Apresentação
Performances, imaterialidades e a produção cultural do real
Quando falamos de imaterialidades, destacamos a ação humana com suas múltiplas possibilidades de expressão, sua dimensão simbólica e criativa de produção do real. Quando falamos de performance, enfatizamos a ação humana como exercício de atuação. Tais eixos se complementam e, por vezes, se imbricam nas diferentes vertentes da tradição antropológica (ver Cavalcanti e Gonçalves, 2017), nos estudos brasileiros sobre processos de patrimonialização (ver Gonçalves e Tamaso, 2018), nos diálogos sobre antropologia e performance (ver Raposo, 2013) e também neste dossiê.
O dossiê reúne artigos que abordam temas relacionados a um conjunto diversificado e heterogêneo de formas expressivas da cultura, especialmente de modo a permitir pensar criticamente a produção cultural do real. Como viés mais presente nos artigos, destaca-se o aspecto patrimonial na produção do real. Ao abordarem a dimensão patrimonial de formas e expressões culturais nos contextos das políticas públicas de preservação cultural, os autores destacam o viés problematizado dos termos oficiais de classificação e de preservação em contraponto com a amplitude da construção de memórias coletivas e individuais, e também de narrativas e ações que não são alcançados por tais enquadramentos. Tais aspectos foram explorados a partir de contextos etnográficos distintos, como veremos nos artigos de Geslline Braga sobre os clubes sociais negros no estado do Paraná no Brasil, de Rodrigo Lacerda sobre os limites tanto do cinema, quanto das políticas de patrimônios em contextos indígenas e de Ema Pires, sobre processo de patrimonialização de Malaca, na Malásia Ocidental. Os autores Jacqueline Estévez Lizarazo, Oscar Eduardo Rueda Pimiento e Giovanni Bohórquez-Pereira nos apresentam os dilemas da patrimonializacão da tradição oral dos contos e histórias na região de Socorro na Colômbia.
Problematizar as performances e memórias acionadas para a preservação dos lugares de sociabilidades negras do século passado é objetivo do artigo de Geslline Braga intitulado “'Cada um no seu quadrado': os Clubes Sociais Negros e a imaterialidade do lugar na produção cultural do real". Ao pesquisar clubes sociais negros no estado do Paraná, a autora aponta para a ambivalência da categoria "lugar" no caso em foco. Conforme definida e acionada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, este enquadramento de "lugar" tende a desconsiderar aspectos que fogem à dimensão de suas materialidades. Em paralelo, a autora aborda as performances negras que envolveram tanto a resistência ao preconceito, quanto a criação dos lugares de sociabilidade negras - os clubes, que assim como vários outros lugares de sociabilidades de negros, têm sido desconsiderados pelas políticas de memórias e pelas narrativas patrimoniais.
A noção de performance, por sua vez, permite a confluência da produção teórica oriunda de diversos campos de conhecimento (como a linguística, a antropologia, a literatura, a etnomusicologia) com o multifacetado campo artístico. Com foco na dimensão sociológica da música, Rubens Benevides aborda no artigo "As cenas independentes e a música ao vivo: elementos da nova configuração da música na atualidade", a produção e a recepção musical abarcando uma reflexão sócio histórica de meados dos anos 1980 até a década seguinte, momento de domínio dessa indústria, e sua crise, que vai desde meados dos anos 1990 até meados dos anos 2010. O autor argumenta que o desmantelamento da indústria fonográfica, o barateamento e a crescente acessibilidade dos recursos de produção e edição de fonogramas, a difusão por players digitais, de forma ambivalente, estimularam o crescimento das audições musicais ao vivo na atualidade. O autor destaca o lugar da "cena independente" frente à reformulação da indústria fonográfica, onde a música "ao vivo" é um dos seus elementos característicos, fortalecido pelo advento da audição digital. Como defendido pelo autor, os espaços da música ao vivo constituem lócus apropriados para as formas de interação em coletividades, onde vínculos sociais podem ser estabelecidos a partir da expressão presencial e coletiva. O autor constata que audição musical ao vivo se espraiou, não apenas nas cenas musicais locais (como o contexto goiano, mais detidamente investigado pelo autor), e seus diferentes gêneros e estilos, mas, também no plano internacional, onde a indústria de concertos e turnês é expressiva.
Se o aspecto musicológico é importante eixo para se refletir sobre a ação humana; nas artes, na segunda metade do século XX, a performance veio valorizar a simultaneidade de formas expressivas e a vivência subjetiva do tempo como o desenrolar de uma experiência. Tem lugar a obra tornada viva por meio do corpo presente do artista, ou mesmo a obra que é o próprio corpo do artista, e deve ser vivida junto com o público. Destacam-se o valor da presença mútua e das formas não verbais ou discursivas na apreensão do sentido da experiência e a busca de uma relação mais direta com a vida social.
Ao explorar a dimensão da ação, Ricardo Nascimento em "Dialéticas da Ginga: Performances dos Corpos Subalternos em Movimento" atualiza o conceito nativo de ginga, oriundo da prática corporal da capoeira, considerando a situação social do assassinato do Mestre de capoeira Moa do Katendê, em Salvador, em outubro de 2018, período em que acontecia o período de campanha eleitoral para presidente do país. O autor demonstra que a "ginga" se constitui como um dispositivo estético e simbólico, que faz parte do repertório performático dos praticantes de capoeira, e os compreende enquanto artefato de navegação e ação social e política dos capoeiristas.
Em “Os banquetes do Yaokwa: potencialidades e limites do cinema e do patrimônio entre os Enawenê-nawê”, Rodrigo Lacerda traz uma análise de dois momentos fílmicos relativos ao ritual Yaokwa, ambos realizados pelo projeto Vídeo nas Aldeias (VNA): “Yaõkwá, o banquete dos espíritos”, realizado em 1989 por Virginia Valadão, como meio de reflexão interna sobre a relação com sociedade colonial e o segundo “Yaõkwá, um Patrimônio Ameaçado”. A partir da análise dos dois filmes, do contexto de sua produção, e de depoimentos da equipe e de antropólogos, o autor reflete sobre os limites tanto do cinema, quanto das políticas de patrimônios em contextos indígenas. Se o artigo sobre lugares de sociabilidades negros apresenta a dificuldade de adequação semântica e prática da categoria “lugar”, conforme a definição criada pelo IPHAN, no contexto dos clubes de grupos negros (já demolidos ou em ruínas), algo similar aparece no artigo de Rodrigo Lacerda sobre o processo de patrimonialização do ritual Yaokwa do povo Enawenê-nawê, que embora seja classificado como uma “celebração” pelo IPHAN, é compreendido por alguns antropólogos antes como sendo “um trabalho econômico e de diplomacia social, política e cosmológica” (com os espíritos Yakairiti) do que enquanto "bem cultural" ou “celebração”.
Acreditamos que os limites apontados por Lacerda, no caso em questão, podem ser estendidos para diversos outros contextos patrimoniais, como o das chamadas “culturas populares e tradicionais” e o dos afrodescendentes, por exemplo. Um dos desafios dos processos de patrimonialização ainda reside em compatibilizar os patrimônios percebidos como “recursos” e acionados na lógica da “cultura com aspas” (Carneiro da Cunha, 2009), com os patrimônios vividos, sentidos e performatizados pelas pessoas nas suas vidas cotidianas e rituais.
O artigo “Emporium & Warisan: re-inscrevendo o patrimônio colonial”, de Ema Pires, debruça-se sobre o processo de patrimonialização de Malaca, na Malásia Ocidental, particularmente sobre as noções valoradas e alternativas de patrimônio, acionadas diferentemente pelos vários grupos que compõem o campo do patrimônio e/ou vivem a experiência da cidade: residentes, ativistas patrimoniais, políticos, burocratas de agências internacionais, especialistas, dentre outros. O trabalho de arqueologia entre a antiga e a nova cidade leva a autora a definir como “contra-nostalgia” as políticas públicas relativas ao patrimônio, especificamente ao passado colonial.
Ao analisar discursos, falas, documentos, diário de campo e percursos pela cidade, a autora desvela as noções alternativas do warisan, palavra que designa patrimônio, ao mesmo tempo em que propõe pensar a cidade de Malaca contemporânea como um emporium de outra natureza. Ao revelar as visões alternativas da cidade, que ligam o passado à atualidade, a autora relativiza as visões de mundo e suas respectivas temporalidades e espacialidades, bem como a noção eurocêntrica de patrimônio, muito embora, a autora destaque o fato de que algumas vozes e escolhas sejam “silenciadas por atracções mais fortes e distrativas”. Às performances patrimoniais e objetificações culturais, lançadas mão pela indústria do turismo e pelo discurso da conservação patrimonial, a autora contrapõe as percepções dos moradores, observando “o debate cultural na prática social” (Herzfeld, 1998).
Por fim, no artigo "Mitos, cuentos de espantos y leyendas: tradición oral en el municipio del Socorro, Colombia" a oralidade ganha destaque, com foco na dimensão temporal e sua dinâmica de permanente atualização. Os autores Jacqueline Estévez Lizarazo, Oscar Eduardo Rueda Pimiento e Giovanni Bohórquez-Pereira a partir de fontes documentais, normativas e fontes orais apresentam os desafios encontrados para o reconhecimento da tradição oral dos contos e histórias na região de Socorro na Colômbia, dentro do enquadramento de patrimônio cultural vivo e dinâmico. Aqui um importante debate entre história e memória ganha centralidade. Quando não há um controle rígido devido à falta de registros escritos, as narrativas orais tendem a ser reelaboradas de acordo com necessidades do presente. As categorias do entendimento conectadas com as dimensões de tempo e espaço ganham especial importância, uma vez que as políticas de preservação do patrimônio tendem a valorizar uma ideia de passado e a fixá-lo, enquanto as tradições orais são mais fluidas. Como argumentado pelos autores, no caso do município de Socorro, as lendas percorrem numerosos caminhos, históricos, geográficos, culturais e sobrenaturais, entre outros. Essa dinâmica oral então se atualiza pela sua correlação com os lugares, caminhos e mundos criados. Algo que convida a questionar a dicotomia entre material e imaterial presente na lógica oficial dos processos de gestão do patrimônio cultural e abre possibilidades para um turismo cultural.
O dossiê buscou refletir sobre como a apresentação e exibição de formas expressivas da cultura se dinamizam por meio de um quadro alargado de contextos etnográficos. Tais dinâmicas específicas possibilitam ao leitor compreender a constituição de tramas sociais marcadas pela diversidade cultural e histórica, por desigualdades sociais e econômicas, por dinâmicas de interseccionalidade das/os “fazedores de patrimônio” e por legados e tradições, e permitem pensar criticamente os limites e as dimensões imateriais da cultura e da produção cultural do real.
Entre patrimônio(s) e performance(s), entre dimensões criativas ou entre expressões culturais de natureza performática o leitor está convidado a conhecer dinâmicas contemporâneas de classificação desses mesmos espólios imateriais.
Desejamos uma boa leitura!