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"Parirás com Dor": a violência obstétrica revisitada1
Maíra Soares Ferreira; Eliane Gonçalves
Maíra Soares Ferreira; Eliane Gonçalves
"Parirás com Dor": a violência obstétrica revisitada1
"You will give birth in pain": Obstetric Violence Revisited
"Darás a luz com dolor": violencia obstétrica revisitada
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e60230, 2020
UFG - Universidade Federal de Goiás
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Resumo: Diante de um contexto social em que predominam os partos instrumentais, via cirurgia cesariana, nos hospitais particulares, e a “cascata de intervenções” nos partos vaginais dos hospitais públicos brasileiros, o movimento de mulheres marcou o início do século XXI com a nomeação da “violência obstétrica”. A compreensão da violência obstétrica abarca desde agressões físicas, psicológicas, verbais, simbólicas, sexuais até negligências nas assistências, discriminação, medicalização excessiva e inapropriada, adesão a práticas obstétricas desaconselhadas, dolorosas, prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas, vividas no momento da gestação, parto, nascimento e pós-parto. Os aspectos dessa violência - com imposição de dor, sofrimentos e mortes evitáveis - se encontram legitimados pela ciência obstétrica e autorizados pelo Estado como assistência à saúde sexual e reprodutiva. Argumentamos que a violência obstétrica é um ato misógino de punição às mulheres, resultado de séculos de negação de sua sexualidade e capacidade de decidir. A proposta do artigo é refletir sobre como se deu tal autorização política para violentar os corpos de mulheres, assim como sua naturalização e invisibilização justificadas pela ciência e por certas práticas obstétricas. Sendo parte de uma pesquisa mais ampla, foram privilegiadas, aqui, análises históricas de cunho feministas cujo acervo de conhecimentos permitiu rastrear o processo de elaboração do conceito e mostrar como as relações intrínsecas entre parto e políticas de Estado, via diferentes assistências - pública e privada -, coordenam a disciplina sobre os corpos expropriados das mulheres.

Palavras-chave: Violência obstétrica, Parto, Punição sexual, Saúde Sexual e Reprodutiva, Gênero.

Abstract: Faced with a social context in which instrumental births predominate, via cesarean surgery, in private hospitals and the "cascade of interventions" in vaginal deliveries in Brazilian public hospitals, the women's movement marked the beginning of the 21st century with the name "obstetric violence". The understanding of obstetric violence ranges from physical, psychological, verbal, symbolic, sexual aggressions to negligence in care, discrimination, excessive and inappropriate medicalization, adherence to obstetric practices that are not recommended, painful, harmful and not based on scientific evidence which are experienced at the time of pregnancy, childbirth, birth and postpartum. Aspects of this violence - with imposition of pain, suffering and preventable deaths - are legitimized by obstetric science and authorized by the State as assistance to sexual and reproductive health. We argue that obstetric violence is a misogynistic act of punishment for women, the result of centuries of denial of their sexuality and the ability to decide. The purpose of the article is to reflect on how this political authorization was given to violate the bodies of women, as well as their naturalization and invisibility justified by science and certain obstetric practices. Being part of a broader research, historical analyzes of feminist nature were privileged, whose collection of knowledge allowed to track the process of elaboration of the concept and show how the intrinsic relations between childbirth and State policies, through the different assistance - public and private - coordinate the discipline over the expropriated bodies of women.

Keywords: Obstetric violence, Childbirth, Sexual punishment, Sexual and Reproductive Health, Gender.

Resumen: Ante un contexto social en el que predominan los partos instrumentales, vía cesárea, en los hospitales privados y la "cascada de intervenciones" en los partos vaginales en los hospitales públicos brasileños, el movimiento de mujeres marcó el comienzo del siglo XXI con el nombre de "violencia obstétrica". La comprensión de la violencia obstétrica abarca desde agresiones físicas, psicológicas, verbales, simbólicas, sexuales, hasta negligencia en el cuidado, discriminación, medicalización excesiva e inapropiada, adherencia a prácticas obstétricas no recomendadas, dolorosas, nocivas y no basadas en evidencias científicas vividas en el momento del embarazo, parto, nacimiento y posparto. Los aspectos de esta violencia, con la imposición de dolor, sufrimiento y muerte evitables, están legitimados por la ciencia obstétrica y autorizados por el Estado como asistencia para la salud sexual y reproductiva. Sostenemos que la violencia obstétrica es un acto de castigo misógino para las mujeres, el resultado de siglos de negación de su sexualidad y la capacidad de decidir. El propósito del artículo es reflexionar sobre cómo se dio esta autorización política para violar el cuerpo de la mujer, así como su naturalización e invisibilidad justificada por la ciencia y determinadas prácticas obstétricas. Al ser parte de una investigación más amplia, se privilegiaron los análisis históricos de carácter feminista, cuya colección de conocimientos permitió trazar el proceso de elaboración del concepto y mostrar cómo las relaciones intrínsecas entre el parto y las políticas de Estado, vía las distintas formas de asistencia - pública y privada - coordinan la disciplina sobre los cuerpos expropiados de mujeres.

Palabras clave: Violencia obstétrica, Parto, Castigo sexual, Salud Sexual y Reproductiva, Género.

Carátula del artículo

Artigos

"Parirás com Dor": a violência obstétrica revisitada1

"You will give birth in pain": Obstetric Violence Revisited

"Darás a luz com dolor": violencia obstétrica revisitada

Maíra Soares Ferreira
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Eliane Gonçalves
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e60230, 2020
UFG - Universidade Federal de Goiás

Recepção: 25 Outubro 2019

Aprovação: 04 Setembro 2020

Introdução

Ao longo da história, as mulheres vêm sofrendo infâmias de diversas formas. O Dicionário Feminino da Infâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência (FLEURY-TEIXEIRA; MENEGHEL, 2015) disponibiliza as conceituações e os contextos das violências já reconhecidas e nomeadas. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 1996) define violência como a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis. Desde o fim dos anos 1960, esse conceito vem sendo mais estudado nas ciências sociais, assim como as diversas situações de violência. Dada a dimensão complexa e abrangente desse conceito, seu debate ainda é bastante controverso nessa área de estudo e vem apresentando divergentes tentativas de definição conceitual (IMBUSCH, 2005). Contudo, é observável que a pluralidade das pesquisas ampliou o conceito oferecendo muitas possibilidades de combinações, como: “relações de violência”, “sistema baseado em violência”, “monopólio da violência”. Além de conceitos duplos, como: “violência sexual”, “violência de gênero”, “violência obstétrica”, dentre muitos outros. Este artigo vai tratar de uma modalidade específica de violência: a obstétrica. Para tanto, amparadas pela literatura feminista, que é o campo no qual essa definição deita suas raízes, começamos por rastrear a história do conceito. Argumentamos que a violência obstétrica é um ato misógino de punição às mulheres, resultado de séculos de negação de sua sexualidade e capacidade de decidir. E concluímos, com base nesse vasto acervo e no trabalho de campo da pesquisa do doutorado, que as relações intrínsecas entre parto e políticas de Estado, via diferentes assistências - pública e privada -, coordenam a disciplina sobre o corpo expropriado das mulheres.

O campo privilegiado para as análises desenvolvidas na pesquisa mais ampla, sendo este artigo um recorte dela, é o das ciências sociais em diálogo com a história, as ciências da saúde e o feminismo. Em torno desse tema, no Brasil, são poucas as leituras críticas com enfoque sociológico, sendo a maioria no âmbito da Saúde Pública, Saúde Coletiva e da Enfermagem, com os primeiros trabalhos acadêmicos abordando os modelos de atenção ao parto, aborto e nascimento, morte materna, violência institucional, violência no parto e violência obstétrica. Da finalização da pesquisa, em 2018, e da submissão final deste artigo, em 2020, observamos um aumento exponencial na quantidade de artigos nos periódicos nacionais das mais diferentes áreas - saúde coletiva, psicologia, direito, medicina, educação2. Não é possível cotejar todos eles em tão breve espaço, mas pensamos que tal pujança seja reveladora da magnitude do problema e que venha ter impacto positivo nas mudanças de tratamento da violência obstétrica no Brasil.

Tipologia e nomeação da violência obstétrica no século 21

Diante de um contexto social no qual predominam os partos instrumentais, via cirurgia cesariana, nos hospitais particulares, e a “cascata de intervenções” nos partos vaginais dos hospitais humanizados e públicos brasileiros, o movimento de mulheres marcou o início do século 21 com a nomeação da “violência obstétrica”. Esse ato (violência obstétrica) está tipificado como: tricotomia3, enemas4, episiotomia5, amniotomia6, indução das contrações uterinas com o hormônio sintético da ocitocina, manobra de kristeller7, impedimento da presença de acompanhantes e doulas, imposição da litotomia8, negação de alimentação, falta de mobilidade, baixo e mau uso do partograma, humilhações verbais, assédios sexuais, frases de ameaças, cesáreas eletivas ou desnecessárias. Essas tipificações já apresentam consenso tanto nos movimentos de mulheres quanto nas pesquisas teórico-acadêmicas. Do mesmo modo, está socialmente legitimada a compreensão da violência obstétrica como aquela que abarca desde agressões físicas, psicológicas, verbais, simbólicas, sexuais até negligências nas assistências, discriminação, medicalização excessiva e inapropriada, adesão a práticas obstétricas desaconselhadas, dolorosas, prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas - vividas no momento da gestação, parto, nascimento e pós-parto.

As descrições citadas acima compõem a tipificação do que atualmente é considerado violência e está nomeada como violência obstétrica. Tal tipologia e nomeação da violência obstétrica remete-nos às histórias acumuladas - de reivindicações e conquistas - de mulheres em prol dos direitos sexuais e reprodutivos, além de propiciar a reflexão acerca da relevância deste trabalho, que parte de uma problematização conceitual do termo para chegar a uma composição analítica do fenômeno. Em outras palavras, a construção genealógica do termo violência obstétrica foi tarefa necessária para traçar a problemática desse fato social, além de compor as análises sociológicas sobre esse ato misógino de punição sexual às mulheres. Acompanhada de autores que também estão debruçados nesse objeto, além das histórias, tipologias e definições, apresentamos o termo “violência obstétrica” como representante de mais uma categoria de análise sociológica propulsora de leituras e narrativas acerca do nosso sistema assimétrico na relação entre homens e mulheres que o uso analítico-político habituou-se a chamar de patriarcal9.

A violência obstétrica é definida como uma violação dos direitos das mulheres grávidas em processo de parto que inclui perda da autonomia e decisão sobre seus corpos por diversos autores e autoras (AGUIAR; D’OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013; FANEITE; FEO; MERLO, 2012; GARCÍA-JORDA; DÍAZ-BERNAL; ACOSTA, 2013; TERÁN et al., 2013, DINIZ, 2009; MARQUES, 2020). Para os movimentos sociais, essa violação significa a apropriação dos processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais da saúde por meio de uma atenção mecanizada, tecnicista, impessoal e massificada do parto. Sadler et al. (2016) aprofundam a problemática ao dar mais evidência à cultura do ódio às mulheres que, por sua vez, autoriza a violência sexual, naturalizada e invisibilizada, presente na violência obstétrica. Esta, enquanto uma violência contra as mulheres, está intimamente associada à misoginia em decorrência do sentimento de ódio ao feminino que se materializa nas situações e tipificações apresentadas.

Tal complexidade teórica e abrangência política vão ao encontro do debate que ora apresentamos e que também sinalizam para as resistências médicas e impunidades jurídicas e culturais. Em suma, desde a formulação do termo, este vem sofrendo incessantes críticas e tentativas de eliminação por parte dos médicos e seus conselhos profissionais, regionais e federal, que alegam desrespeito ao obstetra. Face a tais considerações recorrentes, a primeira ponderação é que não se trata de um termo como, por exemplo, “violência da/o obstetra”, mas, sim, “violência obstétrica”. Essa sobreposição entre obstetra e obstetrícia é emblemática (ou sintomática) do ponto de vista dos discursos defensivos de uma categoria profissional considerada pertencente à elite dominante, que, por sua vez, atua, a partir do autorizado exercício de controle, vigilância e manipulação dos corpos e vidas. É plausível notar que a sintomática reatividade desses profissionais diante das denúncias das violências presentes na prática assistencial ao parto, nascimento e aborto, confirma a validade de um termo que denuncia a ciência que sustenta tal fazer - e não a pessoa e/ou o profissional.

A norma masculina considerada normal - representada pelo neologismo “normáscula” (CHABAUD-RYCHTER et al, 2014, p.3) e presente nesse ensinamento obstétrico - é cultural e política, além de invisibilizar a violência embutida e naturalizada. A importância do neologismo é que ele expõe o quanto se “impregna de masculinidade resultados ou teorias supostamente objetivas”, além de (re)produzir as marcas da desigualdade e subalternização sob o discurso da neutralidade (CHABAUD-RYCHTER et al., 2014, p.3).

Assim, caberia à retórica deslocar a pertinência da denúncia que faz o termo violência obstétrica - a partir de seu lugar ético-político - para, por exemplo, o campo da moral e do poder. Para tanto, foram muitas as tentativas. Na data de 3/5/2019, o Despacho da Secretária de Atenção à Saúde, publicado pelo Ministério da Saúde, solicita que o termo violência obstétrica não seja mais usado pelo órgão, alegando inadequação, uma vez que “tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano” (BRASIL, 2019). Ações dos movimentos de mulheres do Ministério Público Federal e órgãos internacionais manifestam repúdio e recomendam que, ao invés de tentar abolir o termo, são necessárias medidas para coibir a violência obstétrica. Em suma, a retirada do verbete, conquistado a duras penas, com a sugerida exclusão pelo Ministério da Saúde10, não elimina o problema e seus danos às mulheres.

Movimentos de mulheres pró parto e nascimento: historiografias a contrapelo

A assistência ao parto teria passado de ofício a profissão, de affaire de femmes para assunto de homens, de pobres para elites escolarizadas, das mãos negras para as luvas brancas, do rural para o urbano, de saberes populares para saberes científicos, de corpos pulsantes para corpos patológicos, de técnicas mecânicas e ritos espirituais para técnicas químicas, de uma percepção abrangente para um olhar esquadrinhador e meticuloso (TORNQUIST, 2004, p. 98).

Durante quase toda a história, os partos e nascimentos foram assistidos por mulheres parteiras, curiosas, aparadeiras, bruxas, raizeiras, benzedeiras, comadres e matronas (FEDERICI, 2010; ROHDEN, 2009; SCAVONE, 2004; DEL PRIORI, 2009, entre outras). Mulheres conhecedoras do menstruar, engravidar, partejar, abortar, amamentar, alimentar, energizar e adoecer11. Esses conhecimentos seculares (ancestrais), ancorados no próprio corpo feminino, são (re)passados e (re)apropriados, (re)combinados e sistematizados, a partir de suas próprias histórias de vida, suas multiparidades, suas práticas intensas com o parir e o partejar, além das transmissões geracionais, heranças ancestrais e tradições orais. Essas experiências acumuladas circunscrevem todo o ciclo da vida sexual e reprodutiva da mulher, do menstruar ao controle dos nascimentos e interrupção das fecundidades, tratam de saberes e fazeres sobre a saúde sexual e reprodutiva que alargam e enriquecem o universo feminino de diferenças, singularidades e universalidades. Por muito tempo, a intuição e as relações comunitárias regularam as instâncias da vida sexual e reprodutiva das mulheres: “A maioria dos registros históricos indica que, do isolamento instintivo, as mulheres passaram a se entre-ajudar, apoiadas em suas práticas e experiências pessoais" (SCAVONE, 2004, p.128). Contudo, toda essa articulação, autonomia e liderança das mulheres foram vistas como ameaças, tornando-se alvo de ataques. E o poder das mulheres foi convertido no horror.

O poder de cura era o próprio malefício para a Igreja, já que ele representara a influência dessas mulheres, principalmente na população camponesa pobre, colocando em risco o poder clerical. Além disso, o saber dessas mulheres atingia terrenos considerados perigosos, como a própria sexualidade feminina. As fogueiras dos inquisidores não conseguiram queimar o saber das parteiras e curandeiras, que continuaram praticando partos e curas por muito tempo. Entretanto, a Inquisição acompanhou o processo de legitimação da medicina científica, como afirma Arruda (1987, p.8): "O que a Igreja não consegue dobrar, a instituição médica científica vai usurpar" (SCAVONE, 2004, p.131).

Se a medicina ocidental, desde Galeno, toma o homem como parâmetro de nomeação e classificação, é razoável pensar que as mulheres tiveram de se adiantar para saber mais sobre seus ciclos, sua fisiologia e os cuidados necessários ao seu bem-estar. Assim, é muito provável que a obstetrícia tenha nascido com as mulheres e, posteriormente, usurpada pela medicina mágico-religiosa. Essa apropriação se deu a partir da ideia de que há, no corpo feminino, a presença de um ser misterioso, escondido, maléfico, incontrolável (indomável, invencível, indomesticável, e que, portanto, devia ser controlado). A construção desse horror, ódio, terror e pavor ao feminino acompanha toda a transição da representação social do aparato reprodutor da mulher como algo potente (e que está muito presente nas tradições orais das mulheres, nos rituais de fertilidade e nos contos das culturas populares) para algo responsável e originário dos males femininos (interpretação religiosa).

Assim, o que foi supostamente eliminado, quando essas mulheres foram condenadas à fogueira, é o poder, pois as bruxarias, os saberes e fazeres, advindos de longa experiência empírica, conferiam-lhes cura e intervenção. Na Europa, para os inquisidores, e, no Brasil, para os colonizadores e senhores de escravos, essa magia era considerada descontrolada, perigosa e maléfica. O contexto desses vários corpos e vidas perseguidas é o da Inquisição - conhecido como “caça às bruxas” e promovido pela Igreja medieval com auge entre os séculos 15 e 17 -, que teve continuidade no Brasil Colônia com toda a opressão das parteiras, raizeiras, benzedeiras, curandeiras, indígenas e africanas.

As historiografias brasileiras da pesquisadora Mary Del Priori (2009) alegam que, entre as acusações das magias e bruxarias locais, estava o fato de essas mulheres possuírem talentos médicos e obstétricos. Assim, enquanto a bruxa - parteira/curandeira - foi inferiorizada e amaldiçoada, o parteiro/cirurgião foi apresentado como “Salva-dor” e aliado da “grande ciência”. Essas passagens historiografadas da obstetrícia empírica-tradicional-domiciliar-feminina para a obstetrícia médico-científica-hospitalar-masculina foram fortalecidas a partir de algumas classificações acerca das práticas dessas mulheres, como obscurantistas, ignorantes e causadoras de sofrimento, ou seja, fundamentado nos ideais de racionalidade e progresso, o discurso médico ganhou força na “idade das luzes” - Europa do século 18 para 19. Como bem lembra Fabíola Rohden (2009), a obstetrícia já existia antes e, embora ganhe fôlego no século 19, disputa com a nova especialidade, a ginecologia (ou ciência da mulher), que está na base de uma ciência da diferença dos sexos que tem por finalidade regular e normatizar a vida sexual e reprodutiva das mulheres.

No Brasil, essa mudança se dá no início do período de lutas pela sua independência e transição do regime colonial-escravocrata para o (atual) capitalista moderno-colonial. A colonização e a escravidão inauguraram épocas de muita violência física e sexual, perseguições, genocídios, ódios, assédios, abusos e opressões às mulheres indígenas, negras, parteiras, raizeiras, curandeiras etc. Se houve equívocos nas práticas tanto das parteiras/curandeiras quanto dos parteiros/cirurgiões, é político compreender que, não sem intenções, “os erros das parteiras e curandeiras foram superestimados e utilizados por algumas correntes da medicina científica para depreciar toda e qualquer prática das mulheres em questões de saúde” (SCAVONE, 2004, p. 132). Em muitos países, mas, em especial, nas colônias como o Brasil, todo esse processo - de entrada do médico/cirurgião no cenário dos partos e deslocamento das parteiras (primeiramente, foram postas como auxiliares e, depois, definitivamente, afastadas) - hierarquizou os conhecimentos, culminando no monopólio definitivo da racionalidade médica como a assistência legítima de saúde às mulheres.

Tal monopolização também normatizou o lugar da mulher no interior das vidas familiares e se autorizou no controle de seus corpos e suas sexualidades unicamente vistos como aqueles que cuidam e procriam. Nessa normatização, os cuidados com a vida têm a conotação da esfera privada e doméstica. É a mãe, ou outra mulher em papel similar, que vai se encarregar da alimentação, da higiene, das visitas ao médico e da administração dos remédios quando necessário. Assim, a saúde da família passa pelo âmbito da casa, do privado e da mulher, mas é de domínio científico dos homens (SCAVONE 2004, p. 135).

O poder que a mencionada normáscula “ganhou” sobre as mulheres requer dos profissionais tanto submissão à grande “ciência” e seus protocolos quanto dependência do moderno capitalismo. Essa ilusão que os pacifica como servos do capital impõe a tarefa de “dignificar a masculinidade” às custas das mulheres. Textos como os de Mary Del Priori mapeiam e destrincham trajetórias femininas em torno das práticas do parir e do partejar, em diferentes períodos e, a partir das diferentes protagonistas, apresentando diversas resistências e divergentes intencionalidades:

Auscultando as trajetórias femininas em documentos e fontes impressas entre os séculos XVI e XVIII, encontrei imagens recorrentemente associadas à dominação e à opressão sobre a mulher. Nelas, a mulher é vítima constante da dor, do sofrimento, da solidão, da humilhação e da exploração física, emocional e sexual; mas tateei igualmente a natureza de discretos poderes que reagiam e resistiam a essas situações pintadas nas imagens, poderes assegurados à mulher através de sua emancipação biológica, tanto quanto de sua emancipação à dominação masculina. Sensibilizei-me ao descobrir, por trás da torrente de discursos normativos sobre o-que-a-mulher-deveria-ser, as populações femininas em sua revanche contra o que significara uma armadilha para assegurar a sua menoridade. No avesso do papel que lhes era delegado pelas instituições de poder masculino, a Igreja e o Estado, elas costuravam as características do seu gênero, amarrando práticas culturais e representações simbólicas em torno da maternidade, do parto, do corpo feminino e do cuidado com os filhos (DEL PRIORI, 2009, p. 14).

A autora discorre sobre as contradições entre realidades empíricas vividas pelas mulheres e as marcas da sua rebeldia face às imposições das instituições masculinas. Eis a tarefa do trabalho a contrapelo, nomeado por Walter Benjamin (1985), de escovar as versões reducionistas para narrar as histórias às avessas, com vozes plurais e repletas das tensões existentes. Del Priori (2009) explica que, além da maioria dos processos encontrados não ter sido narrada pelas mulheres, eles “desnudavam um mundo parcial, desordenado no relato de fatos repertoriados por muitas testemunhas e cheio de eventos minúsculos onde os ódios, as incompatibilidades e as misérias humanas se imbricavam” (2009, p. 14). Então, prossegue:

Já os relatos e textos de teólogos, moralistas, confessores e médicos, afastados do que fosse acidental ou singular nas vidas femininas, investiam em engordar uma mentalidade coletiva que exprimisse uma profunda misoginia e um enorme desejo em normatizar a mulher. Ela significava uma ameaça... Estava sob suspeita todo o tempo. Nas entrelinhas de questões como 'o pecado' ou 'a doença', escritas por moralistas e doutores, o que se lia era: cherchez la femme...! Semelhantes discursos preocupados com a definição das fronteiras, então muito maleáveis entre o público e o privado, postulavam, sobretudo, o papel de cada um dos gêneros nesses espaços. Foi curioso perceber que o enorme interesse emprestado à domesticação da mulher revelava também o consenso masculino sobre o poder civilizador da maternidade (DEL PRIORI, 2009, p. 15).

Essa maternidade civilizada faz direta menção à contemporânea mentalidade escravocrata brasileira, além de seguir perpetuando a crença de que se encontra a redenção do pecado original ao suportar as violentas dificuldades da vida conjugal e as violentas assistências ao parto e nascimento. Não seria exagerado chamar a isso de “engodo”, o lugar no qual jaz a sexualidade da mulher brasileira. “A preocupação em elaborar uma imagem regular da feminilidade adequava-se ao projeto cristão, em cujo enfoque sacramental e místico a sexualidade só encontrava justificativa por meio da procriação” (DEL PRIORI, 2009, p. 217). Esse aflito - ou conflito - entre a desejada maternidade e a reprimida sexualidade encontra seu desfecho na hora do parto: textos datados do século XVI construíam ideias das mulheres “santa-mãezinhas que deveriam dar à luz entre dores, redimindo o gênero por terem cometido o pecado original. Devem sofrer com paciência as incomodidades da prenhez e as dores do parto, como pena de pecado, sublinhava o pregador Arceniaga” (DEL PRIORI, 2009, p. 218).

A imagem da mulher caseira virtuosa, alimentada durante a gravidez, tinha que dar lugar a outra, bem pedestre, de mulheres aflitas com seus medos e dores. (...) a mulher tinha que incorporar outro papel associado ao sentido mesmo do parto: um papel de sofredora, cujos gritos, muitas vezes além ou aquém da dor, anunciavam a vitória contra a morte e o poder de procriar. O parto, momento por excelência do processo de maternidade, marcava-se com a imagem do sofrimento da mãe. Era preciso sofrer para trazer à luz o fruto. Inaugurava-se, quem sabe assim, o começo de um processo de crédito do qual o filho seria o eterno devedor, fadado a pagar com seu trabalho e carinho o nascimento entre dores. A Igreja encontrava nessas imagens a justificativa mesma do pecado original e da condenação à vida terrena. Todas as mulheres personificadas em Eva necessitavam das regras eclesiásticas para serem adestradas, e, assim, pagarem o pecado ancestral. Nesses tempos, sim, a anatomia impunha um destino (DEL PRIORI, 2009, p. 224).

Há sinais de que já estamos nos tempos dos sofrimentos incorporados. Uma parte do livro de Del Priori (2009), intitulada Mentalidades e práticas em torno do parto - Parir com dor, descreve, meticulosamente, as operações realizadas nas mulheres em trabalho de parto nomeando-as como “barbaridades” e “rituais monstruosos”. Inclusive, nomeia o uso do arsenal de instrumentos médicos como tortura (p. 228-9). Nesses relatos, é contrastante a presença das parteiras nos partos em que a fisiologia “ia bem” e o abuso médico - autorizado - nos partos considerados complicados e arriscados. As descrições são terríveis, porém muito atuais, assim como o deslocamento da “dor” do parto. Apesar da atualidade da afirmação a seguir, Lorena Telles (2011) apresenta como a prática abusiva dos médicos em obstetrícia atravessou o século 19:

Em uma maternidade municipal que funcionou no Rio no início da década de 1880, os partos eram feitos na presença de estudantes, que podiam apalpar, observar a dilatação e examinar as mulheres, provavelmente contra a vontade delas. O conhecimento médico em obstetrícia nesse período foi desenvolvido sobretudo a partir da experiência com mulheres pobres ou escravas (TELLES, 2011, p. 98).

Práticas médicas e protocolos de “mutilação de vulvas”

A pesquisadora Simone Diniz (1997) encontra equivalências entre o ideal da maternidade, a violência física e sexual da assistência médica e a passagem da criança pelos genitais quando narra que o parto é explicado - em textos e relatos - como uma espécie de estupro invertido. Numa analogia forte, Ciello et al. (2012, p. 12) traduzem que há narrativas que consideram a passagem do bebê pela vulva com imagens supostamente equivalentes a “cair com as pernas abertas sobre um forcado”, e, quanto à passagem do bebê pela pélvis óssea, “a ter sua cabeça esmagada por uma porta”. Em sua historicização, relata:

Durante várias décadas do século XX, muitas mulheres de classe média e alta no mundo industrializado deram à luz inconscientes. O parto sob sedação total (“sono crepuscular” ou twilight sleep) começou a ser usado na Europa e nos Estados Unidos nos anos 1910, e fez muito sucesso entre os médicos e parturientes das elites. Envolvia uma injeção de morfina no início do trabalho de parto e, em seguida, uma dose de um amnésico chamado escopolamina, assim a mulher sentia a dor, mas não tinha qualquer lembrança consciente do que havia acontecido. Geralmente o parto era induzido com ocitócitos, o colo dilatado com instrumentos e o bebê retirado com fórceps altos. Como a escopolamina era também um alucinógeno, podendo provocar intensa agitação, as mulheres deveriam passar o trabalho de parto amarradas na cama, pois se debatiam intensamente e às vezes terminavam o parto cheias de hematomas. Para evitar que fossem vistas nesta situação vexatória, os leitos eram cobertos, como uma barraca (Wertz, 1993). No Brasil, o parto inconsciente teve em Magalhães [1916] um expoente: ele desenvolveu para uso no parto a mistura de morfina com cafeína: “Lucina”, um dos nomes da deusa Juno (CIELLO et al., 2012, p. 13).

Ao se negar que a dor infligida - da violência - foi instituída, invisibiliza-se o fato de que ela esteja à serviço da culpa criada e da punição administrada, legitima-se a “benfeitoria” médica. Essa dor comove médicos, parteiras, famílias e comunidades, desperta um “instinto ideológico de assistência” que promete minorar os tormentos que acompanham a maternidade, outorga ao que “assiste” o lugar de protagonista, Salvador ou semi-Deus. Assim, as operações tenebrosas se estabelecem autorizadas e legitimadas. Enquanto no modelo tutelado pela Igreja o sofrimento do parto era um desígnio divino, ou melhor, uma pena às mulheres que cometeram o pecado original e por punição nada podia ser feito para aliviar os riscos e dores do parto, no modelo assistencial a obstetrícia entra para a história como a resgatadora das mulheres.

Onipotentemente, a ciência revoga a sentença “parirás com dor” e traz para si a preocupação humanitária de resolver o “problema” da parturição (DINIZ, 2005; CIELLO et al., 2012). Nesse paradigma, o parto é um evento fisiologicamente patogênico, uma forma de violência intrínseca às mulheres e um fenômeno que sempre implicará danos, riscos e sofrimentos. Entre a mulher culpabilizada por sua sexualidade e a mulher vítima de sua natureza uterina, está o papel do médico obstetra ocupado em antecipar e combater os muitos perigos do desfiladeiro transpélvico. Assim, as construções sociais acerca da dor do parto como arapucas do mal, que acometem o corpo feminino, são dobradas com a construção de imagens horrendas e desdobradas por articulados relatos de sofrimento.

Após muitas décadas, quando a alta morbimortalidade materna e perinatal passou a ser considerada inaceitável, abandonou-se esse modelo de assistência médica do parto instrumental com sedação completa. “Abandonou-se” tal prática para vivenciar o advento das novas anestesias, consideradas mais seguras. Nas áreas urbanas, esse novo modelo hospitalar, considerado mais seguro, se expandiu como padrão de assistência médica ao parto e nascimento. Além disso, já na metade do século 20, o processo de hospitalização do parto estava instalado com sucesso legitimado na grande maioria dos países industrializados (DAVIS-FLOYD, 1984). O poder político representado pelo desenvolvimento e ideal de progresso deu à medicina obstétrica ocidental o lugar de ciência, calcada na tecnocracia e na sociedade hierarquizada.

Desse modo, o monopólio da obstetrícia pela medicina científica implicou na entrada das práticas obstétricas da era do capitalismo industrial: uma medicalização sofisticada do parto e sua instrumentalização, como as cesarianas e os partos vaginais repletos de intervenção. Assim, as parturientes passaram a viver seus partos “conscientes”, porém amarradas e imobilizadas, assistidas por pessoas desconhecidas, separadas de seus parentes e pertences, com as barrigas cortadas ou as pernas abertas e levantadas, com o funcionamento de seus úteros acelerados com ocitócitos (aceleradores do parto) sintéticos e reduzidos com anestesias e analgesias etc. Silenciadas e submetidas aos protocolos, as mulheres vêm organizando suas falas sobre estes castigos e punições.

Corpos, geografias de dor, punição e expropriação

Na linha das reflexividades da resistência, Del Priori (2009), ao analisar a maternidade no Brasil Colônia, aponta para os modos de vislumbrar e alcançar possibilidades de emancipação no bojo da própria violência e submissão:

Se, malgrado tanto sofrimento e tanta incerteza quanto ao encaminhamento do parto, as mulheres não paravam de reproduzir, não seria porque esta era especificamente a sua função na sociedade colonial? A capacidade de enfrentar a dor para dar à luz não seria um estigma da fisiologia feminina condenado totamulier in utero? Não seria esta a melhor maneira de redimir-se o pecado original, segundo a Igreja? Acreditamos que tais questões deviam pertencer à mentalidade do período no que dizia respeito à fisiologia feminina e à maternidade. Essa longa trajetória de sofrimento físico ajudou certamente na construção da devotia mariológica em colônias e na eleição desse papel - e de mãe - para as populações femininas. Sobreviver a um parto ou a mais de um elevava-as ao status de santas, restituindo-lhes uma identidade que o mais da vida social lhes negava. No parto, as mulheres encontravam-se consigo mesmas e com o seu gênero. Razão de sobra, portanto, nesta Colônia em que elas eram sós e destituídas de valor, para continuar parindo (DEL PRIORI, 2009, p. 230-231).

O lapso respaldado por esses estudos é que, simultâneo ao lugar dessa maternidade - a mãe enaltecida e a mulher domesticada -, também possa estar uma cultura coletiva entre mulheres que caminha desde anteriormente e depois em paralelo aos estudos médicos acerca do parto. Algo que talvez não trate apenas daqueles poderes e lideranças, mas, em especial, da autonomia e articulação entre elas, que, segundo a autora, é como ‘uma aliança de gênero em prol da emancipação pessoal de cada mulher’. Se percorrermos outras historiografias rumo norte e de outras décadas mais tardes da história, encontraremos diferentes coletivos, expressões e resistência também voltadas para a sororidade - aliança entre mulheres. No fim dos anos 1950, nos EUA, uma revista chamada Ladies Home Journal (Revista para Donas de Casa) publicou um artigo intitulado Cruelty in Maternity Ward12(Crueldade nas maternidades) com narrativas de parturientes e enfermeiras falando das situações desumanas que vivenciaram e presenciaram no parto.

O termo utilizado foi “crueldade” e tais registros faziam referência aos tratamentos de tortura já mencionados: o sono crepuscular (twilight sleep) - uma combinação de morfina13 e escopolamina14 que produz sedação, agitação psicomotora e eventuais alucinações; o uso abusivo do fórceps; a imposição da litotomia com pernas amarradas, pulsos algemados e, consequentemente, lesionados etc. (DINIZ et al., 2015; GOER, 2010). A publicação da matéria reverberou outros tantos depoimentos-denúncias. Mulheres leitoras se viram estimuladas a enviar suas cartas à revista reforçando a realidade de tais crueldades e abusos - termos usados naquele contexto. Um desdobramento importante dessa compilação de depoimentos-denúncias foi a criação da Sociedade Americana de Psicoprofilaxia em Obstetrícia, atualmente conhecida como Lamaze International15.

No mesmo ano, em 1958, no Reino Unido, um movimento de mulheres também elaborou suas denúncias e, utilizando o termo crueldade, criou The Society for the Prevention of Cruelty to Pregnant Women (Sociedade pela Prevenção da Crueldade contra as grávidas). A carta de fundação dessa Sociedade, publicada no jornal The Guardian, continha denúncias muito similares às da época e também às atuais, como: a solidão, a falta de simpatia, negação de privacidade, desrespeito, insensibilidade, ignorância, falta de consideração e consentimento; má alimentação, reduzido horário de visita, privação de sono e impossibilidade de descansar, falta de acesso ao bebê, rotinas rígidas e grosseiras etc. (DINIZ, 2015, p.2).

Uma literatura muito influente nos feminismos dos anos 1970, como o clássico Our bodies, Ourselves (WHBC, 1970), reforça as críticas, tenta sensibilizar os profissionais de saúde, aponta para os absurdos das práticas e dá voz às mulheres submetidas aos maus-tratos. No entanto, apesar dessas denúncias, os atos prescritos como assistência à saúde da mulher gestante, em parturição e abortamento não foram modificados, mas mascarados por terem adentrado ao rol dos protocolos hospitalares. A relevância desse percurso, que culminou na nomeação dessa assistência violenta, abusiva, cruel, discriminatória, criminosa e desrespeitosa, se apresenta, nessa linha do tempo, entre, por exemplo, a primeira nomeação no final dos anos 1950, por mulheres estadunidenses que intitularam a situação por “crueldades no parto”; posteriormente, a elaboração do termo “morte materna e morte neonatal”; e, por fim, as atuais diversas combinações com o conceito “violência” - como: violência de gênero, violência no parto, violência institucional -, que culminam no termo “violência obstétrica”.

Desde o início do século 21, diferentes termos designam a violência contra as mulheres nos serviços de saúde, que se expressa, de um modo mais drástico, quando se trata das experiências da vida sexual e reprodutiva. São eles: violência no parto (TORNQUIST, 2004; AGUIAR, 2010; AGUIAR; D’OLIVEIRA, 2011; VENTURI; GODINHO, 2013); abuso obstétrico; violência de gênero no parto e aborto; violência de gênero contra as mulheres na atenção obstétrica (REHuNa16); violência institucional de gênero no parto e aborto (AGUIAR; D´OLIVEIRA; SCHRAIBER, 2013); violência institucional na assistência ao parto e aborto (AGUIAR, 2010); violência institucional na assistência obstétrica (Parto do Princípio17); violência estrutural na atenção materna (SADLER et al., 2016); crueldade no parto (GOER, 2010); assistência desumana/desumanizada; movimento em prol da humanização do parto e nascimento (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001; DOMINGUES, 2002; RATTNER, 2009); violação dos direitos humanos das mulheres no parto (DINIZ, 2005); mortalidade materna por causas obstétricas diretas18 (PRUDENTE, 2008); violência gineco-obstétrica (OVO Chile, 2017) e violência obstétrica (SENA, 2016; SHABOT, 2016; DINIZ, 2015; POMPEO, 2014; AZEVEDO et al., 2013; D'GREGORIO, 2010).

Dentre esses, “violência obstétrica” se tornou o termo mais utilizado - tanto do ponto de vista jurídico, quanto social e político - para designar a violência no atendimento ao ciclo gravídico-puerperal, que se estende da gestação ao pós-parto ou pós-aborto. Ou seja, o termo atual - “violência obstétrica” - com suas tipificações, conceituações e legislações é resultante desse longo processo coletivo no qual mulheres seguem trabalhando pelas transformações.

No ano de 2012, a organização ‘Parto do Princípio - Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa’ entregou o dossiê Violência Obstétrica: Parirás com dor (2012) para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher. Trata-se de um documento sobre violência obstétrica que reúne informações sobre a violência institucional na assistência à gestação, ao parto e ao nascimento. O título do dossiê - e deste artigo - faz menção às passagens bíblicas que, atualmente, são atualizadas nas recorrentes frases proferidas pelos técnicos de saúde - como médicos, enfermeiros etc - às mulheres em trabalho de parto: “Pare de gritar porque na hora você gostou” e/ou “Fique quieta por que na hora de fazer não gritou”. Alguns trechos bíblicos que explicitam tais profetizações podem ser encontrados em Gênesis 35, 17:

Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio (Gênesis 3, 16); E partiram de Betel. Quando estavam a pouca distância de Efrata, Raquel deu à luz, e o seu parto foi penoso (Gênesis 35, 16); Durante as dores do parto, a parteira disse-lhe: “Não temas, porque ainda terás este filho” (BIBLIA CATÓLICA ONLINE, 2017).

Todas as frases - antigas e atuais, milenares e contemporâneas, religiosas e sociais - apontam para a sexualidade que é ressaltada, humilhada, castigada e punida no momento de parir. O Observatório de Violência Obstétrica brasileiro19 define a violência obstétrica como um conjunto de violências contra as mulheres grávidas e em situação de abortamento e/ou parturição, além da violência institucional, de gênero, sexual, física, psicológica, moral e verbal. Além disso, o observatório brasileiro aponta para o fato de que os atos de violência obstétrica no Brasil revelam ações discriminatórias baseadas em preconceitos de classe, cor e localidade geográfica20. De modo geral, os observatórios de violência obstétrica partem do recorte de uma violência de gênero e sexual estruturada na ideia de que é preciso viver e aceitar a violência obstétrica como um tributo que as mulheres devem pagar para trazer um filho ao mundo. Como um castigo à sexualidade dessa mulher, que teve relação sexual, e, por isso, “parirás com dor” (CIELLO, 2012).

Os observatórios, em especial o do Brasil, olham com preocupação para a negligência, o abandono, o abuso e a agressão presente na violência obstétrica estruturada a partir das supostas escalas de poder, “saber” e fazer. E, mais uma vez, encontramos apontamentos que conjugam a discussão sobre uma possível dimensão punitiva e disciplinar da sexualidade das mulheres. Reflexões estas que corroboram uma definição conceitual complexa no sentido de compor uma espiral ou o desenho de uma constelação entre as muitas formas de violência de gênero que se encontram naturalizadas e perpetuadas no interior das muitas instituições sociais como de saúde, educação, religião, familiar etc. Assim, no Brasil, a violência obstétrica está tipificada como: abuso de poder e diferenças no e entre os serviços de saúde, chacotas, insultos, ameaças, insensibilidade à dor e doenças femininas, manipulação da informação, omissão da atenção oportuna, abuso ou negação de medicação, utilização de métodos agressivos em partos de baixo risco. Em outras situações, tudo isso acaba gerando graves consequências físicas e psicológicas nas que sofrem.

Paradoxos nas Políticas da Humanização e da Reprodução

Do silenciamento das mulheres em suas consultas particulares de pré-natal aos gritos (des)governados nas salas de parto de um hospital público brasileiro do século 21 (e ativo desde o século 19), está uma emblemática diferença: enquanto a primeira mulher será encaminhada à cirurgia cesariana na data conveniente, a segunda será levada às últimas consequências para que se realize um parto vaginal sob o protocolo da vulva mutilada. Para fazer despencar um índice altíssimo e quase totalizante de partos cesáreos na saúde suplementar, torna-se necessário elevar, com rigor, os índices de parto vaginal no sistema público de saúde. Nessa sessão, analisamos brevemente a cooptação conceitual presente na política pública de humanização do parto, nascimento e abortamento. Mais especificamente, em torno do que entendemos como “engodo da humanização", que foi apropriada pelo Estado, colocando-a como braço da violência legitimada.

No início do século 21, foi nomeado o fato de que o modelo tecnocrático de parir e nascer ocultava - ou carregava de forma subjacente - a violência sob a nomeação de assistência. Muitas mulheres, literalmente imobilizadas - inclusive, sofreram intervenções abusivas por profissionais desconhecidos em seus partos, no nascimento de seus bebês e/ou na assistência aos casos de abortamento. Observamos que essa passagem da violência - ocultada na assistência - para as propostas não violentas de assistência - nomeada como humanizada - ao parto, aborto e nascimento “suspendeu” a árdua tarefa de denunciar a própria violência. E eis aí a revelação do paradoxo desse sistema “ordenário” que, para negar (a violência), precisa antes afirmar (a suposta “humanização”). Assim, com o intuito da não-superação da violência obstétrica, afirmou-se a “humanização” para confirmar a violência.

Com relação ao lançamento da proposta de humanização - formulada pelos movimentos sociais de mulheres -, que enfrentou mas também carregou os germes da usurpação política que envolve a violência obstétrica, observam-se tanto os avançados passos daquele determinado momento histórico do final do século XX e início do XXI, quanto os engodos - agora possíveis de serem visualizados. Impasses, contradições, resistências e resiliências percorrem essa história. Apesar de, desde 1981, com a publicação intitulada “Espelho de Vênus”, do Grupo Ceres (RJ), haver a descrição da assistência à saúde sexual e reprodutiva das mulheres brasileiras como explicitamente violenta, uma carta de 199321 dá indícios de que foi necessária a negociação dos movimentos de mulheres com as instituições médicas resultando na então proposição da humanização sem explícita nomeação do enfrentamento à violência obstétrica.

A despeito da polissemia do termo “humanização da assistência”, a definição atualmente na pauta de diversas instâncias sociais - como nos documentos de políticas públicas, textos e falas das organizações da sociedade civil, pela mídia e pelos serviços privados - segue como uma proposta de assistência não-violenta, relacionada às ideias de “humanismo” e de “direitos humanos” (NONATO, 2007). Entre eles, estão: o direito à integridade corporal (não sofrer dano evitável); o direito à condição de pessoa (direito à escolha informada sobre os procedimentos); o direito de estar livre de tratamento cruel, desumano ou degradante (prevenção de procedimentos física, emocional ou moralmente penosos); o direito à equidade, tal como definida pelo SUS.

Circulam no ideário da construção dessa proposta elementos como: relações simétricas entre as mulheres e os agentes de saúde que lhes acompanham, a autonomia feminina pautada na informação e fundamentada nos direitos humanos e reprodutivos, a construção do casal grávido, a realização de intervenções apenas em situações de necessidade, a busca de fundamentação científica, a participação de profissionais não médicos na assistência a gestantes e parturientes (enfermeiras obstetras, obstetrizes, doulas, psicólogos, preparadores corporais, entre outros), a participação de acompanhantes de escolha da mulher no parto, o parto em contextos não-hospitalares, entre outros (RAMOS, 2013, p. 20).

Assim, o que se entende sobre o uso desse conceito “humanização da assistência” é que emergiu como reação ao modelo hospitalocêntrico centrado na autoridade médica e baseado em rotinas de intervenções sem evidências científicas. Porém, a partir de uma pesquisa documental, Rattner (2009) ressalta que o termo humanização foi mais estratégico e menos acusatório para dialogar com os profissionais de saúde sobre a violência institucional e/ou violência obstétrica.

Contudo, após poucos anos, a nomeação da violência obstétrica veio à tona e assumiu a cena, explicitando, nesse mesmo trilho, tanto as contradições do percurso da humanização (e a consequente nomeação da violência obstétrica), quanto suas limitações e a cooptação efetuada pelo Estado. E, assim, ao reconhecermos que a política pública da humanização também teve seus importantes avanços naquele determinado momento histórico, abre-se a tarefa crítica do ato de analisar que, exatamente pelas lutas e conquistas serem datadas, é que estas precisam continuar, revisitando (conceitos e estratégias) e avançando (com os próximos passos possíveis).

Em suma, ficaram sobras e foram multiplicadas - apesar daquelas tentativas de aniquilamento seguidas de vigilância. E, na simultaneidade dessas resistências, há duplicidades como memória/esquecimento. O apagamento social e esquecimento induzidos dos conhecimentos usurpados das parteiras reverberam na assistência obstétrica praticada hoje, da mesma forma como a memória desses fazeres ecoam nos coletivos organizados por e de mulheres. Contudo, portanto, segue o fato de que a assistência à saúde sexual e reprodutiva da quase totalidade das mulheres é essa, nomeadamente por violência obstétrica. E é, por isso, que se faz necessário agudizar a reflexão sobre esse corpo e suas geografias existenciais fundantes que, ao atestar a vida em cada parto e nascimento, lhe carimba a forma do óbito. Afinal, trata-se de uma violência - obstétrica - que atua como punição sexual às mulheres para mantê-las sob administração do Estado. Punição e controle estes que, operados pelos profissionais da saúde, disciplinam os corpos para o Estado.

Cada um desses breves trechos discorridos até aqui, não só remontam os tempos longínquos da intensa relação das mulheres com o parto, como apontam para a insistente expropriação de seus corpos e vidas. Se olharmos para a espiral dessas experiências violentas e existenciais da condição humana, a partir do termo “corpos incircunscritos”, de Teresa Caldeira (2000), retornaremos à compreensão da relação instrumental entre violência e ordem na construção primária do atual sistema que vivemos. Como ironiza a autora, muito embora o Brasil seja uma democracia política, com direito à participação e livre organização, e tenha direitos sociais legitimados, os aspectos civis - igualdade perante a lei - e os aspectos da cidadania reprodutiva, por exemplo, são continuamente violados - o grau disso depende do grupo social em questão.

O corpo é concebido como um lócus de punição, justiça e exemplo no Brasil. Ele é concebido pela maioria como o lugar apropriado para que a autoridade se afirme através da inflição da dor. Nos corpos dos dominados - crianças, mulheres, negros, pobres ou supostos criminosos - aqueles em posição de autoridade marcam seu poder procurando, por meio da inflição da dor, purificar as almas de suas vítimas, corrigir seu caráter, melhorar seu comportamento e produzir submissão. Para entender como essas concepções e suas consequências podem ser aceitas como naturais na vida cotidiana, não é suficiente simplesmente desvendar as associações de dor e verdade, dor e desenvolvimento moral ou mesmo dor e um certo tipo de autoridade. Essas concepções de punição e castigo estão associadas a outras noções que legitimam intervenções no corpo e à falta de respeito aos direitos individuais (CALDEIRA, 2000, p. 370).

O confronto é no micro com mirada para a fonte do macro-político. E o macro não se resumiria ao Estado enquanto governo federal brasileiro, por exemplo, pois mais certeiro seria nomear que o confronto é com o sistema patriarcal atuante também em todas as instituições sociais de nossa sociedade brasileira que é moderna, colonial, imperialista e/ou capitalista etc. Federici (2010) disseca leituras e traça estudos em torno do disciplinamento e domesticação das mulheres, refaz as aproximações que acompanharam a transição do feudalismo para o capitalismo e, com ele, a racionalização da sexualidade que fundou o patriarcado. Escancara as atuais políticas do corpo respaldadas na misoginia e preservadas pela tarefa de manter a ordem desse atual sistema capitalista moderno-colonial em funcionamento - em detrimento de algumas expropriações. A autora examina o extermínio das bruxas como um ato fundacional do sistema capitalista que domestica mulheres. Os raros registros do brutal massacre que foi a caçada às bruxas omitiram o serviço de expropriação realizado. O corpo das mulheres, seu trabalho e seus poderes - incluindo os sexuais e reprodutivos - foram colocados sob controle do Estado e transformados em recursos econômicos. Sobre os primórdios da construção da misoginia, violência e punição sexual contra os corpos e as vidas das mulheres promovido e sustentado pelo Estado. Sobre isso, Federici (2010) narra que:

No final, no entanto, do século XV, foi lançada uma contrarevolução que agiu em todos os níveis da vida social e política. Primeiro, as autoridades políticas fizeram esforços importantes para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes através de uma política sexual maliciosa, que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias (FEDERICI, 2010, p.78-79, tradução nossa)22.

A entrega desses corpos a serem abusados aos investidos de abusadores converte todos em máquinas de (re)produção de trabalhadores e trabalhadoras. Portanto, no que tange aos corpos - máquinas de reprodução -, está proibido abortar, apropriar-se de si, de seu corpo, sua vida e sua sexualidade. Federici (2010) mostra que a falsa liberação das mulheres de uma certa produção de trabalho foi sua sujeição às específicas restrições da reprodução da espécie. A essa obrigatoriedade dada às mulheres - de obedecer a seus corpos como objetos com único funcionamento - foi dado o nome de maternidade compulsória. Ou seja, por diferentes meios, o feminismo apontou para o fato de que este sistema capitalista impôs às mulheres a reprodução da força de trabalho como trabalho forçado sem remuneração.

O capitalismo não existiria sem a apropriação do trabalho doméstico e materno não remunerado das mulheres, e essa expropriação da mulher de antemão já a desvaloriza na hierarquia laboral marcada por gênero (ou divisão sexual do trabalho). Eficiente por meio do casamento e das relações maternais, essa serviçal não pode exercitar o seu poder e, por isso, deve-se administrar seus prazeres sexuais, amistosos e profissionais. Federici (2010), ao enfatizar que a luta contra as desigualdades passa pelo corpo e, principalmente, pelo da mulher, apruma o retorno à luta pelo combate à violência obstétrica. É necessário seguir adiante e os movimentos de mulheres seguem.

Considerações finais e reflexões iniciais

As relações íntimas entre as violências contra as mulheres e o sentimento de ódio ao feminino (misoginia) estão diretamente relacionadas à consequente materialização em crimes como feminicídio, agressões verbais, difamação, desqualificação psicológica, assédio moral e sexual, torturas corporais, legislações restritivas etc. Uma dessas violências é obstétrica cujo termo ainda pode ser considerado relativamente novo, mas que tem se consolidado como mais um importante tema de luta e pesquisa, com trabalhos que já se destacam no cenário acadêmico latino-americano, como no cenário político de luta pelos direitos das mulheres. Desse modo, compreender os acúmulos, sistematizações e superações - que não são apenas conceituais, mas também políticos e emancipatórios - pode contribuir com análises sobre como funcionam estes eficazes mecanismos estatais de perpetuação das desigualdades, violências, punições, poder e controle sobre o corpo das mulheres.

De tudo que foi exposto, uma transformação que garanta a integridade genital da mulher perpassa situações profundas, desde uma mudança nos estereótipos de gênero, uma compreensão mais profunda do corpo feminino, uma desconstrução e reconstrução sobre os diversos e diferentes saberes do partejar etc., até análises sociológicas que criem erosões nessas políticas cujos mecanismos são de regulação da ordem dos monopólios e perpetuação das violências. Propostas de pacificação, humanização, administração ou reparação seriam, então, nessa instância, inaceitáveis. A afirmação de Serruya (2014) também provoca essa inquietação que, sem saber o exato caminho da saída, compreende que a necessidade de esmiuçar sobre a forma como nascemos, no interior e nas margens desse estado.

A transformação desse modelo em um antimodelo, rumo à segurança, bem-estar e resultados adequados exigirá muito mais que portarias, guias, revisões sistemáticas. É fundamental rediscutir do ponto de vista das mulheres o significado desse momento, dimensionando de maneira radical a questão do protagonismo no parto. A responsabilidade do sistema de saúde, da autoridade sanitária e seus profissionais é corresponder a essa expectativa, ainda que muitas vezes no imaginário dessas mulheres a melhor atenção seja a mais medicalizada. O fato de as mulheres reconhecerem a violência obstétrica e estarem insatisfeitas com a atenção recebida mostra que as mudanças são desejadas e esperadas, por mais que a maioria ainda não consiga experimentar um modelo alternativo ao que conhece hoje (SERRUYA, 2014, p. 36).

Porém, é preciso ir além, afinal, não é possível ignorar a discrepância entre a emergência e complexidade do cenário e a recusa enunciada na prática assistencial das equipes de saúde; entre a gravidade das denúncias e a morosidade jurídica e legislativa do estado; entre as contradições e a impunidade. Não basta dar evidência aos dados, reflexões e denúncias baseada em evidências do que são as boas práticas em contraposição às intervenções desnecessárias, prejudiciais e sabidamente arriscadas e irreversíveis, como a morbidade materna e neonatal. Em suma, tornar público dados de pesquisas e tudo o mais já nomeado, descrito e discutido não mobiliza, por si só, mudanças e transformações suficientes e, em larga escala, para o fim da violência obstétrica. É urgente a necessária investigação e reflexão sobre como as relações intrínsecas entre ‘Estado’ e ‘Parto’ coordenam a disciplina sobre o corpo expropriado das mulheres.

As teorias e práticas comprometidas com as epistemologias feministas se constituem no grande lócus de resistência, proposições e avanços. Em suma, a nomeação e denúncia da violência obstétrica se deu e segue na esteira de todas as lutas feministas que avançam nos confrontos com suas limitações e negociações com a realidade.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 O artigo está ancorado nas discussões dos capítulos 1 e 2 da tese Pisando em óvulos: a violência obstétrica como uma punição sexual às mulheres, de Maíra Soares Ferreira, sob orientação da Profa. Dra. Eliane Gonçalves, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade Federal de Goiás, em 2019. As autoras agradecem às/aos pareceristas ad hoc que sugeriram modificações fundamentais no texto original.
3 É a raspagem de pelos pubianos (depilação).
4 Procedimento para esvaziar o intestino. O nome popular é lavagem.
5 A abertura cirúrgica da musculatura e tecido erétil da vulva e vagina é uma prática sem fundamentação científica e já identificada como mutilação genital do órgão feminino.
6 É um instrumento com formato de gancho usado para estourar a bolsa de água ou saco amniótico, acreditando-se acelerar o nascimento. Sobre isso, não há evidências comprovando sua eficácia.
7 A manobra de Kristeller consiste em aplicar força no fundo do útero para expelir o bebê. Conforme a OMS, trata-se de uma conduta prejudicial, ineficaz e que deve ser eliminada. Pode ainda causar a falta de oxigenação do feto, fraturas de costelas, laceração de órgãos da mãe, traumatismo craniano do bebê e até mesmo a morte.
8 Posição horizontal: coloca-se a mulher deitada. Em casos mais graves, amarram-na.
9 Vamos manter a terminologia não ignorando que há disputas em torno do seu uso. Para leituras mais aprofundadas e críticas, conferir: AGUIAR, Neuma (2000); MIGUEL, Luis Felipe (2017); MACHADO, Lia Z. (1998), entre muitos outros.
10 Por ação do Ministério Público Federal, o Ministério da Saúde voltou atrás. A resposta ao MPF foi publicada no dia 7/6/2019 pelo então secretário de atenção primária em saúde, ErnoHarzheim, e pode ser conferida na íntegra aqui: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/docs/oficio-ms
11 Segundo a sabedoria popular e as tradições orais, as parteiras, curandeiras e raizeiras tinham - e ainda têm - muitos remédios à base de plantas, experimentados em anos de uso, e que foram usurpados pela farmacologia e indústrias farmacêuticas sem o devido reconhecimento. Como exemplos, temos: a cravagem de centeio que as parteiras ainda utilizam para aliviar a dor de parto e que está presente nos principais remédios para acelerar o trabalho de parto; a beladona, utilizada para aliviar as contrações uterinas, e que atualmente está empregada como antiespasmódicos; os hormônios, altamente presentes na placenta, que servem para estancar hemorragias, auxiliar na recuperação do pós-parto e para manufatura de remédios imunológicos.
12 Schultz GD. Ladies’ Home Journal. May, 1958 apud GOER, Henci, 2010.
13 A morfina é um fármaco narcótico de alto poder analgésico usado para aliviar dores severas. O nome da substância tem origem no deus grego dos sonhos, Morfeu. Com a invenção da agulha hipodérmica em 1857, o uso da morfina generalizou-se para o tratamento da dor. Foi utilizada na Guerra Civil Americana, resultando em 400 mil soldados com síndrome de dependência devido ao seu uso impróprio. A heroína, cujo nome científico é diacetilmorfina, foi derivada da morfina em 1874. Data: 22/03/2017. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Morfina
14 A escopolamina é um fármaco antagonista dos receptores muscarínicos, também conhecido como uma substância anticolinérgica. É obtida a partir de plantas da família Solanaceae sendo um dos seus metabólitos secundários. Atua impedindo a passagem de determinados impulsos nervosos para o sistema nervoso central pela inibição da ação do neurotransmissor acetilcolina. É utilizada como antiespasmódico, principalmente em casos de úlcera do estômago, úlcera duodenal e cólica. A escopolamina é classificada como uma substância anticolinérgica, possui efeitos alucinogénos fortes, seu uso inadequado pode causar efeitos colaterais como: boca seca, pupilas dilatadas, garganta seca, cessação da produção de saliva, mucosas nasais e suor, tornando a pele quente, seca e ruborizada, tontura, náuseas e vômitos, alucinações e delírios, na maioria das vezes pesadelos, sensações de pânico e agonia, visões de cadáveres, monstros, sensação de estar sendo perseguido, inconsciência, coma e morte. Data: 22/03/2017. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escopolamina.
16 Rede pela Humanização do Parto e Nascimento, atuante desde 1993. Site: www.rehuna.org.br
17 Rede Nacional articuladora de Grupos de Apoio (GAPP) pelo país. Site: www.partodoprincipio.com.br
18 O óbito no parto, aborto e pós-parto decorrente de causas que são preveníveis (como a hemorragia, hipertensão e infecção) são consideradas causas obstétricas diretas (PRUDENTE, 2008).
20 Fonte: www.observatoriovobrasil.com.br (Acesso em: 25/4/2018).
21 Com enfoque na proposta da humanização e não no enfrentamento à Violência Obstétrica, é lançada a Carta de Campinas, documento fundador da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa), com importantes denúncias sobre as circunstâncias de violência e constrangimento em que se dá a assistência ao parto, aborto e nascimento no Brasil.
22 “A finales, no obstante, del siglo XV, se pusoen marcha una contrarrevolución que catuaba en todos los niveles de la vida social y política. En primer lugar, las autoridades políticas realizaron importantes esfuerzos por cooptar a los trabajadores más jóvenes y rebeldes por medio de una maliciosa política sexual, que les dio acceso a sexo gratuito y transformo el antagonismo de classe em hostilidad contra las mujeres proletarias”.
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