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Emporium & Warisan: re-inscrevendo o património colonial1
Ema Pires
Ema Pires
Emporium & Warisan: re-inscrevendo o património colonial1
Emporium & Warisan: rewriting colonial heritage
Emporium & Warisan: re-inscribiendo el patrimonio colonial
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 22, núm. 2, pp. 84-105, 2019
UFG - Universidade Federal de Goiás
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Resumo: Este texto discute o processo de patrimonialização em curso na cidade de Malaca (Malásia Ocidental). Ancorado em pesquisa etnográfica, este artigo explora noções (e valorações) alternativas de património por parte de diversas categorias de pessoas na cidade, demonstrando que a produção de discursos sobre o espaço está eivada de significados diversos (e por vezes conflituais) do que é valorado como património (warisan, em língua local).

Palavras-chave: PatrimonializaçãoPatrimonialização,EspaçoEspaço,TurismoTurismo,MalásiaMalásia.

Abstract: This text discusses the ongoing patrimonialization process in the city of Malacca (West Malaysia). Anchored in ethnographic research, this article explores alternative notions (and valuations) of heritage by various categories of people in the city, demonstrating that the production of discourses about space is fraught with diverse (and sometimes conflicting) meanings of what is valued as heritage (warisan, in local language).

Keywords: Patrimonialization, Space, Tourism, Malaysia.

Resumen: Este texto discute el proceso de patrimonialización en curso en la ciudad de Malaca (Malasia Occidental). Basándose en la pesquisa etnográfica, explora nociones (y valoraciones) alternativas de patrimonio por parte de diversas categorías de personas en la ciudad, demostrando que la producción de discursos sobre el espacio está llena de significados diversos (y, a veces, conflictivos) de lo que es valorado como patrimonio (warisan, como se dice en la lengua local).

Palabras clave: Patrimonialización, Espacio, Turismo, Malasia.

Carátula del artículo

Artigos

Emporium & Warisan: re-inscrevendo o património colonial1

Emporium & Warisan: rewriting colonial heritage

Emporium & Warisan: re-inscribiendo el patrimonio colonial

Ema Pires
Universidade de Évora, Portugal
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 22, núm. 2, pp. 84-105, 2019
UFG - Universidade Federal de Goiás

Recepção: 05 Novembro 2018

Aprovação: 15 Março 2019

Este texto discute o processo de patrimonialização em curso na cidade de Malaca (Malásia Ocidental). Ancorado em pesquisa etnográfica, este artigo explora noções (e valorações) alternativas de património por parte de diversas categorias de pessoas na cidade, demonstrando que a produção de discursos sobre o espaço está eivada de significados diversos (e por vezes conflituais) do que é valorado como património (warisan, em língua local).

Localizada no estreito com o mesmo nome, Malaca e o início do seu povoamento remontam ao ano de 1403 d. C. Ao longo dos séculos seguintes, a cidade consolidou-se na região como um emporium, e ainda como metrópole da zona, que hoje é designada como Sudeste Asiático. Se o lugar da cidade na rede de actividades mercantis do arquipélago malaio lhe conferiu centralidade e relevância crescente a nível regional, foi esse mesmo facto que motivou a conquista subsequente da cidade por sucessivos poderes europeus: por portugueses em 1511, por holandeses em 1641, e finalmente ocupada por ingleses em 1824 (e até 1957, ano em que o país atingiria a independência do poder colonial britânico). A cartografia urbana contemporânea de Malaca desvela ainda a espessura histórica destas sucessivas ocupações coloniais, e na contemporaneidade este ‘legado colonial’ tem vindo a ser reformatado e por vezes contestado por meio de um processo de patrimonialização. Em 1988 a cidade passou a ser classificada como ‘cidade histórica da Malásia’. E desde 2008, Malaca integra a lista de Cidades Património Mundial da Unesco.2 Neste novo contexto, a enunciação e regulação do que é valorado como ‘património’ (‘Warisan’, em língua malaia) tornou-se um processo mais problemático e um terreno de contestação simbólica. Desde 2008, com a classificação pela UNESCO, a cidade é palco de uma ainda mais complexa galeria de transformações. Estas transformações e agenciamentos são dimensões recentes de um processo mais recuado. A espessura histórica de Malaca e a densidade simbólica das suas múltiplas camadas estratigráficas são uma interessante janela analítica sobre os processos de continuidade sócio-cultural do mundo contemporâneo. De ocupação colonial sucessiva, foi a primeira capital do espaço político que hoje toma a forma da nação da Federação da Malásia Ocidental. Na década de 1950 do século XX, foi um importante palco simbólico de negociação da transição para a independência face à administração britânica. Desde então, tem-se desenvolvido como cidade “histórica” e “turística” na Malásia contemporânea. Este mapeamento da cidade pelos poderes internacionais e nacionais corresponde temporalmente a uma fase mais recente, contemporânea, ainda que tecida processualmente ao longo do século XX. É povoada de multivocalidade e retóricas do que é o património, arquitecturada simbolicamente em torno de múltiplas escalas e grelhas analíticas, de múltiplos agenciamentos e narrativas, representações e apropriações, e vozes de contestação audíveis ou inaudíveis.

Uma abordagem alternativa de análise convida-nos a praticar o espaço (Certeau, 1988) através da observação e/ou participação nos itinerários de residentes na cidade. Argumenta-se que a Malaca contemporânea, apesar de ser mapeada como património (warisan), continua a ser um emporium,3 ainda que os produtos que lá se vendam sejam de natureza diversa dos que se vendiam no passado.

Como referimos num outro lugar (Pires, 2012), a partir da etnografia realizada, verifica-se que a acção na intermediação e regulação do processo de patrimonialização na cidade é visível em várias categorias de pessoas e instituições:

  1. 1. Ospolíticos, burocratas e técnicos nacionais. Estas pessoas são agentes do poder político da Malásia, exercendo a sua acção a nível local (referente às autoridades do Governo da cidade), estadual (referente ao Estado de Malaca), e federal (Governo nacional). Numa visão pragmática, as autoridades inscrevem a cidade histórica como um bazar de produção e consumo do passado, facto que à primeira vista poderia ser visto como ‘nostalgia’ colonial. Argumentarei na análise que esta sua produção é na verdade uma forma de contra-nostalgia acerca do passado colonial.
  2. 2. Os expatriados, ligados a organizações internacionais várias, de que a mais forte e visível é a Unesco. Estes fazem advocacia cultural a favor da preservação. Têm agendas por vezes ocultas e por vezes públicas, e reclamam autoridade internacional na política relativa ao espaço urbano. A Unesco é, na verdade, uma espécie de estado galáctico que tem um centro político na Europa e várias delegações e funcionários dispersos pelo globo. Estes funcionários são expatriados, muitas vezes, e a sua acção materializa-se na actividade de consultores e reguladores das policies a aplicar em cada cidade patrimonializada. As suas gramáticas de gosto são geralmente euro-centradas e a ideologia prevalente na sua retórica parece ser a do conservacionismo.
  3. 3. Os investidores imobiliários (estrangeiros e nacionais). A visibilidade do capital estrangeiro que circula e formata transformações no espaço é grande. Estes investidores são uma categoria de pessoas de difícil, senão impossível, acesso. Através dos media, estão visíveis em espaços de publicidade anunciando a venda e construção de espaços (residenciais e comerciais) na cidade, quer na zona classificada pela Unesco, quer fora dela, em particular nas zonas costeiras.
  4. 4. Os Activistas (das ONG de Defesa do Património).
  5. 5. Os cidadãos de Malaca, uma categoria ampla de pessoas apropria quotidianamente a cidade. Demonstrarei ao longo do presente artigo os seus modos diversos e alternativos de apropriarem a cidade.

Vozes Dissonantes

Se a Malaca do fim do colonialismo era descrita em narrativas variadas como uma “cova sonolenta”, um emporium secundário, a cidade pós-colonial, alicerçada sobre a colonial, é considerada como a “cidade histórica” do país; e tem vindo a ser alvo de um processo de monumentalização e classificação que tem implícitas, na actualidade, visões alternativas e por vezes conflituais do espaço e tempo coloniais. Em concreto, desde 1988 que Malaca é reconhecida como “cidade histórica” (Bandaraya Bersejarah) da Malásia. Um folheto oficial recente (Tourism Malaysia, 2008, s/p), publicado em Setembro de 2008 pelo Ministério do Turismo, sumariza a procura corrente do património e turismo e enfatiza uma narrativa essencializada sobre o passado. Entre o Património Histórico, o Governo malaio destaca “antigas relíquias que abundam na cidade histórica”, nomeadamente a fortaleza “A Famosa”, construída pelos portugueses em 1511, intitulada como “monumento de especial interesse”. Uma nota explica que ela “foi bastante destruída durante a invasão holandesa [...]. Intervenção atempada de Sir Stanford Raffles, militar inglês, em 1909, salvaguardou o que hoje conhecemos de ‘A Famosa’”. A publicação prossegue convidando o visitante a percorrer o passado colonial: “Descubra o passado de Malaca no Stadthuys”, mais um “monumento de especial interesse” em Malaca, “construído em 1650 para residência oficial e escritório dos governantes holandeses”. Actualmente, refere-se que “alberga o Museu de História e Etnografia. Originalmente branco, foi pintado numa cor de salmão avermelhado para condizer com a vizinha Igreja de Cristo”.

Outros espaços descritos como “património histórico” incluem igrejas, cemitérios (holandês e inglês), mausoléus (de “guerreiros malaios”), um forte, uma encosta e um poço conhecidos pelo nome de uma princesa chinesa, Hang Li Poh. A relação com o passado colonial transparece em algumas das descrições dos espaços referidos acima. Por exemplo, acerca do Poço de Hang Li Po, é dito que “era a única fonte de água potável durante as secas mais severas”, e ainda que “Os holandeses rodearam-no com fortes muros que garantiam o seu uso exclusivo” (Tourism Malaysia, 2008, s/p).

No âmbito do Património Cultural, as autoridades governamentais incluem os seus próprios grupos de cidadãos: “malaios”, “chineses”, “indianos” e “portugueses-euroasiáticos4”. Seguem-se alguns dos museus de Malaca. O “Palácio do Sultão de Malaca”, que é a “réplica em madeira de um palácio malaio do século XV”, e está convertido em “Museu Cultural”, adquire especial relevância. No seu interior, um “enorme diaporama representa a corte do sultão, enquanto a exposição principal está dedicada à cultura existente em Malaca” nos tempos anteriores à colonização. Outro espaço museológico destacado pelas autoridades turísticas é o “Monumento à Proclamação da Independência”, o qual é descrito como um “palacete inglês de 1912” que foi “outrora a sede do Clube de Malaca, um bastião do colonialismo”. Por fim, inclui-se nos recursos de Património Cultural um “Espectáculo de Som e Luz” que se pode ver no centro comercial “Datharan Palawan”; segundo os responsáveis pelo turismo, esta é a “melhor maneira de conhecer a história de Malaca”, já que alguns dos seus “episódios mais significativos” são “reinterpretados recorrendo a efeitos de luz, narrativa, diálogo, música e efeitos sonoros que apresentam cenas da vida real”.

Este último exemplo ilustra a plasticidade dos conceitos de réplica e autenticidade, trazendo para a discussão as relações entre cultura, política e economia. Ao pintar praças com cores garridas e ornamentar ruínas com luz e som, os responsáveis pelo Turismo da Malásia reajustam a história colonial de acordo com as suas próprias agendas e valores.

Uma leitura alternativa sobre a cidade, em contradição face às vozes das autoridades da Malásia, é enunciada pelos arquitectos Lim Huck Chin e Fernando Jorge, que são investigadores, activistas de defesa do património, e membros da ONG Badan Warisan Malaysia (Heritage Trust of Malaysia). Resultados de uma investigação aprofundada, publicada sob o título Malacca: voices from the street, permitiram escrever uma história da arquitectura dos bairros históricos com muito pormenor. Voices from the street é uma leitura alternativa à retórica do património cultural praticada pelas autoridades malaias em Malaca. Os autores (Lim; Jorge, 2006, p. 11) salientam que:

[…] two parallel experiences thus defined the process of documenting the city’s people and places: the experience of discovery - of personal stories, untold events and vanished places; and the experience of watching a city on the path to self destruction - driven by greed, ignorance and development by the irresponsible.

Suportados pela sua investigação, os autores advogam contra o que identificam como sendo uma delapidação do património cultural da cidade (Lim; Jorge, 2006, p. 12), resultante da actual gestão pelas autoridades regionais e nacionais:

Malacca is a city with an irreconcilable past. In which history is hastily rewritten and packaged for mass consumption; in which the oldest buildings are condemned, their parts sold to willing buyers; in which the past is wrongly told but unquestioningly swallowed; in which traditional communities are displaced by the inexorable drive for profit; in which only the marketable is retained and the rest discarded; in which banality buries diversity; in which historical icons are ripped out of context and exploited for tourism; […] We learnt that Malacca expertly empties places of historical meaning and relevance. Place-names are randomly changed, streets repeatedly rechristened. The past is promptly traded - and always at a price. Where the hands of conservation should have lent their touch, we heard the crash of demolition.

Este processo urbano foi exacerbado pelo próprio turismo, nos tempos mais actuais. Segundo os autores, um exemplo paradigmático de delapidação do património aconteceu em 2000, quando as autoridades locais de turismo criaram o “Jonker Walk”, um projecto de turismo que consistia no encerramento de ruas durante os fins-de-semana para realização de um mercado nocturno. Segundo defensores do património, este projecto catalizou a destruição do património imaterial daquelas ruas (Lim; Jorge, 2006, p. 78), já que negócios tradicionais foram sendo eliminados em resultado da subida das rendas induzida pela introdução do “Jonker Walk” (Lim; Jorge, 2006, p. 74).

A zona central listada pela Unesco inclui a Rua Jonker e áreas adjacentes da Chinatown, um total de cerca de 38 hectares. O bairro urbano foi reabilitado na última década, através do turismo e de processos de patrimonização, dando lugar a lojas de artesanato, cafés e outros serviços. Este processo gerou contestação de defensores locais do património e cidadãos de Malaca. Concomitante com estas novas actividades, uma actividade económica viria a ser desenvolvida nos pátios das velhas casas: a criação de aves para venda. Uma actividade praticada pelos residentes sino-malaios em casas abandonadas do centro da cidade (na zona de Chinatown). Criar aves para venda é uma actividade lucrativa, segundo a perspectiva local. Porém, é considerada uma actividade embaraçosa no âmbito dos processos de conversão turística. Sob o ponto de vista do património, os conservadores - de organizações internacionais [e.g. Unesco] e organizações não-governamentais - defendem que a criação de aves destrói a arquitectura das casas e os respectivos usos históricos. A gripe das aves de 2008-10 viria a exercer uma pressão adicional sobre a cessação deste uso. Jornais locais e nacionais tornaram o assunto público e de primeira página. Extra-fronteiras, surgiram razões do foro simbólico e ideológico: foi considerado que criar aves conspurcava a zona histórica e colocava em causa os critérios definidos pela Unesco, para classificação das zonas Património da Humanidade. Em 2008, na sequência da listagem da Unesco, esta organização pressionou o Governo malaio (autoridades locais e nacionais) para que proibisse esta actividade, sob o argumento de limpar a zona histórica e prevenir a gripe das aves (cf. Secção infra, ‘Unesco ao Jantar’).

Na actualidade, segundo os meus informantes, a própria cidade “histórica” classificada pela Unesco, converte-se numa espécie de parque temático de lazer (“leisured theme park”). Há uma perspectiva de fundo que me leva a especular que ali, a noção de heritage é um terreno de “jogos sérios” (Ortner, 2006). O que pude observar em Malaca, durante o trabalho de campo, revela-me que a cidade e os seus poderes agenciam em diferentes momentos a noção local de heritage (warisan), que é manuseada como uma ferramenta de money-making e de competition practices. A cidade em 2008 - ano da classificação pela Unesco - apresentava, com a acção dos líderes políticos (em particular o Ministro Chefe do Estado de Malaca) vários novos equipamentos: uma roda gigante panorâmica, localizada junto ao Estreito. Segundo os residentes, a roda foi comprada em segunda mão em Kuala Lumpur. Um segundo equipamento, novidade na cidade, era uma Torre Panorâmica. Ambos os equipamentos se assemelham e competem simbolicamente com outros existentes na capital do país, Kuala Lumpur. A roda gigante, por sua vez, é réplica de uma existente em Londres.

Vozes alternativas

Devido ao tipo de abordagem metodológica, a etnografia permite-nos entender nuances no tecido social dos processos culturais relacionados com o património. Das práticas locais às múltiplas agências de organizações (de base local, nacional e internacional), diversas vozes regulam, exibem direitos e se apropriam do uso de espaços, e por fim inscrevem a designação “património” nos mapas locais da cidade. Também os cidadãos de Malaca têm uma palavra a dizer sobre como valorizam o espaço e os processos de patrimonização. A sua ideia de “património” (warisan) esteve em tempos incorporada nas suas idas às compras e itinerários de mobilidade urbana.

Um exemplo de mapas alternativos de “património” é visível nas vozes de estudantes de Malaca.5 Esta secção apresenta dados preliminares de um estudo exploratório intitulado “My Malacca: Cultural Mapping and Heritage Awareness”, que desenvolvemos na Escola S.K. Canossa (de Ujong Pasir) em 2009. Os dados foram recolhidos6 em cinco turmas, durante o horário lectivo da disciplina de Persendirian.7 Foi pedido às estudantes que construíssem um itinerário na cidade, através do preenchimento de um diagrama8 (fornecido por mim). Os quatro lugares escolhidos por cada estudante desenham um itinerário urbano de como a cidade seria mostrada aos seus amigos imaginários. Os resultados preliminares mostram que os espaços mais escolhidos pelas estudantes são: em primeiro lugar, “A Famosa” [ou Porta de Santiago, uma ruína do Forte Português]; e também os Centros Comerciais [“Shopping malls”], com resultados ex-aequo [44]. Estes são seguidos por dois outros lugares: a Rua Jonker [40 respostas] e a Praça de “Stadthyus/Clock Tower” [37 respostas].


Figura 1
“My Malacca: Cultural Mapping and Heritage Awareness”
Fonte: Respostas de Estudantes, Turmas de Ano Escolar 2009, Canossa School, Ujong Pasir, Malaca.

Uma análise exploratória dos dados recolhidos nos mapas de itinerários desenhados pelas alunas desvenda uma cidade representada como empório de consumos a que associam práticas espaciais de valoração de património. Este facto está presente na generalidade das respostas (cf. infra) e é também exemplificado na voz de duas estudantes:

A estudante April Danker, comentando as suas escolhas das ruas Jonker e Bunga Raya, da Praça de Stadthuys e do forte A Famosa, ilustra-as do modo seguinte:

1. Jonker Street - It’s only open on weekend. It’s located near the Sungai Melaka. This place is always crowded with people because the thing[s] that are sold there are cheap. Every night there will be different performances such as karaoke competition, [and] culture dancing.

2. Bunga Raya - It is a place where old people used to do their shopping. There they sell clothes and artificial flowers of many different kinds. It has been there for many years. Many old people prefer to go shopping there than [going to] shopping complex[es] because there [one] has many food shops which sell different kinds of food and also sell “mata kucing” drink.

3. Stadthuys. It is a red building which many tourist[s] come to visit. It was built by the Dutch. It has a big clock which people usually call ‘Clock Tower’.

4. A Famosa - It is a historical place left by the Portuguese who once conquered Melaka. There we can see weapon[s] that have been left by the Portuguese, like the canon.

A descrição de April Danker é baseada no seu conhecimento pessoal e na sua experiência de cada espaço, interligados com imagens gerais do que os turistas costumam visitar. Significado diverso encontra-se na sua segunda escolha, Bunga Raya, uma rua valorizada pelo seu grupo, ainda que não seja considerada “warisan” pelas organizações transnacionais, ou pelas políticas governamentais. Ao escolher Bunga Raya como o lugar para ir às compras com a sua amiga visitante, April liga o seu itinerário de lazer às práticas de consumo das suas avós euroasiáticas. E, ao fazê-lo, April reinscreve as práticas espaciais de circular na cidade, no seu modo de construir um itinerário para apresentar Malaca. O significado vernáculo da Rua Bunga Raya torna o espaço com valor para ser visto pela amiga imaginária de April.

Bettina Ann, estudante que se auto-identifica etnicamente como Chinese-Malaysian, aprofunda mais as suas escolhas, como se reproduzisse uma cartilha previamente aprendida:

1. Stadthuys - It is said that the Stadhuys is probably the oldest remaining Dutch colonial building left in Southeast Asia. I [would] like to take her there because it has a great history behind it. She could learn a lot about our oldest days and [about] our country’s history. It is also a main tourist attraction.

O segundo espaço escolhido por Bettina para receber a amiga de visita é a Portuguese Square. Para Bettina, “it’s a good idea to bring her there so that she would have the opportunity to savour traditional Portuguese food and also witness the colourful cultural dances by the Eurasian community”. Em terceiro lugar, Bettina refere que levaria a amiga até Jonker Walk, descrita como uma:

[…] street in Chinatown, with many antiques stores. On weekend nights the whole street is closed for traffic and turns into a lively night market. I would love to take her there because it’s really beautiful at night, with the red lights and all. She would also have the chance to see real antiques from ages ago. It’s really lively so it’s fun walking around. It also has bars nearby where you can stop and have a drink.

Por último, a viagem imaginária de Bettina terminaria nas ruínas de “A Famosa - Built by the Portuguese in 1511 as a fortress […]. I’d like to take her there to show her our times back when we were ruled by the British. It’s an amazing place because it’s been around after so many years. It shows a great history about our country”. O itinerário de Bettina é composto por três espaços identificados como warisan (património) pelas organizações nacionais e internacionais. As palavras da estudante compõem um itinerário cheio de articuladas identificações a respeito de cada espaço. Quer usando descrições realistas, onde o passado colonial é apresentado, quer através do seu gosto e conhecimento local, o passeio de Bettina revela noções alternativas de valor atribuído ao património.

Os itinerários produzidos pelas estudantes April Danker e Bettina Lim são globalmente consonantes com as restantes valorações das suas colegas. Em seguida, caracterizam-se sinteticamente as principais respostas das estudantes: a escolha igualada na relevância dada a espaços patrimonializados e a espaços de consumo (“emporia”).

“Lugares Históricos” e “Centros Comerciais”

“A Famosa” é um duplo rótulo: trata-se de uma ruína (de uma antiga fortaleza), portanto uma referência histórica, classificada em listas de património nacionais e internacionais; mas é também o nome de um parque temático localizado dentro do Estado de Malaca (as respostas de estudantes mencionadas nesta secção referem-se à ruína, e não ao parque). Todas as respostas incluíram as características “históricas” do espaço. Entre as descrições feitas por estudantes euroasiáticas, a ligação ao passado vem recorrentemente à superfície. Lucia de Costa diz “aquela fortaleza foi construída pelos meus antepassados quando invadiram Malaca em 1511” [Lúcia de Costa, 17 anos]. Alina de Cruz acrescenta que lá dentro “there are statues, graves and paintings to remind the people about the sufferings of the past ancestors” [Alina de Cruz, 17 anos]. Algumas das descrições são muito enfáticas. Já outros estudantes descrevem o local com realismo: é em “Banda Hillir. During weekends, there will be many people climbing [it]. The view from the top of the hill is very beautiful” [Joyce Lim, 17 anos]. A escolha pode também ser determinada pela localização da ruína: “behind the Melaka Mall. It is near the schools. […] it is left by the Portuguese” [Kelly Conzago, 17 anos]; “It is opposite Datharan Palawan which is a shopping center. It is an old building which was built by the Portuguese” [Veronica Farnell, 17 anos]. A razão pode ainda ser “because many tourists like to go [there] and take picture” [Christin de Souza, 16 anos].

O centro comercial Datharan Palawan, pelo contrário, é descrito como “a very fun place for us teenagers. It is a big shopping complex complete with a cinema […] known as one of Malaysia’s biggest cinemas. This place also has a lot of variety. We can also relax and walk around” [Robyn Lopez, 15 anos]. Entre as estudantes mais novas, o Datharan Palawan é sobretudo considerado um espaço de lazer onde ir “play games” [Wendy de Costa, 13 anos], “bowling and karaoke” [Sheena Lazaroo, 13 anos]. Andrea Chin é a única entre os colegas que refere que gostaria de ir ao espaço do Padang Palawan - um campo relvado a céu aberto no topo do referido centro comercial - para ensinar jogos de desporto à sua amiga; no interior deste edifício, elas iriam depois “shopping together” [Andrea Chin, 13 anos]. Para outras estudantes, as funcionalidades do centro comercial são, entre outras: “to have fun” [Andrea Gomes, 13 anos], “to find cheap stuff” [Kimberly Lynn, 17 anos], “[to] buy souvenirs” [Abigail Gomes, 15 anos; Malvinder Kaur, 13 anos], “to eat” [Wendy de Costa, 13 anos]; ou simplesmente porque estão “located around the history places” [Valentina Monteiro, 13 anos].

Registos etnográficos revelaram que as práticas de lazer dos estudantes são replicativas das práticas quotidianas de outras categorias da população. Aos fins-de-semana, ir ao Datharan Palawan converteu-se no passeio de Domingo mais praticado pela maioria dos habitantes de Malaca de classe média. O centro comercial é portanto um novo elemento da Malaca moderna. Ser moderno também significa frequentar o centro comercial, fazer compras ou ver as montras.

A Rua Jonker, localizada no centro da zona classificada pela Unesco, foi outra escolha frequente (40 respostas). Segundo as estudantes, esta rua oferece um mercado ao ar livre onde podemos ver “many old games, traditional clothes” [Andrea Chin, 13 anos], ou comprar “lots of handicrafts and handmade items” [Michele Wong, 13 anos], e “oldtimes’ stuff” [Alina de Cruz, 17 anos]. A estudante Nicole St. Maria é mais específica: “There’s even a shop selling beaded shoes. It’s a traditional footwear wore by the Peranakan people. On Sunday morning, there’s a flea market where people sell some antique things” [Nicole Sta. Maria, 16 anos]. Adicionalmente, há ainda em Jonker: “things such as teddy bears, chains, earrings and more” [Angie Francis, 13 anos].

Descrita como um bazar a céu aberto, na rede comercial da cidade, a comida é outro elemento essencial relacionado com a definição do espaço pelas estudantes. A rua é caracterizada deste modo: “a long street with many stalls selling local food” [Kimberly Lynn, 17 anos]. Neste aspecto, esta rua assemelha-se mais aos foodcourts existentes pela cidade do que aos centros comerciais dentro dos quais existem cadeias internacionais de comida rápida. Annesta Theseira especifica que em Jonker “there is also traditional […] food9” [Annestta Theseira, 13 anos]. O uso do adjectivo “tradicional” por esta estudante é também relevador do mapeamento que existe na cidade entre espaços de comida local e não local. Para além de local de compras, a forma construída da rua é uma atracção em si: “All the houses are very unique and beautiful. There is also a big stage where we can hear men and women sing the song of their choice” [Michele Wong, 13 anos]. E ainda, “the lights there at night are spectacular and amazing” [Lucy de Costa, 17 anos]. A estudante Joyce Lim, em alternativa, sumariza a sua perspectiva sobre a rua colocando ênfase no modo como o espaço é apropriado pelas pessoas.10

Na generalidade, todas as estudantes inquiridas valoram positivamente que o espaço da rua tenha sido transformado em “Passeio Jonker” (Jonker Walk). As suas vozes desvendam um passeio público e lúdico, que liga o passado ao presente da cidade, numa síntese que elas valoram como positiva. Nas palavras de uma das estudantes, é um local onde existe “food, traditional clothes, old houses. When you go to Jonkers, you’d notice that people in the older days were very bright in the sense that they were able to make a little alley into a street market” [Abigail Swee May, 15 anos]. Em síntese, a Rua Jonker é mapeada pelas estudantes como um emporium, e é etiquetada também como warisan.

O Portuguese Settlement está em quarto lugar nas escolhas das estudantes da escola Canossiana inquiridas. A análise categorial realizada às respostas das estudantes desmonta as razões para escolher o espaço: por um lado, a proximidade da escola Canossiana e as características inerentes ao espaço, enquanto lugar de identificação com o grupo dos euroasiáticos. As estudantes caracterizam o espaço baseando a sua análise em três dimensões principais: o espaço em si, as pessoas ali residentes, e as actividades que têm lugar lá. O espaço é adjectivado de “wonderfull” [Andrea Bee, 15 anos], “beautiful”,11 ou “historical” [Alicia Tan, 17 anos]. O carácter extraordinário e único do espaço é colocado no facto de ser uma “culture area” e o “only situated in Melaka and the whole of Malaysia” [Claudia Pereira, 15 anos], e tendo “historical buildings, tradition and culture” [Wendy de Costa, 13 anos]. Outras estudantes evidenciam a forma construída da “Portuguese Square”,12 e, dentro desta, do “Portuguese Museum”, onde se diz que “there are all the antiques’ stuff that were left by the Portuguese People who came to take over the country”, segundo Cecília Lowe [16 anos], residente em Cristal Bay (Malaca). Também a estudante Mabel de Silva [16 anos], residente no Portuguese Settlement, levaria a amiga imaginária ao referido museu porque ali se encontram “many Portuguese things, such as […] Portuguese costumes”.

Para além do espaço em si, também as pessoas residentes no Settlement são representadas com uma valoração positiva e, por vezes, exotificada, pelas estudantes não euroasiáticas: “the villagers there are very friendly and caring” [Tracy Ching, 13 anos, Malaysian-Chinese], ou “the people and the food are very different and unique” (Jovina Ling, 17 anos, Malaysian-Chinese]. Também Sabina James insere o espaço no seu itinerário com a amiga, “so that she can know more about the culture of the Eurasians” [17 anos, Malaysian-Indian]. Se o quotidiano é tornado reportório para uma visita ao Settlement pelas estudantes não-euroasiáticas, valorações comparáveis existem entre as estudantes euroasiáticas: Charlotte Felix, por exemplo, acrescenta que levaria a amiga imaginária “to show her how we live as a community” [Chalotte Felix, 13]. Charlotte Mary de Rozario (14 anos, residente em Garden City, Ujong Pasir), escolhe o Settlement devido às características do espaço e porque é o lugar de origem da sua família: “[…] my great grandmothers, and my grandmother and aunties grew up there and the place is full of culture. You can see the modern and traditional all in one. She can also experience the best thing about Portuguese culture: The FOOD!!!”.

De igual modo, Robyn Lopez [14 anos, Chinese-Eurasian, residente em Ujong Pasir] escolhe o Portuguese Settlement devido à sua própria história familiar:

Because this is the place where I was born and raised. It is also very interesting because the people here are still following their traditions. They also have their own language. This place is also situated along ‘Selat Melaka’. According to history, this is where the first Portuguese set foot at 1511. Besides the culture, in the evening along Selat Melaka we can enjoy the beautiful scenery of the sunset at the jetty.

Sobre as actividades a realizar naquele espaço, entre as respostas dadas pelas estudantes, encontramos as seguintes: comer [Teresa Savage, 15 anos; Jolene Lee, 17 anos], relaxar, assistir e participar nos “events and shows”13 organizados [Susanne Danker, 13 anos], ou ainda nos “many traditional games” [Wendy de Costa, 13 anos]. Vivianna Cindy Pereira [13 anos] escolhe-o em primeiro lugar porque é “an interesting place”, porque as pessoas “who are staying here are so friendly”, e ainda para que “my friend can see the Portuguese cultural dance[s]”. Daphne Lowe, que se auto-identifica como Portuguese, apresenta como motivação para a escolha o desejo de “know the culture and the history of it”, e os “festivals here like ‘Intrudu’, ‘San Pedro’ and ‘San Juang’” [Daphne Lowe, 15 anos]. A estudante Rebecca Anthony (Malaysian-Indian, 15 anos) salienta o binómio “comida” e “pessoas” como o mais visível no espaço.14 Outras estudantes especificam mais o valor atribuído ao ambiente envolvente ao Settlement, nomeadamente a proximidade do estreito, o ar fresco e a paisagem.15

Em conclusão, sublinhamos que o conjunto de itinerários propostos pelas estudantes de Ujong Pasir desenha uma cidade cujo mapeamento patrimonial desvenda consumos múltiplos, cujo mapa urbano é alternativo às noções e versões oficiais sobre o passado e o presente.

Através de etnografia prolongada, é possível compreender como a cidade de Malaca é uma complexa arena patrimonial, configurando-se como espaço de negociação onde atuam agentes múltiplos (residentes, ativistas patrimoniais, políticos, burocratas de agências internacionais, entre outros). Para clarificar o nosso argumento, justifica-se a inclusão em seguida de duas secções com excertos detalhados de notas de campo, com vista a detalhar algumas das escalas que tomamos como eixos de análise:

Circulando na cidade

Nesta secção apresentam-se fragmentos da etnografia, com o objectivo de posicionar como Malaca é praticada, apropriada e representada pelos residentes. “Jalan-jalan, chari makan” é uma expressão usada quotidianamente. Literalmente, no contexto anglófono em que conduzi a pesquisa, quer dizer “going around, looking for food”; em português de Portugal, é traduzível da seguinte forma: “circular em busca de comida”. Esta expressão coloquial enquadra a presente secção, na qual situo algumas das práticas espaciais e os modos alternativos de apropriar a cidade, a partir da observação empírica realizada. Por motivos de contextualização e de fluidez de descrição etnográfica, altera-se neste momento o tom discursivo para o registo de diário. Importa contextualizar ainda que as entradas que se seguem foram registadas ad verbatim, em diferentes momentos do trabalho de campo. Tem por objectivo reproduzir a partir da empiria, e com a fidedignidade possível, a natureza fragmentária e fugaz do acto de “circular na cidade”:

Fim da tarde de passeio em Jonker Walk. Com Dylan e Doreen. Estacionamentos da zona cheios, dinheiro fácil para os privados. Ao fim-de-semana, há sempre mais gente: turistas, gente de Singapura e de Johor Bahru, que vêm a Malaca sobretudo pela comida. Na orla marítima, a roda gigante (Eye on Malaysia), comprada em segunda mão a Kuala Lumpur e inaugurada em Malaca no passado dia 8, estava iluminada. No Jonker Walk, população local em lusco-fusco. Doreen anota que os preços estão inflacionados (chinelos custam mais 10 ringgits do que no [centro comercial] Makhota - 18 e 28 ringgits, respectivamente). Apercebo-me também que as coisas à venda são todas muito iguais umas às outras. Há dois anos, havia artesãos e produtos locais mais diversificados. Agora, há muitos produtos iguais ou parecidos, a lembrar que podem ter sido comprados em grandes quantidades, e pertencer na verdade a um ou dois proprietários. Há alguns edifícios da rua que foram beautified (embelezados) e que agora são Gallery’s de vendas de produtos, todos iguais. Pergunto-me se os donos serão Malay ou Chinese(Notas de campo, 11 de Novembro de 2008, Sábado).

A partir de 2008, ano em que Malaca é declarada cidade “património mundial” pela Unesco, o mercado das atracções turísticas existentes na cidade seria diversificado mais ainda. Esta nova profusão de atracções de lazer na cidade gera impactos inevitáveis nas práticas culturais dos cidadãos e nos seus itinerários quotidianos.

A cidade e o centro histórico patrimonializaram-se, ao mesmo tempo que as antigas funcionalidades dos espaços comerciais se modificaram para dar lugar a novas procuras económicas, catapultadas pela procura turística. Exemplo disso é o excerto das notas de campo que se apresenta em seguida:

Domingo. Depois da Missa, pequeno-almoço com May de Costa e Jacinta Lazaroo na coffee-shop Greg’s House. Falamos sobre mobilidades e consumos na cidade. Dizem-me elas que antigamente, a Rua Bunga Raya e o Kampung Jawa eram os sítios de coisas baratas, onde “people can bargain”. [...]. Hoje, com os supermarkets, acaba por ser mais barato ir comprar lá (aos supermarkets). May remata a conversa: “whenever I can sit my but on [a] car to go, I’ll go”. Comprando ou não comprando nada, a mobilidade como maneira de apropriar a cidade está presente na experiência de May de Costa e de outros cidadãos euroasiáticos. Cidade que é um emporium de outros consumos, hoje. O preço reduzido dos produtos das grandes superfícies comerciais da cidade, vem transformar a geografia e o “ecossistema” disseminado de consumos locais. Do centro da cidade para fora, da mobilidade pedestre para a auto-mobilidade de carro, da cidade antiga (old town) para a cidade nova. (Notas de campo, 25 de janeiro de 2009, domingo).

Em síntese, o excertos do diário de campo, acima apresentados ilustram como os cidadãos de Malaca praticam o espaço (De Certeau 1988) da cidade. Ao trazer a empiria para o centro da presente análise, pretendeu-se dar voz a estas nas suas dinâmicas de praticar e apropriar Malaca.

Na próxima subsecção discute-se a agencialidade de instituições com poder formal sobre a patrimonialização da cidade: os burocratas, e os expatriados. A densidade etnográfica justifica a enunciação de um excerto longo das notas de campo:

Unesco ao Jantar

Ao fim da tarde, o meu anfitrião chega a casa e convida-me para um jantar com (pessoas da Unesco e do Governo local e da Associação Malacca Heritage Trust (a que ele também pertence). Será um jantar oficial, com a presença do Mayor e da delegação da Unesco, que estão de visita à cidade, e de técnicos do staff de várias instituições. […] A refeição decorreria na sala superior de um restaurante na zona norte de Malaca, um edifício novo localizado junto a uma zona aquática. Chegamos à sala antes da hora, ali encontramos vários outros convidados, na maioria técnicos, que esperam, em pé, pela chegada dos políticos e da delegação da Unesco. Há quatro mesas redondas na sala. A mesa central, e maior, é para os VIP’s, e as restantes, para os outros convidados. Entre estes, há pessoas do staff de instituições várias. Fui apresentada a algumas pessoas, entre elas uma arquitecta da Câmara de Malaca que vai supervisionar o processo do centro histórico. Michael apresentar-me-á pelo nome e pela origem geográfica: “Ema, from Lisbon”. Entretanto, estavam os locals e esta ropiana (europeia) na sala, quando chegou a delegação da Unesco (duas pessoas, R.E., o Adviser para a Ásia-Pacífico, e E.J., arquitecta australiana e consultora da Unesco). Cumprimentos feitos, eles foram sentados na mesa principal. Fui apresentada à consultora, mas não ao homem (seguindo os códigos malaios de etiqueta). Continuei em pé. Pouco depois chega o Mayor de Malacca, Y.J., acompanhado de mais staff; cumprimenta os convidados de honra da Unesco, e é-me apresentado a mim também, pelo meu anfitrião. Sou apresentada pelo nome e origem geográfica: “from Lisbon”.

Eu entretanto regresso ao lugar onde estava, junto à segunda mesa. Pouco depois uma rapariga nova chama-me e diz-me que sou convidada pelo Mayor, para a mesa principal. Cumprimento de novo a consultora, e sento-me à direita desta. Ao seu lado esquerdo, está já sentada a Presidente da Malacca Heritage Trust (MHT). À minha direita, um lugar vago. À esquerda da Presidente da MHT, há outro lugar vago, e depois, à esquerda, estão sentados dois homens, técnicos do Governo: o primeiro, veio de Penang, o segundo, responsável pelo Melaka Museums Department. Ao lado esquerdo deste, o Mayor, homem novo no cargo, ladeado, à sua esquerda, pelo Adviser da Unesco. Este é um homem de estatura baixa, calvo, usa um batik acinzentado. O traço mais proeminente da sua fisionomia é o seu nariz pontiagudo. A consultora, mulher alta e magra, de olhos claros e maxilares proeminentes, usa um vestido justo chinês (de cor preta com flores avermelhadas, e veste um casaco pequeno preto, rendado, por cima). O Mayor dir-lhe-á na recta final do jantar, que a acha parecida com um homem canadiano que conheceu no Quebec, o que gera algum constrangimento momentâneo. Todos à mesa parecem conhecer os membros da equipa transnacional da Unesco. Conversa social entre as mulheres, e demarcação espacial baseada no género. A consultora da Unesco pergunta à Presidente da MHT sobre as consequências visíveis do “listing”; um “rise in prices”, responde a activista. […]

O Consultor da Unesco entretanto pergunta à mesa (dirigindo-se a todos os presentes, e à Presidente da MHT, em particular): “how are people reacting to the Listing?” A activista reafirma a insatisfação pelo aumento dos preços. Eu acrescento que me parece que as pessoas estão descontentes com as situações de trânsito congestionado junto à Torre. O consultor da “Unesco”, dirigindo-se ao Mayor, afirmou: “To be honest, Malacca is a bad example of governance. I hope with you things will change” […] “We gave you this opportunity to improve; To make Malacca a better city to live in”. O consultor abordaria depois o Mayor, como que falando em monólogo, sobre o “problema” dos ninhos de pássaros que existem na zona classificada (citação literal): “Do you want to be known as the world capital of birdshit? With the problem of bird flu […], they should just be banned at once!”. O Mayor sorriu e deu uma resposta soft (“you’re right… we need some time”), e foi seguido no silêncio pelos restantes técnicos. O Adviser continua a sua prelecção, anotando a existência de vários “contracters” e de obras na cidade, indicador de que “os receios de que os investidores não viessem não se verificaram”, diz. Reparei que o tom discursivo do Homem da Unesco foi brusco e pouco diplomático (quando comparado com os códigos asiáticos de comunicação). […] No regresso a casa, quando vínhamos no carro, comentei com o meu anfitrião que não esperava ter sido convidada para a mesa do Mayor. Ele nada disse. Uns momentos de silêncio após, Michael diz-me que os “Malays”, apesar de ter passado muito tempo depois da colonização, continuam a mostrar respeito pelos europeus. Estaria Michael a referir-se apenas a mim ou também aos membros da Unesco? (Notas de campo, 19 de novembro de 2008, quarta-feira).

Em síntese, do que foi apresentado até aqui, salientamos o papel da ideologia conservacionista da Unesco, e a sua gramática de valor a ser usada como modelo de gestão de recursos culturais. Por vezes, este modelo é estéril de sentidos vernáculos associados à ideia de património (warisan). E, por outro lado, reproduz uma noção e visão eurocêntricas. Face a isto, as instituições locais parecem contemporizar com os expatriados, sempre que as suas agendas não colidam abertamente com as da Unesco. Porém o processo de classificação do espaço é matizado por uma escala muito diversa de gradações, que importaria conhecer com maior pormenor.

Entre emporium e warisan: notas para uma etnografia crítica

A sintetizar, importa agora sugerir algumas interpretações finais sobre o conceito de “warisan”. O pressuposto de que se parte é que o “património” é uma construção cultural. Povoada de jogos retóricos, mediados pelos interesses de grupos étnicos, sociais e políticos historicamente situados. A minha maneira de ler a realidade é condicionada por esta lente angular de olhar as retóricas presentes ao que estes grupos dominantes escolhem lembrar ou esquecer, apontar como património, ou como espaço a destruir. Parece-me que este processo tem tanto político e de económico, quanto de cultural. Este exercício analítico que se tem em curso encontra-se nesta encruzilhada: como ler o “património” na sua conceptualização por diferentes grupos de interesses (em que os antropólogos também tomam parte). A análise seria interessante em dois níveis: o da (i)materialidade física e o discursivo; do que se aponta como significante à caracterização e valoração discursiva desse mesmo objecto/lugar; nas suas apropriações sociais, retóricas e espaciais, políticas e turísticas; nos seus usos quotidianos, e suas apropriações pelos usuários dos espaços.

A Antropologia abre uma janela de observação crítica para desmontar processos de monumentalização de espaços, grupos, objectos, acontecimentos. Em primeiro lugar, devido ao seu olhar crítico, e, sempre que possível, empático; em segundo lugar, num plano mais teórico e epistemológico, relativizando a noção de “património”, que difere significativamente na Europa e na Malásia, assim como difere a própria maneira de expor/dispor a apresentação do mesmo. As diferentes concepções estéticas também influenciam os modos de conceber o espaço.

Historicamente, Malaca foi um centro comercial de trocas múltiplas, um emporium. Este facto é visível ainda hoje no espaço urbano. Mas tal exige um trabalho de arqueologia entre a antiga e a nova cidade. Esta apresenta-se como espaço de consumo contemporâneo: profusão de centros comerciais (malls), equipamentos hoteleiros, estradas e aterros (reclaimed land) no Estreito de Malaca. O processo de aterramento do mar começou ainda com o poder colonial britânico, mas tem sido efectivado em anos recentes. Parece-me importante relativizar que a noção local de progresso e de desenvolvimento urbanístico é agora esta. Um exemplo paradigmático destas transformações simbólicas e económicas no espaço urbano foi a construção do centro comercial Datharan Palawan, inaugurado em 2006 junto às ruínas do forte português.

A zona de lazer do mega-centro comercial Datharan Palawan é um símbolo do crescimento económico da Malásia pós-colonial. Em paralelo, anota-se um crescimento do parque habitacional construído, que desvenda investimentos imobiliários de capitais estrangeiros (de Singapura e da China, em particular). A orla costeira está agora polvilhada de prédios, e os subúrbios da cidade assistem ao nascimento de bairros de moradias com acabamentos de luxo e ao surgimento de condomínios fechados (“gated communities”). O processo de aterramento da orla costeira está a decorrer ainda e prevê-se a tomada de mais terra ao espaço onde outrora existia o mar, facto que, a verificar-se de acordo com o plano, vai continuar a provocar mudanças efectivas na orla costeira, fazendo as águas do Estreito recuar mais, à medida que as construções de concreto marcam a nova paisagem.

Olhando de perto a cidade de Malaca planeada e construída pelos políticos e urbanistas, interessa à Antropologia abordar o espaço tal como é percepcionado pelas pessoas. A cidade praticada (Certeau, 1988) pelos habitantes, dada a ver pelos residentes, que nos seus itinerários me mostram a sua Malaca. Uma cidade, por vezes, nos interstícios da cidade patrimonializada pelos governantes.

O meu argumento aqui é o convite a não olhar moralmente para as transformações recentes no espaço da cidade, mas pelo contrário inscrevê-las num processo mais abrangente de continuidade histórica e sócio-espacial em Malaca. A tessitura histórica da cidade é a de uma cidade mercante, mercantil. Erigida no tempo pré-colonial como zona de contacto económico, como bazar, seria depois apropriada por sucessivos poderes (Portugal, Holanda, Grã-Bretanha, Japão). A chegada de mais forças estrangeiras a Malaca, nomeadamente de capital estrangeiro que os cidadãos de Malaca dizem ser originário da China e Singapura, é também visível na cidade. Na actualidade, Malaca continua a ser uma cidade-bazar, uma trade-city. A diferença é que os comércios que agora se ali fazem não são tanto os das especiarias, que na altura eram raridades no Oeste da Ásia, mas outros, os monumentos e a vida passada retratada para os turistas.

Os poderes de Malaca parecem ter isso muito claro em mente. Por exemplo, a construção de uma réplica parcial do forte português numa versão contemporânea é uma Money-making machine para a indústria de turismo, ao mesmo tempo que diferencia esta cidade de outras na região. Este forte, reconstruído, é uma das landmarks do parque temático histórico que a cidade constrói, neste tempo pós-colonial, sob o agenciamento de poderes internacionais (como a Unesco), e locais (como o gabinete do Ministro Chefe de Malaca). Para além da reconstrução do forte, outros marcadores no espaço urbano - como os postes de passeios ou a nova sinalética urbana - compõem uma gramática de estilo em que a estética conservacionista e a patine do tempo colonial são reactualizados. Este tempo colonial é mostrado, empacotado para consumo turístico. Como se referiu num outro lugar (Pires, 2012) de modo mais extenso, argumento que em Malaca as autoridades estatais produzem discursos contra-nostálgicos acerca do passado colonial (e da categoria “colonial heritage”): desse modo, o passado é apresentado, re-ciclado, exibido e depois consumido como recordação empacotada, sendo por esta via, na condição de mercadoria, neutralizado enquanto dispositivo de nostalgia. Inerente a este processo, há uma ideia de modernidade, de ser moderno, que tem na patrimonialização e no embelezamento de espaços uma importante bandeja discursiva e um relevante terreno de acção e exibição. Associada a esta noção de modernidade, a ascensão da classe média na Malásia, a que não é alheio o poder de compra acrescido para os cidadãos nacionais, torna o consumo (de objectos, coisas, espaços) uma das marcas da contemporaneidade imaginada para a Malásia. O fabrico de automóveis nacionais (da marca Proton), ou os telemóveis e produtos nacionais, entre eles a indústria do petróleo da empresa Petronas, são alguns dos outros fragmentos de uma narrativa de sociedade de consumo em que os poderes da Malásia inscrevem os seus cidadãos. Comprar e viajar são, por isso, dois sinais de ser moderno. A noção de modernidade na Malásia está associada a espaços de lazer e de show-casing, de que espaços de consumo como o Datharan Palawan são um exemplo. A transição daquele espaço (de campo de jogos em tempo colonial para centro comercial na época contemporânea) é sintomática das retóricas associadas aos significados que as elites locais e a classe média atribuem às práticas de consumo. A cidade é praticada quando apropriada em itinerários de consumo.

Assim podemos concluir que as vozes de cidadãos de Malaca opõem-se por vezes às oficiais do Estado na nomeação do que é nomeado como “património”, e selectivamente lembrado. No mosaico de negociação cultural, coexistem várias forças: a hegemonia do Estado malaio, política e demograficamente maioritário, e a sua gramática de leitura da cidade histórica. E, em paralelo, como que brotando das ruas, as vozes locais de outros grupos minoritários: chineses, indianos, euroasiáticos, etc. As vozes dos activistas patrimoniais do livro Voices from the street desvendam algumas poéticas do conservacionismo do património, e a ideologia conservacionista que advoga a batalha contra a mercadorização do passado, a destruição e reconstrução selectiva de monumentos na cidade. A glória do Sultanato é agora restaurada pela exuberância das obras de regime da coligação no poder (Barisan Nasional) e seu Ministro Chefe.

A ideologia conservacionista da Unesco tem uma origem situada, histórica e geograficamente, na Europa. Isso condiciona o olhar de quem avalia, cataloga, valora e julga aprovar ou não um sítio como “património” com valor para “o Mundo”. A dimensão fortemente política da classificação do espaço pela Unesco é visível em todo o processo. Quando a Unesco classifica Malaca e Penang como “cidades históricas dos estreitos”, celebram-se várias histórias dentro da história. Os malaios celebram o Sultanato e a independência, e anotam o período colonial como facto histórico, sem o celebrarem. Especulo se alguma da retórica da Unesco não reificará mais as glórias coloniais postas por escrito nos anais da história europeia do que as glórias do tempo pré- e pós-colonial, fiadas na tradição oral dos povos do Estreito.

O olhar etnográfico sobre a cidade desvenda um espaço de espessura histórica, a tentar ler nas entrelinhas deste crescimento urbanístico recente. De “cidade das especiarias” no passado, Malaca é hoje um emporium de outra natureza. Em que os centros comerciais (malls) ilustram as novas mobilidades mercantis. Parece-me importante relativizar estas visões do mundo, e suas respectivas temporalidades e espacialidades.

Assim sendo, entre os aspectos relevantes, teoricamente aqui encontra-se a necessidade de relativizar a noção eurocêntrica de património, algo que a Antropologia está particularmente dotada para fazer. A própria noção de “autenticidade” e de “valor” são outras duas categorias a relativizar neste contexto empírico onde me movo. Atender à especificidade dos significados culturais locais abre espaço analítico para uma mais profunda compreensão dos processos que levam pessoas e grupos a destruir, conservar ou reconverter criativamente (e imaginativamente) os espaços do passado para o consumo do presente. O presente terreno empírico mostra que a ideologia conservacionista da Unesco difere da transformação criativa do Governo malaio, por exemplo no espaço do padang palawan.16 A estratégia contemporânea do Governo malaio de transformar criativamente a zona não está em dissonância total com o processo de continuidade sócio-cultural do espaço. E o espaço colonial pretérito é assim apropriado pelo poder pós-colonial. A arquitectura nunca é neutra, e aqui, a opção foi de elevar o padang (face à quota do solo), mantendo a sua função pretérita, mas adicionando outras novas funções - comerciais, turísticas e de lazer - formatando o espaço num parque temático da nova Malaca, em diálogo com a antiga. Esta é uma posição heterodoxa e contrária aos padrões seguidos pela Unesco. Estamos perante noções quase dissonantes de património. A ocidental conservacionista e a asiática que adopta uma perspectiva alternativa.

Reafirmo: a minha aprendizagem, enquanto estudante proveniente de uma academia “europeia”, foi a de aprender a ver o modo alternativo asiático de valorar o passado e o espaço patrimonializado. O padang tem sentido enquanto lugar de consumo. Porque o sentido histórico da cidade se produziu enquanto emporium de consumos, de comerciantes (traders) e de comércio (trade). A apropriação contemporânea do espaço por residentes, turistas (asiáticos e não-asiáticos) dá conta da continuidade. De espaço público de padang, continua a ser espaço de fruição pública, mas agora de consumo comercial. Ao Domingo de manhã, o padang palawan de uso desportivo (com relvado localizado no tecto do centro comercial) é um lugar semi vazio. Mas o ‘desporto’ principal da cidade - jalan jalan - aquece a circulação de pessoas no interior, em atmosfera de bazar cheia de interacções. O novo edifício remete para um nível político e de políticas de património associadas à islamização do país e às políticas bumiputera.17 Teoricamente, há visões e perspectivas do que é património, alternativas à europeia. Em Malaca, elas estão visíveis no espaço público envolvente ao espaço classificado como património mundial.

A contestação (expressa ou latente) foi uma prática presente nesta espacialidade empírica, e uma contestação potencialmente múltipla: à noção de património do estado-nação (por parte de grupos de advocacia cultural); à noção europeia de património (mas aqui passivamente); à noção de “património colonial”; a contestação passiva dos cidadãos.

Finalmente, importaria ainda compreender os significados vernáculos do que é categorizado como “warisan/património” por cada grupo, e por si lembrado. O que implica dizer que nem toda a memória é colectiva; a memória é selectivamente colectivizada e etnicizada. Uns grupos escolhem lembrar o que outros escolheriam esquecer. Na Malásia, como noutros lugares do globo, os grupos que estão no poder usam a sua acção para lembrar ou esquecer o que valoram como memoriabilia ou, alternativamente, o que é alvo de amnésia colectiva.

Do património à nostalgia colonial?

No âmbito da literatura sobre nostalgia, o conceito de nostalgia imperialista de Renato Rosaldo (1989), a nostalgia estrutural de Michael Herzfeld (2005), e o trabalho de William Bissell (2005) sobre nostalgia colonial, foram de extrema ajuda no processo de desconstrução das relações entre património e nostalgia. Em Malaca, conservacionistas, políticos locais, cidadãos estrangeiros e residentes locais possuem variadas e nem sempre coincidentes perspectivas sobre a identificação e valorização do património (warisan). Por exemplo, a visão de organismos internacionais como a Unesco e algumas ONG, apelando essencialmente à conservação, contrastam com a advocacia, por parte de organizações estatais e regionais, por um desenvolvimento criativo.

Por fim, noções alternativas de warisan podem ser encontradas na prática dos cidadãos, nomeadamente no uso do espaço pelos residentes na cidade. Os estudantes euroasiáticos identificam “lugares com História” sobretudo como locais de consumo, exprimindo-se em discursos sobre os antepassados claramente menos nostálgicos que os expressos pelos meus anfitriões durante o passeio que fizemos. Os meus anfitriões e outros habitantes de Malaca desconstroem a nostalgia como instrumento de apropriação do espaço-cidade na Malaca contemporânea. Discursos nostálgicos são um modo de “criar espaços” a partir da realidade actual. Este parece ser um dos modos através do qual alguns habitantes de Malaca usam o seu poder enquanto cidadãos, para produzirem visões alternativas da sua cidade, ligando o passado à actualidade (mesmo se as suas vozes e escolhas são silenciadas por atracções mais fortes e distractivas).

Os organismos do Governo malaio relacionam-se com o passado colonial através de uma comercialização para consumo turístico, que compõe mais uma peça na manta de retalhos constituída pelas variadas apropriações do passado de Malaca. Estas entidades produzem discursos ficcionados sobre eras gloriosas passadas, nomeadamente sobre o mundo malaio dos sultões que antecederam o domínio colonial. Apesar de com isso incumprir regulamentos internacionais e ser contestado por conservacionistas, o Governo malaio recicla e apresenta o passado colonial europeu em ‘mostras circences’ que contrariam hipotéticas nostalgias. Enunciando um modo contra-nostálgico que converte o contexto patrimonializado num espaço cénico de memorabilia empacotada.

Material suplementar
Referências
BISSEL, William. Engaging colonial nostalgia. Cultural Anthropology, v. 20, n. 2, 215-248, 2005.
CERTEAU, M. De The practice of everyday life. Berkeley: University of California Press, 1988.
HERTZFELD, Michael. Cultural intimacy: social poetics in the nation-state. New York: Routledge, 2005.
LEE, Vicky. Being eurasian: memories across racial divides. Hong Kong: Hong Kong University Press, 2004.
LIM, Chin; JORGE, Fernando. Malacca: voices from the street. Malaysia: Authors’ edition, 2006.
ORTNER, Sherry. Anthropology and social theory. Culture, power and the acting subject. London: Duke University Press, 2006.
PIRES, Ema. Paraísos desfocados. Nostalgia empacotada e conexões coloniais em Malaca. 2012. 272 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - ISCTE-IUL, Lisboa, 2012. Disponível em: http://hdl.handle.net/10071/7348.
PIRES, Ema. Re-scripting Colonial Heritage. Cultura, v. 11, n. 2, p. 131-141, 2014. Disponível em: http://www.pdcnet.org, DOI 10.5840/cultura201411218.
ROSALDO, Renato. Culture and truth: the remaking of social analysis. Boston: Beacon Press, 1993.
TOURISM MALAYSIA. Melaka, the historical city. Malaysia: Ministry of Tourism, 2008.
Notas
Notas
1 Uma versão parcial deste texto foi publicada em 2014, em língua inglesa, pelo Editor Peter Lang Academic Publishing Group, na revista Cultura. International Journal of Philosophy of Culture and Axiology, v. 11, n. 2, p. 129-139, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.5840/cultura201411218.
2 Juntamente com a cidade de Georgetown (no norte da Malásia), Malaca foi classificada como uma ‘Historic City of the Straits of Malacca’ em 2008.
3 Um “emporium” (pl. Emporia) é definível como uma loja grande. Em termos lexicais, o termo está hoje menos em uso do que no passado. Aproprio o seu significado lexical e semântico para ilustrar o contexto empírico em análise. Na cidade do presente, há vários emporia, na forma de espaços comerciais recentes (e que tomam o nome não de emporia, mas de shopping malls). Porém, na malha urbana mais antiga, há outros espaços comerciais, mais antigos do que aqueles, que tomam o epíteto de “emporium”. Na Old Town, existe um armazém comercial de nome Madame King’s, cujo nome local dado pelos residentes é precisamente emporium. Lugar de consumo, de consumos múltiplos, desde utilidades para o lar, vestuário e electrodomésticos, esta loja é um dos pontos de itinerários de mobilidade quotidiana das pessoas residentes na cidade.
4 Segundo Vicky Lee (2004, p. 2), “The term ‘Eurasian’ has generally been understood to refer to someone of mixed European and Asiatic parentage and/or ancestry”. No contexto empírico em análise, a categoria designa um grupo minoritário de cerca de 1200 pessoas (residentes no Portuguese Settlement, Ujong Pasisr, Malaca), reconhecidas, pelo Estado malaio, como descendentes dos colonizadores europeus. É um grupo muito mais pequeno numericamente que os malaios, chineses e indianos, mas com importância cultural e turística em Malaca.
5 A escola localiza-se em Ujong Pasir, nos arredores da cidade, na zona urbana de Kampung Portugis (Bairro Português). A amostra consistiu de 80 alunas com idades entre os 13 e os 17 anos, 70 dos quais são euroasiáticas; a recolha de dados decorreu entre fevereiro e abril de 2009.
6 Turma do ano Form One (16 estudantes), com idades de 13 anos; Form Two (15 estudantes), de 14 anos; Form Three (catorze estudantes), de 15 anos; Form Four (quinze estudantes) de 16 anos; finalmente, a turma de Form Five, a mais numerosa (24 estudantes), 17 anos. Cf. Quadro de síntese, infra: Ano de escolaridade Nº de estudantes Idade média Form One 16 13 anos Form Two 15 14 anos Form Three 14 15 anos Form Four 15 16 anos Form Five 24 17 anos
7 Disciplina complementar da formação, relacionada com temáticas de “Religion and moral values”.
8 As estudantes preencheram um diagrama em papel fornecido por mim. Pedi-lhes que imaginassem uma situação a partir do texto seguinte: “A friend from outstation will be visiting you soon. She has never been to Malacca before. Choose 4 places where you would like to take her. Please write each of these names in one of the circles bellow”. Os espaços foram indicados por cada uma, individualmente, através do preenchimento do referido diagrama. Após o preenchimento, pedi-lhes que [virando a página] “descrevessem com brevidade” cada um e justificassem o “porquê” da escolha. O exercício tomou cerca de 30 minutos a ser completado pelas estudantes. Depois eu recolhi todas as folhas e prosseguimos para uma discussão de grupo, na mesma sala de aula, sobre o tema mais geral de como percepcionam a cidade, e outros aspectos livres que quisessem abordar.
9 Annestta Theseira exemplifica enumerando alguns dos alimentos ali existentes para venda: “such as rempah udang, cendol, laksa and many others” [Annestta Theseira, 13 anos].
10 Segundo Joyce Lim, “Jonker walk starts operating in the evening. […] it is crowded with people starting from 8 o’clock, especially on Friday and Saturday. There are many food stalls, clothes and luxurious stalls and we can see joyful faces there. There will be different performances too” [Joyce Lim, 17 anos].
11 [Lee Yin, 15 anos; Teresa Savage, 15 anos; Suzanne Danker, 13 anos; Annuciah Suppiah, 13 anos].
12 [Tracy Ching, 13 anos; Christin de Sousa, 16 anos; Michelle Vellu, 16 anos; Cecilia Lowe, 16 anos].
13 Entre os quais as festas do “Intrudo/Waterday” [Charlotte Félix, 13 anos; Annesta Theseira, 13 anos] e de “San Pedro” [Tracy Ching e Annestta Theseira, ambas com 13 anos].
14 “It is a place where has good food and during festivals the people who live here gather together and help each other. I would like to bring my friend here because Portuguese food tastes good and the environment here is pleasant”.
15 Segundo as estudantes, “there is a seaside there, it has fresh air” [Lee Yin, 15 anos], “nice view” [Teresa Savage, 15 anos], “It has the sea nearby” [Annuciah Suppiah, Indian, 13 anos] ou ainda “it is fun to visit because of the decoration of lights” [Megan Danker, 15 anos].
16 O espaço vazio de campo aberto existente durante o período colonial britânico (era aliás um espaço de lazer, um open-field), foi transformado em centro comercial, mantendo na cobertura do edifício um campo relvado, aberto, que recupera o nome anterior, padang palawan.
17 Significa, literalmente, “filho da terra” (son of the soil).

Figura 1
“My Malacca: Cultural Mapping and Heritage Awareness”
Fonte: Respostas de Estudantes, Turmas de Ano Escolar 2009, Canossa School, Ujong Pasir, Malaca.
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