Tradução

Para muitas condições e em muitos países, os cuidados médicos ficam aquém do que deveria ser fornecido. Apesar dos cuidados de alta qualidade de saúde dependerem crucialmente do profissionalismo dos médicos, isso não tem se mostrado suficiente para assegurar um atendimento universal de alta qualidade e, em consequência, os financiadores (pagadores) buscaram nos incentivos financeiros uma forma para melhorar ainda mais a qualidade. Em 2004, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido introduziu o maior esquema de pagamento por desempenho que relaciona a assistência médica aos cuidados primários no mundo, o Quality and Outcomes Framework (QOF)2. Nesse bojo, os médicos da atenção primária recebiam até 25% a mais se alcançassem um conjunto complexo de indicadores clínicos e organizacionais (Roland, 2004). O esquema era nacional, sem dar oportunidades a variações locais para lidar com necessidades particulares da saúde local.
Embora o esquema tenha sido, inicialmente, popular, os clínicos gerais ficaram cada vez mais desencantados, especialmente com a carga de trabalho administrativo extra em contexto de crescente demanda clínica, e também demonstraram preocupações com a redução do tempo para aspectos de cuidados que não são facilmente medidos.Algumas regiões da Inglaterra foram autorizadas a sair do esquema, e a Escócia está deixando o QOF em favor do modelo de círculos de qualidade (grupos de clínicos gerais que trabalham juntos para melhorar a qualidade) (Beyer et al., 2003). No entanto, o que outros países podem aprender com a experiência de pagamento por desempenho do Reino Unido? Nós estabelecemos alguns princípios e ressalvas para o desenvolvimento e introdução do pagamento por desempenho como ferramenta para melhoria da qualidade na atenção básica de saúde.
Como a qualidade da atenção deve ser medida?
O primeiro problema no desenvolvimento de qualquer arranjo de pagamento por desempenho é decidir como medir a qualidade da atenção. O desenvolvimento de indicadores clínicos é, em si, uma ciência. São necessárias habilidades consideráveis para desenvolver indicadores claros, confiáveis e válidos, com relevância clínica que também atendam necessidades administrativas ou gerenciais, e existem centenas de possíveis indicadores de qualidade (o esquema de pagamento por desempenho na atenção primária no Brasil possui mais de 1.000 indicadores, por exemplo). No entanto, se o esquema for muito grande e complicado, será complexo de administrar e de difícil entendimento para os clínicos – um fator que por si só pode ser desmotivador (McDonald et. al, 2007). Em contraste, um arranjo com pequeno número de indicadores pode levar os médicos a priorizar um limitado número de aspectos do cuidado em saúde. Além disso, podese observar também que os esquemas de melhoria da qualidade que dependem de mensuração tenderão, inevitavelmente, a priorizar aspectos da atenção que são fáceis de medir, e potencialmente em detrimento de outros aspectos da atenção que são igualmente importantes ou mais importantes.
O esquema do Reino Unido começou com foco na atenção clínica, nos aspectos
organizacionais da atenção e na experiência do paciente (vide Quadro 1). Os indicadores clínicos desenvolveram-se e ampliaram-se para incluir mais condições ao longo dos anos, entretanto,os indicadores organizacionais foram eliminados em 2012 quando praticamente todos os aspectos atingiram os 100%. Por sua vez, os indicadores relativos à experiência do paciente sofreram diversas alterações, mas nunca foram implementados com sucesso (veja exemplos no Quadro 2).
Não há tamanho ideal para um esquema de pagamento por desempenho; ele dependerá da natureza e escala dos desafios a serem enfrentados. Por exemplo, o primeiro esquema no Reino Unido que fornecia incentivos para cobertura de imunização infantil e citologia do colo do útero contava com apenas três indicadores, era eficaz na manutenção da cobertura da população e durou por mais de 10 anos a partir de 1991, sem a introdução de nenhuma outra metaclínica (Baker; Middleton, 2003).
Quem deve decidir sobre os indicadores?
Os clínicos cujo desempenho são avaliados deveriam estar envolvidos na seleção de indicadores, no uso de avaliação sistemática de evidências e no trabalho com especialistas para a construção técnica de indicadores válidos e confiáveis. Os indicadores, por si só, devem ter uma forte validade aparente, seja por meio de uma base de evidências ou de um amplo consenso profissional. O QOF do Reino Unido passou por problemas no final dos anos 2000, em parte como resultado da introdução de indicadores que tinham pouco consenso profissional (por exemplo, a realização de um mapeamento de sintomas para pacientes com depressão), pareciam ter uma agenda muito mais gerencial do que clínica (por exemplo, incentivos desenhados para reduzir internações de emergência), ou tinham fórmulas mal construídas, ligando o desempenho ao pagamento (por exemplo, dados de pesquisas com pacientes). O resultado obtido foi que os clínicos gerais perderam a confiança no esquema.


Os médicos deveriam excluir pacientes?
Pode ser impossível atender aos requisitos dos indicadores de qualidade caso alguns pacientes recusem tratamento ou acompanhamento. Tratamentos ou modos de gestão (manejos) sugeridos por diretrizes clínicas também podem ser clinicamente inadequados para pacientes individuais. O QOF permite então que os clínicos gerais excluam os pacientes (relatório de exceção) com base em seu julgamento clínico ou porque os pacientes não comparecem às consultas de acompanhamento. Essa foi uma parte importante na obtenção do apoio dos médicos de família do Reino Unido e reduz o risco dos médicos receberem incentivos para administrar o paciente de uma maneira que considerem inadequada (Roland, 2015). Uma média de cerca de 5% dos pacientes são excluídos dos indicadores individuais do QOF pelo clínico geral, embora essa situação varie amplamente entre os indicadores (Doran et al., 2008). O fato dos médicos poderem excluir pacientes deve ser monitorado, para que sejam preparados para justificar as decisões tomadas na exclusão.
O desempenho é uma maneira útil para pagamento de médicos?
A experiência observada dos esquemas de pagamento por desempenho em todo o mundo é que eles têm menos efeito do que os financiadores esperam, e esses arranjos devem, portanto, ser vistos como parte de uma estratégia de melhoria de qualidade mais ampla (Roland; Dudley, 2015). No entanto, nenhum sistema de pagamento é perfeito e todos têm vantagens e desvantagens potenciais (vide Tabela 1). Este fato está por trás das tentativas de desenvolver sistemas de pagamento “combinados”, desenhados para fornecer cobertura populacional e bom acesso, sem comprometer a qualidade do atendimento.

O pagamento por desempenho também não será geralmente adequado para melhorar o atendimento de pacientes com problemas mais complexos, ou com determinantes mais amplos da saúde pessoal e na sociedade. Para aspectos importantes dos cuidados que não são facilmente mensuráveis (por exemplo, para pacientes com problemas de saúde mental e aqueles com multimorbidade e condições complexas), melhores mecanismos são necessários para garantir cuidados de alta qualidade em saúde. Métodos potenciais podem incluir a concessão de tempo adicional necessário para fornecer boa assistência a esses pacientes (como ocorre no serviço de saúde australiano) e ou incentivar os médicos a se envolverem mais com as necessidades sociais e de saúde dos pacientes – por exemplo, por meio de esquemas de prescrição social (Universidade de Westminster, 2016).
A fórmula que liga o desempenho ao pagamento precisa ser simples e transparente e deve incentivar a melhoria em todos os níveis até um limite máximo acordado, garantindo que as práticas de baixa performance tenham um incentivo para melhorar. Os modelos de “competição” que fornecem pagamentos para as melhores práticas ou grupos de pontuação (por exemplo, aqueles que atuam nos 10% melhores) devem ser evitados, pois eles penalizam inapropriadamente os médicos se todas as práticas atingirem altos padrões de atendimento (por exemplo, se todas as práticas atingirem 95% em um marcador de qualidade particular). Ademais, esses modelos também não fornecem incentivos quando todos os provedores precisam melhorar ou mesmo permite que os provedores planejem e orcem com antecedência, à medida que a recompensa dependerá do desempenho de outros provedores.
A qualidade do registro de dados e dos relatórios são essenciais para qualquer sistema de pagamento por desempenho, e um efeito positivo observado da QOF tem sido o desenvolvimento de registros eletrônicos abrangentes, coleta e uso explícitos de dados para medir a qualidade. Isso pode ser usado para educar os médicos e aumentar a transparência sobre a qualidade do atendimento. No entanto, não está claro ainda o quanto os pagamentos acrescentam na melhoria da qualidade em relação ao feedback e relatórios públicos de desempenho. Embora pequenas recompensas financeiras sejam provavelmente menos eficazes do que as grandes, a experiência do Reino Unido é a de que os médicos tentaram assiduamente obter pontos máximos, às vezes realizando esforços evidentes para além de qualquer benefício substancial para eles mesmos ou para seus pacientes. Ambições clínicas e reputações são importantes para os médicos, e a divulgação pública de dados sobre a qualidade do atendimento pode, por si só, agir como um impulsionador do desempenho.
Com que frequência os esquemas devem ser revisados ou alterados?
O QOF do Reino Unido sofreu alteração a cada dois anos. Algumas mudanças foram pequenas (por exemplo, alterar os limites dos indicadores individuais) e algumas maiores (por exemplo, o descarte total dos indicadores organizacionais).A experiência do Reino Unido sugere que mudanças substanciais não devem ocorrer com uma frequência maior do que a cada dois ou três anos, a fim de manter a motivação entre os médicos. No entanto, há também um argumento em favor da possibilidade de alternância nas condições ou indicadores para permitir a inclusão de um espectro mais amplo de condições clínicas. No Reino Unido, tem ocorrido uma pressão constante por parte dos grupos de pacientes e profissionais para incluir mais condições no QOF, pois isso é visto como uma maneira eficaz de chamar a atenção dos clínicos gerais.
Uma questão chave é saber quando os indicadores que têm sido eficazes na melhoria da qualidade deveriam ser descartados. Se o pagamento por desempenho se destina à melhoria da qualidade da saúde, os pagamentos deveriam ser interrompidos quando o alcance máximo dos indicadores têm sido sustentado durante alguns anos? Ou a qualidade diminuirá? A resposta não é clara (Lester et al., 2010; Dreischulle et al., 2016). Uma solução poderia ser reduzir os pagamentos de qualidade à medida que os indicadores forem trocados ou retirados, mas exigem uma coleta de dados contínua e limitada para um conjunto reduzido de indicadores e, ao mesmo tempo, exigem também (e talvez incentivem) uma coleta de dados contínua e transparente, incluindo potencialmente áreas onde não há mais incentivos para melhoria da qualidade.
E quanto as consequências não intencionais?
Qualquer esquema de incentivo,financeiro ou de outra forma,pode ter consequências inesperadas. Estas podem variar desde a negligência de condições que não estão incluídas até jogos ou fraudes. Formuladores de políticas e pagadores devem entender a importância (o potencial) de consequências não intencionais e inesperadas, antecipá-las ao máximo possível, e estarem atentos em relação às mesmas assim que um esquema for introduzido. Alguns dos indicadores de QOF que produziram consequências não intencionais são descritos em um documento citado (Roland; Guthrie, 2016). Incentivos mais amplos possuem maiores riscos de gerar resultados perversos, e o Reino Unido decidiu que era demais destinar 25% da renda dos clínicos gerais com base no QOF; colocou-se muito foco nas metas de desempenho, foi reduzida a importância da agenda do paciente, e potencialmente reduzidas as escolhas dos pacientes quanto aos tratamentos que deveriam receber. A remuneração do QOF foi reduzida para cerca de 15% da renda em 2013 e é provável que seja reduzida ainda mais. O Quadro 3 apresenta bons princípios de desenho que podem ajudar a evitar as consequências adversas.

Conclusões
Não existe um sistema perfeito de pagamento da atenção médica, nem um isento de potenciais consequências não intencionais. E há um argumento para incluir os elementos do pagamento por desempenho na assistência médica. No entanto, os riscos e consequências não intencionais sempre precisam ser levados em conta, assim como o contexto organizacional no qual os incentivos são introduzidos – por exemplo, se a recompensa é direcionada para o indivíduo, a equipe, a clínica ou grupos de clínicos gerais; como isso pode afetar o comportamento de clínicos individuais; e como isso levará a uma melhor atenção de saúde. É necessária uma pesquisa sobre formas mais sofisticadas de uso de indicadores para melhorar a qualidade do atendimento e para avaliar a introdução do pagamento por desempenho em diferentes configurações (Kristensen et al., 2014).
Referências
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Notas
Translation disclaimer: This material has been translated by João Paulo Marra Dantas (Master in Political Science, PP- GCP-UFG), Germano Araújo Coelho (Master Researcher in Political Science, PPGCP-UFG) and Renata Batista Lozano (Master in Political Science, PPGCP-UFG). Revised by Dra. Fabiana C. Saddi and Dr. Pedro Mundim, PPGCP/UFG. BMJ Publishing Group take no responsibility for the accuracy of the translation from the published English language original and are not liable for any errors that may occur.
*The organizers of this Special issue thank the BMJ editors/ Group for authorising this Portuguese version of the paper. We are reusing it under the terms of the CC BY NC licence. Este material foi traduzido por João Paulo Marra Dantas, Germano Araújo Coelho e Renata Batista Lozano, mestres e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da UFG. Revisto por Fabiana C. Saddi e Pedro Mundim do PPGCP/UFG. O Grupo BMJ não se responsabiliza pela exatidão da tradução do original em inglês publicado, nem por quaisquer erros que possam ocorrer.
Esta tradução foi autorizada pelo grupo BMJ, garantindo seu acesso aberto e não envolvendo nenhuma forma de comercialização, sendo publicada em concordância com sua licença original (CC BY NC licence).
Informação adicional
-: Martin Roland e Frede Olesen exploram o que outros países podem aprender com a experiência do Quality and Outcomes Framework (QOF) do Reino Unido