Resumo: A música foi reconfigurada a partir da década de 1990 em suas mais diversas formas, que vão desde os sentidos que adquirem para as audiências até as formas de criação e execução. A partir das seguidas mudanças de formato nos suportes musicais, chegando às atuais plataformas de streaming, as formas de atualização tecnológica usadas para audição musical impactaram fortemente os centros econômicos da indústria fonográfica. O resultado deste impacto foi uma crise que durou mais de uma década e uma alteração sensível dos sentidos da música, que passaram a ter como sentido forte a política. No estado de Goiás, no Brasil e em todo o mundo a reconfiguração das formas industriais da música teve como consequência o crescimento das atividades de apresentações ao vivo. Publicações especializadas expressam esse fato em nível global. A partir de levantamento de dados em meio virtual (Internet, redes sociais, listas de e-mails, etc.), no período de 2011 a 2013, pudemos observar esse fato junto às cenas de música independente no país. Elas são o locus da música ao vivo através da produção dos festivais.
Palavras-chave: Música independenteMúsica independente,digitaldigital,apresentações ao vivoapresentações ao vivo,crise da indústria fonográficacrise da indústria fonográfica,políticapolítica.
Abstract: The music was reconfigured from the 1990s in its most diverse forms, ranging from the senses it acquires to audiences to the ways of creation and execution. As a result of the subsequent format changes in musical media reaching current streaming platforms, the technological update forms used for musical audition have strongly impacted the economic centers of the music industry. The result of this impact was a crisis that lasted for more than a decade and a sensitive alteration of the senses of the music, that came to have a strong sense of politics. In the state of Goiás, in Brazil and throughout the world, the reconfiguration of the industrial forms of music had as a consequence the growth of the activities of live presentations. Specialized publications express this fact at the global level. From data collection in a virtual environment (Internet, social networks, mailing lists, etc.) in the period from 2011 to 2013 we could observe this fact with the scenes of independent music in the country. These are the locus of live music through the production of festivals.
Keywords: Independent music, digital, live performances, music industry crisis, politic.
Resumen: La música fue reconfigurada a partir de la década de 1990 en sus más diversas formas, que van desde los sentidos que adquieren para las audiencias hasta las formas de creación y ejecución. A partir de los seguidos cambios de formato en los soportes musicales, llegando a las actuales plataformas de streaming, las formas de actualización tecnológica usadas para audición musical han impactado fuertemente los centros económicos de la industria discográfica. El resultado de este impacto fue una crisis que duró más de una década y una alteración sensible de los sentidos de la música, que pasaron a tener como sentido fuerte la política. En el estado de Goiás, en Brasil y en todo el mundo la reconfiguración de las formas industriales de la música tuvo como consecuencia el crecimiento de las actividades de presentaciones en vivo. Las publicaciones especializadas expresan este hecho a nivel global. A partir del levantamiento de datos en medio virtual (Internet, redes sociales, listas de e-mails, etc.) en el período de 2011 a 2013 pudimos observar este hecho junto a las escenas de música independiente en el país. Estos son el locus de la música en vivo a través de la producción de los festivales.
Palabras clave: Música independiente, digital, presentaciones en vivo, crisis de la industria discográfica, política.
Artigos
As cenas independentes e a música ao vivo: elementos da nova configuração da música na atualidade
The independent scenes and live music: elements of the new configuration of music in the present time
Las cenas independientes y la música en vivo: elementos de la nueva configuración de la música en la actualidad
Recepção: 20 Novembro 2018
Aprovação: 11 Março 2019
A música ao vivo não é, de forma alguma, nova, ela vem se constituindo na atualidade em um dos principais setores (senão o principal) da indústria musical. No entanto, isto é o resultado de um processo recente que tem seu início na segunda metade da década de 1990 e que ainda se encontra em andamento. Para entender esse processo é necessário realizar a sua reconstrução, desde a sua eclosão com as formas de compartilhamento digital, passando pela crise da indústria fonográfica, até a emergência de novos sentidos da música para as coletividades e - para os interesses deste texto - particularmente nas chamadas “cenas independentes”.
Além da reconstrução histórico-social da categoria da música ao vivo, que tentamos avançar na segunda parte do texto, ela também pode ser discutida a partir de duas definições possíveis. A primeira definição é relativa ao conteúdo musical: os aspectos formais da música, as letras e as performances artísticas nos palcos, que direcionam para uma discussão sobre a qualidade musical. A segunda pode ser mobilizada a partir dos contextos sociais e coletivos, das formas de socialidade1 e das dinâmicas intersubjetivas que a música ao vivo proporciona e que se orientam para uma discussão política a seu respeito. Enfatizamos o segundo aspecto, ainda que busquemos pontuar elementos do primeiro no final do texto.
Adorno apresenta uma bela expressão do papel da música ao vivo nas sociedades e em suas formas de socialidade, bem como no desenvolvimento dos afetos:
A Música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento. Ela desperta a dança das deusas, ressoa da flauta encantadora de Pã, brotando ao mesmo tempo da lira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas as diversas formas do instinto humano (ADORNO, 2000, p. 65).
A sua crítica da música massiva e da indústria cultural se direciona contra a colonização dos instintos humanos e pontua que o encantamento estético possui um impulso insubordinado e rebelde que sucumbiu às compensações do consumo massificado. Este “sanciona tudo que um momento isolado é capaz de oferecer a um indivíduo isolado, que há muito tempo já deixou completamente de existir. Os momentos de encanto e de prazer, ao se isolarem, embotam o espírito” (ADORNO, 2000, p. 70). É notório que as formas assumidas pelo consumo musical na modernidade tardia foram dominadas pela indústria fonográfica e, especialmente, pelas grandes gravadoras de música, denominadas majors. Essa foi a situação da música gravada também no Brasil até recentemente. Portanto, é de se ressaltar o surgimento de uma significativa produção musical independente e de um mercado para a circulação/distribuição das obras no país, especialmente no que se refere à música ao vivo.
Este mercado é muito recente e o denominamos de mercado intermediário de música ao vivo. Ele é caracterizado por níveis de independência em relação às majors e ao mercado de massas. O mercado intermediário da música ao vivo, seguindo a conceituação de Pierre Bourdieu, é o correlato econômico do campo de produção restrito de música ao vivo e se desenvolveu no Brasil a partir da realização de eventos musicais, mais especificamente os festivais independentes.
No país, o campo de produção restrito de música ao vivo consiste, por um lado, em um rico campo de produção cultural, existente em centenas de cidades, sendo composto por nós produtivos (ou agentes) articulados em rede nacional e internacionalmente e, por outro lado, é formado por um conjunto significativo de espaços físicos e virtuais de produção de recursos econômicos, artísticos e culturais. Como mercado de produção econômica, na música tem agentes em uma gama de práticas e atividades, que incluem a produção de eventos musicais e todos os serviços que requerem, bem como todas as atividades capazes de produzir valores monetários, particularmente a criação musical (autoria, composição e performance musical) e, por fim, as atividades de circulação dos bens musicais, isto é, turnês e shows que os artistas/bandas fazem fora de suas localidades de origem. Em seu desenvolvimento, a partir dos ganhos de capital obtidos com os eventos musicais, diversos agentes da música ao vivo passaram a atuar também em atividades de gravação e distribuição musical, ampliando o escopo do campo de produção e também a sua presença no mercado musical.
O conceito de campo de produção cultural pode ser apresentado a partir da perspectiva da economia da produção simbólica, que situa os bens culturais na relação dicotômica dos polos erudito e popular no campo cultural. Cada um desses polos se fragmenta em múltiplos subcampos, a partir dos processos próprios de produção, caracterizados pelas suas disputas, rupturas e continuidades.
Os processos de identificação das audiências com os estilos ou gêneros musicais em cada um dos subcampos constituem, por sua vez, as cenas musicais, que figuram como os correlatos estéticos e intersubjetivos dos campos e subcampos. As cenas e, portanto, os contextos sociais e coletivos da música ao vivo incluem formas variadas de intersubjetividade e as identificações (muitas vezes fluidas) com os estilos e definições estéticas dos campos. Quando as cenas se referem à produção de conteúdo cultural de formas relativamente autônomas em relação aos mercados massivos no interior de campos de produção restrita ou independente, são denominadas “cenas independentes”.
Nas cenas independentes ocorre a produção cultural segundo a relação estética (afetiva) com os diversos gêneros musicais. Shank (1994) mostra, em seu estudo sobre a cena alternativa da cidade de Austin, Texas, que a identificação com uma cena musical enceta o comprometimento dos fans com os valores estéticos da produção cultural. Hesmondhalgh (2013), por sua vez, afirma que a relação com a música é o reino do afeto e, de alguma forma, a música é capaz de incorporar “uma ideia da nossa necessidade urgente de um vínculo às coisas externas a nós mesmos, que não controlamos”2 (NUSSBAUM apud HESMONDGHALGH, 2013, p. 21).
O comprometimento dos fans com uma cena musical conduz a uma certa dedicação em ouvir, pesquisar e produzir música e eventos musicais. Esse tipo de comprometimento com algo externo a nós mesmos ilustra o processo de identificação simbólica, que tem por base o que Shank (1994) denomina de ansiedade produtiva. Para ele “Uma cena pode ser definida como uma comunidade superprodutiva (overproductive) de significações; isto é, produz muito mais informação semiótica do que poderia ser racionalmente processada”3 (SHANK, 1994, p. 122). O resultado é a constante renovação da produção cultural, seu florescimento, que exige, para que ocorra de fato, formas de produção e participação coletiva ou comunitária, a abertura política da sociedade e o reconhecimento e equacionamento do “dano” (Rancière, 1996) causado às coletividades, recortadas pelas condições de classe, gênero, raça, etnia, geração, entre outras.
A possibilidade de florescimento e renovação dos bens culturais que as cenas independentes proporcionam, na medida em que se constituem como os contextos sociais para as rupturas estéticas, levam à produção artística - desde a concepção e criação das obras até a apresentação (performance) -, ao contínuo surgimento de artistas e bandas, majoritariamente de gêneros populares, à divulgação, à circulação dos artistas e à distribuição do produto musical. Assim, formas de produção, que são atributos dos campos de produção restrita, e as formas de circulação e distribuição, que são atributos do mercado cultural, encontram-se em relação com as cenas. No entanto, ser integrante de uma cena cultural não implica participar do campo de produção de bens culturais, conforme veremos adiante. De qualquer modo, as formas de socialidade e as trocas afetivas e simbólicas presentes nas cenas musicais independentes - fortemente ancoradas nas apresentações musicais ao vivo - constituem elementos fundamentais para a compreensão da constelação que expressa o conceito da música ao vivo.
De um ponto de vista histórico, como veremos, a relação atual entre as cenas independentes e a música ao vivo se deve à crise da indústria fonográfica e do desenvolvimento das tecnologias digitais de compartilhamento musical. No entanto, de um ponto de vista teórico-conceitual, ela adquire seu sentido forte na medida em que as cenas, assim como os mercados, são mutuamente dependentes dos campos de produção musical restritos. A crescente importância da música ao vivo se situa em uma configuração ampla, em que as rupturas dos agentes dos campos restritos em relação à regra dominante na produção cultural popular - o critério do sucesso comercial - implicam alterações cada vez mais significativas nos critérios de qualidade musical e, por esta via, nas disputas por capital cultural, social e econômico; mas também na formação de coletividades musicalizadas e, portanto, nas relações políticas.
Do ponto de vista bourdieusiano, os bens culturais são encontrados de forma mais autônoma quanto mais próximos estão do campo de produção cultural erudita. Em que pese a perda relativa de independência com a passagem para um mercado, a autonomia dos valores artísticos permanece em grau significativo, nos campos de produção restrita, mais próximos ao polo erudito. Assim, a discussão do conceito de autonomia na produção cultural deve levar em conta o campo de produção erudita. Este consiste em um sistema de produção marcado pela ruptura com o público dos não-produtores e pelo fechamento em si mesmo. Os princípios de um tal sistema tendem a ser irredutíveis aos critérios externos de legitimação e consagração cultural. A autonomia encontra-se na distância existente entre os princípios de legitimação e consagração cultural internos a um campo e os princípios da produção orientada para “o grande público” (BOURDIEU, 2005, p. 108). O mercado musical de massas, por sua vez, possui como princípio de determinação das práticas um elemento externo ao campo, qual seja, o capital econômico que visa a conquista do máximo possível de audiência leiga para o mínimo possível de atrações culturais, daí que para um “grande público” é apresentada a “cultura média”. O campo da produção musical massiva, portanto, se caracteriza por um grande volume de capital econômico e por um baixo volume de capital cultural.
O grau de autonomia da produção cultural pode ser medido em função da proximidade com o polo erudito ou com o polo massivo. Assim, no campo de produção musical erudito, a autonomia é configurada “pelo grau em que se mostra capaz de funcionar como um mercado específico, gerador de um tipo de raridade e de valor irredutíveis à raridade e ao valor econômico dos bens em questão, qual seja a raridade e o valor propriamente culturais” (BOURDIEU, 2005, p. 109). Diferentemente do campo massivo, o campo erudito é marcado por um alto capital simbólico, mas um baixo capital econômico.
De qualquer forma, toda produção cultural implica na pretensão de legitimidade cultural que, como objeto de disputa nos campos de produção cultural, se orienta para a busca de “distinções culturalmente pertinentes” (BOURDIEU, 2005, p. 109). Assim, são os princípios de diferenciação (ou ruptura) estilística e técnica que expressam de forma mais específica a reivindicação de autonomia do campo erudito. Uma caracterização do esforço artístico de diferenciação pode resultar na atribuição de originalidade - a maneira propriamente artística de apreender o mundo - a uma obra cultural e, consequentemente, de ganhos diversos de capital, inclusive econômico. Para Bourdieu toda obra original inclui em si a disputa no interior do sistema de posições em um campo de produção.
A caracterização de uma obra como original ou legítima, no interior de um campo de produção, depende do nível de reflexividade dos agentes do campo. A mútua avaliação da posição de artistas, críticos, editores etc. no campo estabelece um sentido público para as obras, um conjunto das propriedades de recepção que marca as classificações das obras no próprio campo. Um campo autônomo como o da produção erudita, conforme Bourdieu (2005, p. 115), “progride por meio de rupturas quase cumulativas com os modos de expressão anteriores”.
As obras artísticas e intelectuais que circulam nos campos de produção cultural são duplas, mesmo aquelas consagradas pelo mercado massivo. De um lado, encontra-se a luta pelas inovações técnicas e estilísticas que criam ou estabelecem novos princípios orientadores das obras e, portanto, as definições estéticas que devem ser seguidas no interior do próprio campo. De outro lado, a produção cultural propriamente dita, que, para acumular capital tem que partir de condições dadas aos trabalhadores culturais, perpassadas por hierarquias invisíveis e opacas, divisões, princípios de divisão e bloqueios. Neste sentido, a conquista de posições em um campo de produção cultural depende, na maior parte das vezes, que os agentes possuam propriedades anteriores advindas mormente da origem familiar e da escolarização. Os elementos presentes na condição social dos agentes delimitam as disputas por posições no campo e aqueles que ocupam as posições mais destacadas irão definir, por sua vez, a regra formal do campo.
Resulta disso que, em campos restritos como o da música ao vivo, joga o jogo - participa das disputas - a condição periférica dos agentes (mais importante, quanto mais interiorana e retrógrada a localidade), a ausência de políticas públicas para a cultura, o nível educacional da população, entre outros aspectos. Desta perspectiva, os campos de produção cultural que se destacam da produção massiva se aproximam da produção erudita e, com isso, ganham capital cultural pela autonomização, mas tendem a perder capital econômico. A ruptura, nas cenas independentes, com a regra formal do sucesso comercial vigente nos campos massivos, implica em novas determinações estilísticas e técnicas que estabelecem, por sua vez, novos critérios de originalidade e legitimidade no campo. Esses critérios são estipulados pelos próprios agentes do campo segundo os gostos, as afinidades musicais e estéticas - com as formas de intersubjetividade aí existentes - e segundo as posições e tomadas de posição dos agentes.
É assim que o conceito de cena, isto é, os modos da intersubjetividade e os tipos de conteúdo estético, se relaciona com as definições sobre as formas organizadas do trabalho cultural existentes em cada campo ou subcampo de produção cultural e musical. A produção cultural deve considerar tanto a lei formal do campo, suas definições estéticas, como as singularidades da condição dos produtores culturais, suas posições no campo cultural e no campo social mais amplo. Quanto menor o acúmulo de capital cultural e social, menores são as possibilidades da ruptura estilística e técnica e, resulta disto que a autonomização das cenas independentes leve, frequentemente, a classificações da música como de má qualidade e que os espaços da música ao vivo sejam segregados4. Daí também que os participantes das cenas muitas vezes tenham avaliado suas atividades como formas de luta, chegando mesmo a denominá-las como formas de ocupação dos meios de produção.
É necessário realizar a reconstrução da trajetória das cenas independentes no Brasil, na medida em que os espaços da música ao vivo (shows, festivais, etc.) surgem a partir da circulação simbólica que nelas tem lugar. Neste sentido, um estudo da produção musical presa à analítica social bourdieusiana deve considerar que na década de 1970, período de seu estudo O mercado dos bens simbólicos, a indústria fonográfica constituía um sistema fechado, fundado no domínio dos processos de criação, produção, divulgação e, principalmente, de distribuição do material fonográfico.
A indústria é, ainda hoje, orientada para o sucesso comercial: a regra fundamental dos mercados de massa. Mas a emergência das tecnologias digitais deslocou o fundamento das trocas materiais e da lucratividade da indústria fonográfica, que ficou mais de uma década se debatendo com as novas formas de difusão digital da música, classificadas indiscriminadamente como “pirataria”. A crise vivida pela indústria fonográfica desde o final dos anos 1990 só foi revertida a partir de 2016, justamente quando as majors (as três grandes corporações transnacionais da música) passaram a adquirir cotas das plataformas de streaming de música na Internet e a estabelecer acordos para a difusão das músicas dos artistas de seus casts nelas5. Esse momento marca o abandono definitivo dos investimentos nos formatos físicos pelas gravadoras.
Atualmente, a ampliação do consumo (audição) e da oferta de música ao vivo e gravada, a partir do desenvolvimento das tecnologias digitais, estão relacionadas com o ocaso dos formatos físicos e das formas respectivas de audição musical. Há aqui um aparente paradoxo entre uma situação de quase ubiquidade da audição da música gravada e o crescimento das apresentações musicais ao vivo. Tentamos avançar uma resposta a esta situação, que de modo algum é objeto de consenso entre os estudiosos. O que Lemos (2015), seguindo Maffesoli, denomina de “tribalização”, sempre existiu nos campos musicais; a tribalização consiste na afirmação de traços estéticos e estilísticos dos artistas/bandas por parte de indivíduos e grupos e, a partir daí, constituem-se processos de identificação. No entanto, as interações em meio virtual são insuficientes para satisfazer as necessidades afetivas humanas, pois a comunicação virtual resume-se, conforme a formulação de Castells (2013), a uma forma de “comunicação de si mesmo” (auto self communication). Se a música incorpora a necessidade de vínculos externos ao indivíduo que as interações virtuais são incapazes de fornecer, é razoável considerar que os espaços da música ao vivo constituem os locus apropriados para as formas de interação em coletividades, onde aqueles vínculos podem ser estabelecidos.
Resulta disso que a audição musical ao vivo tenha se ampliado, não apenas nas cenas musicais locais, dos mais diversos locais, gêneros e estilos, mas também no plano internacional, onde a indústria de concertos e turnês é muito ampla e inclui gigantes dos Media e Entretenimento como a Live Nation, a AEG, a australiana TEG Live e a francesa Vivendi (IQ., 2017). O crescimento do Ao vivo é apontado pelo site Music Business WorldWide6: “As 50 turnês mais vendidas do mundo na primeira metade de 2018 geraram um recorde de US$ 2.21 bilhões - crescendo US$ 240 milhões ao ano, a uma taxa de 12%7” (Music Business Worldwide, 2018).
Além disso, o aumento da importância econômica e social da música ao vivo fica expresso já no título do artigo do site IQ. de 09 de junho de 2017, que afirma que “O crescimento do mercado de concertos paga a desaceleração global8” (IQ., 2017) e, de fato, o próprio relatório anual da música gravada, divulgado pela IFPI, Global Music Report, confirma a crise da indústria fonográfica, pois, mesmo com o avanço do mercado de música em meio digital, o crescimento atual não recuperou o que a indústria era em 1999: “apesar de três anos de crescimento consecutivo, as vendas em 2017 ainda estão apenas em 68,4% das de 1999”9 (IFPI, 2018). E o mesmo IQ., reportando-se à previsão de crescimento para o setor de entretenimento e media global, a partir da pesquisa Global entertainment and media outlook, mostra que as receitas da música ao vivo - advindas das vendas de ingressos e de patrocínio - vão crescer segundo a taxa de crescimento anual composta (CAGR) a 3% até 2021, chegando a “um pouco mais de 50%” do total das receitas da música no período (IQ., 2017).
Não encontramos dados nacionais para uma apresentação ampliada da música ao vivo. Mas dispomos de dados sobre os festivais independentes. Levantamos a programação dos festivais no período 2011 a 2013 através de entrevistas, visitas aos festivais independentes, pesquisa em redes sociais dos produtores (Facebook, Twitter, pesquisa de imagem do Google, Flickr etc.), busca em listas de e-mails e em blogs de coletivos produtores. Aqui encontram-se apenas os festivais que estiveram organizados em rede a partir do Circuito Fora do Eixo. Foram relacionados os festivais encontrados em três documentos do circuito: Calendário de Festivais Fora do Eixo/Abrafin 2011, Banco Oficial de Pontos, Casas e Parceiros FdE 2012 e o Calendário Oficial Fora do Eixo 201310.
Há limitações na pesquisa em meio virtual, especialmente no que se refere à filtragem do alto volume de dados coletados, que requer aplicações específicas e cujo manuseio exige, em geral, conhecimento avançado em informática. Encontra-se também dados incompletos, seja por terem sido excluídos da Internet, seja pela qualidade ruim do material (qualidade do material gráfico etc.). Mas consideramos os dados válidos quando encontramos ao menos um registro completo do evento, isto é, capaz de validar que o mesmo se realizou. Entre os registros incluímos: programação do evento em redes sociais ou sites com os artistas/bandas participantes, criação de evento no Facebook, postagens no Twitter sobre o evento, fotografias, vídeos, flyers, dentre outros materiais de divulgação impressa e virtual. Evidentemente, os dados levantados não permitem afirmar conclusivamente a respeito da quantidade de festivais independentes ocorridos no país no período de 2011 a 2013, uma vez que esse número é muito superior aos festivais elencados nos documentos consultados.
Através da pesquisa da programação e dos flyers (um tipo de material de divulgação) dos festivais constantes nos documentos do circuito conseguimos identificar 179 festivais realizados no período indicado, dentre aqueles incluídos nos documentos do FDE. Neles se apresentaram 5363 artistas, de diversos gêneros musicais populares e eruditos¸ com uma média de 360 artistas por festival, em 24 estados. Destes, se apresentaram no estado de Goiás 524 artistas. O estado de Goiás é o terceiro estado em número de apresentações diferentes e o quinto em número de festivais, com 14 festivais no período.
De todo modo, a partir da conferência e contabilização dos festivais indicados nos documentos do FDE, afirmamos que se estruturou e consolidou um mercado intermediário de música ao vivo no Brasil, distinto do setor das gravadoras independentes no país - altamente dependente dos meios de distribuição da própria indústria. De qualquer modo, os bens culturais produzidos e distribuídos no mercado intermediário de música ao vivo ou dos festivais independentes, no Brasil, possuem graus de autonomia elevados em relação ao mercado musical massivo, uma vez que seu processo de criação não segue as regras dos campos populares com maior capital econômico e na medida em que foi capaz de se estruturar como um mercado específico.
Neste ponto parece importante abordar os significados das regras estabelecidas nos campos massivos. Essas são apontadas por Rodrigo Lariú, em entrevista concedida a Micael Herschmann em 2009. O produtor fonográfico e de eventos musicais indica que “as majors estão atrás de fenômenos de público, às vezes mesmo sem “substância”, sem repertório ou futuro na carreira, desde que vendam muitos shows e discos num determinado momento” (HERSCHMANN, 2010, p. 94). O sucesso comercial é a regra fundamental que orienta o sistema da indústria fonográfica e o mecanismo para alcançá-lo é chamado de sistema do estrelato (star system).
Para Frith (1981), o sistema do estrelato se sustenta pelo surgimento do que denomina “musician power”, isto é, a capacidade que as estrelas da música detinham no período de domínio da indústria fonográfica de definir os termos da criação musical. O sociólogo britânico diz que o “estrelato descreve um relacionamento entre os artistas/bandas e as audiências”. Este aspecto se refere à compreensão de que, mesmo atadas às estruturas da indústria fonográfica, as estrelas da música precisam manter determinado poder sobre a criação musical para garantir certo grau de legitimidade e, assim, a manutenção dos interesses das audiências massivas. O sistema do estrelato limita as interações entre os artistas/bandas e fans quase exclusivamente às apresentações ao vivo. No período de domínio da indústria fonográfica, as apresentações ao vivo - especialmente as grandes turnês das estrelas da música e seus grandes shows em estádios - possuíam, apesar dos significados para as audiências, um papel secundário, limitado à divulgação dos artistas/bandas, pois, o negócio central era a venda dos formatos físicos.
A crise da indústria fonográfica, que amargou cerca de 16 anos consecutivos de redução de lucratividade, possui sua representação no mercado brasileiro na tendência de queda das vendas físicas, conforme os dados do relatório Mercado Brasileiro de Música, publicado no período de 2003 a 2017, e que registrou perdas acumuladas no país de 201,8% entre 2001 e 201711. O principal fator da crise da indústria fonográfica foi, declaradamente, o desenvolvimento das tecnologias digitais de compartilhamento e distribuição musical.
Os seus efeitos no campo musical são muito bem expressos por Steve Albini: “Em um piscar de olhos a música deixou de ser rara, cara e disponível apenas através dos formatos físicos em revendas controladas para ser ubíqua e livre em todo o mundo. Que desenvolvimento fantástico12” (ALBINI, 2014). O modo de distribuição musical na era do digital consiste no que Albini (2014) denomina “distribuição musical dirigida pela audiência” (audience-driven music distribution) (ALBINI, 2014). As bandas independentes, segundo o músico e produtor estadunidense, agora podem ter uma carreira, que o sistema vertical da indústria fonográfica negava. Olhando pela perspectiva dos artistas/bandas sobre as condições atuais Albini aponta que,
Em contraste com os dias passados, a tecnologia e o equipamento de gravação foram simplificados e tornaram-se facilmente disponíveis. Computadores agora vem pré-equipados com software suficiente para fazer uma gravação de demonstração decente e as lojas de guitarra vendem microfones e outros equipamentos a baixo custo que antigamente só era disponível a um ágio de fontes especiais arcanas. Essencialmente, toda banda agora tem a oportunidade de fazer um disco13 (ALBINI, 2014).
As bandas independentes, ou seja, que estão fora do sistema da indústria fonográfica, tendem a assumir as tarefas de composição, produção, gravação, divulgação e distribuição que, no caso dos artistas contratados pelas grandes gravadoras, tendiam a ser realizadas pelas equipes técnicas e pelos produtores das próprias gravadoras. Atualmente, os artistas/bandas independentes optam, de modo geral, pela circulação, isto é, as apresentações ao vivo nas mais diversas localidades e pela difusão prioritariamente nas plataformas de streaming. Por essas razões, esse tipo de banda é denominado por Steve Albini de “working bands” (2014), bandas de trabalho.
Nesse sentido, segundo ele, as bandas independentes da geração da década de 1990, que eram influenciadas pela cultura punk e pós-punk dos anos 1970 e 1980, foram o protótipo das bandas de trabalho, pois,
construíram sua própria infra-estrutura de clubes independentes, promotores, fanzines e DJs. Eles tinham seus próprios canais de promoção, incluindo os primórdios da cultura da Internet que é tão prevalente hoje - que são quadros de avisos e grupos de notícias. Essas bandas independentes até criaram sua própria gravadora. Alguns eram coletivos e aqueles que não estavam dispostos a operar com base na participação nos lucros e que incentivavam a eficiência, em vez de um sistema de patrocínio compensável que encorajava a indulgência14 (ALBINI, 2014).
Na época das tecnologias digitais, a divulgação e distribuição da música gravada podem ocorrer em diversos sites e redes sociais, como Bandcamp, YouTube, SoundCloud, Reddit, Instagram, Twitter e, mais recentemente, nas plataformas de streaming de música: Spotify, Deezer, Tidal etc.. No paradigma verticalizado, a música local era norteada pelos próprios agentes da indústria da música presentes nas cenas e os mercados encontravam-se isolados por localidade ou linguagem. Eram os gatekeepers (agentes da indústria fonográfica que atuavam como intermediários entre ela e as comunidades musicalizadas) que limitavam o acesso ao mercado, às vezes selecionando pelo que consideravam as bandas mais vendáveis das cenas locais, lançando-as no mercado segundo o gancho (especialmente a distribuição musical) da indústria fonográfica.
No Brasil, o tipo de música que surgia nas cidades interioranas ou nas periferias das grandes cidades era desqualificada pela crítica ou pelos produtores como “bandinhas do interior” e não logravam acesso aos contratos com as gravadoras e, portanto, aos canais de distribuição, tendo limitado o alcance de seu som. Esta é, aparentemente, uma característica geral na lógica da indústria fonográfica e Albini (2014) confirma: “Era inconcebível que uma banda pequena ou independente pudesse ter penetração de mercado, por exemplo, na Grécia ou Turquia, no Japão ou na China, na América do Sul, África ou nos Balcans”15.
Mas é interessante observar como nas apresentações em festivais ou mesmo em casas de show, atualmente, os públicos, ainda que pequenos e inclusive em regiões periféricas como Goiás, cantam as músicas dos artistas/bandas, mesmos daquelas iniciantes. Falando como engenheiro de som e guitarrista da banda de rock minimalista Shellac, Albini indica que as audiências dos shows na Europa Oriental ou na Austrália pareciam ‘estranhamente’ familiares com a música da banda, que divulgou seu conteúdo apenas através de meios informais pela Internet ou de mão em mão. Isto se deve ao fato de que hoje os fans
podem encontrar a música que gostam e desenvolver relações diretamente com as bandas. Isto é absolutamente possível - Eu tenho certeza de que isto acontece todos os dias - que um garoto em um daqueles lugares distantes pode encontrar uma nova banda favorita, enviar uma mensagem para a banda, e aquele cantor da banda vai ler e responder pessoalmente do telefone celular a meio mundo de distância (ALBINI, 2014).
Ainda seguindo as colocações de Albini, o sistema da indústria fonográfica explorava o trabalho musical e beneficiava apenas os agentes internos da indústria, desde os gatekeepers até os acionistas e conselhos decisores das majors. As formas de divulgação e distribuição virtual da música (desde o download até as plataformas de streaming) foram, por outro lado, muito bem-sucedidas na distribuição do conteúdo musical provocando o recuo da indústria fonográfica no controle de todas as etapas de produção e tornando a música amplamente acessível. Para Albini, isto se deve ao fato de que a divulgação e distribuição em redes sociais, em sites e, mais recentemente, nas plataformas de streaming, ‘pulam’ os intermediários da indústria, uma vez que o conteúdo musical “é compartilhado informalmente e as bandas tem uma relação direta com os fans, construída pelas bandas e pelos fans na maneira do antigo underground.”16 (ALBINI, 2014). Essa situação vem se alterando com a cobrança para a ampliação do arco de perfis que visualizam a informação nas redes sociais e pelo conteúdo em geral na Internet. Os aspectos indicados acima forçaram o que Herschmann (2010) denominou de “reconfiguração da indústria” fonográfica e possibilitaram o crescimento das apresentações ao vivo em número e importância, tanto nacional como internacionalmente. De qualquer forma, a maneira do antigo underground de que fala o músico é conhecida no Brasil e em Goiânia/GO como ‘brodagem’, que consiste na parceria entre as bandas e amigos, mas, também, selos cooperativos, coletivos e redes, seja por rateio ou divisão de tarefas, para a realização dos eventos; e foi o protótipo do surgimento das atuais cenas independentes no país.
Interessa-nos neste texto os contextos das cenas independentes e os festivais de música independente aí organizados. Essas cenas e festivais possuem uma história própria no Brasil, onde um movimento de produção musical independente se inicia com o lançamento do disco Feito em Casa, de Antônio Adolfo, em 1977, e a criação do selo musical Artezanal.
Esse movimento cresceu durante a década de 1990 e passou a produzir mecanismos legais, logísticos e mercadológicos com a fundação da gravadora Trama e da Distribuidora Independente. Além disso, em 2002 foi criada a Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), que hoje, segundo o site da associação, possui 58 associados. Nakano e Viveiro (2008) indicam que a maior parte das gravadoras e selos chamados independentes (indies) tinha vínculos com as majors em função da dependência dos canais de distribuição dos produtos físicos (CDs, DVDs e BluRays). Ainda em relação àquela geração de gravadoras independentes, os autores afirmam que "sua estrutura e modo de negócio pouco difere das majors; no entanto ela é considerada uma gravadora independente” (NAKANO e VIVEIRO, 2008, p. 9), ainda que do ponto de vista da autonomia estivesse mais próxima do polo massivo do campo musical.
À diferença da produção independente de música gravada, os festivais independentes, uma vez que abandonaram os formatos físicos17, implementaram um rompimento sistemático com os processos da indústria fonográfica que foi caracterizado pelos próprios agentes, em diversos contextos, como guerrilha cultural, para expressar os embates enfrentados por eles na produção dos eventos musicais. Posteriormente, muitos produtores de festivais independentes diversificaram suas atividades: em Goiânia tivemos pelo menos quatro selos ou gravadoras do tipo indicado18. Todos eles também realizavam o agenciamento dos artistas/bandas de seus casts paralelamente aos festivais. Assim, os processos de virtualização (Levy, 1996), a emergência da sociedade em rede (CASTELLS, 1999), a crise da indústria fonográfica e suas consequências (HERSCHMANN, 2010) (JANOTTI JR. et. al., 2011), entre outros processos, resultaram no surgimento de uma nova geração de gravadoras e selos independentes que passaram a operar preferencialmente pela Internet, portanto, eximindo-se das imposições das grandes distribuidoras de música.
Aqui, talvez encontremos o centro da controvérsia das cenas independentes, pois, se por um lado, o crescimento do setor econômico da música ao vivo internacional, nacional e localmente, está intimamente ligado às formas de audição musical na atualidade, que possibilitam ao fan de um artista/banda encontrar com facilidade a música que mais gosta, por mais ‘diferente’ e rara que possa ser e, assim, encontrar também coletividades musicalizadas com as quais pode ter formas diversas de contato e relação, inclusive com os próprios artistas; por outro lado, não são claras as condições de trabalho artístico nas cenas independentes, funcionando muitas vezes a partir de acordos apenas apalavrados, gerando insatisfação e desentendimentos. Além disso, os produtores são questionados nas cenas quanto ao uso de recurso público através de editais de incentivo à cultura e quanto à escolha dos artistas/bandas para se apresentarem nos festivais. Retomamos aqui o paradoxo aparente entre a ampliação da audição da música gravada através das plataformas digitais e as condições materiais em que ocorrem as apresentações ao vivo nas cenas independentes.
Os termos da controvérsia encontram-se, por um lado, no fato de que os custos de produção da música gravada, mesmo que menores, permanecem sendo custeados pelos artistas, segundo a mesma lógica vigente na indústria fonográfica, e isto é aceito por eles na medida em que a música gravada mantém sua importância simbólica, capaz de dotar a obra de originalidade e de legitimidade cultural, apesar do baixo retorno econômico para a grande maioria deles. Por outro lado, a música ao vivo, em sua instantaneidade, tende a ser vista como culturalmente menos importante, pois é apresentada a cada vez a um número limitado de pessoas e é marcada pela transitoriedade. É na medida em que é vista como menos capaz de transferir capital simbólico aos artistas que se iniciam os desentendimentos e o falatório (hype) sobre os festivais independentes.
Mas há grande generalização no hype, há todos os tipos e tamanhos de festivais independentes e dentre eles apenas uma minoria capta recursos através de editais. Vários são realizados através da brodagem, isto é, com baixíssimo custo e trabalho voluntário. Mesmo havendo controvérsia sobre o pagamento ou não dos artistas que se apresentaram nos festivais, sobre a utilização de moedas sociais para isto e sobre o enriquecimento dos produtores, sempre houve o hype e o hip. O hype é o exagero das conversas públicas, o aumento de um ponto, e o hip expressa o conjunto daqueles membros do grupo concreto e, mais engajadamente, de seu núcleo na produção dos festivais (FRITH, 1981). Eles se beneficiam mais diretamente dos ganhos - quando ocorrem nas cenas independentes - obtidos através das atividades na música, mas que requerem uma longa trajetória de trabalho diário dedicado ao fomento de uma cena e ao surgimento de novas bandas, principalmente pela produção dos festivais.
De qualquer modo, o crescimento das apresentações ao vivo é inegável, seja quando se trata de grandes corporações transnacionais atuando nos festivais e, principalmente, na realização das grandes turnês das estrelas da música, seja em relação aos festivais pequenos e médios, que atuam em espaços regionais e locais. Para Simon Frith “os significados da música derivam dos significados das apresentações ao vivo” (FRITH, 1981, p. 135). Isso se deve à afinidade estabelecida entre os fans e os seus artistas/bandas - cujo exemplo limite é o comportamento dos fans das grandes estrelas do pop, mas que também se encontra nas cenas musicais locais, mesmo que de formas distintas. Essa afinidade se expressa na valorização das bandas locais pelos próprios agentes do campo de produção musical e pelos fans, no comprometimento com a cena, na ida aos eventos, nas audições dos álbuns das bandas, na montagem constante de novas bandas, na adoção de estilos pessoais, entre outras formas. As afinidades musicais são de graus variados, indo de verdadeiros cultos aos artistas até relações fluidas com diversos gêneros musicais. Muitas pessoas circulam nas diversas cenas musicais de uma cidade como Goiânia, saltando de cena em cena em uma mesma noite, ou no final de semana, contudo outras mantêm forte afinidade e até fidelidade a um gênero musical e seus estilos próprios.
É na manutenção da autonomia - a fuga de uma determinação externa da criação e apresentação - que encontramos o sentido forte da música ao vivo nos festivais independentes brasileiros. Os amantes da música depositam algumas de suas reservas de afetividade na autonomia da produção musical de um campo, pois ela possibilita o surgimento do novo. No impulso para ruptura da lei formal, mesmo que algo da regra anterior permaneça resguardado na mudança ou que surja daí um novo campo de produção restrita com sua própria regra formal, encontra-se a possibilidade de manifestação do dano sofrido pelas coletividades e, consequentemente, podem se abrir, a partir dessa manifestação, as formas de seu equacionamento. Nas apresentações musicais nos festivais independentes a legitimidade cultural conquistada se converte em formas de manifestação política.
Agora os festivais - espaços plenos da música ao vivo - podem ser vistos como suportes onde ao artista é permitido se manifestar - abolindo toda forma de mimese -, desobrigado em seu fazer artístico de “toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes” (RANCIÈRE, 2005, p. 33-34), equivalendo-se ao revolucionário, “inventor da vida nova” (RANCIÈRE, 2005, p. 23). Neste sentido, os festivais independentes são políticos, uma vez que, abrem as possibilidades de visibilidade às massas ou ao indivíduo anônimo, ao qualquer um, ao povo, às diferenças.
Hesmondhalgh (2013, p. 2) se pergunta, em seu livro Why Music Matters?, “o que distingue as práticas e experiências musicais de outras práticas artísticas, culturais e sociais?19” e indica “duas dimensões contrastantes e, ao mesmo tempo, complementares da experiência musical nas sociedades modernas” que reforçam uma a outra. A primeira é o vínculo dos sentimentos intensos e emocionais com a subjetividade individual, incluindo-se aí as formas como a música oferece uma base para relações íntimas com outros. A segunda é que a música frequentemente constitui a base para experiências públicas e coletivas (HESMONDHALGH, 2013, p. 3-4). Como diz o autor:
Sentimento de comunidade também deriva das capacidades da música em desenvolver experiencias de coletividade, e há razões para valorizar isto. Música, então, representa um memorável ponto de encontro entre os reinos íntimo e social. Isto provê uma base para a auto identidade [...] e para a identidade coletiva [...] frequentemente no mesmo momento20 (HESMONDHALGH 2013, p. 5).
Ainda que a música tenha parcela de contribuição para a prosperidade (flourishing) humana, há constrangimentos postos a ela. De modo geral, mesmo as principais aproximações das Ciências Sociais ao papel da música no dia a dia (music in everyday life) “superestimam a liberdade das pessoas para usarem a música e subestimam os modos em que a música está atada com problemas sociais como desigualdade e sofrimento21” (HESMONDHALGH, 2013, p. 21).
O autor sustenta o que denomina de aproximação ao objeto pelas capacidades (capabilities approach), mostrando que há “evidências consideráveis da rica sociabilidade relacionada à música que não deve ser superestimada em uma busca pelas formas ideais22 de existência comunal23”. E reafirma a “contínua habilidade da música para desenvolver socialidade e sociabilidade na vida comum24” (HESMONDHALGH, 2013, p. 30).
As relações que a música estabelece com o mundo social e os seus problemas se destacam nas mais diversas áreas da vida e incluem relações com a justiça social, com o desenvolvimento das cidades, no papel de sustentação das formas de sociabilidade “que mantém vivos os sentimentos de solidariedade e de comunidade25” (HESMONDHALGH, 2013, p. 35), pela contribuição à vida coletiva ao favorecer lutas sociais por uma melhor distribuição da prosperidade e, entre outros, na sua influência sobre os processos políticos democráticos e deliberativos.
Para além do sentido forte da música ao vivo que se esboçou acima, pretendemos discutir também, ainda que suscintamente, os questionamentos do valor da música independente expressos em qualificativos como de “baixa qualidade” ou apenas “ruim” e o rebaixamento das bandas desconhecidas como “bandinhas do interior”, e como estas classificações se articulam com uma longa história de desigualdade e violência no país. Nossa intenção foi mostrar que as divisões, princípios de divisão e os bloqueios do campo musical e do campo social mais amplo, enfrentados pelos indivíduos atuantes nos campos de produção restrita na última década, dificultaram, quando não impediram, o desenvolvimento das cenas independentes e da música ao vivo no país. Esses limites são intimamente relacionados com as avaliações sobre a qualidade da música.
Para Adorno ([1932] 2002), a violência da totalidade social se expressa na composição musical pela exigência de compromissos com o sistema e na violência da resistência dos músicos à identificação, particularmente através do choque. A violência sistemática, no entanto, conduz a expressividade humana pela antinomia à completa reificação e perda de qualquer caráter formativo. A tendência para a reificação é o que o filósofo alemão denominou de “a linguagem codificada do sofrimento” (the coded language of suffering) (ADORNO apud HESMONDHALGH, 2013, s.n.). Para ele, aquelas obras que evitam essa tendência adotam o critério de manutenção do máximo de subjetividade autônoma do humano e do máximo de conteúdos formativos das obras, ao invés do critério do sucesso, do star system, tão criticado pelo filósofo alemão.
Adorno, no entanto, adota um ponto de vista elitista, especialmente no que se refere às suas análises da música popular e, particularmente, do Jazz. É possível uma análise política da música popular para além de Adorno. O choque é frequentemente o modo de manifestação política daqueles invisibilizados pela ordem social dominante e cujo resultado pode ser o aparecimento de uma forma de exclusão e o início de um processo de luta. Surpreendentemente, encontramos em Walter Benjamin uma formulação do caráter político das obras de arte. Para ele, a função social da arte se transforma com a revolução iniciada pela fotografia: “Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política” (BENJAMIN, 1994, p. 172).
É, portanto, nos sentidos políticos das obras de arte que um critério de qualidade deve ser buscado. Segundo Rancière (1996), o dano fundamental da desigualdade e das divisões desiguais do mundo sensível requerem uma “estética da manifestação” para que se demonstre a lógica de produção do dano. É a configuração estética em que se inscreve a palavra do falante de afirmação do seu pertencimento ao comum que constitui “o cerne do litígio que a política inscreve na ordem policial” (p. 68). Essa palavra atua na compreensão de uma ausência, de um dano, por parte daqueles excluídos da divisão do sensível. Essa compreensão institui a comunidade política. A autonomização da estética é um modo de subjetivação que inventa
mundos de comunidade, que são mundos de dissentimento, exige esses dispositivos de demonstração que são, a cada vez e a um só tempo, argumentações e aberturas de mundo, abertura de mundos comuns - o que não quer dizer consensuais [...] (RANCIÈRE, 1996, p. 69).
No caso dos campos de produção musical restritos, a conquista de legitimidade cultural a partir de um critério próprio - político - foi o objeto de um litígio enfrentado por uma geração de artistas/bandas, produtores, fans e demais agentes da música independente. Os campos restritos, especialmente o da música ao vivo, são compostos por práticas diversas, mas preponderantemente pelas práticas da produção musical, seja na produção de eventos, na composição e gravação, em apresentações ao vivo ou nas formas de divulgação e distribuição em meio digital. A autonomia que os caracteriza resulta do desenvolvimento de uma regra própria - a independência - e da sua expressão em um mercado específico - o mercado intermediário.
É comum a opinião, entre os artistas e produtores, que o festival é o cume de toda a atividade realizada nos campos de produção musical independente. Os festivais, cada um a sua maneira, incorporam uma estética da manifestação e é na linguagem e nas performances dos artistas nos palcos que se estabelece o choque que inaugura o litígio. Este se dá contra a estrutura concentradora da indústria fonográfica, pela abertura de novas audiências para os artistas/bandas independentes, para a sustentabilidade vista, muitas vezes, não mais como atingir o sucesso comercial, mas fundamentalmente como ‘viver da música’. A música ao vivo é fundamentalmente política na medida em que é a autonomia conquistada pelos festivais independentes que abrem as possibilidades para o “qualquer um”, a(o) negra(o), a mulher, a trans, o(a) louco(a), o(a) punk, a(o) metaleira(o), entre outros, se manifestarem em seus modos próprios de ser, fazer e dizer.
Resulta disso que um critério de qualidade fundado na política para a música independente pode ser visto pela perspectiva do “menor” (DELEUZE, 2014). Em sua análise sobre a obra de Kafka, Deleuze indica que uma literatura menor é “a que uma minoria faz em uma língua maior” (p. 35); em segundo lugar ela é, em tudo, política, e, em terceiro lugar, tudo nela toma um valor coletivo. Mesmo com uma “menor formalização”, para Deleuze “não há tão grande, nem revolucionário, quanto o menor” (p. 52). Uma literatura menor ou uma música menor é “sonhar o contrário: saber criar um devir menor” (p. 53).