Resumo: É possível compreender o lugar ocupado por Roger Bastide no cenário intelectual brasileiro se se toma como referência o seu entendimento acerca do princípio de cisão e de participação africano e o tema da transformação agrária. Com seu africanismo e antietnocentrismo, Roger Bastide pode ter contribuído, sem que esta fosse uma intenção manifesta em seus estudos, para identificar a existência de um ideal camponês de luta pela terra. Essa descoberta o situaria na contracorrente da tradição ensaística conservadora se ele não tivesse posto de lado essa inflexão, preferindo ressaltar as forças de coesão existentes na sociedade brasileira.
Palavras-chave:Pensamento social brasileiroPensamento social brasileiro,sociologiasociologia,reforma agráriareforma agrária,campesinatocampesinato,Roger BastideRoger Bastide.
Abstract: It is possible to estimate the place occupied by Roger Bastide in the Brazilian intellectual scenario if we take as reference his understanding of the principles of division and participation and the theme of agrarian transformation. Even without expressing this intention in his studies, Roger Bastide may have contributed, with his Africanism and anti-ethnocentrism, to identify the existence of a peasantry ideal of fighting for land. This discovery would place him in the countercurrent of the conservative essay tradition if he had not preferred to emphasize the cohesion forces of Brazilian society.
Keywords: Agrarian reform, sociology, brazilian social thought, peasantry, Roger Bastide.
Resumen: Es possible indicar el lugar de Roger Bastide en el escenario intelectual brasileño, si tomamos como referencia al princípio de cisión y participación, y la temática de la transformación agraria. Con su africanismo y anti-etnocentrismo, quizás Bastide haya contribuido – a despecto de esta no ser una intención manifesta de sus trabajos – para identificar la existencia de un ideal campesino de lucha por la tierra. Ese descubrimiento lo situaría en la contra-dirección de la tradición ensaística brasileña, si él no hubiera abandonado la discubierta, preferindo resaltar las fuerzas de coesión en nuestra sociedade.
Palabras clave: Pensamiento social brasileño, sociologia, reforma agraria, campesinado, Roger Bastide.
Artigos Livres
Roger Bastide e a difícil identificação de um ideal de transformação agrária camponesa no Brasil
Roger Bastide and the difficult identification of a perception of peasant’s agrarian transformation in Brasil.
Roger Bastide y la difícil identificación de un ideal de transformación agraria campesina en Brasil

Recepção: 25 Maio 2017
Aprovação: 03/08/2018
Pode-se dizer que, em geral, nas últimas décadas, a sociologia rural tem sido predominantemente influenciada por estudos de cunho mais empírico e monográfico, oriundos dos países estrangeiros, notadamente da Europa e dos Estados Unidos (Martins, 1986). Entretanto, não devemos descuidar do que foi produzido entre nós de maneira muitas vezes original e com dimensão autóctone. Antes do surgimento das ciências sociais e de seu ensino sistemático nas faculdades, o ensaio sempre teve destaque por trazer elevada contribuição ao entendimento da realidade social e cultural rural brasileira.
A importância que alcançou o ensaio torna-se ainda mais curiosa quando se toma como referência o modo como a sociedade agrária foi pensada no decurso do tempo. O contexto ao qual me refiro não é senão a travessia do ensaio à monografia, considerando-se que essa passagem é reveladora não apenas da substituição de uma metodologia nas ciências sociais, mas de diferentes olhares sobre o que se convencionou chamar de “questão agrária”. Não obstante, apesar dessas mudanças de cunho epistemológico e também político, a constante retomada do ensaísmo, mesmo que pela crítica, ilustra o fato de que alguns dos seus axiomas não deixaram de ser incorporados pela sociologia desde a década de 1930 em diante, de modo que a inteligência ensaística ainda pode ser vista como o elemento fundante da reflexão sociológica no Brasil.
De uma maneira geral, a tradição ensaística elaborou uma visão sobre a sociedade brasileira a partir do mundo rural colonial. Desse enfoque resultou a ideia de que aqui a classe dominante tinha tamanha força absorvente sobre as demais classes sociais que os atores subordinados se tornaram figuras eclipsadas. Embora fizessem críticas à dominação que sofriam, estes não chegariam a formar uma autorrepresentação independente a permitir que suas críticas ganhassem um conteúdo socioeconômico de fato.
Explicou-se a razão dessa sobrepujança do senhor de engenho, dos potentados rurais, dos fazendeiros etc, de diversas formas; Manuel Bonfim, pelo caráter colonial de nossa formação (Alves Filho, 2008); OliveiraVianna, pelo grande domínio territorial e pela atrofia do poder público (Vianna, 1987); Gilberto Freyre, pela presença de uma cultura patriarcal que amenizou os conflitos entre as classes sociais (Freyre, 2001); Sérgio Buarque de Holanda, pelo espírito de aventura dos portugueses que, ao renunciarem o intento racional e rotineiro, fizeram da colonização uma obra de dominação despótica pessoal (Holanda, 1987) etc.
Assim chegou-se à conclusão de que as relações de dominação tinham uma conotação pessoal e afetiva que unia os indivíduos de alto ao baixo da estrutura social, numa solidariedade fundada verticalmente. Clãs parentais, famílias extensas, família patriarcal foram expressões usadas para designar a vigência de uma solidariedade vertical entre as classes sociais ou a ausência da solidariedade horizontal no Brasil. Concluiu-se, então, que em função das classes dominadas não terem uma autorrepresentação independente da classe dominante, as mudanças sociais seguem um ritmo lento que impede o surgimento de um conflito classista no país. Essa dinâmica acomodatícia foi vista com extremo otimismo por ter permitido à sociedade brasileira formar uma identidade nacional, apesar da profunda desigualdade social existente entre as classes sociais (Freyre, 2001).
A geração subsequente ao ensaio, atuante principalmente na década de 1950 e 1960, notadamente influenciada pelo liberalismo e pelo marxismo, fez referência à tradição ensaística, considerando-a adequada por descrever um ritmo lento para a mudança social no Brasil, mas errônea por propor a superação do atraso brasileiro sem o solapamento das relações pessoais, tidas a partir de então como principal entrave ao desenvolvimento e a democratização política. Formou-se um consenso em torno da ideia de que a pessoalidade dificulta o desenvolvimento da economia capitalista.
Mesmo os autores mais progressistas consideraram que essa era a questão a resolver naqueles idos dos anos 1950 e 1960, e assim formularam as primeiras propostas de reforma agrária no país. Fundadas no ideário da revolução democrático-burguesa, algumas destas propostas chegaram a prever medidas distributivistas de terra para a consecução de um sonho socialista que se realizaria apenas em longo prazo, como consequência do aprofundamento da institucionalidade capitalista (Santos, 2007). Outras, por sua vez, concentraram-se apenas na mudança das relações de trabalho no campo, de pessoais para racionais e mercantis por acreditarem que a proletarização da massa rural por si só já seria suficiente para a formação de um ator político subalterno ativo e combativo (Santos, 2001). Pela força que teve o reformismo entre nós, preservou-se a ideia de que aqui as mudanças seguem ritmo lento e condenou-se as propostas de transformação agrária disruptivas.
A dificuldade do pensamento social em reconhecer que a luta campesina pela terra obedecia a preceitos comunistas igualitários disruptivos torna ainda relevante as demonstrações teóricas que atestam a existência de uma questão agrária campesina no Brasil.1 A referência histórica são as Ligas Camponesas de Francisco Julião, movimento social que elegeu a Revolução Cubana como modelo de transformação agrária acertado por não fazer do capitalismo uma etapa histórica inexorável para que se concretizem preceitos comunistas no país (Azêvedo, 1982). As Ligas criticavam a política agrarista adotada pelo PCB centralizada no ideário da revolução democrático-burguesa como uma orientação alienígena, em função do país ter sua população majoritariamente composta por camponeses e não de trabalhadores rurais a serviço da grande fazenda monocultora capitalista, como preconizou aquele partido (Medeiros, 2002).
Embora o ideal perpetuado pela Revolução Cubana tenha tido forte incidência sob os movimentos sociais campesinos, ele teve pouca repercussão no pensamento social brasileiro dos anos 1960.2 Neste período, a teoria de Sérgio Buarque de Holanda foi tida como o grande contraponto à tradição ensaística conservadora que buscava salvaguardar as relações pessoais hierárquicas no campo. Apesar de afirmar a centralidade da cultura personalista e hierárquica portuguesa para o entendimento das relações sociais no país, Sérgio Buarque ansiava por processo de americanização das relações sociais rurais para que tivesse fim a herança patriarcal colonial. Ele se distanciou do legado teórico deixado por Gilberto Freyre enaltecendo o modo como a abolição da escravidão se deu no Brasil: como medida que diminuiu paulatinamente a importância da lavoura do açúcar, substituindo-a pela do café (Wegner, 2008, p. 138). Ou seja, o autor queria que o solapamento das relações pessoais hierárquicas se desse por meio de uma evolução histórica que consolidasse relações mais racionais, alodiais e mercantis de maneira lenta e gradual.3 Essa mudança lenta e gradual das relações sociais no meio rural foi tida como uma espécie de reforma agrária silenciosa e exitosa na década de 1960, podendo se realizar por meio de medidas distributivistas ou não (Santos, 2001).
Deste modo, mesmo as interpretações que explicaram os problemas do país pela concentração fundiária, de um modo geral afirmaram a ausência de um campesinato no Brasil por não reconhecerem a presença no campo de relações vicinais igualitárias e nem o seu potencial político de crítica aos preceitos burgueses. Comprova-se isso o fato das propostas de democratização da estrutura fundiária agrária não questionarem o direito de propriedade privada. Por seguirem esse viés, as interpretações que derivam os problemas do país da estrutura agrária custaram a se traduzir em uma militância a favor do ideal de transformação agrária comunista igualitarista.
Roger Bastide tem sido considerado um dos autores que ajudaram a questionar o paradigma reformista sem que esta tenha sido uma intenção manifesta em seus estudos.Ao retratar o protocampesinato negro como ativo politicamente, o autor teria contribuído para que as gerações subsequentes pudessem pensar a questão agrária reconhecendo a existência de um campesinato brasileiro.4 Diante de ter havido essa abertura analítica por meio de seu pensamento, surge a necessidade de se considerar se sua perspectiva de fato contribui para a superação da razão reformista. Resta saber se sua elaboração teórica de fato fundamenta a possibilidade de haver mudanças disruptivas no Brasil que consagrem o ideal comunista igualitário camponês.
Para tanto, é necessário compreender o lugar ocupado por Bastide no cenário intelectual brasileiro tendo em vista o seu entendimento acerca do princípio de cisão e de participação africano e o tema da transformação agrária. Há quem diga que com o seu resoluto africanismo e antietnocentrismo, Roger Bastide se situaria na contracorrente da tradição ensaística conservadora-reformista.
Maria Isaura de Queiroz foi quem fundamentou esta hipótese por meio de sua sociologia política ao se valer do pensamento de Bastide para afirmar a existência de um campesinato brasileiro.Todavia, uma leitura mais atenta da teoria de Bastide e da própria Maria Isaura indica o contrário: o pensamento de Bastide, apesar de apontar para uma nova perspectiva ao identificar elementos subversivos na consciência da classe subalterna, preferiu ressaltar as forças de coesão existentes entre as diferentes classes sociais.
Para que de fato se supere o paradigma conservador-reformista, faz-se necessário um estudo mais detalhado da teoria de Bastide. Caso contrário, a vertente interpretativa campesinista permanecerá incorrendo no mesmo erro do pensamento social ao não ir à raiz do problema: a presença insidiosa da razão reformista nas ciências sociais brasileiras, inclusive em autores que atestam a presença de um campesinato ativo politicamente no Brasil.
Maria Isaura Pereira de Queiroz recorreu à teoria de Roger Bastide para marcar sua dissidência em relação ao modo como a tradução ensaísta interpretou os grupos agrários subalternos e a questão agrária. Identificou a existência de um campesinato brasileiro, que com sua lógica vicinal, era ativo politicamente (Queiroz, 1976a). Todavia, embora não subordinada aos chefes locais (Queiroz, 1963), a lógica vicinal campesina obedeceria a preceitos mercantis,razão pela qual ela considerou que o agir do campesinato seria reformista.
A desavença existente entre Maria Isaura e Antônio Candido no final de 1950 quanto à possibilidade de sobrevivência do campesinato brasileiro no mundo moderno torna mais evidente o posicionamento da autora. Enquanto o sociólogo, influenciado pela teoria marxista, considerou estar o campesinato em vias de extinção, Maria Isaura, ao contrário, supôs a possibilidade de sua sobrevivência no capitalismo.Antonio Candido estava perplexo diante do modo como a modernização e a industrialização do país vinham se dando: por meio da disseminação de contratos de parceria e sem a execução de uma medida de reforma agrária que consolidasse a pequena propriedade.5 Maria Isaura, de forma oposta, pontuava que o ajustamento da cultura caipira aos preceitos mercantis era independente da implementação de uma medida de reforma agrária. Segundo ela, a inserção do campesinato na modernidade estava condicionada a uma inversão do modo como a relação entre cidade e campo estava se constituindo naqueles idos dos anos 1960 (Queiroz, 1976b).
Maria Isaura supunha que enquanto os mercados urbanos ainda estivessem abertos aos produtos gerados pela economia vicinal, ou enquanto a adoção dos preceitos urbanos industriais ainda não se traduzisse em um estigma em relação à produção vicinal, haveria chance de incorporação dos camponeses na sociedade capitalista, sem que isso suscitasse a decadência da cultura rústica por meio da subproletarização.Todavia, não era isso o que estava ocorrendo no país, com o imaginário político aderindo quase unanimamente à ideia de uma modernização ocidentalizante liderada pelas cidades (Queiroz, 1976b)
A questão agrária camponesa seria, então, uma questão de mercado. Se a relação entre cidade e campo continuasse a obedecer a lógica da complementaridade dialética, haveria mercado consumidor para os itens produzidos pela lógica vicinal, permitindo a sobrevivência campesina na modernidade capitalista. Daí a crítica da autora aos projetos desenvolvimentistas excessivamente urbanizantes que defendiam a necessidade de que se instalasse uma dialética de contrários entre campo e cidade para que fosse solucionado o atraso agrário.
Todavia, Maria Isaura não nega que a incorporação campesina na modernidade capitalista ficava circunscrita à esfera da barganha política, ou seja, as demandas campesinas por mudanças eram absorvidas pelo ritmo lento da dinâmica social, ficando adstritas à esfera do cotidiano. Ainda assim, Maria Isaura viu virtualidades positivas nesta inserção porque seu ritmo lento garantia a “participação” campesina na sociedade envolvente. O mesmo não aconteceria caso as demandas campesinas ganhassem um conteúdo mais disruptivo, de rejeição dos preceitos capitalistas. Foi com esta opinião que ela preconizou, tal qual é tradição no pensamento social, que aqui as mudanças seguissem o ritmo da dinâmica de acomodações sucessivas (Queiroz, 1972).
Deste modo, conquanto fosse campesinista, no sentido de acreditar que a população campesina podia sobreviver na modernidade, Maria Isaura julgava que esta incorporação devia se dar sem a necessidade de mudanças estruturais. Ela marca, então, sua desavença em relação ao ideal desenvolvimentista dos anos 1960, que ansiava por medidas de reforma agrária, sejam elas distributivistas ou concentradas apenas nas transformações das relações de trabalho. Nega também a ideia de que o campesinato anseia por uma sociedade de produção comunista igualitária. Para Maria Isaura, a lógica vicinal camponesa seria peculiar por sua organização social, mas não por sua orientação econômica. Daí a possibilidade de sua inserção campesina na sociedade capitalista (Wanderley, 1994).
O que importa assinalar é que Maria Isaura fundamentou suas aporias na obra de Roger Bastide por considerar que o intelectual francês, com seu princípio de cisão e participação, elaborou uma nova interpretação do Brasil, mais afeita às reivindicações das populações subalternas (Queiroz, 1978). Bastide, ao perceber uma herança cultural africana forte no Brasil, teria sugerido que o poder de contestação do negro à escravidão e ao regime patriarcal foi mais forte do que o pensamento social imaginou (Bastide, 1960). Com essa descoberta, ele descreveria uma dinâmica entre as classes sociais mais marcada pelo conflito do que pela acomodação.
O princípio de cisão e participação permitia que os escravos participassem de dois mundos diferentes, se não opostos, o euro-ibérico e o africano, sem que isso redundasse num conflito ou na anulação de uma herança cultural em detrimento da outra. Isto é, propiciava aos escravos manter suas práticas de ajuda mútua, a despeito de estarem inseridos numa sociedade cuja orientação econômica era mercantil.6
Sendo assim, Bastide fez duas revelações: que a camada escrava era ativa politicamente, mas que sua lógica de auxílio mútuo não era absolutamente contrária à lógica mercantil da sociedade envolvente; que os mecanismos das cisões e participações são compatíveis com os interesses das classes dominantes. O sociólogo francês não chegou a inaugurar uma perspectiva diferente da ensaística conservadora de Gilberto Freyre por também descrever, através das cisões e participações, um padrão contestatório com grau disruptivo pouco acentuado. Afinal, embora tenha inicialmente associado os conflitos sociais brasileiros ao comunismo africano,7 Bastide acaba por afirmar que os mecanismos das cisões e participações se difundiram por toda a sociedade brasileira, não estando mais circunscritos à condição social da classe subalterna, mas da sociedade brasileira como um todo. As mudanças sociais no Brasil seriam resultado do surgimento de uma lógica aliancista entre as classes sociais e não do conflito entre elas (Bastide, 2011),
Por meio da teoria de Bastide, Maria Isaura defendeu a existência de um campesinato brasileiro que, muito embora se pautasse numa solidariedade vicinal para produzir (lógica do ut des campesina),8 não estava em completa inadequação em relação à lógica capitalista da sociedade envolvente. Essa compatibilidade vinha do fato das relações vicinais poderem se mercantilizar, sem prejuízo da cultura campesina.9 E o que é mais importante: a lógica campesina, se conjugada à lógica capitalista, permitiria a população campesina formar uma autorrepresentação política independente, embora não fosse de todo incompatível com o modo de operar das classes dominantes (Queiroz, 1976c).
É que Maria Isaura descreve a lógica do ut des campesina por meio da lógica das cisões e participações africana, tal como foi concebida por Bastide. Do mesmo modo que o sociólogo francês, Maria Isaura atesta que as classes sociais possuem lógicas compatíveis que provocam disjunções e pequenos rearranjos nas relações sociais, sem pôr em cheque a estrutura social hierárquica brasileira
Importa assinalar que Maria Isaura considerou essa dinâmica social como a única capaz de permitir a sobrevivência das relações vicinais campesinas na modernidade (Queiroz, 1963). À exemplo do que faziam os autores desenvolvimentistas, sustentou que as mudanças sociais no Brasil devem seguir ritmo lento, embora reivindicasse uma nova orientação para as políticas públicas adotadas: que elas fossem implementadas respeitando a lógica campesina. Como já era tradição no pensamento social, Maria Isaura deu a seus estudos um viés reformista por também ter a realidade capitalista como inexorável. Negou os preceitos comunistas igualitaristas campesinos, intenção que já se esboçava nos estudos de Bastide por meio de sua descrição do princípio de participação e de cisão africanos.
É preciso reconsiderar a hipótese inicial que motivou esse estudo: a indicação de que Bastide, com sua elaboração teórica acerca do princípio da cisão e da participação africana, tenha sido um dos primeiros autores a contribuir, sem que esta seja uma intenção manifesta em seus estudos, para que as gerações subsequentes a sua afirmassem a presença de uma questão agrária campesina no país. Alimentava-se a suspeita de que, ao notar a presença de práticas comunitárias entre os escravos, o autor talvez estivesse ressaltando a presença de um comunismo igualitário na classe subalterna.Todavia, uma análise mais detida de seus estudos revelou que Bastide defendia uma opinião contrária a essa hipótese. Segundo ele, a lógica do ut des africana não resultava numa crítica à lógica capitalista da sociedade envolvente. O princípio de cisão e participação permitia que os escravos assimilassem os valores e as práticas capitalistas, apesar dos valores comunitários africanos. Daí não existir lógicas totalmente distintas, mas sim uma complementaridade dialética entre as classes sociais. Bastide viu nesta possibilidade de compatibilidade uma forma de luta exitosa, uma vez que ela permitiu a integração do negro na sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, acreditou que meio do surgimento de uma lógica aliancista ou de uma moral social comum entre as classes sociais, o capitalismo brasileiro podia ser acoimado em seus vícios, sem a necessidade de deflagração de conflitos classistas ou socioeconômicos, portanto.
Ainda que a hipótese inicial deste estudo tenha sido refutada, interessa ressaltar que o autor não deixou de atentar para a possibilidade das classes sociais se relacionarem de uma maneira mais conflitiva, caso os valores capitalistas fossem convertidos nos termos dos valores comunitários africanos. Todavia, esta possibilidade foi posta de lado por Bastide por ele acreditar que os conflitos classistas eram indesejáveis, pois impediam que a classe subalterna se inserisse na sociedade capitalista (Bastide, 1971).
Esses dois tipos de reinterpretações operados pela classe subalterna, tanto a que reafirma a lógica capitalista como a que faz sobressair os princípios comunitários igualitários africanos, não implicariam numa conversão total de uma cultura na outra, mas apenas numa reinterpretação parcial, que abre sempre a possibilidade de acentuação de determinados traços em relação a outros, dependendo da época histórica. A primeira reinterpretação faria a relação entre as classes sociais obedecer a uma dialética de complementaridade. Cabe indagar se o segundo tipo de reinterpretação, por guardar maior espaço para conflitos classistas, proporcionaria uma saída comunista igualitarista para o país.
Sendo assim, ainda que tenha imprimido uma orientação reformista-conservadora a seus escritos, Bastide não deixou de notar um fato passado despercebido pelo pensamento social: a possibilidade de se instalar entre as classes sociais uma dialética de contrários, caso fossem ressaltadas as práticas comunitárias da classe subalterna. Segundo ele, era assim que as contradições socioeconômicas ganhariam ênfase. Ao fazer esta observação, Bastide pode ter sido um dos primeiros autores a reconhecer a chance de ocorrer uma transformação disruptiva no país.
Mas Bastide secundarizou esta importante indicação quando abraçou a teoria da dádiva de Marcel Mauss para explicar a prática do ajutório entre os escravos.Ao descobrir a dádiva desinteressada, Marcel Mauss descreve uma nova modalidade de troca que respeita os valores sentimentais dados às coisas, mas não contraria de todo os preceitos mercantis. Mauss direcionou uma crítica ao utilitarismo e à lógica do mercado e do lucro, embora não quisesse o fim do capitalismo. Acreditava que formas não utilitárias de troca podemse conciliar às formas de troca mercantis para que haja uma melhora na maneira das sociedades capitalistas gerirem a vida (Queiroz, 1983). Sua solução não estava, portanto, “no comunismo, para ele tão nocivo quanto o egoísmo, mas no que em nós restou de sociabilidade e da moral arcaicas que nos auxiliam ‘a dirigir nossos ideais’ e mais que isso, [que] permitem entrever melhores procedimentos de gestão aplicáveis a nossa sociedade” (Peixoto, 2006, p. 197).
Bastide, discípulo de Mauss, também adotaria o mesmo ponto de vista (Lanna, 2000). Para ele, o princípio de cisão e participação permitia a salvaguarda da troca comunitária, mas sem que ela redundasse no comunismo igualitário. Com isso, sugere-se que Bastide foi crítico ao processo de modernização tal como ele se dava no ocidente, mas crente no ideário capitalista. Essa orientação se revela por seu resoluto antietnocentrismo o levar a discordar do pensamento social ocidental, mas sem que questione o fundamento das sociedades capitalistas: a expropriação e exploração resultantes da progressiva concentração dos meios de produção.10
Deste modo, embora alguns autores chamem atenção para o fato de que “É bastante comum, entre economistas, sociólogos, políticos e sindicalistas [brasileiros], a concepção da questão agrária como questão fundiária, ou até mais especificamente como questão da distribuição fundiária e a injustiça de sua desigualdade” (Kageyama, 1993), percebe- se um forte viés conservador-reformista no pensamento social brasileiro, mesmo nas teorias mais progressistas. Daí a dificuldade que as ciências sociais têm em reconhecer a existência de uma questão agrária campesina no país de teor comunista igualitarista. Bastide poderia ter contribuído para que fosse superado este viés conservador-reformista se não tivesse preterido os elementos subversivos da consciência das classes subalternas em função de acreditar na possibilidade do capitalismo poder amenizar suas injustiças com o surgimento de uma lógica aliancista entre as classes sociais.
Ao dar esta orientação a seus estudos, Bastide não consegue marcar sua diferença em relação ao ensaísmo de 1930, que concebe os problemas na escala da nação como um todo, preconizando soluções que passam por cima dos antagonismos de classe. Ao não localizar devidamente os interesses próprios das classes subalternas, Bastide não vê a realidade à luz da tensão entre essas classes e as dominantes. O resultado é que sua teoria tende com frequência à harmonização e à conciliação, não às soluções revolucionárias, como é tradição no nosso pensamento social (Candido, 1990 apud Wegner, 2008).