Resenhas

Brasil: uma biografia

Murilo Vilarinho
No institution, Brazil

Brasil: uma biografia

Sociedade e Cultura, vol. 21, núm. 2, pp. 256-262, 2018

Universidade Federal de Goiás

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Recepção: 03/09/16

Aprovação: 01/02/17

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 846p.

Lilia Moritz Schwarcz é uma historiadora brasileira e professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. É reconhecida por seu vasto trabalho antropológico e historiográfico, com ênfase nos assuntos escravidão, construções simbólicas, identidade social, Brasil do período monárquico. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 18701930; As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos; Um enigma chamado Brasil (Org. com André Botelho); História do Brasil Nação Vol. 3 – A abertura para o mundo 1889-1930; Brasil: uma biografia são algumas das principais obras de Schwarcz.

Heloisa Murgel Starling também é historiadora e docente na Universidade Federal de Minas Gerais. Seu trabalho acadêmico pauta-se, especialmente, por estudos sobre o Brasil do período republicano. Starling conforma uma significante produção bibliográfica, sobre a qual se podem destacar os escritos Os Senhores das Gerais;Uma Pátria para Todos: Chico Buarque e as Raízes do Brasil; Imaginação da Terra: Memória e Utopia na Moderna Canção Popular Brasileira; Brasil: uma biografia.

Lançado no primeiro semestre, do ano de 2015, pela Editora Companhia das Letras, Brasil: uma biografia, escrito por Schwarcz e Starling,apresentou ao universo intelectual um texto conciso e claro capaz de revelar, por meio de suas centenas de páginas, interpretações atinentes à historiografia geral do Brasil, contemplando discussão que se inicia nos tempos coloniais, estendendose ao período posterior à ditadura. Apesar de a obra não necessariamente se estruturar, atendendo a formalidades técnicas e acadêmicas, propõe aos leitores um novo modo de ler o Brasil, no que concerne ao seu quotidiano, sua arte, sua economia, sua política. Biografar a sociedade brasileira desde 1500 é uma tentativa de reconstruir o trajeto de um país, caracterizado por constantes transformações. O objeto de análise pode ser identificado como os principais eventos sociais e históricos que estiveram na base da construção de uma terra chamada Brasil.

Brasil: uma biografia é composta por introdução, dezoito capítulos e uma conclusão, intitulada, de modo interessante, por “História não é conta de somar”, título que parece significar o quanto a história de um povo é muito mais do que um reduto de fatos e de datas exatas; é, nesse sentido, um ato de desvendar, respaldado em operações subjetivas. Os dezoito títulos que salvaguardam as discussões são sugestivos, permeados pelo aspecto crítico em relação ao tema a ser tratado.

Dessa forma, na sequência, a introdução tem como título “O Brasil fica bem perto daqui”; os capítulos que se seguem são “Primeiro veio o nome, depois uma terra chamada Brasil”; “Tão doce como amarga: a civilização do açúcar”; “Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência”; “É ouro!”; “Revoltas, conjurações, motins e sedições no paraíso dos trópicos”; “Homens à vista: uma corte ao mar”; “D. João e seu reino americano”; “Quem foi para Portugal perdeu o lugar: vai o pai, fica o filho”; “Habemusindependência: instabilidade combina com Primeiro Reinado”; “Regências ou o som do silêncio”; “Segundo Reinado: enfim uma nação nos trópicos”; “Ela vai cair: o fim da monarquia no Brasil”; “A Primeira República e o povo nas ruas”; “Samba, malandragem e muito autoritarismo na gênese do Brasil moderno”; “Yes, nós temos democracia”; “Os anos 1950-1960: a bossa, a democracia e o país subdesenvolvido”; “No fio da navalha: ditadura, oposição e resistência”; “No caminho da democracia: a transição para o poder civil e as ambiguidades e heranças da ditadura militar”. Esses introduzem conteúdos escritos de modo denso. Além disso, a rica história nacional adquire contornos sofisticados que cativam o leitor.

Considerando-se a grande quantidade de capítulos e suas extensões textuais, esses serão apresentados, em termos pedagógicos, por meio de blocos de assuntos que se convergem, com a finalidade de ilustrar pontos de reflexões das autoras, de incentivar a leitura do livro e de convidar o leitor a mergulhar em narrativas, em que facilmente se verifica as cores verde e amarelo, em que se sente o aroma do café, em que se rememora a violência da escravidão, em que se percebe a importância da abertura democrática.

Desse modo, antes de adentrar as sendas da introdução, as autoras, por meio de nota, orientam o leitor a iniciar a leitura no capítulo primeiro e, em seguida, passar para os demais capítulos que, segundo elas, são narrativos e ditados de figuras e legendas que devem ser apreciadas. Após o leitor seguir essas orientações e ao final da leitura do livro, deve ele retornar à introdução, com o fito de verificar se a obra é, de fato, uma biografia. Nesse sentido, não será dito que surpresa o leitor terá, ao seguir os passos da operação metodológica proposta por Schwarcz e Starling. Cabe a esse desvendar e interpretar a biografia brasílica.

Do capítulo primeiro ao oitavo, Schwarcz e Starling apresentam o Brasil do contexto das Grandes Navegações e do descobrimento ao momento de regresso D. João VI a Portugal, caracterizado pela Revolução Liberal do Porto de 1820. Contradições, impactos e transformações relativos ao sistema colonial açucareiro, à escravidão, ao período minerador setecentista em Minas Gerais, às revoltas coloniais, ao período joanino ganham contornos expressivos ao longo do texto que também é consequência de diálogo profundo com a historiografia nacional.

Após o capítulo oitavo até o décimo segundo, o Brasil independente, regencial e imperial passa a fulgurar como objeto de estudo e de ponderações. O Primeiro Reinado corroborou a Proclamação da Independência em 1822. Qual foi o significado da Independência e da administração de D. Pedro I? Um prolongamento do sebastianismo? Uma nova era? Manutenção e continuação da realeza nos trópicos? Aspectos como esses permeiam a narrativa de Schwarcz e Starling. Além disso, as Regências Trinas e Unas trazem ao leitor o momento conturbado de rebeliões nas províncias, de cunho separatista ou político, por exemplo, a Revolta dos Malês, em Salvador; a Sabinada, na Bahia; a Farroupilha, no Rio Grande do Sul; a Balaiada, no Maranhão; a Cabanagem, no GrãoPará. O Império de D. Pedro II, que é substituído pela República, é relatado como o dezenovesco momento do nacionalismo romântico, respaldado na figura do indígena em contraposição ao negro, indivíduo relacionado ao atraso. Assim sendo, o Brasil português, monárquico e americano era a identidade conferida pela tradicional Casa dos Bragança em consonância à mentalidade da elite da terra e da intelligentsia tupiniquim. Dessa forma, um projeto de civilização estava sendo estabelecido.

Entre o capítulo décimo terceiro e o último, a biografia do Brasil contempla os anos republicanos. Inicia-se falando sobre a República das Espadas. Também se observa os desdobramentos da República do Café com Leite; dos levantes religiosos como os de Canudos. Expõe-se o processo imigratório europeu; as greves operárias; a Semana de Arte Moderna; a nova configuração da sociedade brasileira, urbana e industrial, na década de 1930 e a Revolução Getulista. Ao longo desses capítulos, são contemplados as várias administrações presidenciais brasileiras, destacando-se o período JK, a emergência da Bossa Nova e o revigoramento da democracia. Esse aspecto derroca-se no decurso dos governos militares, momento chamado pelas autoras de “fio da navalha”. No capítulo décimo oitavo, portanto, o último, é a transição para o poder civil que perfaz as discussões empreitadas pelas historiadoras.

Brasil: uma biografia,embora esteja impregnado, em muitos momentos, pelo tom narrativo e romanceiro, é uma obra sofisticada e surpreendente, dada a riqueza de detalhes e de informações, em se tratando da articulação textual entre ideias, entre conceitos e entre fatos históricos do Brasil. Biografar é mais do que argumentar é filtrar os aspectos marcantes e representativos de uma trajetória. Isso foi feito com primazia e competência pelas escritoras, Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling. Evidentemente, a empreitada exigiu fôlego dessas autoras, uma vez que biografar uma sociedade que experienciou tantas dinâmicas não é uma tarefa elementar, mas baseada em peculiaridades que ultrapassa a nuança histórica, adentrando outras perspectivas, por exemplo, psicológica, jurídica, cultural, imaterial.

Finalmente, o desafio das autoras não necessariamente foi o de estabelecer um escrito sobre história do Brasil, conforme consta da Introdução, mas o de eleger o Brasil, uma terra de incongruências e de convergências, como artífice histórico. Brasil: uma biografia é uma extraordinária fonte de interpretação de um passado e de um presente, elementos que coadjuvam a arquitetar uma projeção de futuro. Leitura recomendável para todos aqueles que buscam compreender o nascimento e a emancipação desta Pátria do Cruzeiro.

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