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Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna
Edson Tosta Matarezio
Edson Tosta Matarezio
Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna
From the rescue of souls to the execution of the sorcerer: notes on the Ticuna shamanism
Del rescate de almas a la ejecución del hechicero: notas sobre el chamanismo Ticuna
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 22, núm. 1, pp. 218-239, 2019
UFG - Universidade Federal de Goiás
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Resumo: Pretendo delinear neste artigo alguns aspectos do xamanismo dos Ticuna do Brasil, com base em pesquisa de campo em uma pequena comunidade do igarapé Camatiã, São Paulo de Olivença (AM). Os elementos desse xamanismo descritos e analisados serão: o sentido da palavra nativa para xamã (yu’ükü), as formas de tornar-se xamã, o Waia como local mítico de formação do feiticeiro, as relações do xamanismo com as religiões locais. Descrevo ainda a retirada do feitiço do corpo de uma enferma e os vetores de feitiços. Uma atenção especial é dada a uma viagem xamânica para recuperar a alma de um homem foragido na floresta e a execução de um feiticeiro.

Palavras-chave: Ticuna, xamanismo, feitiçaria, cura, ritual xamânico.

Abstract: It is intended to outline in this article some aspects of the Ticuna shamanism of Brazil, based on field research in a small community of the Camatiã river, São Paulo de Olivença (AM). The elements of this shamanism described and analyzed will be: The native word meaning for shaman (yu’ükü), forms of becoming a shaman, Waia as the mythical site of the sorcerer’s formation, relations of shamanism with local religions, the withdrawal of witchcraft from a sick woman's body, and the vectors of spells. Special attention is given to a shamanic journey to retrieve a soul from a man outlawed in the forest, and also to an execution of a sorcerer.

Keywords: Ticuna, shamanism, witchcraft, healing, shamanic ritual.

Resumen: Quiero esbozar en este artículo algunos aspectos del chamanismo de los ticuna en Brasil, basado en una investigación de campo en una pequeña comunidad del rio Camatiã, São Paulo de Olivença (AM). Los elementos de este chamanismo descritos y analizados son: el sentido de la palabra nativa para shaman (yu'ükü), las formas de convertirse en chamán, el Waia como lugar mítico de formación del hechicero, las relaciones del chamanismo con las religiones locales, describo aún la retirada del hechizo del cuerpo de una enferma y los vectores de hechizos. Una atención especial se da a un viaje chamánico para recuperar el alma de un hombre forajido en el bosque y la ejecución del hechicero.

Palabras clave: Ticuna, chamanismo, hechicería, cura, ritual chamánico.

Carátula del artículo

Articles

Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna

From the rescue of souls to the execution of the sorcerer: notes on the Ticuna shamanism

Del rescate de almas a la ejecución del hechicero: notas sobre el chamanismo Ticuna

Edson Tosta Matarezio
Universidade de São Paulo São Paulo, Brasil
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 22, núm. 1, pp. 218-239, 2019
UFG - Universidade Federal de Goiás

Recepção: 07 Outubro 2017

Aprovação: 18 Dezembro 2018

Introdução

“Pode-se frequentemente observar que entre os Tukuna nenhum xamã é sempre livre de suspeita”

Nimuendaju (1952, p. 100)1

Os Ticuna são um grupo indígena imenso para os padrões da América do Sul, com mais de 53 mil indivíduos no Brasil2 (Siasi/Sesai, 2014)3. Apesar de uma certa homogeneidade de certos aspectos da cultura ticuna4, não me arriscaria a dizer que este texto é uma teoria geral do xamanismo Ticuna. Procurei aqui mostrar algumas definições gerais, mas, principalmente, relatar alguns eventos relacionados ao xamanismo que ainda foram pouco explorados na literatura sobre os Ticuna. São eles, por exemplo, a descrição de uma viagem xamânica para o resgate de um homem desaparecido, as relações entre o xamanismo e as religiões locais, a execução de um feiticeiro, dentre outros. Minha etnografia está em constante diálogo com a monografia pioneira de Curt Nimuendaju (1952) sobre os Ticuna e com os trabalhos mais recentes de Jean-Pierre Goulard (2009, 2012). No entanto, a maior parte das informações analisadas aqui são de primeira mão, etnografadas por mim em campo. Minha pesquisa de campo foi desenvolvida principalmente na comunidade de Nossa Senhora de Nazaré, localizada no igarapé Camatiã, cidade de São Paulo de Olivença (AM). A quase totalidade dos nomes que menciono são de moradores de Nazaré, deixarei claro quando se tratar de exceções.

Os xamãs, yu’ükü

Yu’ükü é o termo ticuna usado para se referir ao xamã. De acordo com Goulard, o termo yu-ü se refere aos espíritos assistentes do xamã, “se refiere a un conocimiento, a un uso o propiedad de una especie (planta, animal o ‘padre’) ” (2009, p. 82). A terminação _kü indicaria uma espécie de propriedade ou conhecimento sobre os yu-ü, ou seja, o pajé5 é o “dono” ou conhecedor de determinados yu-ü. Em meu trabalho de campo encontrei a mesma palavra. Contudo, yu’ü me foi traduzido muitas vezes como “oração”. Esta é uma forma dos ticuna não evidenciarem o potencial maligno que possui esse conhecimento. Mas também me disseram que yu’ü pode ser “pajelança”, “trabalho do pajé”, um termo que evidencia mais a ação do xamã, ao mesmo tempo em que pressupõe um conhecimento. A tradução de yu’ü como “oração” logo se mostra uma armadilha, pois não estamos tratando de um texto recitado, como as orações cristãs. Os yu’ü são passados do pajé mais velho para o aprendiz, misturados na bebida. O xamã mais velho coloca a “oração” no pajauaru (bebida fermentada de mandioca), no caldo de pajauaru (pajauarunatü) ou na cachaça, e o neófito bebe a “pajelança”, cultivando-a dentro dele. Nessa medida, percebemos que não é apenas uma espécie de conhecimento, mas algo que é ingerido fisicamente. Entre os Ticuna, aprende-se o xamanismo bebendo a “pajelança” de outro pajé.

Esses yu’ü vão se reproduzindo dentro do pajé, “criando filhos dentro dele”. Roberto, por exemplo, xamã de Nazaré, já tem muitos. Quando um xamã possui poucos, como Arnaldo, também de Nazaré, ele não consegue fazer mal, só quando tem muito yu’ü que o pajé pode fazer o mal. É como se a quantidade gerasse um possível descontrole dos yu’ü. Disseram-me que Aricildo tem muito yu’ü no peito dele. Os pajés podem guardar essas “orações” no paneirinho invisível (wotüra ou paturuna) deles. Esse cesto invisível também é ganho de outro xamã mais velho, mais experiente. É um paneirinho invisível localizado nos flancos do corpo do pajé. Nesse local o xamã guarda suas “orações” (yu’ü). Quando o pajé vai fazer uma cura, ele retira a oração de dentro do wotüra. Se a pessoa ainda está aprendendo a ser pajé, outro xamã mais velho coloca “orações” no wotüra do pajé mais novo. Demora cerca de um ano para aprender a rezar. A “oração” parece com espinho. O xamã, para efetuar a cura, deve retirá-la do corpo da pessoa doente. Depois que ele aspirou a “oração” do corpo do enfermo, utilizando tabaco, tem que colocá-la para fora, regurgitando.

Todos os pajés são referidos como yu’ükü, não existem diferenças terminológicas para designar distintos tipos de pajé6. Contudo, conhecendo alguns xamãs ticuna e conversando com os índios sobre pajelança, descobri que existem graus de conhecimento no xamanismo. A ticuna Hilda Thomas do Carmo (Mutchique’ena)7, por exemplo, comentou que seu pai é um grande tocador de to’cü8 e conhecedor da arte de fabricação do instrumento. Segundo me disse, ele mesmo coloca o espírito (ã’ẽ) no to’cü, uma das incumbências do xamã durante as Festas de Moça Nova. Perguntei a Hilda, “então ele é pajé?”. Ela respondeu, “não é não, só um pouquinho, ele sabe colocar na’ã’ẽ (espírito dele) no to’cü”.

Fumar e gostar de tabaco são um pré-requisito para ser pajé, o que acaba levantando suspeitas sobre os fumantes quando as acusações de feitiçaria estão circulando. Faz algum tempo, Severino Alexandre Gomes (Tõetükü), antigo morador de Nazaré, foi acusado de feitiçaria na comunidade de Bom Caminho. Ondino Casimiro (Doctürécurügõecü) comentou que “ele gosta de fumar, quem gosta de fumar sabe curar. Antigamente ele curava. Hoje, quem sabe, a gente não está no corpo dele”. Num ritual de moça nova acontecido em 2014 na casa de festas de Umariaçu I (Tabatinga, AM), foi ele quem rezou as meninas que estavam se iniciando. Notamos, com isso, que também há idas e vindas da pajelança. Um pajé pode ficar um tempo “de molho” até as acusações de feitiçaria se dissiparem, depois, por algum motivo, pode retomar as atividades.

Como disse acima, me parece que o conhecimento xamânico ticuna se apresenta em graus maiores ou menores de acordo com o interesse da pessoa. Nesse sentido, podemos estabelecer três graus de aprendizado do xamanismo:

1) Existem pessoas, e estas são relativamente muitas, que sabem rezar os enfermos, benzer crianças doentes, bebês que dormem mal, soprar tabaco para tirar alguma dor causada por feitiço ou vingança de algum animal etc. O irmão de Ondino, Ulisses, por exemplo, não é reconhecido como pajé, apesar de no passado ter sido acusado de feitiçaria. Contudo, na ausência de melhor rezador, de vez em quando ele fazia sessões para soprar tabaco em seu sobrinho (BS) recém-nascido.

2) Outros que estão em menor número são os pajés que “recebem” espíritos de outros pajés, humanos e não-humanos. Estes fazem sessões mais demoradas, podendo ficar uma noite inteira “trabalhando” sobre a pessoa enferma. Acompanhei uma sessão de cura da filha de Gabriel, feita pelo pajé Roberto. Ele “recebeu” espíritos de diversos pajés para auxiliá-lo.

3) Esta última categoria de xamãs é a mais poderosa, são os xamãs cantores. Eles conhecem os cantos indicados para cada doença ou situação que se queira resolver. Conheci um pajé desse tipo de passagem por Nazaré. Aricildo, da comunidade de São Domingos II (São Paulo de Olivença), é um renomado xamã entre os Ticuna, para o bem e para o mal. Por isso, não costuma se demorar muito nas comunidades onde é chamado para “trabalhar”. Veremos a transcrição de um trecho de uma sessão de cura dele mais adiante.

Apesar dessas variações de saberes xamânicos, como disse, todos os xamãs são designados pelo termo yu’ücü. Contudo, nenhum xamã admitiria ser um destes. Perguntei a Aricildo se ele era um yu’ücü e ele negou enfaticamente. Não há, entretanto, outra palavra em ticuna para se referir a um pajé. Em geral, quando um pajé está se referindo a si mesmo ele se diz pajé ou rezador. Admitir ser um yu’ücü implicaria em poder fazer mal a alguma pessoa, fazer tchũta - espinhos vetores de enfermidades - ao invés de “oração”. Aricildo me contou que somente cura, não faz tchũta; disse que é um rezador e só faz o bem para as pessoas. Em certos ambientes, mesmo que todos reconheçam que todo xamã é um yu’ücü, mencionar isso é muito mal visto. Seria como se ele se autodeclarasse um feiticeiro. Ondino conversou comigo sobre os yu’ü de Arnaldo e de Roberto apenas porque estávamos na roça. Fora de locais afastados, como esse, os pajés são referidos apenas como rezadores.

Waia e a formação dos pajés

Existe um lugar de formação de feiticeiros que é referido como Waia. Apesar de ninguém conhecer esse lugar pessoalmente, acredita-se que poderosos xamãs vão ao Waia para aprender suas pajelanças. Muitos referem-se a esse lugar como a “origem do pajé”. Segundo me disseram, “lá ninguém pode pegar nada, porque é tudo dos feiticeiros, seria muito perigoso. É onde os pajés mais poderosos se formam, onde eles vão aprender com grandes feiticeiros”. Os pajés que moram nesse lugar consomem tabaco e se alimentam apenas de um tipo de minhoca grande (bure) que vive no chavascal (de’ü / ngowacüwa) e tem escamas. No Waia, quando algum aprendiz chega, ele é recebido com uma grande cuia de pajauaru (bebida fermentada). Entretanto, não se trata da bebida comum que é tomada nas ocasiões festivas. Nesse pajauaru os pajés colocam muitos ngo’o (“bicho”): cobra-grande, escorpião, tucandeira, onça etc. O neófito aprende a pajelança dessa maneira.

Hilda comenta sobre o Waia que “é lá que estão os Ticuna mesmo, de antigamente. Parece que fica na Colômbia. Fica lá para o centro do [igarapé] Jacurapá”. Esse comentário de Hilda relaciona o Waia não com um lugar de perigo, por ser um lugar de “formação” de pajés, mas como sendo um local onde os Ticuna ainda cultivariam os costumes e valores de antigamente. Os discursos, em geral, tendem a eleger o Waia - às vezes referido como localizado na Colômbia, às vezes, no Peru - como um local de conhecimento mais ancestral, seja de uma forma temporal, os “Ticuna mesmo, de antigamente”, ou atribuindo a ele uma intensa pajelança. Nessa última acepção - que ouvi, por exemplo, de Ondino -, o excesso de feiticeiros poderosíssimos transformaria o Waia no passado dos atuais Ticuna. Os “Ticuna de antigamente” seriam tão feiticeiros quanto os pajés que engrossam a população do Waia.

Hilda mencionou, enquanto traduzíamos o mito do “Homem que matou as mulheres dele” (Namatü daí’cü, [Firmino; Gruber, 2010]), que “o Waia é um lugar perigoso, lá todo mundo é feiticeiro/pajé”. O mito conta a história de um caçador que mata suas esposas depois de elas terem quebrado seu pote com curare (veneno). Depois disso o caçador foge para o Waia e, quando ele dá uma festa, seus cunhados aparecem para vingar a morte das irmãs. Pelo desenrolar do mito, o Waia também é um lugar onde feiticeiros e outras pessoas, como o homem que matou as esposas, vão se refugiar, para escaparem de atos vingativos.

Essa jornada ao Waia - um tanto obscura, pois nunca encontramos alguém que conheça pessoalmente o local - é uma das formas de se adquirir conhecimento xamânico. A outra via, mais comum, é a formação dos pajés nas próprias comunidades. Algumas informações podem indicar que os conhecimentos xamânicos são passados de pai ou mãe para filho(a). Arnaldo me contou que aprendeu suas rezas de pajé com sua mãe, no igarapé onde nasceu. Segundo Aricildo, ele aprendeu com seu pai. Nimuendaju também confirma este tipo de aprendizado, “[a]lguns xamãs começam a educar os seus filhos quando os meninos têm seis anos de idade” (1952, p. 101).

Assim como as sessões de pajelança, as lições que o pajé mais velho dá aos noviços começam depois do pôr do sol (Nimuendaju, 1952). A primeira coisa que faz o pajé que está aprendendo é receber o tacaca do xamã mais experiente, através do canto. Cada “oração” é um tacaca que a pessoa aprende. Essas “orações” cantos (tacaca) são armazenadas no wotüra (paneiro do xamã) também. O pajé mais velho tem que fazer isso ao menos duas vezes, uma só não basta. Gabriel me contou que, para se formar pajé, Roberto teve que receber um bicho (ngo’o) de outro pajé. Esse bicho foi retirado de uma pessoa doente e colocado em Roberto. Para mantê-lo no corpo, ele deve alimentar o bicho com tabaco, fumando regularmente. Durante sua formação ele se alimentou só de sardinha sem sal durante três dias9. Apesar de sempre existir a suspeita sobre ex-pajés, existem meios de se expurgar os bichos (ngo’ogü) do corpo. Ulisses, irmão de Ondino, segundo me contou Gabriel, foi rezador durante um tempo. Um dia ele foi acusado de feitiçaria pelos moradores da comunidade de São José, vizinha de Nazaré, que queriam matá-lo. Diante da situação, Ondino o fez tomar um preparado de cebola e alho para expurgar os bichos de seu corpo.

Este tacaca é ingerido pelo candidato a pajé numa cuia cheia. Nimunedaju comenta que essa ingestão, de infusão de tabaco, faz o neófito “vomitar todas as impurezas (puya) adquiridas através de contatos sexuais” (1952, p. 101). Nimuendaju (1952) relata que essa purificação prepara o neófito para receber o tacaca, que nada mais é do que uma bebida feita da goma da mandioca, contudo, transformada em “substância mágica”. Após vomitar as “substâncias” que ele possui, o pajé segura o vômito “na palma da sua mão, ele mostra isso para o discípulo, convidando-o para escolher [os poderes que ele deseja]: “Você quer estes dois? Eles são bons. Ou aqueles dois? Eles são ruins. Ou estes outros?” O discípulo engole os escolhidos” (Nimuendaju, 1952, p. 101-102). O dia seguinte é dedicado ao aprendizado das canções dos espíritos das árvores e um procedimento parecido acontece durante o sonho do novo pajé (Nimuendaju, 1952).

Vetores de feitiço

Para os Ticuna as doenças são todas causadas por feitiço, ou seja, pela intenção de alguém. Tão logo uma pessoa sente dores ou começa a adoecer, começa a especular sobre quem poderia estar causando aquilo. E, da mesma forma que um doente se pergunta pelo causador, a presença de um renomado feiticeiro na comunidade pode suscitar “dores” onde antes não havia. Durante a presença de Aricildo em Nazaré, Ondino reclamava de dores nas costas. Um ou dois dias depois da saída do pajé da comunidade, ele parou de reclamar das dores.

Todo pajé que pode efetuar curas tem conhecimento de como adoecer ou matar pessoas. Ele pode, por exemplo, sufocar, furar com faca, atirar em quem deseja fazer o mal. “Muitos ticuna morrem de feitiço”, dizem as pessoas. A palavra ticuna para pajé, como vimos, é yu’ücü, mas também pode ser designado como ngo’ocü, o que ressalta sua relação com os ngo’o (“bichos”), os seres mais perigosos do cosmos. Certa vez, numa noite de bebedeira do xamã de Nazaré, Roberto, pude ouvi-lo cantando bêbado pela comunidade. No outro dia, Ondino me falou que ele dizia: “Eu sou um bicho (ngo’o) mesmo”. Não por acaso, construíram a capela católica da comunidade em frente a sua casa.

O tchũta é o feitiço que o pajé manda soprando com tabaco (pori) para sua vítima10. “Ele é jogado com uma zarabatana, é um tipo de dardo de zarabatana que é soprado. O pajé tem uma zarabatana invisível em que ele sopra o tchũta”, me disse um tucuna. Pode ser feito de talo de buriti, espinho de tucum, agulha, arame, qualquer tipo de espinho. Ele reza em cima do espinho, sopra tabaco, fala o nome da pessoa e o tchũta vai para dentro do corpo de quem o xamã quer enfeitiçar. Segundo me disseram, o “bicho” (ngo’o) causador da doença vai dentro do espinho11. O tchũta pode ser mandado não só por um pajé, mas também pela cobra-grande (Yewae), boto e espíritos (ã’ũ). “Este tipo de espírito fica vagando no fim da tarde e pode jogar “flechas”, tchũta. Espíritos ã’ũ são visagem também”, me foi relatado. Ondino me contou que a filha de Juarêncio, de três anos, estava gritando certa tarde porque foi flechada por um espírito ã’ũ. Afinal, é perigoso uma criança dessa idade ficar brincando no terreiro durante a tarde. Arnaldo, um dos pajés de Nazaré, foi chamado para retirar o tchũta dela.

O tchũta é invisível, só se torna visível quando retirado pelo pajé. Quando o pajé o retira do corpo do enfermo, o tchũta se materializa. Presenciei Arnaldo retirando um espinho tchũta da mãe de Ondino. Ele estava rezando Dona Verônica e me falou, “tem bichinho na barriga dela”. Verônica estava com uma forte diarreia que já durava alguns dias. Perguntei que bicho era, ele disse, “tchũta”. “E você está vendo o tchũta?”, perguntei novamente. Arnaldo, que havia passado as mãos várias vezes no ventre da enferma, contou que sentia o tchũta, nas mãos, ao apalpar a barriga de Verônica. O pajé fazia movimentos circulares na barriga dela como se estivesse juntando grãos esparramados, fechava a mão, puxava e soprava. Depois, como que jogava fora o que tinha juntado.

A certa altura, pediu a Ulisses, que estava lhe auxiliando, que trouxesse limão e o misturou com álcool para beber. Durante o tratamento, pouco antes de me falar do tchũta, Arnaldo tinha soprado tabaco nos próprios braços. O tabaco é soprado nas mãos para poder achar o “espinho”. É o tabaco que localiza o tchũta. Depois que o álcool com limão estava pronto, Arnaldo passou fumaça de tabaco e um pouco de álcool nas mãos. Deu um gole na mistura que havia preparado, passou um pouco de álcool na barriga de Verônica e aspirou com força. Primeiro, engasgou e regurgitou, como os pajés fazem com frequência. De repente, estava com um espinho nas mãos, era o tchũta. Ele o arrancara da paciente. Mostrou para mim com ar vitorioso e continuou as aspirações na barriga de Verônica, puxando com as mãos os males que estavam lá. Logo que Arnaldo extraiu o espinho, assobiou sobre ele, apertou bem, depois saiu da casa e jogou longe assoprando o tchũta. A sessão de cura continuou, ele puxava com as mãos, assobiava, passava fumaça de tabaco, puxava, tomava álcool com limão e passava álcool na barriga de sua paciente.

Em geral, os pajés bebem cachaça para “amolecerem” o espinho que está causando o mal no enfermo. O pajé canta para o tchũta ficar mais mole (do’ũca). Ao amolecer o “espinho”, ele sai com mais facilidade. Tanto assobiar, quanto cantar dão no mesmo, têm o mesmo efeito sobre o feitiço. O álcool é passado no corpo do paciente para o tchũta ficar de porre e sair mais facilmente. Na ausência de cachaça, presenciei Arnaldo algumas vezes dando pequenos goles num copo com álcool diluído em água. Com o causador da doença “amolecido”, ele fica mais fácil de ser retirado pela aspiração. O pajé aspira para extrair o “mal de vingança” (wa’a) do doente. Pode ser um esporão de peixe, formiga, cobra, onça etc. Se a pessoa pisa no “caminho” desses bichos, eles podem se vingar, então, a pessoa fica doente. O pajé vai aspirando, regurgitando e jogando fora os males que retira da pessoa. Mas nem todos ele joga fora. Alguns são guardados em seu paneirinho invisível (paturuna), para usar depois, seja para curar ou para enfeitiçar. Ele vai guardando os males nesse paneiro. Se for bom (wa’a me’ũ) ele guarda para curar outra pessoa. Se for mau (wa’a tchieũ) seu dever é jogar fora. Contudo, se o pajé quiser fazer o mal para alguém, ele pode usar esse wa’a tchieũ para enfeitiçar.

Outro vetor de feitiços é o tchatchacunã, que é chamado de “bonequinho de bicho (ngo’o)”. Esse “bonequinho” é invisível, uma espécie de vodu que o pajé usa para atingir a pessoa. Ele penetra no corpo e pode se transformar em gente. O pássaro ti’titchicü tem esse nome provavelmente em virtude do feitiço mortal, chamado ti’titῖ. A alma do pajé toma a forma do ti’titchicü e vai fazer feitiço. Ondino e eu identificamos o ti’titchicü com o pássaro saci (Tapera naevia)12. Em português regional é chamado matintim. Contaram-me que o pajé manda o xerimbabo dele nesse pássaro para matar. A ave vai até a casa das pessoas e traz o tchũta, assim como ele faz quando sopra o tchũta com tabaco. O pássaro dá uma flechada na vítima do xamã. Para os Ticuna, esse pássaro não é verdadeiro (tchicü), daí a terminação de seu nome. O ti’ti, portanto, só passa a existir, como ti’titchicü, quando o pajé o manda para sua vítima. De acordo com o Livro dos Pássaros (Werigü arü ae) ticuna, traduzido por mim e por Ondino, ele

só canta a noite. Joga flechinhas na gente, mas não podemos ver. Se não tem pajé para tirar, a gente morre. Quando ele canta a gente fica assustado. Não podemos remedá-lo quando ouvimos ele cantar, senão ficamos fracos e não conseguimos correr. O pajé manda o xerimbabo dele neste pássaro (OGPTB, 2002, p. 11).

Para entendermos melhor a associação dessa ave com um vetor de feitiços ticuna, vejamos mais de perto alguns de seus hábitos. Sick destaca sua invisibilidade: o pássaro é notado mais pelo som que produz. “É bem conhecido pela voz e muito difícil de se ver” (1997, p. 389). Esse fato é comentado pelos ticuna. Contudo, existe uma característica em sua reprodução que o aproxima mais da ideia de um vetor de feitiços. O saci possui um tipo de aninhamento parasitário, ou seja, seus ovos são chocados no ninho de outras aves, pelos próprios hospedeiros. Como os filhotes de saci têm um tempo de incubação menor que o dos ovos de seus hospedeiros, diz Sick, “[o] sacizinho toma rapidamente a dianteira. A ponta do seu bico é um alicate afiado [...] que seria instrumento próprio para dar cabo de seus pseudo-irmãos [...]. Os pseudo-irmãos do saci desaparecem pouco depois do nascimento do saci...” (1997, p. 389). Pela descrição fornecida por Sick (1997), notamos que o indivíduo adulto da espécie Tapera naevia é inofensivo. Entretanto, para se reproduzir, ele deposita seus ovos no ninho alheio e mata os filhotes do hospedeiro. Os ovos do saci, portanto, assim como o tchũta enviado pelo pajé, são uma espécie cavalo de troia. Eles são levados pelo pássaro e penetram no corpo da vítima imperceptivelmente, causando sua morte.

Por meio de qualquer um desses vetores, seja qual for a forma como o “bicho” (ngo’o) penetra no corpo da pessoa, a vítima fica doida (tauẽ), como se estivesse bêbada. Sob o efeito desses agentes, a própria pessoa se mata, com faca, corda, timbó etc. Por outro lado, aparentemente, os “espinhos” ou objetos semelhantes também são usados para defender ou combater os possíveis feitiços que ameaçam as pessoas. Ondino, por exemplo, com a ajuda de seu filho Arlindo, preparou uma mistura de espinho13, chifre de boi e penas de anhuma, popularmente conhecida também como aricó14 (türicu, Anhima cornuta). Todos os ingredientes foram colocados em uma lata e queimados. Ondino, então, passou seu bebê nessa fumaça, que tinha um forte mau cheiro. Depois de defumar o neném, ele colocou a lata fumegante em cada uma das quatro paredes da sala, para defumar todo o ambiente.

Perguntei para que servia esta defumação e me responderam apenas que serve para proteger o bebê. Podemos nos perguntar, no entanto, o que há em comum nestes três itens - espinho, chifre de boi e penas de anhuma - que os tornam poderosos preventivos de ataques ao recém-nascido? A julgar pelos dois primeiros, espinhos e chifre, podemos deduzir que os espinhos e agulhas - que, como sabemos, são vetores de feitiço - ao serem queimados podem atuar como preventivo de doenças. Mas que relação teriam com as penas da anhuma. Examinemos, então, essa ave. O simples fato de a anhuma possuir esporões nas asas e uma crista que parece um chifre, já nos remeteria a algo em comum com o conjunto mencionado. Mas não é só, de acordo com o ornitólogo Sick, os esporões são “armas poderosas em caso de usarem as asas na defesa do ninho” (1997, p. 241). Ou seja, os registros dizem que os esporões são acionados na defesa da prole, assim como Ondino planejava com a defumação do neném.

Outra forma de um feiticeiro atacar sua vítima é enviar ou transformar-se numa onça. Gabriel me contou que certa vez matou uma onça debaixo da casa do cacique. Perguntei se comeram a onça. Foi uma pergunta provocativa, desconheço qualquer grupo indígena que coma carne de onça. Ele me falou o que eu esperava, “não se come carne de onça”. Mas explicou melhor porque ela não é comida. Se alguém comer carne de onça, os pelos (tchi’i) do espírito (ã’ẽ) dela enroscam na garganta e a pessoa fica tossindo. Com o passar do tempo, se um pajé não tirar os pelos enroscados, a pessoa morre. Além disso, não é só quem come que é afetado pelo felino, seus filhos, pais, irmãos, todos adoecem. Depois dessa explicação, Gabriel concluiu dizendo que encontrar uma dessas no mato não é tão perigoso. “A onça perigosa é a que é mandada pelo pajé. As onças do mato têm medo da gente. É só assustar ela que ela corre”.15

Ulisses, o homem que foi levado pelo demônio16

Existe um tipo de intervenção de cura xamânica, praticada por pajés que dominam o canto xamânico, que é a busca do espírito (ã’ẽ) da pessoa que foi sequestrada. Os sequestros de almas (ã’ẽ) pelos “bichos” (ngo’o) podem, no limite, ocasionar um rapto da pessoa inteira. Histórias de pessoas que foram levadas pelos “bichos” são inúmeras entre os Ticuna. O caso de sequestro pelo “bicho” de maior repercussão e mobilização das pessoas enquanto estive em campo foi o de Ulisses, morador da comunidade Mangueira, vizinha de Nazaré, no igarapé Camatiã. Ulisses saiu um dia para caçar e ngo’o levou-o. Nunca mais voltou para casa. Alguns “bichos” (ngo’ogü) são especialistas em enganar os caçadores no mato. Perguntei uma vez a Gabriel porque ele estava há tanto tempo sem caçar. Ele me disse que tinha medo de algum “bicho” levá-lo embora. Segundo me disse, um “bicho” poderia aparecer igualzinho sua mulher, com a mesma voz, e deixá-lo doido. Quando ele percebesse, já estaria morando com o “bicho”. De acordo com os comentários de Ondino, Ulisses foi levado pelo Tchurara ou Yureu. Esse “bicho” estaria alimentando Ulisses. Passado um ano de desaparecido, ele surge na roça de Mariazinha, em Nazaré, pedindo peixe para comer.

A segunda aparição pública de Ulisses foi para a filha de Francisco e o ex-cacique Julio. Eles contaram que o viram nu junto com uma fileira de queixadas que tinham rostos de capivaras. Ulisses, segundo me informaram, estaria morando com esses “bichos” (ngo’o) e sendo alimentado por eles. Depois desse segundo encontro com o desaparecido, decidiram colocar uma troca de roupas para ele no mato e deixar alguma comida também. Fizeram algumas buscas no mato para encontrá-lo. Todas as vezes que conseguiram chegar perto, ele fugiu. Tentaram agarrá-lo também, mas não conseguiram. O pastor que tentou agarrá-lo foi mordido por Ulisses e teve que soltá-lo, deixando-o escapar de novo.

Percebi que havia uma cisão nos esforços para trazer o homem de volta. Havia o recurso aos poderes do xamã e o empenho dos evangélicos para o resgate de Ulisses. Em Decuãpü - outra comunidade vizinha de Nazaré, onde a Igreja Batista tem uma forte influência -, fizeram uma corrente de orações para que ele voltasse. A atuação da Igreja Católica, capitaneada por Ondino, foi discreta. Presenciei uma visita dos parentes do desaparecido à missa da capela de Nazaré para fazerem preces chamando por Ulisses. A relação desses parentes com a pajelança também é ambígua, como o próprio xamanismo ticuna. Convocaram Aricildo, renomado pajé, para uma longa sessão madrugada adentro para buscar o homem perdido17. Os resultados não foram imediatos, Aricildo disse que teria que fazer mais vezes. Os parentes de Ulisses pensaram que isso resolveria rapidamente a situação e não foi o caso.

Por outro lado, os evangélicos se empenham em suas correntes de orações, cultos, cantorias, repetindo trechos da bíblia, falando línguas, para afastar Satanás que levou Ulisses e evocando Jesus e o Espírito Santo para que o tragam para casa. Ondino observa aquela situação com incredulidade. Dá para notar que ele não está contente com os evangélicos batistas vindo todo o sábado para fazerem culto na capela católica de Nazaré. Mas nunca recusa quando pedem a ele para usarem o espaço, apesar de ouvir muitas vezes que a religião católica é de Satanás. Ele apenas fica cioso dos jovens de Nazaré que - ao verem o culto efusivo dos evangélicos com seus jovens extremamente apegados à religião, cantando animadamente, bem diferente da missa católica - pensam em se converter e serem batizados pelos pastores de Decuãpü18. Contudo, além de promover essa atração dos adolescentes para a religião batista, conseguir resgatar a alma de Ulisses seria uma vitória sobre o xamanismo, repudiado pelos evangélicos.

Os evangélicos estavam fazendo cultos regularmente aos sábados em Nazaré durante meu segundo período de trabalho de campo (outubro, novembro e dezembro de 2012). A meu ver, a insistência deles em trazer Ulisses de volta se misturava com a intenção de arrebanhar novos adeptos para a religião batista. A cada vinda deles mais pessoas, principalmente os jovens, diziam que gostariam de se converter. Ondino se incomoda bastante com essas declarações dos moradores de sua comunidade, mas ficou inconformado mesmo quando um dos pastores de Decuãpü disse para ele que a Igreja Católica é de Satanás. Os evangélicos se aproveitam do desaparecimento de Ulisses para fazerem cultos insistentemente em Nazaré. Além do que, se realmente o desaparecido retornasse, o mérito seria dos batistas e sua persistência. A disputa para trazer o homem de volta se dá, portanto, entre os “crentes” e o xamanismo, já que não vejo qualquer manifestação religiosa dos católicos para esse fim. O que fizeram foram algumas preces, junto com alguns familiares de Ulisses, durante a missa em Nazaré.

Se a postura dos evangélicos é de total negação do xamanismo, os católicos não chegam a tanto. Ondino e os demais católicos de Nazaré recorrem com frequência aos pajés para obterem tratamento para suas moléstias, rezar seus filhos etc. Já a relação dos xamãs com a Igreja Católica é diferente. Logo que o pajé Aricildo chegou na comunidade, foi para a casa de Gabriel examinar a filha deste que estava com diarreia e comendo muito mal. Perguntei a ele quando ele iria começar a sessão. Aricildo me respondeu que só depois do final da missa. Quando é dia de missa, as sessões de pajelança começam depois que a cerimônia católica acaba. As duas coisas não concorrem. Perguntei se ele iria à missa e ele assentiu com a cabeça. Mais tarde procurei-o na capela durante a missa, mas não o encontrei. Voltei para a casa de Gabriel e tornei a encontrá-lo lá. Gabriel comentou que, em cinco anos morando em Nazaré, nunca viu o pajé Roberto, que mora na comunidade, ir à missa. Antes de uma sessão de cura de sua filha, Gabriel perguntou a ele porque não ia à missa, ao que Roberto respondeu em tom de deboche, “como pode um demônio (ngo’o) como eu ir à missa?”.

Da parte xamânica, chamaram um dos pajés ticuna mais poderosos do Alto Solimões. Gabriel me contou que Aricildo voltaria para mais algumas tentativas. Tanto que deixou com ele alguns cartuchos para que Gabriel matasse uns guaribas para o pajé. Veremos, a seguir, a descrição da sessão de pajelança de Aricildo.

O resgate da alma de Ulisses

Os Ticuna costumam dizer que uma criança quando nasce é como um pezinho de milho, muito sensível, e os “bichos” (ngo’o) adoram devorá-la. Essa é uma fase muito delicada, em que ela tem o “espírito” (ã’ẽ) ainda muito instável e pode diminuir em quantidade, ser roubado por algum ser com más intenções. Uma criança que cai no chão, por exemplo, pode ter o espírito levado pela cobra-grande ou pelo boto. Existe uma palavra usada para se referir a uma criança que está com pouco ã’ẽ, é tautameaitauã’ẽ, que me foi traduzida como, “ainda não chegou bem a alma dela”. No caso de sequestro do ã’ẽ, o pajé terá que fazer uma “viagem” para ir buscá-lo.

Quando uma criança perde sua alma (ã’ẽ), ou parte dela, o pajé tem que viajar até a “cidade” do ser que a roubou para resgatá-la. Os seres que costumam fazer esse tipo de roubo são a cobra-grande (Yewae), o boto, a onça d’água, dentre outros. Quando o xamã “desmaia”, o que pude presenciar nas diversas sessões de pajelança que acompanhei, é porque seu espírito (ã’ẽ) saiu para procurar a alma (ã’ẽ) perdida da criança. Enquanto isso o espírito de outro pajé pode penetrar no corpo dele e continuar “trabalhando”. Terêncio me falou que o corpo do pajé fica aberto, a capa (tchamü) dele fica aberta, então entra o espírito (ã’ẽ) na abertura. Esse é o momento em que o pajé levanta, quando o espírito sai, ele cai. Essa abertura da capa fica na região do peito. Quando um espírito sai, outro entra. Ao chamar o espírito ã’ẽ de outro pajé pelo assobio, o espírito do rezador sai de seu corpo, assim como acontece durante o sonho do xamã. Por isso, ele consegue realizar curas enquanto sonha, da mesma maneira que quando está acordado.

Durante a viagem que o xamã empreende com seu espírito (ã’ẽ), ele vai procurando a alma perdida na cidade desses seres. Essas cidades me foram descritas como grandes emaranhados de lojas, quartos, gaiolas, dentro dos quais pode estar a alma que se deseja encontrar. Em sua procura, a fumaça do tabaco constitui o caminho que o conduz por onde ele viaja. É o “caminho do tabaco” (porimã; pori = tabaco, = caminho) cuja partícula linguística _ também designa o “caminho da caça” e um dos princípios ou almas constituintes da pessoa ticuna, que Goulard (2009) chama de “princípio corporal” (ma’ũ).

Essa qualidade de “espírito” (ã’ẽ) dos Ticuna, como disse acima, pode variar em quantidade em uma pessoa. Principalmente em recém-nascidos, eles podem ter mais ou menos ã’ẽ. “Se falta chegar mais naã’ẽ, o pajé tem que pegar mais”, e assim me foi explicado19. Caso uma criança fique doente, é um indicador de que seu “espírito” está sendo roubado pela cobra-grande (Yewae). Contaram-me que “a cobra-grande pega o naã’ẽ da criança e transforma no xerimbabo (ũna) dele. Transforma num passarinho e coloca numa gaiola. Quando a cobra-grande não alimenta o passarinho, a criança fica fraca e adoece. Tem que ser um rezador [xamã] que sabe muito para ir buscar o naã’ẽ [que está em forma de passarinho] da criança na casa da cobra-grande. Às vezes o pajé não consegue chegar lá, então tem que soprar a criança várias vezes até conseguir [resgatar o naã’ẽ do doente]”. Ondino me disse que a filha mais nova de Gabriel, minha afilhada, caiu no rio umas duas vezes. E ela só tinha quatro meses. “Foi aí que a cobra-grande (Yewae) aproveitou para levar a alma (ã’ẽ) dela, agora ela só tem um pouquinho. Ela era um bebê bem gordinho e forte. Mas as irmãzinhas dela deixaram ela cair no rio umas duas vezes. Ela caiu da rede também, isso favorece Yewae [cobra-grande] levar o naã’ẽ da criança”.

Assisti a diversas sessões de xamanismo do pajé Arnaldo sobre o filho recém-nascido de Ondino. Depois de algumas sessões, Arnaldo me revelou porque a criança estava dormindo mal à noite. Segundo me disse, ele estaria sendo vingado pelos espíritos dos peixes (tchoniarüma’ũ, tchoni = peixe / ma’ũ = espírito ou “princípio corporal”) aruanã, tucunaré e curuaçu. Arnaldo me contou que o espírito (ma’ũ) do peixe gruda nas costas do neném e tem que bater com a folha do pião-roxo (piãowaü’ũ) no local afetado. Se o peixe que está vingando o bebê tem ferrão, como algumas espécies de tucunaré, ele pode ferroá-lo também.

Os Ticuna consideram que algumas árvores também têm estas duas qualidades de espírito, ma’ũ e ã’ẽ (Nimuendaju, 1952, p. 57, 100)20. Segundo Nimuendaju, os espíritos das árvores (ã’ẽ), assim como a cobra-grande (Yewae), podem roubar a alma das crianças (1952, p. 70). Mas esta alma não se confunde com o ma’ũ de algumas árvores, esses espíritos são reputados auxiliares dos pajés21. O Livro das Árvores dos Ticuna apresenta o seguinte relato sobre esses espíritos e sua relação com os pajés:

O espírito de certas árvores ajuda o trabalho do pajé. Quando uma pessoa fica doente, chama o pajé. E o pajé chama o espírito das árvores para curar. O espírito chega e entra no corpo do pajé. Aí ele canta. Depois vem outro e mais outro. Se a pessoa está muito mal, é preciso chamar vários espíritos (Gruber, 1998, p. 46).

Esta é uma síntese de algumas sessões de pajelança que presenciei.

Veremos abaixo alguns trechos da pajelança realizada pelo xamã Aricildo para trazer Ulisses de volta. Antes de analisarmos a interação entre o pajé e sua assistência - que farei entremeando a narrativa -, notemos de saída que o espírito (ã’ẽ) de Aricildo está procurando o homem desaparecido entre as árvores e sobre a montanha. Os espíritos de outros pajés que vão se revezando no corpo de Aricildo estão enumerados em sequência. Este é o trecho referente ao início da interação do xamã com os presentes na sessão que se estendeu por toda a madrugada. Nessas sessões em que o rezador “desmaia”, há sempre um pajé assistente (namü’ũcü), que lhe sopra tabaco para que ele retorne:

Pajelança de Aricildo22

Pajé 1: “Boa noite, meus companheiros23. Vocês que estão precisando de mim?”

Esposa de Ulisses: “Eu mesma que estou precisando de você, para encontrar meu marido. Para a gente saber onde ele está.”

Pajé 1: “Eu só vim dar uma passada aqui. Muito obrigado”

Pajé 2: “Boa noite meus companheiros. Agora que eu cheguei aqui”

[cumprimenta as pessoas pegando na mão de uma por uma]

[aos que estão deitados]: “Dormiram já?” (risos).

Logo que o espírito chega no pajé, ele saúda as pessoas que estão presentes, numagü (“olá a todos”), no que é respondido da mesma forma. Durante as primeiras chegadas dos espíritos auxiliares, Aricildo chegou a apertar a mão de muitos que estavam assistindo à sessão.

Pajé assistente passando a garrafa de cachaça: “Aqui está o nosso líquido quente”

Pajé 2: “Eu estava ali viajando, batendo nas nuvens, até chegar aqui. Aqui está” [e passa a garrafa de volta]

Pajé 2: “O que aconteceu com vocês?”

Filho de Ulisses: “O meu pai, os “bichos” (ngo’o) levaram ele. Ele já tinha aparecido, mas sumiu de novo. Queremos saber como eles está. Já faz muito tempo que ele sumiu, estou com saudade dele. Por isso que a gente mandou o pajé trabalhar, para ele contar onde é que ele está”

Pajé 2: “O pajé que me mandou só para perguntar o que vocês querem. Logo mais vocês vão saber de tudo. Eu vou abrir meu bico24

[Começa a cantar]

Rü danῖyaῖ ya naῖnecü, naῖnecü, naῖnecü

“Ali estão as árvores, árvores, árvores”

Nheatürü nῖ cunhemaün nῖ

“É lá que você está”

Pajé 2: “Eu acho que ele [o homem perdido] está passeando no outro mundo [toina’ane]”

[Começa a cantar]

Rü danῖyaῖ ya naῖnecü, naῖnecü, naῖnecü

“Ali estão as árvores, árvores, árvores”

Bunecü arü ye’eragu i curütaumare’ün’ücü

“Você sumiu mais longe do lugar descampado [bunecü]”

Temos aqui, com bunecü, uma clara referência à morada dos encantados (ü’üne). O descampado onde moram os encantados, Eware. Como o Eware é sempre referido como um lugar muito distante, ao afirmar que Ulisses está mais distante que o Eware, o pajé localiza o desaparecido em um lugar quase inalcançável.

Mãe para o filho: “Você tem que ter coragem de falar agora, porque você só vivia chorando com saudade do seu pai” [enquanto o pajé está cantando].

Pajé 2 (cantando): Yemapüne arü ye’eragu ni’ῖ icurutau’ũ

“Você está para além da montanha [mapüne]”

Mapüne arü witape’ewa ni’ῖ cunhema’ũ

“Ele está lá no topo da montanha”

Yea i cunhemaünwa rü ngo’ogü rü marü cuün naütchirücü nairacü’ünma

“Lá onde ele está, os “bichos” já vestiram ele com uma roupa de ouro [nairacü’ũ]”

[Conversa]

Pajé 2: “Vai acabar o sofrimento de vocês. É só o começo do espírito [naã’e] que o pajé mandou. Vocês vão descobrir depois. Eu vim só para olhar”

Esposa de Ulisses: “Vocês têm que conseguir trazer meu marido”

A Esposa de Ulisses diz “vocês” para se referir aos vários espíritos que estão ajudando Aricildo em sua busca.

Pajé 2 (cantando): Rü danῖyaῖ ya naῖnecü, naῖnecü, naῖnecü

“Ali estão as árvores, árvores, árvores”

Bunecü arü ye’eragu i curütaumare’ün’ücü

“Você sumiu mais longe do lugar descampado [bunecü]”

Mapüne arü witape’ewa ni’ῖ cunhema’ũ

“Ele está lá no topo da montanha”

Yea i cunhemaũwa rü ngo’ogü rü marü cuün naütchirücü nairacü’ũma

“Lá onde ele está, os “bichos” já vestiram ele com uma roupa de ouro [nairacü’ũ]”

Esposa de Ulisses: “A gente quer que ele chegue de uma vez”

O Pajé fuma e faz o caminho dele [namã’ũ] levantando os braços para o homem perdido voltar.

Pajé 2: “Vocês querem que a gente traga ele de volta?”

Esposa de Ulisses: “Nós queremos sim. Queremos que vocês façam o caminho para ele voltar”

Pajé 2: “Nós só viemos para fazer o caminho. Só para isso que ele [o pajé] nos mandou”

Pajé 2: “Já está chegando o outro espírito. Ele vai falar tudo o que vocês querem”

Pajé 3: “Boa noite meus companheiros [pi]. Aqui que vocês estão amontoados. Eu estou um pouco envergonhado. Será que eu mostro minha mão feia para vocês?” [e começa a cumprimentar as pessoas]

Pajé 3: “O que aconteceu?”

Filho: “Faz tempo que meu pai sumiu. Ele saiu para caçar e até hoje não voltou. De tanto sentir saudade eu fui lá chamar o pajé. Tente fazer de tudo para que ele chegue”

Pajé 3: “Tudo bem”

Pajé assistente passando a cachaça: “Aqui está o suco”

Filho: “Enquanto ele estava perdido as crianças ficaram chorando por causa dele em casa. Tente de tudo para que ele volte”.

Pajé 3: “Depois ele [Ulisses] vai dizer o lugar onde você poderá encontrá-lo”.

Pajé faz caminho novamente para o retorno de Ulisses.

Pajé 3: “A gente está tentando arrastar ele [o pai] para cá. É neste mundo mesmo que ele estaria. Lá está ele”.

Esposa de Ulisses: “Tente trazer ele para cá!”

Pajé 3: “Depois ele vai vir para cá [o espírito de Ulisses]”

Começa a cantar.

Pajé 3: “Eu aprendi esta música com vocês”

Pajé assistente: “Não, acho que a gente que está aprendendo com você”

Pajé 3: Nhumarücü } várias vezes Nünãtcha’ũ } várias vezes

“Agora eu vim aqui”

Cucaena } várias vezes

“Por você”

Nhumarüena üanecü’ünwa curütomare’ũ

“Agora você está sentado naquele lugar cerrado [cheio de mato]”

Pajé 3: “Eu vou até aí com você” [ele vai até o homem perdido]

“É verdade que é você mesmo que vai lá comigo”.

Começa a cantar.

Numata cu’ünguena

“Se você vier para cá”

Numata cu’üntchigu

“Você vai se aproximando”

Tchauca ena pinhemagü’ün i nhama arü na’anewa

“Vocês estão com saudades de mim”

Cucanhematürü toca nhema quitchi’itchi

“Quando gente for lá, você vai sair do meio daquele cerrado”

Pajé 3: “É isso que vocês querem, que ele saia do meio daquele cerrado [nainecü]?”

Ouvintes: “Isso mesmo que a gente quer”

Pajé começa a cantar para o homem voltar

Pajé 3: “Não vão se assustar com ele. É só uma pessoa que vai ver ele”

Finalmente, chega o espírito do homem desaparecido

Pajé 4: “Boa noite, meus irmãos”

“Me chamaram e eu vim para cá. Teve um dia que quis voltar”

Esposa de Ulisses (bastante emocionada): “É você?”

Pajé 4: “Sim, sou eu mesmo. Vocês não estão me vendo?”

A esposa cumprimenta o pajé ao perceber que é seu marido o espírito do pajé.

Esposa de Ulisses: “Boa noite, quando você vai voltar para mim? Toda noite eu fico chorando por sua causa”

Pajé 4: “Eu nunca estive longe, sempre estive aqui perto. Tem muitas barreiras na minha frente, por isso eu não consigo voltar. Você sempre passava por perto, mas sempre tem alguém que não quer que eu volte para minha casa. Mas eu vou chegar”

Esposa de Ulisses: “Eu quero que você volte. Todos os teus filhos ficam chorando por sua causa em casa. Enquanto você está longe, tudo é silêncio, calmo”

Pajé 4: “Agora que eu estou aqui. Eu só vim dar uma volta. Vocês têm que fazer de tudo”

Mãe: “A gente vai fazer”

(...)

Pajé 4: “O meu colega que eu me perdi junto com ele já voltou para a casa dele. Ele já está com a mulher dele. Será que é verdade que a família dele chorou por ele?”

Mãe: “A gente já viu, porque a gente estava lá quando ele chegou”

Pajé 4: “Façam de tudo, paguem para eu poder voltar”

(...)

Esposa de Ulisses: “Eu já tinha te visto, só que eu me assustei. Eu quero que você me perdoe. Só Deus sabe a dor que eu estou sentindo. Eu nunca consegui dormir por não ver mais você. Queria tanto que você voltasse para casa”

Pajé 4: “Façam de tudo para que eu volte, porque eu quero muito voltar também”

Pajé assistente: “A gente vai deixar na mão de Deus para que você volte para a gente”

Pajé 4: “Agora eu vim aqui só para dar uma volta. Mas porque que vocês não estão me vendo?”

Pajé 4: “Cada um de vocês tem que fazer de tudo”

Ouvintes: “A gente vai fazer de tudo”

Pajé 4: “Eu estou indo embora”

Esposa de Ulisses: “Volta para mim”

Pajé 5: “Boa noite, meus companheiros. Já falaram com o pai de vocês?”

Ouvintes: “Já”

Esposa de Ulisses: “A gente está pedindo a você que ele volte para a gente”

(...)

Pajé 5: “Deixa eu cantar um pouquinho”

Pajé 5: “Eu sou uma pessoa que é velha”

Pajé assistente: “Quem é você?”

Pajé 5: “Advinha quem eu sou? Deixa eu cantar um pouquinho e você se lembrará de quem eu sou”

Pajé 5: “Aquela pessoa que vocês querem tanto está se aproximando um pouco”

Esposa de Ulisses: “Queremos que você traga ele mais para perto”

Pajé assistente: “Queremos muito que ele volte. Tente arrastá-lo mais para perto”

A narrativa por si só é impressionante. A sessão de pajelança como um todo foi uma das coisas mais impressionante que presenciei em campo. Para finalizar a descrição e análise dessa sessão xamânica, podemos elaborar a hipótese de um paralelismo entre a perda da sanidade do homem desaparecido e sua condição de pessoa perdida numa floresta. Retomamos, assim, a própria noção ticuna de na’ane - noção ao mesmo tempo espacial (cosmos, mundo, terra, roça) e que também faz referência ao tempo - que possui os mesmos atributos da pessoa: força (pora), os duplos (ma’ũ e ã’ẽ) e sabedoria (kua)25. O cosmos (na’ane) ticuna é, diz Goulard, “corporificado” (2009, p. 323) - ver também Matarezio Filho (2017) -, podemos dizer que se trata de uma pessoa magnificada ou numa escala ampliada. No lugar onde ele está, vivendo com os “bichos” (ngo’o), o homem enfrenta barreiras - “Tem muitas barreiras na minha frente, por isso eu não consigo voltar” - que não o permitem voltar para casa, por mais que ele o deseje. Uma possível interpretação da narrativa poderia indicar uma projeção da confusão dos pensamentos (ã’ẽ) de Ulisses - e sua “barreiras” mentais que o impedem de retomar sua lucidez - num plano espacial, em que “barreiras” físicas e a sedução dos “bichos” o impedem de retornar para casa.

A execução do feiticeiro

A história do pajé Augusto Basílio é emblemática da força de cura e destruição que tem o xamanismo entre os Ticuna. Como mencionei acima, qualquer doença para esse povo é causada pela intenção de alguém, foi mandada em forma de feitiço. Sempre que eu comentava sobre alguém doente, me falavam sobre alguma coisa que a pessoa fez e que teria desencadeado um processo de vingança.

Segundo me contaram, em Nazaré morreram cerca de oito pessoas enfeitiçadas por Augusto, um pajé antigo morador da comunidade. Ondino exagera dizendo que o pajé Augusto matou mais de 50 pessoas enfeitiçadas. O aparecimento de onça na comunidade é sempre relacionado com feitiçaria. Contaram-me que, enquanto Augusto ainda morava em Nazaré, sempre apareciam onças de noite, eram “bichos” (ngo’o) dele. As crianças viviam doentes, principalmente com desinteira. Quando começaram as mortes, foi a gota d’água.

Conforme seu poder foi aumentando, a fama de feiticeiro de Augusto cresceu também. À medida que o cerco se fechava contra o feiticeiro, ele começou a acusar seu cunhado (WH) de feitiçaria e Augusto era acusado de ter feito um filho em sua neta. Disseram que a morte de três dos filhos de Augusto foi “feitiço que mandaram de volta para ele”. Nessa época, toda doença grave que aparecia na comunidade era atribuída à agência xamânica de Augusto.

Notícias como a da execução de Augusto corriam não somente todo o Alto Solimões, mas também a imprensa nacional, juntamente com as repercussões da criação e das ações da PIASOL - a Polícia Indígena do Alto Solimões, criada pelos Ticuna (Mendes, 2014). Notícias de jornal sobre a atuação da PIASOL registram também a carbonização do pajé como a forma de execução dos feiticeiros. Seria essa morte relatada no jornal a mesma que ocorreu com o pajé Augusto? Ao menos a forma como me foi relatada, e que descreverei abaixo, é muito semelhante: “Uma das mortes investigadas aconteceu em São Paulo de Olivença (AM). Em setembro, o corpo de um índio foi achado carbonizado e com as pernas acorrentadas. O motivo seria o envolvimento com feitiçaria” (Brasil, 2009).

Relataram-me que, quando estava vivo, Augusto abriu a porta da montanha onde está localizada a comunidade de Tchowariãpü26 durante um sonho dele. Ao fazer isso, ele libertou os Buri-Buri (Yare)27 que lá moravam. Eles saíram fazendo uma grande zoada (aũgatanü). A voz dos Buri-Buri (Yare) é uma zoada forte, parece trovoada, barulho de tempestade. Os moradores da comunidade se assustaram, pegaram os barcos e foram para o meio do rio, fugindo. O irmão de Augusto, Manuel Maduquinha Basílio, que também é pajé, viu no sonho (nanegü) dele que tinham aberto a montanha e, então, ele a fechou no próprio sonho. Desse modo ele evitou a destruição da comunidade de Tchowariãpü.

No final das contas, quem resolveu a situação em Nazaré foi a PIASOL. O pajé Augusto foi morto e queimado, segundo me disseram em Nazaré, em 31 de novembro de 2010, pouco mais de um ano antes de meu primeiro trabalho de campo em Nazaré. Relataram-me que, no dia da morte do xamã, foram até a casa de Augusto dizendo que precisavam dele para fazer uma cura em Santa Rita do Weil. A princípio, o feiticeiro ficou meio desconfiado, mas acabou embarcando na canoa. Cacetaram-no e atearam-lhe fogo. Depois que queimaram o corpo de Augusto, jogaram-no no porão da embarcação e o corpo pegou fogo espontaneamente de novo. Uma outra versão diz que cacetaram-no e depois queimaram, mas apenas metade do corpo incendiou, da cintura para cima não queimou.

Esse não é o primeiro relato de execução de um feiticeiro entre os Ticuna. Nimuendaju (1952) comenta que nada foi mais instrutivo para ele sobre as “crenças mágicas” dos Ticuna do que o relato da execução de um feiticeiro. Durante uma breve incursão em terras ticuna, em 1929, Nimuendaju ouvira falar de dois ticunas de Belém do Solimões que haviam matado um feiticeiro “acusado de instigar a morte de várias crianças. Eles cortaram o corpo em pedaços com facões, jogando-os no igarapé. ” (1952, p. 106).

O etnógrafo alemão conta também a história de Isidoro, um homem que “gradualmente tornou-se o terror dos Tukuna” (1952, p. 106). Antes de sua fuga para o Peru, Isidoro fora preso diversas vezes, principalmente acusado de ter matado a cacetadas seu sogro e cunhados. Ao voltar do Peru - vimos que esse país é associado ao Waia, a “origem do pajé” -, com uma fama de feiticeiro ainda mais ampliada, o pajé não encontrava lugar para ficar, devido à suspeita que levantava. Quando estava bêbado, Isidoro se gabava dos conhecimentos de feitiçaria que havia adquirido no Peru. “A recusa de um cigarro era suficiente para fazê-lo ameaçar qualquer pessoa com morte por feitiçaria” (Nimuendaju, 1952, p. 106). Após sofrer ameaças de morte, o feiticeiro fugiu para o Rio Jacurapá. Contudo, sua má fama o acompanhou e não tardou para que as mortes e doenças do local fossem creditadas a ele, principalmente as da família de um índio chamado Hipólito.

No dia 5 de junho de 1942, conta Nimuendaju, Hipólito e mais dois parentes viram Isidoro e sua família descendo o Rio Solimões em direção ao Rio Jacurapá. Decidiram, então, que a hora da vingança havia chegado.

Eles o pegaram no meio do Solimões, o dominaram, amarraram os pés e as mãos, e jogam no rio. Golpearam a criança mais velha, cerca de três ou quatro anos de idade, com seus remos, também jogaram-na na água. O filho mais novo foi arrancado dos braços de sua mãe e também se afogou. Eles atacaram a mulher várias vezes e atiraram-na no rio também, mas Cristóvão a puxou para sua canoa e, assim, salvou sua vida. Os parentes de Hipólito tinham deliberadamente realizado o abate do feiticeiro sem derramamento de sangue, para o derramamento de sangue seria muito complicado o rito de purificação subsequente. (Nimuendaju, 1952: 107).

Em seguida, dois dos três assassinos foram pedir a um pajé que os purificassem.

Então o xamã “ordenou-lhes que se agachassem diante dele, e, passando suas mãos sobre eles a partir dos calcanhares até o alto da cabeça, tirou-lhes a alma do morto, juntou-a na frente deles, e arremessou-a, dizendo: “Vá embora! Fizemos isso para você porque você era o inimigo de todos! ”. Então ele deu a cada homem três pimentas para comer e finalmente pintou com jenipapo, que ele já tinha trazido em cima de algumas folhas. Ele os levou para casa, deu-lhes comida, e se despediu deles. (Nimuendaju, 1952, p. 108).

Nos relatos que ouvi sobre a morte do pajé Augusto não comentaram sobre esses tratamentos dos assassinos. Atualmente, esse tipo de caso é resolvido pela PIASOL, ou seja, por pessoas que não são da comunidade. Portanto, não conheci os matadores do feiticeiro de Nazaré. Entretanto, foram diversas as vezes que presenciei esses movimentos, descritos por Nimuendaju (1952), ou seja, do xamã purificando o corpo dos assassinos, mas em outros contextos. Vi os pajés de Nazaré realizando esse juntar das mãos, passando-as sobre o corpo do enfermo, para retirar doenças, feitiços, como descrevi, acima. O jenipapo também me foi referido muitas vezes como um poderoso antídoto contra os “males” (puya) do corpo.

Deixo aqui registrada apenas uma suspeita. Uma única vez presenciei um ticuna totalmente pintado de jenipapo. Perguntei a ele diversas vezes porque estava todo enegrecido daquele jeito. Ele sempre me dizia que era porque fazia bem para a pele dele, algo que não me satisfez de forma alguma. Nimuendaju (1952) menciona que os assassinos do pajé estavam “pintados de preto da cabeça aos pés”, assim como o ticuna suspeito que eu inqueri.

Material suplementar
Referências
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BUENO, Maria Isabel Cardozo da Silva. Algumas reflexões sobre feitiçaria entre os Ticuna (Alto Solimões-AM). In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 36. 2012, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPOCS, 2012.
BUENO, Maria Isabel Cardozo da Silva. Sobre encantamento e terror: imagens das relações entre humanos e sobrenaturais numa comunidade Ticuna (Alto Solimões, Amazonas, Brasil). 2014. 252 f. Tese (Doutorado em Antropologia)- Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
FIRMINO, Lucinda S.; GRUBER, Jussara G. Ore i nucümaügüü: histórias antigas. Benjamin Constant: Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngues - OGPTB, 2010. (Coleção Eware). v. 2.
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MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. 2015. 534 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015a. Disponível em: <https://goo.gl/zO0NI8>. Acesso em: 15 fev. 2019.
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SICK, Helmut. Ornitologia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1997.
Notas
Notas
1 Todas as traduções de textos que constam na bibliografia em língua estrangeira são minhas.
2 Como estão localizados no alto rio Solimões (AM), na tríplice fronteira, há um contingente desse povo de língua isolada ainda no Peru e na Colômbia. Somando as populações dos três países o número de indivíduos passa de 50 mil.
3 Consultado no site do Instituto Socioambiental no dia 08 de março de 2019. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ticuna>.
4 P. ex., todos os Ticuna se entende em uma mesma língua, apesar de existirem variações dialetais (Angarita, 2005).
5 Quando usam o português local, os Ticuna chamam seus xamãs de “pajés”. Utilizo as duas palavras aqui com o mesmo sentido.
6 Dois outros termos que me foram dados para designar o “feiticeiro” foram ngouwai ou maguwai. Mas yu’ücü pode designar o “feiticeiro” também.
7 Hilda não é moradora da região do igarapé Camatiã. Atualmente ela reside e leciona na comunidade de São Domingos II.
8 Trompete tocado na Festa da Moça Nova (ver Matarezio Filho, 2014 [(filme]), 2015a, 2015b).
9 Nimuendaju comenta o pouco uso de sal na dieta do noviço e menciona ainda a abstenção de pimenta, doces, bebidas alcoólicas, exposição ao sol e abstinência sexual. Alguns peixes ele está autorizado a comer: “cachorra, traíra, sardinha, curimatã, caraüacu vermelho, e jiju, mas não peixes sem escamas” (1952, p. 101).
10 A recente etnografia de Bueno (2014) também indica o Livro de São Cipriano como um importante artifício dos feiticeiros, principalmente na comunidade de Campo Alegre. Só muito recentemente comecei a ouvir rumores do uso desse livro por parte dos acusados de feitiçaria na região do Camatiã.
11 Outros dizem que o próprio tchũta é um tipo de ngo’o também.
12 Outro pássaro que me foi indicado com o nome de ti’titchicü foi o Tico-tico-do-campo (Ammodramus humeralis).
13 Chamado regionalmente de quandu (nhaῖ - Coendou prehensilis).
14 Trata-se muito provavelmente de uma corruptela da palavra “alencó”, que também é derivada de alencorne, um nome comum para designar esse pássaro na região do médio Rio Solimões (Sick, 1997, p. 242).
15 Bueno conta sobre uma expedição de ticunas na floresta, o líder da viajem “via diversos bichos passando, inclusive uma onça (ai), mas ela não faria mal para as pessoas do grupo, a não ser que um pajé (yu’ücü) colocasse uma alma nela” (2014, p. 56).
16 “Ngo’o é bicho que come gente”, me disse um ticuna certa vez. Nimuendaju (1952) traduz a mesma palavra como “demônio”, o que me foi indicado também algumas vezes como uma possível tradução para o termo.
71 Descrevo um pouco dessa sessão xamânica de Aricildo para o resgate de Ulisses mais adiante.
18 Para um relato sobre as disputas entre evangélicos, católicos e pajés ticuna, principalmente com relação aos tratamentos de saúde, ver Goulard (2012, p. 35). Bueno (2012, p. 14) comenta também sobre a oposição entre a pajelança e os evangélicos na resolução de uma “onda” de suicídios que acometia Campo Alegre.
19 A palavra para espírito é sempre referida usando-se o possessivo. Então, ã’ẽ é sempre referido como naã’ẽ, “espírito dele, de alguém”.
20 Goulard (2009) define ma’ũ como “princípio corporal” e ã’ẽ como “princípio vital”.
21 Não pude verificar isso em campo, mas tenho minhas dúvidas se os auxiliares dos pajés são os espíritos das árvores ma’ũ ou os ã’ẽ. Goulard se refere aos auxiliares como yu’ü (2009: 82), que está na raiz do termo usado para se referir ao xamã (yu’ücü) e que traduzi acima como “pajelança”.
22 A tradução das falas foi feita junto com a professora ticuna Luscita Bibiano Ezequiel.
23 Pi é a expressão usada pelo pajé para saudar os presentes, um jeito carinhoso de chamar a pessoa. Usa-se mais com as crianças.
24 Titcho pawe’e = “eu vou abrir” [tcho] “meu bico” [pawe’e]”. Assim o pajé diz que vai cantar, Titcho pawe’e, como faz o passarinho.
25Naane es también portador de pora, maũ, kua y naẽ” (Angarita, 2013, p. 11).
26 A comunidade é homônima à montanha, como atesta a terminação (montanha) do nome. É a primeira comunidade ticuna do igarapé Camatiã.
27 Um tipo de “bicho” (ngo’o).
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