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“Teoricamente, um bom livro”: os fundamentos da pesquisa social e a política do fazer teórico
“A good book, in theory”: the foundations of social inquiry and the politics of theoretical work
“Teóricamente, un buen libro”: los fundamentos de la investigación social y política del trabajo teórico
Sociedade e Cultura, vol. 23, núm. 1, 2020
Universidade Federal de Goiás

Resenhas

https://www.revistas.ufg.br/fcs/about/submissions
Mendonça Benedit Sérgio. SEARS, Alan; CAIRNS, James. A good book, in theory: making sense through inquiry. 3ª ed. North York: University of Toronto Press, 2015.. 2015. Toronto. 3ª ed. North York: University of Toronto Press, 2015

Recepção: 27 Outubro 2019

Aprovação: 03 Abril 2020

“Teoricamente, um bom livro”: os fundamentos da pesquisa social e a política do fazer teórico

Originalmente publicado por Alan Sears em 2005, A good book... se apresenta nesta terceira e ampliada edição como um material útil tanto para pessoas que lecionam em humanidades como para iniciantes. Sua especificidade com relação a outras obras introdutórias da sociologia é a ênfase na importância das teorias e do pensar teórico. Isso é relevante porque frequentemente se atribui primazia ao estudo empírico das sociedades e das relações humanas, enquanto a construção de teorias sistemáticas é colocada em segundo plano. Simultaneamente, principiantes nos cursos de Ciências Sociais são apresentados a vários autores e autoras, mas não ultrapassam a identificação das principais proposições e diferenças mútuas, perdendo de vista os pressupostos que guiam cada teoria. Daí se entende a má fama do conhecimento teórico no ensinar e no aprender; reputação negativa que se soma ao senso comum que, por sua vez, se expressa em termos como ‘teoricamente’ ou ‘em teoria’ associados a afirmativas ‘desligadas da experiência concreta’. Ao sublinharem o método, a distinção de discursos teóricos com base em seus fundamentos ou afinidades conceituais, os autores argumentam que pensar teoricamente é a base para a investigação e compreensão dos fenômenos sociais e processos históricos – para além da sala de aula.

Na trajetória intelectual dos sociólogos, a obra em avaliação pode ser entendida como um esforço de esclarecimento das bases da pesquisa social articulada com a ação política coletiva. Anteriormente, tanto Sears como Cairns desenvolveram estudos relacionados aos sistemas educacionais, sindicatos, movimentos sociais e ativismo segundo uma perspectiva crítica. Em A good book... percebe-se claramente como essas pesquisas orientam os autores a argumentar pela inseparabilidade entre as interpretações que fazemos de acontecimentos sociais e certos pressupostos sobre o que é ‘certo’, ‘bom’ ou ‘natural’ no que se refere aos seres humanos e a sociedade. Por ser este o seu foco, e por não se tratar exatamente de um livro didático, não encontramos aqui uma exposição centrada em autores específicos – como em outros manuais introdutórios –, orientações para estruturar cursos de teoria – a obra não se organiza em um formato intuitivo nesse sentido – e questões básicas sobre técnicas de estudo, leitura e escrita acadêmica – aspectos fundamentais para quem pretende se iniciar academicamente. Tais limitações dessa edição, contudo, não tiram o mérito da obra em chamar atenção para os fundamentos teóricos da pesquisa social em um texto perspicaz e acessível.

O primeiro passo para desmistificar a teoria é reconhecer a sua constante presença no cotidiano e nas discussões políticas. Se por teoria entende-se uma explicação geral de acontecimentos ou fenômenos, é oportuno reconhecer nossa capacidade de abstração: se a campainha tocou então alguém está esperando à porta, para citar um exemplo. Como afirmam os autores, com base em Antonio Gramsci, todas as pessoas são intelectuais, formulam suas próprias teorias e abstraem a realidade de modo a identificar regularidades ou mesmo colocá-la em questão. Conforme se complexificam os temas em debate, e dada a variedade de pontos de vista entre as pessoas, diferentes concepções dão origem a sistemas conceituais que enquadram a realidade de maneiras diversas, como veremos. Nesse sentido a teoria social vai além da opinião e de impressões provisórias, constituindo-se como conhecimento sistematizado e metódico que possibilita uma avaliação mais ampla dos problemas que se apresentam na vida em sociedade. Pensar teoricamente é oportuno porque permite ir além das aparências, do que é dado como espontâneo ou imutável. Se desnaturalizar fenomênos sociais e colocá-los em discussão é um ato político, a formação teórica auxilia as pessoas a se expressarem e colocarem suas pautas no debate público, o que é importante em especial para grupos estigmatizados e minorias.

Em vista disso, ao se iniciar os estudos é mais conveniente não se prender tanto ao conteúdo das teorias, mas compreender o método e os pressupostos de cada uma. A pertinência dessa abordagem é demonstrada na obra por meio do debate de diferentes temáticas segundo duas vertentes em particular: ordem social e conflito. A primeira atribui privilégio às normas, regras, institui- ções e hierarquias que servem como mecanismos de controle ao ímpeto humano e que permitem a convivência estável e pacífica das pessoas em comunidade. Já a segunda argumenta que, em geral, nossas sociedades são perpassadas por desigualdades fundamentais que fomentam relações de exploração e que esse estado de coisas só pode ser superado por uma profunda trans- formação das relações humanas. A depender da adoção de uma ou outra perspectiva podem ser formuladas diferentes interpretações sobre os acontecimentos. A crise financeira mundial de 2008, por exemplo, pode ser entendida tanto como produto de ciclos mecânicos de crescimento e declínio da economia, e provocada por repercussões imprevistas das ações de agentes econômicos, quanto como “resultado mais ou menos previsível de desigualdades e instabilidade incorporadas ao cerne das sociedades ocidentais” por meio de seu modelo de capitalismo (SEARS; CAIRNS, 2015,p. 41). Percebe-se, assim, a importância de “traçar cada árvore de volta às suas raízes” (p. 183), já que todo argumento é construído com base em certas premissas.

Ainda que ordem e conflito sejam duas perspectivas muito comuns na teoria social, é óbvio que o debate acadêmico não se reduz a elas. E a obra comunica esse fato claramente. Os autores reconhecem que a parceria estabelecida a partir da segunda edição permitiu inserir, como contraponto, outros modelos teóricos: o pós-modernismo e o pensamento indígena. O primeiro, resumidamente, questiona a pretensão iluminista de que é possível obter um conhecimento objetivo e universal da realidade. Assim, desa- fia o racionalismo e as chamadas ‘grandes narrativas’ de modo a evidenciar seu etnocentrismo e a parcialidade de todas as formas de conhecimento. O segundo, que também não se reduz a uma perspectiva unitária, propõe alternativas às teorias científicas (e coloniais) na medida em que engloba humanos e não-humanos como seres que vivem conjuntamente, valoriza a espiritualidade e o pensamento tradicional vinculado a certas localidades, entre outros pontos. Trata-se de decolonizar o conhecimento e abrir espaço para entendimentos mais amplos da experiência no mundo, se comparado às teorias acadêmicas. Compreende-se melhor, aqui, o motivo da existência de várias teorias: porque existem não apenas diferentes concepções, mas também diversas posições políticas.

Voltando ao foco principal, ainda que a construção de teorias guarde alguma relação com as experiências cotidianas, sua elaboração acadêmica requer alguns cuidados. Se o conjunto das teorias é como um “vasto repositório de conhecimento estabelecido” (SEARS; CAIRNS, 2015, p. 26), esses sistemas conceituais recebem validação da comunidade científica em vista de sua consistência e capacidade explicativa. São cinco as características da teorização formal: rigor lógico (adequação entre pressupostos e argumentos); rigor empírico (correspondência entre teoria e evidências analisadas); rigor conceitual (coerência na utilização de palavras e termos técnicos); proposição de questões de segunda ordem (que esclareçam o funcionamento ou os efeitos de determinados fenômenos) e, por fim, associação a corpos de conhecimento exis- tentes (diálogo convergente ou divergente com estudos prévios). Aqui se percebe a importância da metodologia, pois teoria é conhecimento produzido de maneira metódica. O terceiro capítulo da obra é dedicado justamente à maneira como se conduz pesquisa nas ciências sociais, quando se destacam seus ciclos (indutivo e dedutivo) e modos de investigação (positivismo, interpretativismo e crítico). Como cada uma dessas últimas perspectivas possui um entendimento da natureza do conhecimento e das maneiras legítimas de investigar a realidade, naturalmente a escolha de uma delas reverbera na condução e nos resultados de um estudo. A pergunta crucial no desenho e no desenvolvimento de uma pes- quisa é aquela que dá nome ao capítulo: como você sabe? Daí a importância de detalhar os procedimentos e os possíveis e neces- sários cuidados éticos.

Discutidas as partes introdutórias, passemos ao desenvolvi- mento da obra. No quarto capítulo, os autores propõem o ‘ma- peamento’ das relações sociais. Na introdução encontramos uma analogia útil: um mapa, assim como uma teoria, é uma forma de representação abstrata da realidade – ambas são úteis para fazer sentido do mundo (social). A seguir, dedica-se espaço a uma aná- lise das relações estabelecidas em sala de aula segundo o modelo do conflito social. Ao adotar essa perspectiva, questões como a relação de poder entre professores/as e alunos/as e o modo de aprendizagem passivo pressuposto pela pedagogia tradicional ficam mais evidentes. Citando Paulo Freire, Sears e Cairns (2015, p.89) afirmam que “o aprendizado real não é apenas aquisição – é transformação; somos modificados por ele. O conhecimento não é uma coisa que pegamos mas uma maneira de enxergar o mundo e a vida cotidiana”. Seguindo com as lentes do conflito social caberia questionar ainda o caráter do conhecimento escolar: de onde vem? Quem o produz? O que diz? Que relações de gênero reproduz? As mesmas questões não podem ser levantadas pela perspectiva da ordem social, já que esta compreende que a educação possui apenas uma função instrumental para a reprodução da vida conforme o modelo socioeconômico e político vigente.

O quinto capítulo trata sobre o ‘mundo real’ e as formas de percepção humana. Analisando teoricamente perceberemos que a maneira como enxergamos os acontecimentos é inevitavelmente seletiva. “Olhar é um ato de escolha”, já que a depender dos nossos valores e interesses focamos em determinados aspectos (BERGER, 1972, apud SEARS; CAIRNS, 2015, p. 108). Em contraposição ao positivismo, defensor da objetividade, não pode existir uma avaliação do mundo sem um trânsito entre imaginação e realidade. Esta última é estruturada pela percepção e sua apreensão é treinada na vida social por meio de um conjunto de categorias convencionais. A fenomenologia é apresentada como um método que visa justamente a captar a maneira como criamos o mundo e a colocar em questão algumas de suas convenções, o que auxilia no processo de desnaturalização. Por meio desse exercício é possível perceber, por exemplo, as desigualdades e opressões existentes. Dois exemplos muito oportunos são apresentados: a maneira como classificamos socialmente homens e mulheres – que leva à violência contra pessoas LGBTQ, que não se encaixam exatamente nessas categorias, e a associação de pessoas ‘de cor’ ao crime – preconceito muito evidente nas abordagens policiais no Brasil.

Já o sexto capítulo trata sobre os conceitos e a relação entre natureza e cultura. Como vimos na definição da perspectiva da ordem, com frequência algumas teorias consideram certos aspectos como imutáveis; naquele caso, ao adotar uma ideia do ser humano como inerentemente ganancioso e violento. Nesse sentido, o conceito de natureza humana possui um lugar central na vertente da ordem, como demonstra a discussão sobre a prevenção e responsabilização por crimes – seus proponentes defendem repressão policial e duras penas contra criminosos. São tratados ainda alguns temas ligados à antropologia no que se refere ao ato de cozinhar e a transfiguração (sexista) da dualidade natureza-cultura nas relações de gênero (natureza, feminino, inferior; cultura, masculino, superior). A seguir, a ênfase se coloca no debate sobre a naturalização, ou seja, o ato de conceber certas características individuais como fruto da natureza e por isso definitivas. Ao adotar tal premissa, que não deixa de ter uma carga ideológica, abre-se margem para atitudes racistas (naturalização das diferenças entre seres humanos), menosprezo da agência humana e da possibilidade de mudanças históricas (em aceitação, por exemplo, da inevitabilidade do capitalismo). Desnaturalizar as categorias estabeleci- das, assim, requer boas teorias e análise crítica.

O sétimo capítulo, enfim, aborda as relações sociais a partir da noção de tempo. Na atualidade, o relógio está no centro das nossas atividades; mas, se pensarmos bem, nem sempre foi assim. A cronometrização da vida acompanhou um processo histórico de domesticação humana nas escolas e fábricas voltada para a produção econômica. Isso teve impacto na forma como vivemos, nas etapas da vida e nas relações familiares. Hoje sentimos os impactos do avanço tecnológico em todos os planos, o que exige grande dedicação a diferentes tarefas simultaneamente. Temos então um quadro de aceleração do tempo, de valorização do imediatismo, problemático diante dos modos de organização e relações sociais que exigem diálogo, dedicação, escuta. Sears e Cairns nos convidam a questionar: quão efetiva será a democracia e a participação política nesse cenário? Seriam elas compatíveis com a velocidade exigida pelo desenvolvimento do capitalismo? Essas questões precisam ser encaradas com recurso à teoria. Enfim, fecha este capítulo uma discussão sobre a utilidade de aliar o pensamento teórico com o estudo da história. Cabe situar o presente em um processo histórico, perceber a historicidade das categorias, dos conceitos e mesmo das instituições. Assim, é possível investigar apropriadamente a maneira como o passado conforma o presente.

As considerações finais reforçam o mérito do livro em seu estímulo ao estudo teórico a partir das premissas de cada vertente. Se já ocorreu a tentativa de estabelecer uma teoria sociológica unitária, vide Talcott Parsons, hoje esse esforço não se justifica em vista do reconhecimento das diferentes perspectivas sobre a realidade social e também as posições políticas. Sears e Cairns sugerem a análise de cada teoria de modo sistemático e a compreensão de seus pressupostos antes de tomar uma posição nos debates em curso. Pensar os problemas sociais e intervir de alguma forma exige um entendimento de cada repertório conceitual. Além disso, composta por atividades de reflexão e um glossário de termos chave, a obra auxilia no ensino de teoria em sala de aula segundo uma metodologia que se afasta da simples transmissão de conteúdos – e que estimula o envolvimento dos/as alunos/as no aprendizado. A despeito da brevidade nas discussões sobre raça e gênero, e o limitado aporte de referenciais teóricos alheios ao mundo anglo-saxão, esperamos ter demonstrado que se trata de uma obra oportuna tanto no aprendizado (como pesquisar/estudar teoria) quanto no ensino (introdução à teoria social e política). Em um contexto como o nosso, de radicalização política da direita e ataques sistemáticos ao pensamento crítico, trata-se certamente de um texto proveitoso no preparo para os debates que nos esperam como cientistas sociais.

Informação adicional

Revista Sociedade e Cultura. 2020, v. 23:: e60930



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