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Narrando a própria morte: os relatos de experiências de quase-morte como narrativas de sentido1

Narrating their own death: the stories of near-death experiences as sense narratives

Narrando la propia muerte: los relatos de experiencias de casi-muerte como narrativas de sentido

Arlindo Netto
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

Narrando a própria morte: os relatos de experiências de quase-morte como narrativas de sentido1

Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e54620, 2020

UFG - Universidade Federal de Goiás

Recepção: 25 Agosto 2018

Aprovação: 03 Agosto 2019

Resumo: A morte é um fenômeno que revela importantes aspectos socioculturais. As ciências sociais, em especial a antropologia, já demonstraram o potencial desse fenômeno para além dos seus aspectos biológicos. Neste artigo, a morte serve de tema para a reflexão sobre experiências, narrativas e sentidos. Com base em relatos de Experiências de Quase-Morte (EQM), o autor descreve como são construídas narrativas de sentidos, como novos arranjos emocionais e cognitivos são expressos narrativamente e como muito da cultura é compartilhada pelo que se diz. Nesse sentido, o argumento central deste artigo consiste em compreender como um fenômeno biológico, no presente caso, a morte, é ressignificado, ganhando novos contornos e aspectos essencialmente culturais. Evidencia-se ao fim, que as narrativas de quase-morte são relatos que guardam relações importantes com as concepções cosmológicas, envolvendo aspectos como memória, percepção simbólica e padrões emocionais. Entrevistas em profundidade compõem o material teórico do artigo.

Palavras-chave: Morte, Experiência, Emoções, Narrativas.

Abstract: Death is a phenomenon that reveals important sociocultural aspects. The social sciences, especially anthropology, have already demonstrated the potential of this phenomenon beyond its biological aspects. In this article, death serves as a theme for reflection on experiences, narratives and senses. Based on reports of Near Death Experiences (NDEs), the author describes how sense narratives are constructed, how new emotional and cognitive arrangements are expressed narratively, and how much of the culture is shared by what is said. Thus, in this article, the central argument is to understand how a biological phenomenon, death, can be redefined, gaining new contours and essentially cultural aspects. It is evident that near-death narratives are important relations with cosmological conceptions, involving aspects such as memory, symbolic perception and emotional patterns. In-depth interviews make up the theoretical material of the article.

Keywords: Death, Experience, Emotions, Narratives.

Resumen: La muerte es un fenómeno que revela importantes aspectos socioculturales. Las ciencias sociales, en particular la antropología, ya han demostrado el potencial de este fenómeno más allá de sus aspectos biológicos. En este artículo, la muerte sirve de tema para la reflexión sobre experiencias, narrativas y sentidos. Con base en relatos de Experiencias de Casi-Muerte (EQM), el autor describe cómo se construyen narraciones de sentidos, como nuevos arreglos emocionales y cognitivos se expresan narrativamente y cómo mucho de la cultura es compartida por lo que se dice. En este sentido, el argumento central de este artículo consiste en comprender cómo un fenómeno biológico, en el presente caso la muerte, es resignificado, ganando nuevos contornos y aspectos esencialmente culturales. Se evidencia al final, que las narrativas de casi-muerte son relatos que guardan relaciones importantes con las concepciones cosmológicas, involucrando aspectos como memoria, percepción simbólica y patrones emocionales. Las entrevistas en profundidad conforman el material teórico del artículo.

Palabras clave: Muerte, Experiencia, Las emociones, Narrativas.

Introdução

Possivelmente, somos a única espécie que demonstra ter consciência da morte. Diante desse fato, o fenômeno da morte pode revelar muito sobre a vida presente, evidenciando como nós vivemos, convivemos uns com os outros e percebemos a nós mesmos. Os relatos de Experiências de Quase-Morte (EQM)2, os quais pude catalogar, ajudam a questionar como nos relacionamos com a cultura e a natureza e, sobretudo, com a nossa capacidade simbólica e reflexiva. Esses relatos compõem o material etnográfico utilizado na presente análise3.

Uma experiência de quase-morte pode ser definida como um fenômeno biopsicocultural4, no qual pessoas que estiveram biologicamente mortas por um período, durante uma parada cardiorrespiratória5, verbalizam, ao acordar, que mantiveram a consciência durante esse período. Tais verbalizações guardam correspondências entre si e, ao que parece, apresentam-se como narrativas cosmológicas.

A dimensão biológica da Experiência de Quase-Morte vem sendo estudada pela medicina em termos de manifestação e o que isso significa em termos biológicos, mas não em termos cultu-rais6. Para aprofundar a discussão em tais termos, detive-me, num primeiro momento, na descrição das narrativas de quase-morte e, num segundo momento, desenvolvi uma análise sobre os elementos que constituem tais narrativas e como esses elementos interagem a fim de produzir sentidos.

Em termos biológicos, as representações simbólicas se dão no córtex cerebral. As informações que ele recebe são processadas e integradas e automaticamente respondem com uma ação. Essa região cerebral também é responsável fisiologicamente pela linguagem, percepção, emoção, cognição e memória. Nos humanos, o desenvolvimento do córtex permitiu o aprimoramento da cultura e do pensamento abstrato, como já descreveu Gosden (2012).

Durante uma Experiência de Quase-Morte o córtex cerebral está inativo, o que torna algum tipo de cognição biologicamente impossível de existir. Sem a ação do córtex, a pessoa está privada de sua capacidade auditiva, visual e sonora e, consequentemente, impossibilitada de utilizar-se da linguagem verbal e da memória7. Contudo, as pessoas que passaram por uma quase-morte narram a experiência como se suas funções cognitivas não estivessem comprometidas. Do mesmo modo, se deu com os meus informantes, que permaneceram apreendendo o mundo a partir da audição, da visão, da linguagem e da memória durante a parada cardiorrespiratória8.

A dimensão biológica do corpo está atrelada diretamente à concepção cultural e, igualmente, à emocional e cognitiva. Como seres relacionais e contextuais, não somos apenas compostos pela dimensão biológica, somos, concomitantemente, influenciados pelas contingências da história. Em certa medida, a dimensão cultural, com toda a sua potencialidade de ação, pode ser muito mais poderosa do que outros aspectos aos quais estamos sujeitos, como, por exemplo, os nossos genes9. Nesse sentido, em termos analíticos, podemos pensar que nossos aspectos tanto biológicos como culturais, incluindo-se aí a mente, são produtos históricos.

Desse modo, neste artigo descrevo e analiso: (1) como são construídas as narrativas de quase-morte pelos sujeitos que a ex-perienciaram; (2) quais os sentidos e intenções por eles utilizados, e suas implicações na percepção simbólica; e, (3) como tal experiência regula os padrões emocionais desses informantes, produzindo o que Herzfeld (2014) chama de “idioma cosmológico”. Esses três aspectos da análise permitirão, ao final, apresentar quais as rupturas e continuidades vividas pelos informantes antes e após as suas Experiências de Quase-Morte.

De antemão, destaco que os relatos analisados estão relacionados pela ressignificação da ideia da morte a partir da EQM. A concepção da morte descrita nos relatos se afasta do sentido negativo comumente estabelecido, revelando uma percepção da morte “sem medo", embasada em aspectos positivos. Nesse sentido, êmicamente, a experiência da morte é compreendida como um novo começo, uma nova vida - mesmo que seja na mesma vida -, na qual medos, ansiedades e temores são substituídos pela calma, paz e lucidez, e uma outra ordem emocional é estabelecida.

Experiências de Quase-Morte: um breve histórico e relato de caso

O primeiro pesquisador a estudar cientificamente as EQMs, foi o norte-americano Raymond Moody10. A partir dos relatos, Moody pôde identificar algumas variáveis constantes presentes nas narrativas11 , como por exemplo: (1) a sensação de estar morto durante a quase-morte; (2) o sentimento de paz e alívio durante e após a experiência; (3) a visão de uma luz ou um túnel de luz ao estar fora do corpo; (4) a presença de um ou mais “seres de luz” na experiência; (5) a recapitulação da vida durante a experiência; e, (6) a sensação prolongada de compreensão do mundo, especialmente, no que tange à presença unânime de uma memória duradoura das sensações, após a experiência12 .

Kenneth Ring (1999), psicólogo da Universidade de Connecticut, foi um dos primeiros pesquisadores a sistematizar e examinar cientificamente as Experiências de Quase-Morte, caracterizando o que ele chamou de “núcleo” da EQM. Ring percebeu que a presença de um sentimento de paz e de alguma experiência fora do corpo (como entrar na escuridão ou ver luzes ou entrar na luz) constituíam-se como centrais nos relatos catalogados por ele.

Ainda segundo Ring (1999), uma EQM produz diversos efeitos psicológicos, entre os quais se destacam: (1) a redução ou extinção do medo da morte e maior gosto pela vida; (2) a conscientização da importância do amor; (3) a sensação de união com todas as coisas; (4) a valorização do conhecimento; (5) maior responsabilidade pela própria vida; (6) a ampliação do vigor e da atividade mental e física; (7) uma reavaliação das coisas materiais da vida; (8) um profundo senso de missão; e (9) um sentido de urgência e reavaliação das prioridades.

De modo análogo, Noyes (1980) examinou 215 pessoas que passaram por uma EQM, e ao analisar seus efeitos sob a vida dessas pessoas, comparando seus comportamentos e posturas de antes e depois da experiência, encontrou um padrão de mudanças qualificadas como positivas. Essas mudanças positivas referem-se a atitudes, condutas, crenças, valores, incluindo a ausência do medo da morte, sentimento de pertencimento ao mundo, constante crença na continuidade da existência, valorização da vida, reavaliação de prioridades e melhora de atitudes para com os outros e consigo.

Resumidamente, esses são os principais aspectos estruturais que constituem uma Experiência de Quase-Morte, e que, de modo geral, costumam estar presentes simultaneamente nas narrativas. Segue abaixo um relato 13 , embora resumido, de um dos meus informantes, a fim de que tais características acima citadas fiquem evidentes:

Tudo aconteceu quando eu tive que fazer uma cirurgia no coração. Na época fiz uns exames e tive que fazer uma angioplastia. A cirurgia aparentemente correu bem, porém, quando saí da sala de cirurgia tive uma parada cardíaca. E foi justamente durante a parada que eu despertei. Não meu corpo, mas meu eu, Carmem. Eu Carmem em alma. [...] inicialmente eu achei que estava sonhando, porque acordei de repente, no susto. Acordei e vi meu corpo ao lado, deitado na maca. E vi os médicos fazendo os tais procedimentos, ouvi os aparelhos apitando e vi uma enfermeira [...] pensei logo que tinha desencarnado [risos]. Mas na hora que pensei isso, me veio uma sensação de paz. Rapaz, eu fui invadida por àquela sensação que era impossível eu acreditar que iria morrer. [...] Na mesma hora eu pensei: “Calma, Carmem, você está apenas fora do corpo”. Foi quando eu vi entrar na sala um homem e uma mulher, os dois vestidos de branco. O homem de camisa e calça brancas, e a mulher de vestido branco. Ambos eram lindos, deviam ter entre 40 e 50 anos, eles entraram flutuando na sala. Quando os vi, fui invadida por uma paz, por uma sensação de calma e de ternura. Eles então chegaram perto de mim. A mulher olhou para mim, sorriu e me disse: “Filha minha, vamos dar um passeio, você ficará bem”. E então ela encostou a mão direita na minha testa e nós fomos instantaneamente transportados para uma grande sala, parecia um hall de um desses teatros europeus. Mas não havia ninguém ao redor. Só eu, e eles na minha frente. Então ela novamente olhou para mim, com um sorriso lindo. De todos os dois refletia uma luz linda. Eles não se identificaram, eu nunca os vi antes. Ela falou assim para mim: “Carmem, sua oportunidade de viver não acabou ainda. Você voltará e entenderá o que aconteceu, faça seu melhor. Você é uma grande mulher, sua filha precisa de você, seu companheiro também. Você só precisa descobrir como viver melhor, e estamos aqui para que você não esqueça disso. Olhe a vida para além do agora, estamos sempre com você, não desista nunca”. Na mesma hora eu senti e vi uma luz sair do meu peito, e foi crescendo e invadindo todo o salão. Foi clareando, na verdade, foi ofuscando, porque o local era claro. Como um farol de carro. Até que me ofuscou e eu não conseguia ver mais os dois nem nada ao meu redor. A luz tomou todo o ambiente e eu voltei para o corpo. Acordei e já estava no quarto do hospital, haviam acabado de tirar a sedação. Fiquei uma semana no hospital, me recuperei e recebi alta do hospital depois de uma semana. [...] todas as vezes que tento contar o que senti, fico com a sensação de que faltam palavras para dar conta. Mas posso te dizer que foi [senti] uma sensação de plenitude. E, por incrível que pareça, essa sensação me acompanha até hoje. É uma mistura de paz, felicidade, alegria, de que não existem problemas, de que estamos conectados com o universo. Tenho a plena consciência de que somos parte de algo muito maior. [...] quando eu acordei já no quarto do hospital, eu sabia o que houvera acontecido comigo. Sabia que tinha vivido algo que não é comum, mas que é possível de acontecer com qualquer um. Quando voltei para casa e já estava bem da cirurgia procurei um psiquiatra para me informar mais sobre os fatos. No fim das contas, eu fui por causa do meu marido. Eu inventei de contar a ele, e acho que ele ficou assustado, queria saber se eu não teria ficado com alguma sequela [risos]. A médica foi gentil e concluiu que era isso mesmo, houvera uma experiência de quase-morte. Eu sei que a medicina não tem um consenso sobre o assunto. Essas coisas que envolvem o cérebro são complexas. Quanto mais se sabe menos certezas eles têm. O fato é que estou aqui e sei o que passei. Fico na esperança de que a medicina evolua e consiga de alguma maneira provar que a consciência é mais do que eles pensam. [...] hoje sou outra mulher. Posso dizer que sou realizada. Eu era insatisfeita com tudo, chata e “reclamona”.

Aquele estilo de vida não me levaria a lugar nenhum, eu iria me tornar uma velha chata e amarga. A vida sabe do que precisamos. O recado que me foi dado por aqueles dois seres de luz foi fundamental para eu me transformar. [...] hoje sou uma mãe melhor, uma esposa melhor também. Aprendi uma coisa que eu custava em aceitar, é preciso escutar mais os outros.

[Informante: Carmem, 53 anos, casada, jornalista, ano da EQM: 2011].

A partir de relatos como este, foi possível perceber uma siste-matização da adaptação à experiência. Identifiquei cinco momentos que se seguem após a experiência, são eles: (1) o informante busca identificar do evento que lhe ocorreu; (2) narra o acontecido; (3) a experiência é clinicamente atestada; (4) o informante dá sentido particular à experiência; (5) expressa por narrativa uma mudança no arcabouço moral.

O relato de quase-morte como narrativa de sentido: experiência, memória e narrativa

As narrativas individuais e coletivas se apresentam como um caminho para a compreensão cognitiva humana, uma vez que a construção de narrativas e cenários é uma característica culturalmente compartilhada. Os relatos catalogados guardam uma relação particular entre o antes e o depois da Experiência de Quase-Morte. Essa relação, ao que parece, como exemplificarei adiante, guarda particular analogia com o presente da vida dos informantes. Em outras palavras, o presente deles é definido a partir da relação entre antes e após a quase-morte. Esse estado presente é narrado por meio de uma linguagem emocional que descreve sentimentos e estados subjetivos.

Uma questão importante que surgiu no início de minha análise das narrativas de quase-morte refere-se a uma questão epistemológica no que tange ao tempo, já que a memória narrada constrói uma "alteridade no tempo”, seja no tempo do informante, seja no do antropólogo. Ao pensar sobre as narrativas do passado, Ciachhi (2010) refere-se a uma "inédita dimensão histórica do estranhamento”. Em sua concepção, essa perspectiva "ultrapassa-se de vez a complementaridade do being there/being here, para ingressar na dimensão do 'nunca termos estado lá 14 ', nem eu nem ele.” (CIACHHI, 2010, p. 28). Quando observado a partir de sua integridade atemporal, o passado é capturado após os fatos, e quem narra esse passado vive a história como se estivesse nela, "na própria correnteza do tempo: pertencendo-lhe.” (CIACHHI, 2010, p. 28). Embora a singularidade de cada informante seja demarcada pela dimensão individual da alteridade que cada um experienciou, os elementos que compõem as narrativas de quase-morte, por exemplo, variam enquanto forma, mas, enquanto conteúdo, tendem a seguir padrões compartilhados.

A subjetividade, ainda que entendida como produto interno, é significada a partir da relação com o externo. Essa relação foi o que se convencionou chamar de "intersubjetividade”. A subjetividade não é, assim, algo dado, mas algo que se constitui a partir do contato, da relação e das trocas 15 , sejam elas práticas ou simbólicas, como as narrativas de quase-morte. Ideias presentes em Velho (1987) e Toren (2012).

Starobinski (1970) observou que narrativas autobiográficas estão quase sempre embasadas numa transformação pessoal. Igualmente, Maluf (1999), ao analisar narrativas que tratam de trajetórias terapêutico-espirituais, percebeu a presença de uma mudança pessoal como base narrativa dessas trajetórias. O ato de narrar não se resume apenas a contar algo, narrar pode também ser entendido como um ato reflexivo, no qual se pensa sobre os sentidos, os significados da experiência e os sentimentos derivados dela. Por isso, o antes e o depois da experiência são importantes nas narrativas de quase-morte, são esses dois momentos que permitem ao informante demonstrar como deixou de ser quem era e em quem se transformou, uma vez que, como sugere Maluf (1999), “em todas as narrativas de vida que traçam um itinerário terapêutico e espiritual, essa transformação se faz presente. Ainda mais, a própria capacidade de relatar essa história pessoal tornar-se também um signo da transformação ocorrida.” (MALUF, 1999, p. 77).

Para além desse aspecto citado, e em termos estruturais, faço um paralelo com as narrativas de conversão, por exemplo. Nelas, é possível observar quase sempre a presença de algum evento, em termos sahlisianos, funcionando como ruptura entre um antes e um depois 16 . Obviamente, quando me refiro à "conversão”, quero apenas utilizá-la de forma analógica e, especificamente, no que tange às narrativas dos informantes, deixando em segundo plano às discussões referentes ao campo do cristianismo.

Compreendo conversão aqui, então, como uma narrativa de sentido que relata uma transformação fundada num acontecimento, servindo este de ruptura entre um antes e um depois. Em sua maioria, as narrativas de conversão descrevem como e quando se estabeleceu um novo modo de ser. Analogicamente, o modelo de "conversão” pode ser estruturado da seguinte forma: (1) a experiência de um evento; (2) a presença de uma ruptura com o passado; e (3) a manifestação de um discurso que expressa uma transformação.

Nesse sentido, a conversão no presente contexto estaria restrita ao que se refere à elaboração de uma visão transcendental do evento vivido, neste caso, da Experiência de Quase-Morte. A "conversão” dos informantes, se assim podemos chamar, constitui-se, estruturalmente, a partir de uma ruptura, embora, de certa forma, também se apresente de modo processual17 . Como descreveram alguns dos informantes, a ruptura se dá na própria experiência e o discurso aparece como legitimação de uma mudança:

[...] eu sabia exatamente de tudo o que havia acontecido até aquele momento. Não tive um apagão, não esqueci quem eu era, onde estava ou o que havia acontecido. Nada disso, eu lembrava de tudo, exatamente tudo. Sabia que tinha tido uma complicação na cirurgia e tudo mais [a EQM]. E sabia que dali em diante tudo seria diferente. E o mais sensacional, eu que havia descoberto a coisa mais incrível da minha vida: nada se acaba. (Thereza, 58 anos, divorciada, advogada, ano da EQM: 2014).

[...] eu queria saber o que tinha acontecido comigo. Porque eu sabia que tinha aprendido algo, mas não sabia o que tinha acontecido comigo. Porque eu tinha sentido aquilo tudo e havia visto aquela luz que veio e me envolveu. [...] isso, depois que me vi fora do corpo, veio um filme na minha cabeça de como a vida é incrível, de como perdemos oportunidades de ser mais feliz. E eu tive a certeza naquele momento que eu podia viver, voltar a viver. (Pietro, 44 anos, solteiro, educador físico, ano da EQM: 2015).

[...] eu sabia que algo havia mudado, eu me sentia completo. É uma sensação de plenitude infinita. [...] permanece até hoje essa compreensão da existência que tive, que estamos todos ligados. (Igor, 29 anos, solteiro, estudante, ano da EQM: 2014).

Como destacado acima, os informantes relatam que se sentiam "diferentes" durante a experiência, e, ao acordar, não eram os mesmos de antes. Anteriormente à experiência, como vimos no relato de Carmem um pouco mais acima, não existiam "indícios" de ruptura com o passado, nem mesmo algo que estivesse latente ou que, de algum modo, pudesse se aproximar de um "mal-estar" que se estabelecesse antes, provocando uma ruptura, como é comum numa conversão em que a dimensão processual mostra-se mais evidente.

Pelo contrário, os informantes verbalizam que a negação do estilo de vida anterior à experiência apenas é internalizada após a quase-morte. Quero dizer com isso que a Experiência de Quase-

Morte foi elucidativa na vida dos informantes, e, ao que parece, a negação do modo de vida anterior à experiência advém de um novo "conhecimento" acessado via quase-morte. Os informantes, de tal modo, ao organizarem uma nova ontologia, identificam qualidades negativas em suas vidas de antes, mas baseados nos sentimentos e sensações suscitados pela experiência.

Todavia, esta conversão, em certo sentido, mostra-se também de forma processual. De certa maneira, num segundo momento da interpretação, o estabelecimento da nova pessoa, na qual se tornou o informante após a experiência se dá pela comparação e negação com o antes. Nesse jogo, então, é que reside um desaprender a ser o que se era e um aprender o que se é.

Nesse sentido, pode-se estabelecer uma mudança em nível processual no contexto etnográfico abordado. Contudo, com base nos relatos de quase-morte, não existe nenhuma concepção de um "vir a ser" antes da experiência, uma vez que foi através dela que se estabeleceu uma conscientização nos informantes, que suscitou e estabeleceu novas percepções de vida, de morte e de si mesmos.

O que é comum na transformação ou conversão dos informantes é o alargamento das categorias de entendimento. Estas, após a experiência, parecem que ganham um contorno transcendental, ou seja, passam a administrar significados pautados na continuidade da vida após a morte, menos preocupação com o futuro, sentimento de pertencimento com o todo e a inexistência de medo da morte, provavelmente, advindos do "conhecimento transcendental" acessado durante a Experiência de Quase-Morte, durante a qual os informantes afirmam que se sentiram preenchidos com a "verdade e o sentido singular da vida".

Num segundo plano interpretativo, as narrativas de quase--morte assemelham-se às narrativas terapêuticas, a partir de dois aspectos: (1) ambas as experiências são desestruturantes para o indivíduo, "[...] pois ela implica, segundo eles próprios, o 'abandono de antigas referências e de modelos de comportamento', uma 'ruptura do ego', processo realizado em geral em um contexto de sofrimento e dor.” (MALUF, 2005b, p. 517); e, (2) consiste na eficácia de tal desestruturação, em que ambas experiências colocam em cena "[...] a oposição conflituosa entre uma ordem cósmica que remete a uma organização divina dos acontecimentos e a vontade do indivíduo e seu poder de escolha.” (MALUF, 2005b, p. 517).

Contudo, entre os relatos de quase-morte e as narrativas terapêuticas existe um distanciamento, os relatos de quase-morte não destacam um esforço contínuo para o desenvolvimento de uma mudança de comportamento, como acontece nas narrativas terapêuticas e nos trabalhos espirituais, por exemplo. Os quais exigem um mise en scène correspondente a um novo projeto de vida desenvolvido através do trabalho, esforço e persistência. A partir de minhas interpretações dos dados, os informantes têm seu quadro semântico definido na e pela experiência. A transformação não está necessariamente vinculada a um trabalho de construção de um novo modo de ser que é desenvolvido num momento de crise e em termos processuais. De modo geral, a transformação dos informantes reside no acesso, pela experiência, a um conhecimento considerado privilegiado, e, a partir dele, surgindo a comparação entre o passado e o presente, com o que eram e o que são hoje. Como aparece no relato de Carmem, citado mais acima.

Para os informantes, a performance do novo modo de ser funciona menos como um exercício de internalização e apreensão de um novo estilo, e mais como a exteriorização de um modo de ser já estabelecido. O que quero dizer com isso é que eles não destacam conflitos interiores vividos antes da experiência a fim de serem extinguidos, exigindo exercícios de internalização de novos estilos de ser, como ocorre em experiências terapêuticas (Ayahuasca; Santo Daime, tratamento com florais, por exemplo). A transformação suscitada pela/na Experiência de Quase-Morte, não se dá por um exercício de internalização de um novo modo. Essa transformação é a conscientização adquirida na própria experiência que, em termos êmicos, deixou-os com a “consciência liberta”, com "consciência de si”.

Aspecto esse, que se difere de como se dá nos sujeitos que buscam uma mudança do atual estilo de vida a partir de trabalhos espirituais ou da própria psicanálise, como se refere Maluf (2005b):

A ideia de mudança também está presente nas práticas terapêuticas e espirituais: a transformação de sentimentos, como a raiva, convertida em compaixão e compreensão, no caso do método terapêutico Fischer-Hoffman, ou em “reconhecimento”, no Santo Daime;a transformação de padrões adquiridos em “conhecimento de si”;ou a de sentimentos e energias “negativas” em afirmações positivas; a transformação de si, a de sentimentos e a de afetos vividos em “símbolos e significados”. (MALUF, 2005b, 501).

Os trabalhos espirituais e a psicanálise, por sua vez, necessitam de espaços específicos, aparatos rituais e determinado período, aspectos que necessariamente não se dão na Experiência de Quase-Morte, no que tange especialmente ao livre-arbítrio dos sujeitos envolvidos em tais terapêuticas. Evidentemente, que sem a biotecnologia de intervenção a pacientes em parada cardiorrespi-ratória, a Experiência de Quase-Morte não seria possível. Contudo, ela se dá sem uma preparação prévia e, claro, sem a escolha de quem a vivenciou.

Entre os informantes pesquisados por Maluf (2005b), os quais compartilhavam práticas terapêuticas, como tarô, por exemplo, a percepção do tempo tem certa similaridade. Podemos dizer que o tempo das experiências transformadoras representa uma “concentração da experiência vivida”. Isso quer dizer que o tempo da experiência não está diretamente ligado ao tempo cronológico. Em sentido metafórico, existem dilatações de tempo dependendo da experiência vivenciada.

Sobre isso, Maluf (2005b, p. 505) destaca que “um comentário corrente após uma sessão de leitura de tarô ou de regressão às vidas passadas é o de que 'valeu por seis meses de uma terapia convencional'; ou que muitos anos da vida foram revividos em duas horas.”. Desse modo, sujeitos envolvidos em práticas terapêuticas, ao desenvolverem suas experiências em espaços específicos por determinado tempo, buscam estender suas práticas terapêuticas para além desse tempo-espaço, indo além da sala de consulta, passando à internalização de um comportamento terapêutico no cotidiano.

Por sua vez, a cura pelas práticas terapêuticas, como descreveu Maluf (2005b), começa a ocupar lugar aos poucos na vida de quem as praticou, adentrando nos vários domínios da vida, e fundando o que a autora denominou de “experiência terapêutica espiritual alternativa.”. Esse é o aspecto que distancia as práticas terapêuticas das Experiências de Quase-Morte. Não há uma extensão dos acontecimentos de uma EQM para a vida cotidiana, ou seja, os informantes não internalizam um comportamento terapêutico desenvolvido no cotidiano. Na quase-morte, os relatos demonstram a mudança de comportamento, legitimando não apenas o presente, mas, sobretudo, a experiência. Os informantes não levam para o seu cotidiano práticas terapêuticas que os auxiliam na manutenção da transformação e, consequentemente, da ruptura com o passado.

Grosso modo, e segundo a lógica dos informantes, durante a experiência, "o que tinha que acontecer já aconteceu”. E, quanto às narrativas, elas aparecem como instrumento de comprovação da experiência transformadora, responsável por tal ruptura com o passado. Nesse contexto, as narrativas apresentam-se como elementos culturais de forte impacto, uma vez que elas são utilizadas de variadas formas: elas descrevem, justificam, negam, classificam e, sobretudo, qualificam a experiência.

Experiência, narrativa e ontologia: cultura é o que se diz?

Hervieu-Léger (1990) argumentou que narrativas individuais podem revelar dimensões coletivas de experiências. Essa perspectiva foi denominada por "singularidade absoluta do percurso de cada um” que, segundo Hervieu-Léger, suscita um questionamento essencialmente antropológico: como podemos relacionar narrativas particulares e, portanto, únicas, com estruturas e significados coletivos, percebendo uma unicidade entre os diversos relatos?

Nos relatos de quase-morte, a experiência aparece como um momento singular compartilhado através da narrativa, a qual é estruturada pela relação entre uma revelação e uma ruptura. Nesse sentido, a narrativa da quase-morte pode ser compreendida tanto como uma experiência individual como coletiva, uma vez que, na quase-morte, os informantes experienciaram um momento singular de revelação e manifestação de um sentido transcendente, sendo, este, compartilhado coletivamente, pela lembrança e pela narrativa, elaboradas após a experiência.

O relato de uma “revelação” durante a EQM é descrita pelos informantes, essencialmente, em termos que enfatizam sentimentos e sensações, não sendo incomum o uso de expressões como: "é difícil de descrever em palavras”, "foi uma sensação forte”, "eu senti”. De modo geral, em todo "momento de revelação” existe uma singularidade de entendimento por quem está envolvido em tal momento, quem o experiencia torna-se responsável por classificar o acesso a tal revelação. Como aparece no relato de Carmem já transcrito.

Dito isso, o momento de revelação nas narrativas dos informantes, pode ser entendido a partir de dois aspectos: (1) o "ma-crotranscendente”, que consiste na percepção da manifestação de uma transcendência, que revela os sentidos das coisas; e (2) o "microtranscendente”, em que se experiencia a transcendência num nível pessoal, que se manifesta de modo singular para e no informante, fazendo-o alcançar a compreensão de si e de seu lugar no mundo.

O momento da Experiência de Quase-Morte pode ser compreendido como um momento de revelação transcendental da compreensão de si e do mundo18 . Para os informantes, a experiência de quase-morte não proporciona nenhum tipo de sofrimento, mesmo que, em termos estruturais, a revelação suscite uma ruptura, a qual pode ser entendida como crise, sendo observada como característica comum em narrativas de conversão, os informantes não descrevem a quase-morte como um momento negativo, em que sentimentos considerados ruins estejam presentes. Os sentimentos suscitados na quase-morte são positivos, durante e após a experiência.

Embora um momento de crise não seja evidente nos relatos, podemos observá-lo em segundo plano, quando os informantes desqualificam as noções de si antes da experiência. Com base nisso, pude observar que a desqualificação do estilo de vida e das próprias noções que tinham de si antes da experiência, são modos de legitimar a constituição da nova pessoa e de um novo projeto de vida assumidos após a experiência, posto que ela acontece sem a vontade ou iniciativa do informante, não existindo, como vimos nas narrativas, a procura prévia pelo alívio de qualquer crise ou sofrimento, seja moral ou físico 19 .

Nesse sentido, a revelação ou a conscientização, se daria de modo espontâneo, mas igualmente influenciada por uma agência externa, a qual seria responsável por revelar os pontos negativos, os erros e os equívocos vividos por eles. Na quase-morte, a transcendência se apresenta como o caminho para a libertação das consciências, suscitando não apenas uma reavaliação de sentidos, mas, sobretudo, revelando capacidades inconscientes de ação no mundo.

A questão pode ser resumida da seguinte forma: o momento de revelação que se dá na Experiência de Quase-Morte é entendida pelos informantes como um momento de libertação, no qual toma-se “consciência de si”. Essa conscientização, segundo eles, já reside de modo latente em todos os humanos, contudo, é preciso o momento certo para que ela seja “desperta”. Isso é descrito por uma das informantes [Thereza] da seguinte forma:

[...] a Experiência de Quase-Morte, no meu ponto de vista, é apenas um dos meios para a gente tomar consciência de quem somos. Eu sei que sou mais que um corpo. Eu sou prova de que existe algo além de meu corpo. Se a ciência não pode provar isso aí não é comigo [risos]. Acontece é que quem sente diferente do que é considerado normal, é logo posto de lado. Um dia a medicina acha a causa das coisas e tudo que hoje é visto como anormal vai ser visto como normal. Basta observar a história, está aí para todo mundo ver. [Thereza, 58 anos, divorciada, advogada, ano da EQM: 2014].

Se “está aí para todo mundo ver", conforme me disse Thereza, então é preciso apenas que se esteja preparado para acessar a realidade descrita nos relatos. A Experiência de Quase-Morte é compreendida pelos informantes, então, como uma situação contextual, “que tinha que acontecer”, uma vez que, segundo essa lógica, eles já estariam prontos para tal experiência, pela qual era “necessário experienciar".

Nesse sentido, a conversão a um novo modo de ser, ou ao estabelecimento dessa conscientização, estaria no destino de todos, cada pessoa teria seu momento e seu modo de mudar e ver as coisas diferentemente. Não obstante, a Experiência de Quase-Morte pode ser classificada como uma experiência iniciática, mesmo não estando em um contexto religioso, nem apresentando como ponto central o sofrimento ou crise existencial prévia. Como descreve Maluf (2007, p. 11), por exemplo, ao falar sobre terapias alternativas típica do movimento “Nova era”:

As experiências iniciáticas de todo tipo, vividas como rituais de iniciação, são focadas na vivência individual. A conversão, fenômeno presente em praticamente todas as religiões, no caso das espiritualidades da Nova Era se exprime, segundo uma categoria utilizada por eles mesmos, pela possibilidade do indivíduo de ruptura com seu "velho Eu” e a construção de um "novo Eu” - construção tomada como permanente, que deve ser sempre atualizada no percurso individual. Não existiriam assim fórmulas ou rituais estabelecidos para definir esse processo, na medida em que ele se insere em cada itinerário particular.

Partindo da concepção de Maluf, podemos compreender melhor a singularidade presente no discurso dos informantes, e argumentar que o "itinerário particular” de cada informante é estabelecido com base nas experiências prévias e posteriores à EQM. Em cada narrativa pessoal, o sentido de mudança ou mesmo de transformação caminha entre a revelação de um conhecimento essencial e a transcendência vivida por meio de uma revelação.

Segundo Françoise Champion (1990), o percurso espiritual denominado "intramundano”, o qual consiste na ideia de que, mesmo assumindo um novo modo de ser no mundo, o indivíduo espiritualizado não nega este mundo, é uma característica do "místico-esotérico contemporâneo”. O percurso espiritual de indivíduos místicos, por exemplo, não se dá pela negação do mundo, a busca espiritual se dá essencialmente no mundo, auxiliando-o a viver bem e melhor no aqui e no agora.

Para além disso, Richard Handler (2012) observa que quando se fala de cultura e da linguagem, não apenas os antropólogos, mas igualmente os informantes, "descobrem, interpretam e produzem significados”, a partir dos valores, conceitos e categorias criados arbitrariamente. Se é de modo arbitrário, entendemos que os significados culturais não estão na natureza, e que eles são produzidos em contextos históricos pela disposição humana. Consequentemente, qualquer mudança na cultura é também uma reprodução cultural. Enquanto os informantes narram suas experiências, descrevem os elementos vistos e as sensações sentidas durante a EQM, eles vão justificando o novo modo de ser e de conceber o mundo.

Em termos sahlisianos, a teoria mito-práxis é constituída a partir de um novo modo de ser. Como num exercício narrativo, os informantes explicam para si e para os outros a experiência que vivenciaram 20 . Nesse sentido, a micro-história de cada informante é construída em nível da fala, e as categorias (como a de pessoa), os signos (os elementos constituintes das Experiências de Quase-Morte) e a lógica da narrativa são dispostos conforme os propósitos particulares de cada um. O que significa dizer, que além da dimensão individual da experiência narrativa, existe a dimensão social, em que a fala e os significados por ela expressos buscam assumir valores funcionais compartilhados socialmente.

Nesse caso, recordar é baseado num processo de reprodução, o qual está sujeito a uma contingência, a partir da narração e da lembrança dos fatos, eventos ou fenômenos e das condições so-cioculturais do presente individual e coletivo. Assim, mesmo que elementos se justaponham nas narrativas dos informantes, o que nos interessa, como antropólogos, é a permanência das sensações e sentimentos narrados pelos informantes.

Se eles nos dizem que "sentiram" determinada sensação de paz durante a experiência, e que esta paz permanece mesmo após a quase-morte, significa dizer que esses elementos comunicaram algo. Essa comunicação mostra-se como o cerne da questão, uma vez que, como destacou Rosenthal (2014, p. 230),

[...] deve-se levar em consideração que, no processo da narração de vivências feitas pela própria pessoa, a participação da lembrança pode variar muito. Nem toda narração de uma vivência feita pela própria pessoa se baseia num processo de recordação que ocorre durante a narração. Assim, posso simplesmente contar de novo (de modo quase mecânico) uma história que há muito se tornou uma anedota, que já contei muitas vezes e modifiquei de acordo com as experiências interativas feitas durante ou após a narração, sem sequer chegar perto de me envolver num processo recordativo. Da mesma maneira, posso juntar, no presente da narração, diversas vivências - próprias ou transmitidas por outros - e formar com elas uma história sobre uma situação. Portanto, durante a narração partes de experiências posteriores ou de narrativas de outros podem ser acrescentadas, mas partes essenciais para a vivência passada também podem ser omitidas.

É com base nessas perspectivas que justifico o interesse pelos sentimentos e sensações narrados pelos informantes. Esses elementos são, por assim dizer, a base das narrativas que funcionam como gênese de novas configurações de sentidos e significados. As lembranças verbalizadas das experiências particulares se constituem pelas classificações, sentidos negociados e produzidos na ação prática, e pelas alterações desses mesmos sentidos no decurso da interação coletiva.

De tal modo, o arcabouço cultural dos informantes, ao que parece, pode ser compreendido pelos momentos sucedidos da seguinte forma: (1) experienciar o fenômeno da quase-morte; (2) vivenciá-lo; (3) lembrá-lo; e, (4) narrá-lo como uma experiência. Essas são etapas complementares, mas que guardam, cada qual a seu modo, características próprias.

Num primeiro momento, a experiência de uma quase-morte se desenvolve numa (1) dimensão individual, e essa experiência no curso da vida do informante é única e particular; em contraponto, as (2) vivências decorrentes da quase-morte são coletivas, uma vez que eventos, fatos e acontecimentos ao serem experiencia-dos individualmente são também compartilhamos coletivamente, podendo ser usados como definidores, por exemplo, do ethos de determinado grupo. Por sua vez, o ato de (3) lembrar se dá em ambas as esferas, na coletiva e na individual, posto que, a lembrança de qualquer experiência é única e singular, mas sempre estará relacionada aos contextos coletivos, os quais são constituídos, neste caso, pelo ato de (4) narrar, entendido como um ato comunicacio-nal da experiência, que mostra-se como elemento da constituição coletiva da experiência, mas também individual, visto que narrar também é um ato solitário, embora compartilhável.

Desse modo, (1) experienciar, (2) vivenciar, (3) lembrar e (4) narrar são momentos contíguos e similares, que constituem juntos a estrutura comunicacional dos relatos de quase-morte. Conforme pensa Rosenthal (2014) sobre a forma processual que as histórias de vidas se desenvolvem, especialmente, quando envolvem memórias e narrativas:

[...] precisa-se fazer uma diferenciação analiticamente cuidadosa entre as situações vivenciadas no passado, as modificações desses passados vivenciados nas diversas fases da vida, os processos recordativos no presente da narração, a moldagem linguística e comunicacional bem como os enquadramentos interativamente produzidos da situação narrativa. (ROSENTHAL, 2014, p. 232).

É preciso então ficar atento a essas contiguidades: experiências, vivências, lembranças e narrativas; elas são parte um mesmo processo ontológico. Processo esse que consiste numa operação processual que transforma cosmologicamente os informantes por meio de uma reflexão sobre si mesmos, sendo essa transformação expressa e descrita pela narrativa. A Experiência de Quase-Morte provocou nos informantes uma “conversão ontológica", ou seja, uma reavaliação de valores e afetos, e o estabelecimento de um novo modo de ser, classificado como positivo e superior ao modo de ser anterior à quase-morte.

No relato da informante Carmem, apresentado no início deste artigo, pudemos observar que, após a experiência, tanto ela como os demais informantes não mais compreendem a morte apenas como o fim da vida, a morte tornou-se um estágio ou etapa de uma vida que não acaba com a morte do corpo. A ideia da morte como o fim, não aparece em seus atuais discursos. Ao compreenderem a morte sem medo e apenas como uma etapa da própria vida, os informantes quase sempre utilizam como justificativa uma "revelação", na qual tiveram contato durante a experiência, e que os conscientizou do verdadeiro sentido de suas existências.

Por sua vez, a justificativa de tal ideia nunca vem atrelada à concepção da quase-morte em seu sentido clínico estrito, que consiste na ideia de que morreram temporariamente, porém suas mortes foram revertidas; mas, sim, na concepção de que a Experiência de Quase-Morte é uma janela de acesso para a tomada de consciência de si, das coisas e do mundo. Possivelmente, o que os relatos como narrativas de sentido tentam comunicar é que a Experiência de Quase-Morte os tocou em todos os aspectos.

Isso dito, segundo Bateson (2008), poderia ser tratado como uma experiência holística, modelada segundo padrões da cultura compartilhados. Para ele, animais, plantas ou comunidades "[...] compõe-se de unidades cujas propriedades são de certo modo padronizadas por sua posição na organização como um todo." (Bateson, 2008, p. 167-168). Em outras palavras, numa experiência holística, é natural, até certo ponto, a "revisão" dos padrões organizativos por parte dos envolvidos, uma vez que as consequências da cultura em relação aos sistemas de pensamento das pessoas não são tão claras, mas "[...] o fato de as circunstâncias da vida de um homem afetarem o conteúdo do seu pensamento é bastante evidente [...]", como definiu Bateson.

Em termos batesonianos, ao demonstrarem novos padrões de pensamentos, após a quase-morte, os informantes afirmam ter sentido que algo afetou os conteúdos mais íntimos de suas existências, ampliando sentidos, emoções e sensações. Essa possibilidade faz parte das potencialidades humanas, já que certos eventos e cadeias de acontecimentos podem afetar a "organização das emoções". Nesse sentido, as narrativas de sentido, além de revelar o que pensam, sentem e experienciaram os informantes, elas atuam no mundo social, não apenas compondo relatos, mas também constituindo o modo como as pessoas se veem e se pensam.

Por fim...

Os relatos dos meus informantes evidenciaram que, embora a morte seja um fato e tenhamos que lidar inevitavelmente com essa ideia, existem inúmeras estratégias inventivas de significá-la, revelando lógicas internas de imensa criatividade. Este artigo, então, demonstrou que todos nós refletimos sobre nossos estados mentais e emocionais, mas os compartilhamos de forma simbólica por variados meios, sendo a narrativa uma das principais vias.

A concepção de morte sem medo ou temor compartilhada por informantes é a base para o sentido de suas existências após a EQM. Eles compartilham uma concepção inventada de morte, a qual vai além da ideia convencional. Como um aspecto cultural, essa nova concepção consistiu num processo de metaforização. Esse processo, por sua vez, provocou nos informantes uma autorreflexão que abriu caminhos para produção de significados, como o da transcendência, por exemplo, que foi constituída respectivamente pela revelação e conscientização suscitadas pela experiência.

A partir disso, então, os discursos dos informantes apresentaram-se constituídos por metáforas, com as quais a inexistência do medo da morte revela a compreensão de uma nova perspectiva para esse fenômeno, e, nesse sentido, concebê-la sem medo, seria nada mais do que uma reconfiguração cultural relatada, rica em metáforas, símbolos e sentidos.

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Notas

1 Agradeço a leitura de Mísia Reesink. Parte da discussão do presente artigo foi desenvolvida na tese de doutorado “SEM MEDO DA MORTE: Um estudo antropológico sobre experiências de quase-morte", defendida na Universidade Federal de Pernambuco em 2018.
2 Por motivo de limitação de espaço, neste artigo não estarão presentes os relatos completos dos seis informantes que forneceram o material etnográfico da análise, restrinjo-me a utilizar apenas um dos relatos, mas que em nada influenciará na profundidade da análise. Desse modo, as falas utilizadas nos diferentes momentos do texto são apenas trechos para a exemplificação da discussão. Para consultá-las, ver Netto (2018).
3 O acesso e a catalogação de tais relatos deram-se a partir de seis informantes (três homens e três mulheres) que passaram por uma Experiência de Quase-Morte. Todos são brasileiros, advêm da classe média, possuem alguma ocupação profissional e tiveram acesso ao sistema educacional formal. Do ponto de vista médico, são saudáveis e não apresentam nenhum tipo de disfunção psicológica. Todos foram entrevistados em profundidade e narraram suas histórias de vida.
4 É um fenômeno que envolve as seguintes dimensões: corpo-mente-cultura.
5 Nestes casos são realizados procedimentos médicos técnicos, como a ressuscitação.
6 Neste artigo, limito-me a reduzir a EQM a seus aspectos socioculturais. Em outras oportunidades buscarei questionar com mais densidade esse fenômeno a partir de uma perspectiva integral, como suscita Annemarie Mol (2003), ao problematizar tal aspecto, especialmente os que são negligenciados pelo campo biomédico, integrando-os à subjetividade, ao corpo e à materialidade.
7 Dito isso, fica evidente o afastamento das narrativas de quase-morte em relação às narrativas de experiências xamânicas, experiências suscitadas por ayahuasca ou psicoativos, por exemplo, uma vez que nessas experiências, mesmo existindo um estado alterado de consciência, o córtex está funcionando. Durante a EQM, o córtex não está disponível, uma vez que durante uma parada cardiorrespiratória o paciente não apresenta sinais vitais, sendo considerado morto. Assim, a EQM pode ser considerada uma morte revertida. Sobre a ayahuasca ver Macrae (1992).
8 Numa parada cardiorrespiratória, após 10 segundos o sujeito entra em anóxia, ou seja, o sujeito já não tem atividade cortical. Biologicamente é impossível o sujeito perceber conscientemente o que se passa ao seu redor. Ver Clute & Levy (1990) e Aminoff (1998).
9 Segundo Keesing (2014), “a íntima interconexão entre fatores biológicos e convenções culturais também aparece nos significados culturais e nos papéis sociais atribuídos a indivíduos biologicamente anormais. Mesmo àqueles diagnosticados com doenças mentais sérias, tais como a esquizofrenia, podem encontrar nichos crucialmente importantes e produtivos como xamãs, videntes, visionários [...]. Se a conversa de um esquizofrênico, aparentemente divorciada das realidades do mundo físico, vem de uma mente desorganizada ou de uma fonte divina, é algo que nossas culturas nos dizem. Se um esquizofrênico termina como um paciente mental ou como um profeta religioso, depende das circunstâncias de tempo e lugar e dos talentos que ele ou ela tiverem para transmitir para outras pessoas uma visão específica do eu e do mundo." (Keesing, 2014, p. 77).
10 Filósofo, psiquiatra e psicólogo, Moody (1975) interessou-se em toda sua carreira pelos assuntos relacionados à manifestação da consciência humana. Um dos seus principais livros é: “Vida depois da vida", no qual explora com pretensões científicas, mas destinado ao público leigo, o fenômeno de quase-morte.
11 Embora os relatos sejam catalogados pós-fenômeno, as variáveis constantes expressas nos relatos referem-se às sensações, emoções e visões vividas durante a experiência do fenômeno.
12 Ainda segundo Moody, a presença desses elementos catalogados nas narrativas de quase-morte independe de idade, sexo, época, contexto cultural, condição social, condição psicológica, tempo da parada cardiorrespiratória e drogas utilizadas durante a reanimação. O que muda é a forma narrativa dada ao fenômeno, mas os eventos e os conteúdos são similares.
13 A decisão de trazer apenas um relato (quase) completo da experiência de quase-morte de um dos informantes, e a partir dele desdobrar-se a análise, advém da otimização do espaço. As conclusões e desdobramentos deste artigo só foram possíveis pelo conjunto de relatos etnografados durante o trabalho de campo, sendo assim, o relato chave utilizado aqui não é suficiente, mas traz elementos importantes, mostrando-se como modelo para a análise etnográfica.
14 Tradução livre de: “we wasn’t there."
15 Além disso, como elucida Toren (2012), “[...] os detalhes dos estudos etnográficos sobre a ontogenia como processos históricos se nutrem diretamente do argumento de que os processos neurais que caracterizam o desenvolvimento conceptual humano são um aspecto emergente do funcionamento de um sistema nervoso incorporado para o qual a intersubjetividade é uma condição necessária." (Toren, 2012, 32).
16 Para uma discussão sobre conversão consultar Almeida & Montero (2001); Coleman (2003); Mafra (2000); Maluf (2005a); Campos & Reesink (2014). Não me deterei aqui a pormenorizar o assunto, apenas indico que meu uso do conceito de “conversão" refere-se essencialmente à estrutura do fenômeno da conversão, e não às implicações etnográficas e funcionais do conceito.
17 Ver a análise de Campos & Reesink (2014).
18 De modo geral, a relação com a transcendência foi interpretada de múltiplas formas na história. Seja para enaltecer a dimensão transcendente como uma parte que habita nas pessoas, seja para exaltar a transcendência em si, como ordem e constituição de todas as coisas. Podemos observar essa relação com a transcendência, e a tomada de consciência, no afresco pintado por Michelangelo no teto da Capela Sistina (1511), intitulado por “A criação de Adão", mais conhecido como o “Dedo de Deus". Nessa pintura, Michelangelo fez uma representação da passagem do Livro do Gêneses quando Deus cria Adão. A cena pintada pode ser interpretada, de maneira livre, como a representação da relação entre a macro e microtranscendência. A macrotranscendência presente na figura de Deus, o qual está do lado direito da tela; e a microtranscendência, representada pelo homem que ganha a consciência e a vida. Estas, oriundas do próprio Deus, como diz no Gênesis 1:27: “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança.". Em 1511, Michelangelo eternizou a principal relação histórica do divino com o homem: a transcendência criando o homem à “sua imagem e semelhança". Não é de se estranhar que tal relação apareça de forma análoga em narrativas cosmológicas que descrevam experiências transcendentes, como nas dos meus informantes, os quais, a partir de uma revelação, acessam um conhecimento particular.
19 Em termos estruturais podemos observar tal perspectiva presente na “conversão" de Paulo, descrita nos Atos dos Apóstolos. Num dado momento, em discurso aos judeus, Paulo diz: “ora, estando eu em caminho, e aproximando-me de Damasco, pelo meio-dia, de repente me cercou uma forte luz no céu. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? Eu repliquei: Quem és tu, Senhor? A voz me disse: Eu sou Jesus de Nazaré, a quem tu persegues. Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz de quem falava. Então eu disse: Senhor, que devo fazer? E o senhor me respondeu: Levanta-te, vai a Damasco e lá te será dito tudo o que deves fazer. Como eu não pudesse ver por causa da intensidade daquela luz, guiado pela mão dos meus companheiros, cheguei a Damasco.". Assim como Paulo, os informantes foram “despertados" para a tomada de uma nova consciência, a partir de um evento. Eles experienciaram uma “conscientização", na qual a verdade e os “deveres" foram revelados.
20 Como disse Sahlins: "toda reprodução da cultura é uma alteração, tanto que, na ação, as categorias através das quais o mundo atual é orquestrado assimilam algum novo conteúdo empírico." (Sahlins, 2003, p. 181).
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