanto admite o conservadorismo como uma ideologia; o repto está no justo equilíbrio das ponderações. No capítulo 4 (“Os testes do tempo”), o intelectual português responde a alguns dos questionamentos lançados aos conservadores. No item mais significativo, busca desconstituir a (suposta) rejeição apriorística do pensar que advoga às reformas, quaisquer reformas. Trata-se, segundo o literato, de sopesar os elementos organizadores da razão histórica:“antiguidade” e “duração”, signos de permanência, assim o são observados por motivos não desprezíveis; sinalizações de sapiência, neles é que deveríamos mirar às reformas desejáveis e possíveis. Não se enxerga, por conseguinte, aqui, qualquer subserviência à tirania das circunstâncias antecedentes, apenas a consideração dessas últimas: “uma sociedade incapaz de conservar é uma sociedade incapaz de se reformar”, dirá (Coutinho, 2014, p. 65).
No quinto capítulo– “A reforma prudente” –, à semelhança do anterior, aparece mais claramente a agudeza da verve do articulista lusitano. De plano, nomeia as ideias do cientista social norte-americano Albert Hirschman, em seu conhecido A retórica daintransigência, para contrapor. Basicamente, ousa desfazer as teses deste em face, entre outras altercações, de suas inconsistências lógicas – elas não se sustentariam em função de sua exclusão recíproca. Na sequência, ala Tocqueville novamente, aceitando que as mudanças são inevitáveis, adverte que “a inovação deve partir de uma situação concreta, e não de um desejo abstrato”. Ademais,“[...] são as ‘circunstâncias’ que determinam a natureza da ação reformista – uma ação que não apenas procurará responder a um problema específico como se fará por referência a uma tradição específica”. E conclui, uma vez mais, burkianamente: “O político conservador, antes de reformar, deve ‘ver’ com os seus próprios olhos, deve ‘tocar’ com as suas próprias mãos” (Coutinho, 2014, p. 76-77, grifos do autor).
A relação entre as palavras e as coisas conheceu tratamento rigoroso nas mãos de Coutinho. No capítulo 6, dissertou sobre a “sociedade comercial” – talvez evitando, em um primeiro momento, o termo “mercado”. Em raciocínio milimetricamente calculado, o escritor almeja conciliar ideário conservador com lógica de mercado – o que seria, em tese, uma contradição. A propósito, o conservadorismo ambientado na
Europa continental – mormente na Alemanha do final do século XVIII e início do XIX – foi fortemente refratário à dinâmica social que se desenhava, cujos elementos axiais sinalizavam ao individualismo (em detrimento do organicismo) e à fragmentação das lealdades tradicionais (Mannheim, 1968, 1971). De outra parte, no século XX, engenharia elaborada por intelectuais e políticos ingleses (sublinhe-se o papel da primeira-ministra Margaret Thatcher), em homenagem uma vez mais a Burke, foi feliz em confundir vida social e ação econômica: a axiologia que cimentaria a primeira seria a mesma que ativaria a segunda. Com efeito, partindo de um clássico como Adam Smith (1723-1790) e alcançando um pensador liberal vigoroso como Friedrich Hayek (século XX), com a sua defesa anticonstrutivista da “ordem espontânea”, Coutinho demonstra: o mercado é a tradição.
São diversos os motivos que recomendam a leitura de As ideias conservadoras. Aos já citados, acrescentam-se outros não menos importantes: a qualidade (e consistência) política das ideias e a economia da lavra que as projeta são bons exemplos. Ademais, em termos substantivos, confirma-se o casamento do conservantismo com a democracia, o que resulta em um respeitável projeto político de direita, porque não autoritário. Estejamos certos que, no depender de Coutinho, a pergunta que orienta o enredo desta resenha está respondida: no que tange a essa linguagem conservantista (embora não regressista), a democracia brasileira está resguardada. As dúvidas remanescentes, lançadas há tempos por Karl Mannheim (infelizmente, ausentes no livro), possuem caráter político – e estritamente político porque humano: as reações do pensar conservador (a neutralizarem as emoções de processos revolucionários), às quais se refere o cientista social português, não serão bem mais frequentes do que tópicas? Ceteres paribus, não se terá aí uma tentativa artificial de administração das emoções humanas, indicadoras de sonhos (fontes primitivas da voluntas); e, em contrapartida, uma inversa e proporcional elevação da ratio política? O refinado intelecto do pensador português certamente oferecerá respostas a essas indagações.