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“Cada um no seu quadrado”: os Clubes Sociais Negros e a imaterialidade do lugar na produção cultural do real
“To each their own”: the Black Social Clubs and the immateriality of the place in the cultural production of the real
“Cada uno en su cuadrado”: los Clubes Sociales Negros y la inmaterialidad del lugar en la producción cultural del real
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 22, núm. 2, pp. 6-24, 2019
UFG - Universidade Federal de Goiás

Artigos


Recepção: 05 Novembro 2018

Aprovação: 12 Março 2019

DOI: https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.58394

Resumo: Os Clubes Sociais Negros são agremiações surgidas no pós-abolição no Brasil, prolíferas especialmente na Região Sul do Brasil. Em 2009, foi feito o pedido de registro dos Clubes Sociais Negros como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil para o Iphan, na categoria “Lugar”. No Paraná foram mapeados seis clubes, cuja permanência propõe leituras sobre a escravidão e pós-abolição, segregação, racismo e invisibilidade dos negros. A resistência dos clubes e suas configurações atuais desafiam a noção de “lugar” como categoria do patrimônio imaterial, ampliam e dissolvem conceitos, produzindo o real por meio da memória, significações e afetos. As memórias têm lugar, mapas e imagens presentes na oralidade. O lugar desmaterializado, que não existe mais ou que não é mais o que foi, existe para quem o animou. Demonstrando que quando o lugar desaparece as fotografias ocupam suas funções simbólicas como representação e produção cultural do real. A existência dos clubes propõe outra produção cultural do real, desafia a construção social da história local, na qual os negros foram invisibilizados e branqueados.

Palavras-chave: Clubes Sociais Negros, lugar, patrimônio imaterial.

Abstract: The Black Social Clubs are associations that have emerged in post-abolition in Brazil, proliferating especially in the Southern Region of Brazil. In 2009, the request for registration of the Black Social Clubs as Intangible Cultural Heritage of Brazil, for Iphan, in the “Place” category was made. In the Parana were mapped six clubs, the permanence of these propose readings on the slavery and post-abolition, segregation, racism and invisibility of the blacks. The resistance of the clubs and their present configurations defy the notion of “place” as a category of intangible heritage, expand and dissolve it, produce the real through memory, significations and affections. The memories take place, maps and images present in the orality. The dematerialized place, which no longer exists, or is no longer what it was, exists for those who animated it. Demonstrating how when the place disappears the photographs occupy their symbolic functions, representation and production of the real. The existence of the clubs propose another production of the real, challenges the social construction of local history, in which blacks were invisibilized and to bleach.

Keywords: Black Social Clubs, place, intangible heritage.

Resumen: Los Clubes Sociales Negros son agregaciones surgidas en la post-abolición en Brasil, proliferas especialmente en la Región Sur de Brasil. En 2009 se realizó el pedido de registro de los Clubes Sociales Negros como Patrimonio Cultural Inmaterial de Brasil, para el Iphan, en la categoría “Lugar”. En el Paraná fueron asignados seis clubes, la permanencia de éstos propone lecturas sobre la esclavitud y post-abolición, segregación, racismo e invisibilidad de los negros. La resistencia de los clubes y sus configuraciones actuales desafían la noción de “lugar” como categoría del patrimonio inmaterial, la amplían y disuelven, producen lo real por medio de la memoria, significaciones y afectos. Las memorias tienen lugar, mapas e imágenes presentes en la oralidad. El lugar desmaterializado, que ya no existe, o que ya no es lo que ha sido, existe para quien lo animó. Demostrando cómo cuando el lugar desaparece las fotografías ocupan sus funciones simbólicas, representación y producción de lo real. La existencia de los clubes propone otra producción de lo real, desafía la construcción social de la historia local, en las que negros fueron invisibilizados y blanqueados.

Palabras clave: Clubes Sociales Negros, lugar, patrimonio inmaterial.

Os quadrados da segregação

Quando realizei o mapeamento dos Clubes Sociais Negros para o Iphan/PR, em 2014, Sr. Tuto ao descrever como era a sociedade de Guarapuava, região sul do Paraná, no período em que foi presidente (entre os anos 70 e 80) do Clube Rio Branco, exclamou: “Naquela época era cada um no seu quadrado”, como desconhecia a música que veio a ser sucesso nos anos 2000, não fiz menção a ela, e sim refleti sobre as questões fenomenológicas que envolvem tal expressão. E, hoje, desenvolvo pesquisa sobre tais questões no estágio pós-doutoral no Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná.

Gaston Bachelard, em A poética do espaço (2008), conclui suas reflexões sobre o espaço com a “Fenomenologia do Redondo” praticamente estabelecendo uma dicotomia em que a forma circular é vista como natural e as angulares como culturais. Tim Ingold, em Lines (2007, p. 155), afirma: “A hegemonia da linha reta é um fenômeno da modernidade”. Dessa maneira, os “quadrados” de Tuto, assim como o lugar chamado de “quadrado” são analogias aos clubes, formas não naturais para segregar, para instituir uma separação que não estava na retidão das Leis e sim no cotidiano. As paredes exibem o “racismo à brasileira” (Edward Telles, 2003) desenhado no pós-abolição, porque os negros não adentravam os “quadrados” dos brancos. “Quadrado” também foi o nome do espaço, que nos anos 30, precedeu a Sociedade Princesa Isabel e Associação Recreativa e Operária de Londrina (AROL), fundadas nos anos 40 e 50 respectivamente.

Moutinho (2004), ao pesquisar sobre relacionamentos inter-raciais na África do Sul e no Brasil, afirma que no Brasil a ausência de leis segregacionistas constituiu uma forma de racismo naturalizada, diferente de outros países nos quais as leis impediram a convivência e criaram espaços de segregação. A ausência de lugares demarcados para negros e brancos criou uma falsa ideia de democracia racial e delineou balizas intangíveis, porém exercidas e sentidas. Com isto, a miscigenação pouco se realizou - apesar de ser considerada como um projeto pelos higienistas do início do século XX para o branqueamento da população brasileira - por questão de cor e de classe, principalmente nas cidades pequenas ou interioranas, nos mesmos territórios onde a mão de obra negra foi mais necessária e a escravidão prolongou-se.

De acordo com Hilton Costa (2011), as ideias de Nina Rodrigues e Sílvio Romero entre os séculos XIX e XX contribuíram para a construção da “imagem do sul dos imigrantes e na invisibilização dos não-brancos” (2011, p. 5), bem como a aceitação das teorias raciais pelas elites do país. Para esses intelectuais, os valores europeus promoveriam a miscigenação e a mestiçagem, com a inserção de diferentes práticas culturais que promoveriam a civilidade, o desenvolvimento e a purificação da raça:

Em suma, do debate entre Raymundo Nina Rodrigues e Sílvio Romero acerca da imigração para o sul do Brasil é interessante porque a região é tratada como um verdadeiro vazio, todas as populações pré-imigração são obliteradas. Procurou-se indicar aqui que ao discutirem o processo de imigração para o Brasil, especialmente para o sul do Brasil estes autores sempre a pensaram em contraponto a população pré-existente, apesar de não nominar em vários momentos esta mesma população. A população negra no sul do país é dada como, praticamente, inexistente ou indigna de menção. Quando a menção aparece é para afirmar que por mais que a população negra tenha contribuído à civilização brasileira ela será sempre o marco de inferioridade desta mesma civilização (Costa, 2011, p. 15).

Costa destaca que por sua representatividade intelectual na época, Nina Rodrigues e Sílvio Romero ajudaram a edificar a imagem do sul branco e obliterar as populações dos estados do Sul, contribuindo para discursos oficiais de branqueamento em diferentes cidades, entre elas Curitiba, Joinville e Caxias do Sul.

No Paraná, há historiadores que afirmaram a existência apenas de uma “escravidão branda”, o que fez a presença dos negros ser invisibilizada na história oficial. De acordo com Joseli Maria Nunes Mendonça, o “Paranismo” foi responsável “por dar contornos mais nítidos a imagem do sul europeizado” (2015, p. 6). O movimento intelectual e artístico pensava a história do Paraná a partir dos imigrantes, o que o diferenciava dos demais a partir dessa presença, intelectuais como Romário Martins e David Carneiro construíram discursos entorno de tais ideias. Nos anos 50, Wilson Martins publicou o livro Um Brasil diferente, no qual estabelece relações com Gilberto Freyre e a noção de aculturação, sugerindo que no Paraná não existiriam as mesmas formas de aproximação inter-racial como ocorreu no restante do país:

No Paraná interagiram indivíduos de origem europeia: poloneses, italianos, austríacos, alemães, russos, ucranianos. Assim, para Martins, o elemento distintivo do processo histórico do qual resultara a formação social paranaense não era a ausência de assimilação de grupos étnicos entre si, mas, sim, a especificidade desta assimilação, provocada pela imigração (Mendonça, 2015, p. 7).

Mendonça também comenta que mesmo na Universidade Federal do Paraná, os estudos sobre a identidade, a partir dos 1960, valorizaram também a presença dos italianos, poloneses e ucranianos e que isso se refletiu na construção dos espaços públicos de Curitiba que ostentam monumentos às imigrações europeias. Com isto, a existência de um Clube Social Negro com 130 anos na capital, a Sociedade Operária e Beneficente Treze de Maio, e de outros no interior do estado, sugere uma outra imagem, outra realidade. A visibilização dos clubes pode contribuir com a desobliteração das populações negras nas regiões dos clubes.

Essa concepção e a presença de imigrantes europeus podem explicar a proliferação dos Clubes Negros, especialmente no Sul1 do Brasil. Consolidando em “quadrados” uma segregação mais acentuada, o prolongamento da escravidão e situações análogas a ela até o fim do Século XX no estado. No interior do Paraná, há registros de trabalho em troca de casa e comida até o fim do século, em atividade rurais e industriais e, principalmente, no trabalho doméstico, bem como todas as formas de trabalho infantil ainda são mapeadas2.

De acordo com o Danilo França (2017), os modelos de segregação africanos e estadunidenses produziram um imaginário de segregação racial relacionada à separação de ambientes, o que nunca aconteceu oficialmente no Brasil, também menciona que no Brasil a noção de segregação está condicionada à classe social. França cita Michael White (1983) para mensurar as diferenças entre segregação geográfica e sociológica, evidenciando que, mesmo relacionadas, a segregação sociológica é a ausência da interação entre grupos e a segregação geográfica é a desigualdade dos grupos determinada pelo espaço.

Em “cada um no seu quadrado” a existência e permanência dos clubes são traços de segregação geográfica e sociológica. As bases fenomenológicas permitem tais analogias, bem como edificam as reflexões sobre o conceito de lugar, assim como da “geografia radical” de Milton Santos, pois os CSNs são lugares de trabalhadores segregados também. Os “quadrados” só foram postos em movimento com a redemocratização do país e com as novas proposições constitucionais de 88.

Dos quadrados legais

A Constituição Federal do Brasil de 1988, conhecida como “constituição cidadã”, determina no artigo 215, a proteção ao Patrimônio Cultural do Brasil: “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (§1º, Artigo 215, Constituição Federal do Brasil de 1988) e ainda define:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (grifo meu). (Artigo 216, Constituição Federal do Brasil de 1988).

O Programa Nacional de Patrimônio Imaterial do Brasil (PNPI) foi instituído pelo Decreto N. 3551/2000, de acordo com o Artigo 8º: “visando à implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio”. O Artigo 1º institui o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro”, o parágrafo único determina que o registro seja feito nos livros dos “Saberes, Celebrações, Formas de Expressão e Lugares”, o item 4 especifica a categoria de lugar: “IV Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas”.

Como prevê o decreto, em 2002 iniciaram-se os registros e até julho de 2018, segundo o Portal do Iphan3 - Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, autarquia do governo federal responsável pela patrimonialização e salvaguarda dos bens - foram registrados 41 bens em todo país. Desses, apenas três foram registrados na categoria de lugar: Cachoeira de Iauaretê - Lugar Sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri, (8º bem registrado), 2006; Feira de Caruaru, (9º bem registrado), 2006; Tava, Lugar de Referência para o Povo Guarani, (32º bem registrado), 2014; sendo o livro “Lugares” com a menor incidência de registro. E dentre os bens inventariados ou em processo de registro pelo Iphan, estão apenas o Mapeamento das Casas de Religião de Matriz Africana na Grande Florianópolis e o Mapeamento dos Clubes Sociais Negros (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Minas Gerais).

De acordo com o Iphan, a inserção do livro dos “Lugares” motivou-se pelo pedido de Tombamento, como patrimônio material, do Terreiro Casa Branca em Salvador. Pois, não se enquadrava nas especificações do Decreto n° 351/37 que criou o serviço de patrimônio no Brasil e condicionava o tombamento aos imóveis de relevância históricas ou a fatos históricos. Outra dificuldade era como estabelecer o acautelamento dos terreiros sem interferir em suas lógicas religiosas.

Em 2013, a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial instruiu recomendações para salvaguarda, animando as perspectivas, diretrizes e linhas do PNPI4: “Pesquisa, documentação e informação; Reconhecimento e valorização; Sustentabilidade; Promoção e Difusão; Capacitação e fortalecimento institucional”. Um dos principais objetivos do PNPI é a implementação da Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, tendo por princípio a participação social, descentralização e: “Articulação institucional e intersetorial para execução coordenada de políticas públicas e ações, envolvendo diferentes níveis de governo e sociedade civil, considerando a natureza transversal do patrimônio imaterial” (Iphan, 2016, p.85).

No item 1, do artigo 2, da Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2013, da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco ) - Patrimônio Cultural Imaterial é definido como:

[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural (grifo meu)” (UNESCO, 2013, p. 2).

Nessa definição os “lugares” são secundarizados, associados às práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, uma forma de destacar que, enquanto patrimônio imaterial, os lugares físicos devem estar ligados a certa intangibilidade. Mas, e se o lugar deixar de existir ou transformar-se?

Em 2009, a Portaria 127, cria a chancela de Paisagem Cultural: “Conforme a Portaria Iphan nº 127/2009, Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores” (Iphan, 2009, p.13). Ao empregar tal termo o Iphan pretende contemplar a relação com o ambiente e as dinâmicas culturais, limitando o entendimento da paisagem natural. Assim, para estruturas construídas, sem valor arquitetônico considerado significativo, reserva-se a opção do registro de “lugar” como patrimônio imaterial ou o instrumento de tombamento.

O lugar dos quadrados

Nos anos 2000, os Clubes Sociais Negros passaram por um processo de retomada, principalmente pelos jovens do movimento negro. Em Curitiba, tal processo começou de forma orgânica com o aluguel “da6” Treze de Maio para ensaios de maracatu. Esses grupos redescobriram as histórias do clube e passaram a organizar outras atividades ligadas à cultura negra, a frequentar e organizar os bailes de aniversário, inserindo também novas manifestações à festa tradicional. Não sem conflitos. Tais performances não eram as mesmas dos antigos sócios, acostumados a paramentar-se para festa com ternos e vestidos de festa feitos para ocasião. Eles estranharam os jovens entrando no clube com roupas de capoeira e maracatu, alguns também não gostaram de ver apresentações que remetiam às religiosidades afro-brasileiras.

O que é elucidativo para compreender os propósitos imediatos da criação do clube, 22 dias dois dias após a abolição, é sua atividade de inserção social e cultural dos libertos. Bem como a trajetória multifuncional do clube, que abrigou “batuques” no início do século XX (que foram proibidos nas ruas pelo primeiro Código de Posturas de Curitiba pós-abolição), teve caixas de assistência mútua e auxílio-funeral, mas ao longo dos anos realizou, principalmente, atividades festivas.

As novas ocupações dos clubes propiciaram uma reassociação dos mesmos, que outrora se chamaram de coirmãos em suas antigas atas de fundação. No mesmo ímpeto foram realizados encontros estaduais e nacionais de Clubes Sociais Negros.

Em 2009, foi encaminhado ao Iphan o pedido de registro, assinado por representantes dos clubes do sul e sudeste, elaborado pela historiadora Giane Vargas Escobar, dos Clubes Sociais Negros como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, na categoria “Lugar”. Em 2014, o Iphan realizou o mapeamento dos Clubes Sociais Negros do Brasil7 como etapa precedente à titulação. Na ocasião foram mapeados seis clubes no Paraná:

  1. - Sociedade Operária e Beneficente Treze de Maio, fundada em 06 de junho de 1888, em Curitiba;

  2. - Sociedade Recreativa e Literário Treze de Maio, em 13 de maio de 1889, em Ponta Grossa;

  3. - Clube Rio Branco, em 28 de setembro de 1913, em Guarapuava;

  4. - Clube Campos Gerais, 07 de setembro de 1921, em Castro;

  5. - Clube Estrela da Manhã, 04 de maio de 1934, em Tibagi;

  6. - Arol, 15 de novembro de 1951, em Londrina.

Os clubes fundados no século XIX tinham por objetivo a ajuda mútua e a intencionalidade de que a organização desses espaços pudesse suprir a carência de políticas públicas destinadas aos libertos, focando suas atividades no letramento e nas caixas de assistência. Enquanto, os fundados nas três primeiras décadas do Século XX, constituíam-se como lugares para suprir a exclusão, pois mesmo com a Abolição não era permitido aos negros entrar nos espaços de sociabilidade dos brancos. Já a Arol foi criada associada ao movimento operário, o salão que abrigava bailes aos sábados transformava-se em escola durante a semana.

Maria Olímpia, responsável pela recente revitalização do Clube Estrela da Manhã, diz que em Tibagi, região dos Campos Gerais, até os anos 80 os clubes dos negros e dos brancos eram separados. Separados por uma única casa, próximos à praça central da cidade. E, ainda assim, era apenas no Carnaval que os negros podiam adentrar os salões do “clube dos brancos” com a bateria e sua rainha. O “Estrela” originou-se de uma casa de madeira, onde realizavam festas, chamada Cai-cai. Os clubes separados por uma única casa são indício da segregação racial na cidade sem leis segregacionistas.

A situação de “permissividade” criada pelo Carnaval substituía o cotidiano da segregação numa cidade profundamente marcada pelo período escravocrata e promovia outra produção cultural da realidade. Devido à exploração do diamante em seus rios houve uma espécie de prolongamento da escravidão e de formas análogas ao trabalho escravo até a Constituição de 88 e a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As regiões ao oeste do Primeiro Planalto, ainda pouco pesquisadas, passaram por processos de “colonização” tardios, o que criou zonas de exploração do trabalho das populações tradicionais pautadas por repressão e violência. Trabalhadores domésticos não assalariados, com sua força de trabalho trocada por moradia e alimentação nunca foram completamente extintos. De acordo com dados de 2017, do Ministério Público do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho (OTI), o Paraná é o 11º estado do Brasil em formas de trabalho análogas à escravidão. O Museu Histórico de Tibagi guarda um rico acervo fotográfico sobre o período do garimpo e as questões raciais na cidade. Ainda que não problematizadas, essas fotografias também evidenciam elementos de distinção entre negros e brancos.

Nesse contexto, o Carnaval dava protagonismo aos negros e produzia uma outra realidade, com sociabilidade distinta do trabalho com os brancos. Todos os clubes em algum momento de suas trajetórias estiveram associados a baterias, blocos ou escolas de samba e as rainhas eram eleitas para a ocasião dos desfiles de carnaval. Especialmente, as cidades dos Campos Gerais e Guarapuava tiveram a consolidação de seus carnavais como festas populares representativas, como elementos de constituição de identidades locais com os CSNs. A ligação do carnaval com os clubes talvez explique a presença e relevância do carnaval nessas cidades. Como em Guarapuava com bateria “Já te aliso” e o “Bloco Vou Ali e Volto Já”, ambos nascidos no Rio Branco e com componentes integrantes até hoje e o Carnaval de Rua de Tibagi que é um Carnaval de “corso” com carros produzidos, considerado um dos melhores do estado e começou com os integrantes do Estrela da Manhã. Já o Carnaval de Castro tem forte expressão na rua, foi iniciado no clube Campos Gerais com o bloco “Bafo da Onça” e a escola de samba “Embaixadores do Ritmo”. Em Ponta Grossa o carnaval “do 13” é o mais famoso dos bailes por reunir os blocos. “O 13” de Curitiba também esteve associado a escolas de samba, com sócios participando das escolas ou com os seus salões servindo aos ensaios. E a Arol de Londrina realizava bailes de carnaval e também foi sede da escola de samba Unidos da Vila Nova.

As trajetórias dos clubes foram afetadas pelas realidades locais e suas situações. Hoje, revestem-se de contornos dos quais a categoria de “lugar” precisa desdobrar-se para abarcar as questões específicas de cada clube. Dos seis clubes mapeados, três estão em regiões centrais da cidade: Treze de Curitiba, Estrela da Manhã de Tibagi e Rio Branco de Guarapuava. Os outros três estão na periferia do centro, indicando a condição em que foram criados: o Campos Gerais está bairro negro chamando hoje Bairro da Costa, o Treze de Ponta Grossa na Vila Vilela, que foi um bairro de ferroviários, também associado ao clube, e a Arol, localizada na Vila Nova, também vila operária. Com isso, podemos observar que independente de sua localização os clubes agregavam negros e marginalizados sociais, ferroviários, garimpeiros, operários e saqueiros de erva-mate em Curitiba. Estar no lugar central da cidade não diminuía as segregações, ao contrário, torna-as mais evidentes.

Dos seis clubes mapeados, todos têm problemas de natureza estrutural, que comprometem a continuidade das atividades nas sedes. O Clube Estrela da Manhã estava em ruínas, foi reformado recentemente, mas ainda tem problemas de adequação à segurança para liberações de alvarás. O “13” de Ponta Grossa é tombado pela lei municipal e precisa de reformas, desarticulou-se como associação e aluga a sede para eventos. O Campos Gerais está sob a coordenação dos filhos do último presidente, desarticulou-se como sociedade e eles não guardam as memórias negras ligadas ao clube que estão com outra família. O Clube Rio Branco está desativado e sob a guarda da esposa de um antigo presidente, o acervo está com a família dos fundadores. A sede da Arol foi construída num terreno doado pela Prefeitura Municipal de Londrina e tomado pela mesma no período da Ditadura Militar, todo o acervo está com um dos fundadores, Oscar Nascimento. Ou seja, tais lugares estão ameaçados pelo próprio poder público ou à mercê das relações de parentesco dos antigos sócios. Porém, em todos os casos, nos quais a sede se perdeu, os acervos de fotografias são mantidos e ostentados.

Com isto, as recomendações para a salvaguarda dos CSNs necessitam de uma articulação com os poderes e suas jurisprudências locais, considerando a particularidade de cada lugar. Obrigando a descentralização das políticas de patrimônio também para os municípios, que precisam ser pensadas no sentido de reparação e rearticulação do próprio lugar para criar novas realidades a partir de memórias e pertencimentos.

Os quadrados como lugar

Discutir de forma transdisciplinar o conceito de “lugar” nas ciências humanas, por meio do pedido de registro dos CSNs como lugares do patrimônio cultural imaterial do Brasil, justifica-se por evidenciar as histórias de tais “quadrados” no Paraná, com a relevância de pensar lugares “populares”, não sagrados, dos trabalhadores e das populações tradicionais como patrimônio imaterial. Lugares da ação, intersecção e alteridade com a imaterialidade:

Se nos detivermos por um instante na definição de lugar antropológico, constataremos que ele é, antes de mais nada, geométrico. Pode-se estabelecer, com base entre as formas espaciais simples, que podem ser aplicadas a dispositivos institucionais diferentes e que constituem, de certo modo, as formas elementares do espaço social. Em termos geométricos, trata-se da linha, da intersecção das linhas e do ponto de intersecção. Concretamente, na geografia que nos é cotidianamente mais familiar, poder-se-ia falar, por um lado, em itinerários, eixos ou caminhos que conduzem de um lugar a outro e foram traçados pelos homens e, por outro lado, em cruzamentos e praças onde os homens se cruzam, se encontram e se reúnem, que desenharam conferindo-lhes, às vezes, vastas proporções para satisfazer, principalmente, nos mercados, necessidades do intercâmbio econômico, e, enfim, centros mais ou menos monumentais, sejam eles religiosos ou políticos, construídos por certos homens e que definem, em troca, um espaço e fronteiras além dos quais outros homens se definem como outros, em relação a outros centros e outros espaços. (AUGÈ, 1994, p. 55).

A localização e permanência dos clubes indicam certas leituras quanto à distribuição territorial e a presença das manifestações da negritude no estado. Sem muitas possibilidades de confirmação documental, como sugerem atas e recordações, tais clubes agiam em rede, envolvendo maçons, irmandades negras, tropeiros e de certa forma todos aqueles excluídos socialmente. Então, o registro seria a patrimonialização de lugares construídos para a inserção social. Os traços de tais redes podem ser visualizados pensando onde as sedes dos clubes foram inicialmente instaladas.

Como fez Maria Lucia Montes8 com sua pesquisa sobre as rotas de fugas criadas pelo movimento abolicionista Caifazes. Com ajuda de um desenhista, Montes demonstrou a abertura de estradas facilitando as rotas de fuga, a partir da Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados, no bairro da Liberdade em São Paulo para o Quilombo do Jabaquara. Tais rotas eram orientadas por abolicionistas maçons, pois os primeiros clubes tinham maçons entre seus fundadores. A Estrela de Salomão no teto do Treze de Maio de Curitiba é reconhecidamente um símbolo da maçonaria que no Paraná foi a primeira instituição a manifestar-se como contrária a escravidão. Segundo os filhos dos sócios antigos: “Pode mexer em tudo menos na estrela”. Enfim, tudo isso para dizer que a localização geográfica dos clubes junto às memórias, imagens e a estética podem montar uma nova apreciação sobre os CSNs e novas representações do real.

Deleuze e Guattari (1996, p. 96) denominam de “linha de fuga” o agir responsável por colocar bifurcações, enquadramentos, que condicionam o agir dos sujeitos e suas alteridades. Aliás, há relatos orais de que a Treze de Maio de Curitiba teve sua primeira sede construída numa rota de fuga que levava em linha reta a um quilombo.

Os estudos de patrimônio, principalmente no campo da antropologia, destacam desde a instituição do decreto 3.551/2000 as dificuldades da sustentação da dicotomia material e imaterial ao apreciar as lógicas das dinâmicas culturais. Roque Laraia (2004), um dos antropólogos que sempre esteve presente nas discussões das políticas de patrimônio, destaca a importância de se usar o termo registro em oposição ao tombamento, como forma de destacar a impossibilidade do congelamento da cultura intangível. Ainda salienta que, ao bifurcar o patrimônio, corria-se o risco que o material fosse o instrumento dos ricos, enquanto a imaterialidade ficaria condicionada aos pobres.

A observação de Laraia tem pertinência, pois os espaços criativos e dinâmicos da cultura estão historicamente associados a espaços populares, quase como uma resistência à homogeneização civilizadora, outrora da nobreza, hoje da elite. Características não subvertidas nem pela indústria do consumo ou de massa. Sahr (2008) recorre a Hannah Arendt e as noções do “agir” habermasiano, sugerindo à margem dos espaços criativos nas sociedades capitalistas:

Nestes lugares limiares, nas fronteiras e nos limites, o ser humano adquire seu pleno sentido. Por isso, a geografia do Agir de Arendt pode ser descrita da seguinte forma: limites e fronteiras, que são de tanta significância para o campo dos assuntos humanos, representam o nunca confiável enquadramento no qual se movimentam os seres humanos, sem os quais uma convivência não seria possível... tudo que estabiliza este campo, desde a cerca protetora, a casa e a lavoura, até as fronteiras nacionais que determinem a identidade física, e as leis que definem e cuidam da existência política dos povos, tudo é quase trazido de fora para este campo cujo interior compreende as atividades do agir e do falar, cujas características são estabelecer princípios e criar relacionamentos, mas não apenas estabilizar e delimitar (op.cit p. 44, Arendt, 1981, p. 238, trad.do autor).

No caso dos clubes a “geografia do agir” de Arendt está no cantar e no dançar, na sociabilidade como forma de inserção cultural e na criação de uma outra representação do real. E, no patrimônio cultural tal discussão tem no seu bojo a noção de lugar. No Brasil, foram tombadas principalmente casas das elites, prédios públicos e igrejas católicas. A dificuldade de tombar casas populares de construção artesanal é incomensurável, assim como a arquitetura em madeira ou barro, mais palatável sob a chancela de “paisagem cultural”, mas ainda não aceita no livro do patrimônio na categoria de lugar. Parece mais fácil registrar o saber fazer de tais construções do que elas em si.

Os CSNs não são sacros, nem tem arquitetura considerada significativa. Seu “valor” está em existir como indício de uma história não contada, um rastro de práticas de segregação racial não admitidas num estado acostumado a se ver como branco, formado por etnias europeias que também construíram seus “quadrados”, sempre exaltadas na formação do estado. Enquanto os quilombos eram os lugares de foragidos no meio rural, os clubes foram os lugares dos libertos desejantes de inserção social. De acordo com Giane Vargas sobre os Clubes Sociais Negros do Rio Grande do Sul: “Os Clubes Sociais Negros surgem, então, como um contraponto à ordem social vigente vêm de encontro aos clubes brancos que não permitiam a entrada de negros em seus quadros sociais, muito menos a convivência e miscigenada das etnoculturas” (2010, p. 56).

A existência de tais lugares desvenda muitos não ditos. Bem como a sua permanência, pois com a decadência do movimento clubista, os clubes de outras etnias foram sucumbindo enquanto os negros resistiram. Os CSNs são lugares antropológicos, históricos e geográficos. Para compreender tal proposição é necessário explanar um pouco sobre as perspectivas de lugar.

O trabalho de campo na antropologia inicialmente delimitava-se a um “lugar” distante investigado em sua totalidade, mesmo quando as pesquisas se aproximavam ao lugar do pesquisado, ainda eram delimitadas por ele. Como destaca Marc Augè o lugar antropológico é presente. O lugar para história é o lugar da memória. Já o conceito de lugar na geografia é mediador entre os dois acima citados, relacional e considera que o espaço se torna lugar por meio das memórias, experiências e dos significados atribuídos pelos sujeitos, tanto no passado quanto no presente (HOLZER, 1977; TUAN, 1983). Com isso, sendo tanto lugar da memória quanto lugar antropológico.

Embora no senso comum a ideia de lugar esteja associada à matéria, na história, geografia e antropologia desprende-se dela pela atribuição de significados. Então o lugar só é patrimonializável quando há memórias, experiência e fatos ligados a ele. Na concepção de Santos o lugar é nomeado e ao mesmo tempo é “uma porção discreta de fato total” (1978, p.121), objetivado na subjetividade.

Os Clubes Sociais Negros eram originalmente apenas nomeados com os títulos de literário, operário e beneficente. A alcunha de Clube Social Negro desenha-se depois com o pedido de registro como patrimônio imaterial. O que inclusive dificulta a identificação dos clubes, inicialmente. As relações entre as subjetividades podem estar sujeitas a certa intermediação do pesquisador, responsável por mapear as subjetividades e por vezes reconectá-las.

Existem poucos registros sobre a história dos clubes na época de suas fundações, as atas são documentos limitados ao registro burocrático, enquanto os jornais destacam mais as eventualidades/ou fatalidades que o cotidiano. As memórias de antigos frequentadores exaltam os clubes como elementos de formação de identidades e cidadania. Sr. Abrahão, detentor da memória do Clube Campos Gerais Castro, diz chorando que o clube deu a ele “tudo” o que ele tem, em termos de formação. Diante desses fragmentos, da pouca documentação existente e da desconexão entre os clubes, a pesquisa é uma urdidura das significações e semantizações desses lugares, que dizem sobre patrimônios e circunstâncias culturais.

Staniski, Kundlatsch e Pirehowski pesquisaram comunidades paranaenses e o conceito de lugar a partir da etnoecologia e garantem: “O conceito de lugar assume maior proporção, através dos estudos da geografia humana, embasado nas concepções de Relph (1979), Tuan (1983), Buttimer (1985) e Santos (2006), quando o conceito ganha forma através da memória dos indivíduos em relação ao seu espaço, do seu espaço vivido, às experiências, e aos significados atribuídos ao espaço” (2014, p. s/n).

Tim Ingold (2009) em suas pesquisas sobre cultura e ambiente, em diálogo com a fenomenologia, sugere a substituição dos invólucros pelos fluxos e pelos atravessamentos. Assim os Clubes, mesmo aqueles sem sede, continuam a existir como lugares para seus antigos sócios, habitués ou mesmo para os passantes, porque eles ainda são atravessados por fluxos de memórias, imagens, performances e a narrativas. Os CSNs também são espaços de diversidade, o Treze de Curitiba historicamente tem sido lugar para reuniões de partidos da esquerda (PT, PSOL e PCdoB), foi lugar dos shows de punk nos anos 80 e já abrigou concursos de miss trans e bailes de terceira idade.

Nos seus períodos iniciais, há o destaque para o protagonismo feminino não só presente nos concursos de beleza. As mulheres não participavam das diretorias, mas organizavam-se em grêmios com diretoria e organização paralelas. O Grêmio das Violetas era composto por lavadeiras que juntaram dinheiro para fundar o Clube Rio Branco, portanto é uma organização anterior ao próprio clube. No “Treze de Curitiba”, o Grêmio Flor de Maio organizava “bailes que davam o que falar”, segundo a imprensa da época. O “Treze de Ponta Grossa” tinha o Grêmio Saudades da Primavera que, entre outras festividades, organiza até hoje distribuição de doces para as crianças no dia 12 de outubro. O Grêmio Princesa Isabel dos Campos Gerais também era órgão disciplinador dos bailes, evitando que os casais dançassem muito perto.

Na “geografia do agir” são lugares de inserção social à margem. Lugares configurados por materialidades, cujos sentidos são estabelecidos por paredes. Tais paredes, construídas para inserir e divertir, também marcam a existência dos negros do Paraná, negados por muito tempo pela história oficial. Com isto, tais lugares são os ícones da presença ao ponto de sua desarticulação não ser, subjetivamente, tão importante quanto os seus significados e potencialidades para rearticular as histórias afro-brasileiras. Portanto, a patrimonialização de tais lugares é semantizada mais por suas imaterialidades e afetos do que por seus traços materiais. As tentativas de novas reorganizações e inserções de elementos, que oferecem unidade aos discursos sobre a negritude, são promessas de continuidade das imaterialidades de tais lugares.

Os quadrados nos retângulos dos retratos

As fotografias são tomadas com os mesmos “afectos” destinados aos lugares, principalmente nos clubes que não existem mais ou que foram desarticulados como associação. Os arquivos fotográficos melhor conservados e guardados estão com os detentores desapropriados do lugar, que nutrem sentimentos de pertença e gratidão ao clube. Tal fato aponta para três discussões pertinentes: a semantização dos acervos fotográficos, a relevância dos clubes para os que guardam suas memórias mesmo sem as sedes e a agência das fotografias na produção cultural do real. E, com isto a necessidade de pensar uma política pública de salvaguarda de “reconstrução” ou retomada dos clubes. Pois, se o lugar para o patrimônio cultural é conceituado na lógica da imaterialidade, as memórias são tão relevantes quanto o espaço e não se perderam. Por isso o lugar precisa voltar a existir para as memórias voltarem a habitá-los.

Os clubes fundados no século XIX não tem arquivo fotográfico de suas primeiras décadas, os retratos dos fundadores são tomados como ícones e representações do lugar e sugerem interpretações. O atual presidente do Treze de Ponta Grossa, conta que recentemente descobriu as origens ligadas a maçonaria do clube, ao ver que na loja maçônica da cidade estava o mesmo retrato de um dos fundadores do clube.

Por meio das fotografias é possível observar a presença de brancos desde a fundação dos CSNs, com fundadores, presidentes e frequentadores não negros. Assim os clubes eram quadrados agregadores que não reproduziam a segregação a que eram sujeitos.

As fotografias dos clubes têm muitas semelhanças entre si e normalmente são factuais, dos eventos sazonais, como o carnaval, a escolha da rainha da primavera e a festa de aniversário. Também há imagens das diretorias e dos grêmios femininos, que tiveram especial protagonismo nos clubes de Curitiba, Castro e Guarapuava. Os bailes de aniversário eram o momento refinado do clube, os homens vestiam suas melhores roupas e as mulheres confeccionavam vestidos especiais para ocasião. As fotografias são guardadas, em geral, nas casas.

Aleida Assman, em Espaços da recordação: formas e transformações da memória social (2011), divide o seu livro em três partes: Funções, Meios e Armazenadores. A autora explora a memória em diferentes espaços e na conclusão define: “Quando há uma tradição mantida por meio de imagens, supõe-se que ela, diferentemente do que se dá com aquela, baseadas em textos, caracteriza-se pela inquietude, pela incontrolabilidade, pela afetividade e, possivelmente, por determinadas formas de “imediação”.” (2011, p. 439). A ação está na contiguidade, assim as fotografias também são tratadas como um patrimônio para as famílias dos antigos sócios, um indício de sua existência e participação da vida em sociedade.


Figura 1
Eleição da Rainha da Arol - Sociedade Recreativa e Operária de Londrina, anos 50
Fonte: Acervo Oscar Nascimento/IPHAN.


Figura 2
Desfile do Clube Campos Gerais, nos anos 50, com as rainhas, Castro-PR
Fonte: Família Abrahão, IPHAN.


Figura 3
Aniversário de 21 anos do Clube Estrela da Manhã, em 25 de setembro de 1955, o bolo foi no formato da antiga sede em madeira do clube
Fonte: Acervo Maria Olímpia Prado/IPHAN.


Figura 4
Grêmio das Violetas do Clube Rio Branco, anos 20
Fonte: Acervo Josuel de Freitas/IPHAN.


Figura 5
Baile de Carnaval da Arol, anos 50
Fonte: Acervo Oscar Nascimento/IPHAN.

Considerações finais

Diante da história dos Clubes Sociais Negros, a situação atual dos mesmos e o pedido de registro como patrimônio cultural imaterial do Brasil, os significados dos clubes como lugares estão relacionados à presença de performances que remetam às culturas afro-brasileiras, bem como a memórias e a histórias ligadas eles. De tal forma o lugar em si, mesmo não existindo mais ou esvaziado das performances, produz os sentidos por ser monumento da presença negra num estado que se considerou branco, bem como das histórias expõem a segregação. Ou seja, a retomada dos clubes, o interesse por suas histórias e a patrimonialização são capazes de recriar o real passado, no qual branqueamento e invisibilização foram projetos culturais de Estado, por processos de objetificação da cultura imigrante e a exaltação da pureza racial.

Os clubes se organizam a partir de novas performatividades e discursos vinculados à “consciência negra” ou “protagonismo negro”. “A 13” de Curitiba, por exemplo, realiza mensalmente, com a produção de Brenda Maria, “Um baile bom”, uma festa com várias vertentes da música negra, nos quais o objetivo é o protagonismo da performance e estética negra como ato político. No baile “a 13” é exaltada como casa e a história do lugar é articulada no sentido de reagregar identidades que tiveram seu lugar também no passado, numa cidade que essencializou sua identidade como branca europeia.

A existência dos clubes, as performances passadas e presentes dentro deles produzem outras realidades culturais em contextos ampliados, como marcos que traçam a presença negra e transubstanciam até mesmo perspectivas históricas.

Referências

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TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.

Notas

1 Em Santa Catarina são indicadas a existência de 13 clubes e no Rio Grande do Sul 57, segundo site dos Clubes Sociais Negros do Brasil: <http://clubesnegrosbr.blogspot.com/>.
2 Ver Caracterização do Trabalho Infantil no Paraná, documento de 2017, produzido pela Secretaria de Estado da Família e do Desenvolvimento Social, do Governo do Estado do Paraná.
3 Lista dos bens registrados: Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista%20Bens%20Registrados%20por%20estado%202017%20(3).pdf>. Acesso em: 30 jul. 2018.
4 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/pnpivol1.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2018.
5 Idem ao 2.
6 É interessante notar um elemento de distinção, os novos frequentadores dizem “a” Treze, os mais velhos “o” 13, por referirem-se respectivamente a sociedade e ao clube.
7 Na ocasião, trabalhei na realização do mapeamento como consultora da Unesco na Superintendência do Iphan/PR.
8 Maria Lucia Montes publicou um artigo na Revista de História da Biblioteca Nacional, realizou uma exposição e fez palestras sobre o tema demonstrando os mapas elaborados. O artigo está disponível em: <https://trapichedosoutros.blogspot.com/2014/11/teje-livre-de-maria-lucia-montes.html>.


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