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Sobre materialidades e mobilidades na educação: apontamentos para uma agenda de pesquisa
Fernando Lajus
Fernando Lajus
Sobre materialidades e mobilidades na educação: apontamentos para uma agenda de pesquisa
On materialities and mobilities in education: notes for a research agenda
Sobre materialidades y movilidades en la educación: notas para una agenda de investigación
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e63200, 2020
UFG - Universidade Federal de Goiás
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Sobre materialidades e mobilidades na educação: apontamentos para uma agenda de pesquisa

On materialities and mobilities in education: notes for a research agenda

Sobre materialidades y movilidades en la educación: notas para una agenda de investigación

Fernando Lajus
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e63200, 2020
UFG - Universidade Federal de Goiás

Recepção: 30 Abril 2020

Aprovação: 09 Junho 2020

A educação tem sido estudada por uma série de áreas do conhecimento, seja via propostas pedagógicas com fins de constituição de certos sujeitos ou como fenômeno social da maior importância. Sociologia, antropologia, filosofia, história e geografia são campos em que, para citar apenas alguns, a educação, em sentido amplo, é posta em debate com certa centralidade. Essas discussões não se furtam de pensar sobre as dinâmicas de mobilidade, nacional ou internacional, envolvidas no processo educativo, nem nos aspectos materiais daquelas. O livro de Rachel Brooks e Johanna Waters explora as possibilidades investigativas encontradas na interface entre essas duas áreas, quais sejam os processos de mobilidade que tem lugar na educação e as materialidades aí envolvidas.

Rachel Brooks e Johanna Waters são pesquisadoras inglesas. A primeira é socióloga na Universidade de Surray, onde trabalha com temas ligados à sociologia da educação, lidando com as passagens da educação secundária para a universidade ou com os processos de educação internacional, tanto no nível dos indivíduos quanto nas políticas de internacionalização. Johanna Waters é geógrafa doutorada pela Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Atualmente, leciona na Universidade de Londres, onde pesquisa as relações mantidas entre o sistema de ensino superior inglês - suas universidades, professores e material didático - com outras espacialidades, principalmente aquelas do continente asiático. Ambas trabalham com temas ligadas ao que se chama de educação transnacional, ainda que de perspectivas e campos disciplinares diversos. Para o caso do livro, essas diferentes abordagens e perspectivas convergem, possibilitando um tratamento epistemológico original para os objetos em questão.

O trabalho é dividido em sete capítulos que respeitam a uma mesma lógica expositiva. Os capítulos pares são uma recapitulação das teorias e conceitos relevantes para o campo de estudo, e os ímpares uma apresentação das pesquisas empíricas em que os conceitos são postos em ação. Dessa maneira, os capítulos dois e quatro apresentam as concepções teóricas que trabalham com os temas das materialidades e mobilidades estudantis, respectivamente. A eles, se complementam os capítulos três e cinco, que exploram, em maiores detalhes, as maneiras em que os conceitos podem e foram desenvolvidos em outras pesquisas empíricas. Nesses cinco primeiros capítulos do livro, as autoras detêm seus esforços num apanhado exaustivo da produção bibliográfica pertinente. Em alguns trechos, apresentam suas próprias pesquisas, principalmente em momentos nos quais o que está em cena são os casos de mobilidade internacional de estudantes, ou as chamadas migrações educacionais, objeto de estudo de ambas. É só nos dois últimos capítulos (seis e sete) que as autoras trazem contribuições novas e põem em diálogo os conceitos esboçados anteriormente, fazendo aquilo que chamam de convergência, ou seja, estabelecendo os nexos entre estudos da materialidade e estudos sobre mobilidades de pequena e larga escala.

Os dois primeiros capítulos (“A materialidade da Educação” e “Construções e Corpos”1) falam sobre as materialidades e como elas podem ser uma forma de conhecimento social. Sobre as teorias, as autoras apresentam um campo divido entre dois paradigmas. O primeiro paradigma se chama cultural materialista, que diz prover de uma tradição marxista. Aqui as “coisas” são vistas como expressões de intenções, representações e instituições humanas, e seu estudo nos ajudaria a compreender como alguns processos sociais se utilizam de materialidades para levar à cabo seus interesses. O caso dos diplomas de instituições de ensino, por oportuno, é exemplar. Os diplomas, mais do que simples adereços de uma formação, são responsáveis por instituir, naqueles que dele fazem uso, as qualidades socialmente reconhecíveis da profissão. São, em outras palavras, expressões humanas materializadas em um documento oficial. Não é mera coincidência, então, que figurem nos consultórios de médicos ou nos escritórios de advogados. É preciso notar que, sobre esse mesmo paradigma “cultural materialista”, se coloca obras bastante diversas entre si sem uma problematização de aspectos mais amplos ligados as elas. Um dos efeitos desse procedimento é que a obra de Pierre Bourdieu, por exemplo, seja entendida dentro dessa mesma tradição marxista, o que precisaria ser visto com maior cautela.

A segunda corrente é denominada de novo materialismo ou pós-humana. A principal distinção entre as duas vertentes está no modo como conceitualizam as relações entre humanos e objetos e humanos e não-humanos. Em linhas gerais, os novos materialistas, alinhados ao pós-estruturalismo e suas discussões sobre as trocas entre humanos e não-humanos, argumentam a favor da não inviolabilidade dos primeiros. Se percebe o tipo de relevância que tal perspectiva tem para os estudos da materialidade ao inverter a lógica dos culturais materialistas. Se, para os primeiros, as coisas surgem a partir da intenção inscrita na ação humana; para os pós-humanos, as coisas são elas mesmas relevantes na instituição de um certo modelo de sujeito. Para o caso dos estudos sobre materialidade em contextos educacionais, essa perspectiva explora as maneiras pelas quais os próprios espaços escolares impactam na constituição de subjetividades.

O foco dado a materialidade em contextos educacionais se divide em dois: construções e corpos. Ambos são tematizados no decorrer do trabalho. É aqui a primeira vez que se visualiza a utilidades das teorias. Ao considerar a construção de escolas, as autoras fazem notar como intenções políticas se materializam em suas estruturas. Na Inglaterra do pós-segunda guerra, os arquitetos optaram por realizar construções com linhas suaves em que ideais de liberdade estivessem aparentes. Ou, ainda, avançam em uma discussão sobre a maneira como escolas de elites comunicam uma sensação de grandiosidade e imponência via suas localizações em prédios antigos que reivindicam uma conexão com a tradição de um passado glorioso que aquele espaço representa.

Os capítulos quatro e cinco, condizentes aos processos de mobilidades educacionais, são mais próximos de questões tradicionalmente problematizadas pelas ciências sociais, tais como os fluxos de capital, as trocas políticas entre nações ou os fluxos migratórios contemporâneos. Nessa tradição sociológica, pode ser vista toda uma série de elaborações, como a de John Urry (2000), que toma a mobilidade como uma categoria de análise sociológica privilegiada para compreensão de termos caros à sociologia, como globalização e desigualdade. Dessa perspectiva móvel, provém uma forma de fazer sociologia que não se atém ao estudo de sociedades específicas, mas sim aos movimentos globais de produtos, pessoas, ideias, matéria prima etc.

Mas, o tema da mobilidade, além de ser um conjunto de conhecimentos sociologicamente orientados, surge também como uma série de metodologias. Essas metodologias, diferentemente da maior parte dos métodos de uso habitual nas ciências sociais, colocam o movimento como elemento constitutivo do seu processo de produção. Mais do que elementos acessórios, essas metodologias móveis são aspectos produtivos de conhecimentos que, caso contrário, se manteriam inacessíveis. À título de exemplo, discutem aquilo que chamam de “driving ethnographies”, que podem ser desde caminhadas para entrevistas até acompanhamento da rotina de um trabalhador em movimento, como entregadores ou prestadores de serviço para empresas de transporte. É possível pensar no caso de uma pesquisa interessada em reconstituir as memórias ligadas a uma espacialidade urbana. Ao andar pelas ruas de um bairro de infância junto a um entrevistado, uma pessoa pode se lembrar de coisas - como a existência de uma casa de família onde hoje existe uma grande loja varejista - que, de outra forma, não seria recordada. Via esses e outros exemplos, o livro demonstra como a mobilidade pode ser um elemento ativo na produção de conhecimento.

Ao analisar os movimentos de pessoas, via práticas educacionais, o livro se concentra nos casos ligados ao Ensino Superior. O foco dado ao sistema de ensino terciário é compreensível na medida em que essa modalidade é aquela que envolve os maiores riscos e expectativas em uma trajetória educacional. São também os casos em que os deslocamentos de maiores distâncias ocorrem para fins de constituição de um capital cultural. O termo utilizado pelas autoras é o de educação transnacional. Fala-se de estudantes transnacionais, instituições globais e internacionalização de currículos e professores. Seria interessante olhar também para as maneiras com que a internacionalização das instituições de Ensino Superior afeta e direciona suas estratégias. Os rankings universitários, por exemplo, têm como um de seus critérios a quantidade de alunos internacionais matriculados na universidade. Num mercado global de ensino, esses rankings passam a ser fortemente cobiçadas pelas instituições, que elaboram estratégias internas de atração de estudantes estrangeiros para poder competir internacionalmente. As mobilidades, portanto, servem aqui de indicador de poder ou relevância que uma instituição acadêmica possui num mercado global.

Os dois últimos capítulos são dedicados àquilo que as autoras chamam de um movimento de convergência. Este é o momento de maior originalidade desenvolvido em toda a obra, já que dá conta de agrupar as contribuições de diversas pesquisas em áreas separadas numa mesma explicação. Esse esforço de convergência é apresentado ao se questionar as mudanças que ocorrem na apresentação dos corpos, na personalidade e na identidade de sujeitos em seus processos de mobilidade urbana. Um exemplo é o da criança que vai para a escola e que precisa de cuidados, com seus pais a acompanhando pelo caminho, ensinando como se portar e qual direção tomar. Ao crescer, essa criança desenvolve certa autonomia em seu deslocamento pelo espaço urbano. Isso aumenta para o colegial e para aquele no ensino superior, momento em que muitos passam por um processo de autonomização da vida familiar.

Para o espaço urbano, o deslocamento de estudantes toma grandes dimensões, que vão da constituição de bairros estudantis ao crescimento e manutenção de diversos serviços na região. Ao discutirem as maneiras com que a mobilidade constrói materialidades educacionais urbanas, o livro também ajuda a compreender as mudanças históricas nas cidades. Ao tratarem dos casos de gentrificação, as autoras subvertem os termos geralmente empregados na geografia e nas ciências sociais, que compreende esse processo via fluxos financeiros. Ao selecionarem dois exemplos, um para o caso de Londres e outro para a cidade de Chicago, demonstram como fatores educacionais podem mobilizar famílias a se mudarem para outras regiões. Escolas que personificam um ideal de excelência, no caso em questão pela homogeneidade étnica perseguida pelos pais de família de classe média, passam a ser vistas como destinos de preferência. Nos dois exemplos, isso teve como decorrência o aumento da procura por imóveis próximos a escolas e a proliferação do comércio na região. Famílias de classe trabalhadora tiveram que matricular seus filhos em outra instituição, por mais que os pais tivessem sido alunos da instituição original. A dinâmica de procura educacional é apresentada como fator central para o afluxo de capital, nuançando e tornando mais complexa a explicação clássica dos processos de gentrificação.

Ainda nesses dois últimos capítulos, o livro contribui para o entendimento das mobilidades internacionais de estudantes, processo que as próprias autoras reconhecem como desigualmente acessível. Seria interessante abordar pesquisas que tratem dos movimentos Sul-Sul, pois o foco principal recai sobre aqueles de direção Sul-Norte, em parte compreensível pela própria inserção acadêmica das duas. Inovador é o tratamento dispensados aos projetos de educação transnacional de algumas universidades do Ocidente em direção ao Oriente, em especial, para Singapura, Malásia e Hong Kong. Essas iniciativas transnacionais, que mobilizam agentes do capital financeiro e projetos de infraestrutura de grande porte, são um exemplo eloquente da maneira como dinâmicas internacionais estão reconfigurando o cenário da educação superior em nível mundial. Iniciativas da Universidade John Hopkinks, na Singapura, ou da Universidade Monash (Austrália), na Malásia, são indicativos desse movimento. Esses casos também são amostras das maneiras com que a internacionalização do ensino elabora novas materialidades locais.

O livro pode ser entendido em duas frentes. De um lado, ele é uma contribuição para o campo de estudos tanto das mobilidades educacionais - sejam essas na cidade, de instituições ou de alunos transnacionais no ensino superior - quanto do impacto das materialidades na constituição de espaços urbanos e processos de identidade. Nessa direção, podemos retomar a distinção feita por Manuel Castells (1999) entre espaços de lugares e espaços de fluxos, que encerra algumas potencialidades quando do estudo de como algumas instituições de ensino reconfiguram o global. No caso do ensino superior, algumas instituições exercem uma força de atração por conta das qualidades que pretendem “legitimamente” instituir nos sujeitos que por elas passaram. Tornam-se lugares de passagem para o global, nos termos de Castells, espaços de fluxos. Entender a mobilidade enquanto uma categoria de análise sociologicamente válida é, também, atentar-se para as formas como aqueles sujeitos que a possuem exercem, na mesma medida, uma forma de poder.

Por outro lado, o livro é uma contribuição original à sociologia da educação e das migrações. Ao empregar duas categorias de análise relevantes, notadamente a materialidade e a mobilidade numa perspectiva de convergência, ele abre portas para todo um campo de investigações. Seria interessante acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos de autores que partilhem dessa perspectiva (inclusive das duas em questão) de forma a seguir os caminhos, sempre irregulares, que esses estudos tomarão.

Os apontamentos anteriores servem para se pensar alguns temas de pesquisa no âmbito da educação no Brasil. Com a expansão do sistema de ensino terciário no país nos últimos quinze anos, o que proporcionou uma inserção de estudantes estrangeiros nas universidades, principalmente via o Programa de Estudantes - Convênio de Graduação e Pós-Graduação (PEC/G/PEC-PG)2, a preocupação com as materialidades e o desempenho acadêmico podem ser melhor problematizados a partir das colocações anteriores. Esses estudantes PEC-G/PG, em sua maioria da África Subsaariana, são colocados frente a alguns desafios com sua chegada ao Brasil (SUBUHANA, 2009; KALLY, 2001). Dentre as dificuldades, pode-se sublinhar a procura de uma residência, o que impacta diretamente em suas condições de vida. Como nem todas as universidades possuem moradias estudantis para seus estudantes, muitos precisam encontrar formas nem sempre legais de moradia. Olhar para essas materialidades nos ajuda a compreender a inserção desses alunos no ambiente universitário, suas avaliações, expectativas, dificuldades e, de forma geral, o aproveitamento de suas estadas de estudo no Brasil.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
BROOKS, Rachel e WATERS, Johanna. Materialities and Mobilities in Education. Abingdon. Routledge, 2018.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Trad. De Roneide Venâncio Majer. São Paulo, Paz e Terra, 1999.
KALLY, Alain Pascal. Os estudantes africanos no Brasil e o preconceito racial. In: CASTRO, Mary Garcia (Org). Migrações internacionais: contribuições para políticas. Brasília, IPEA, p. 463-478, 2001.
URRY, John. Sociology Beyond Societies: mobilities for the twenty-first century. Londres, Routledge. 2000.
SUBUHANA, Carlos. A experiência sociocultural de universitários da África lusófona no Brasil: entremeando histórias. Pro-posições. Campinas, v.20, n º1, p.103-126, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73072009000100007. Acesso em: 04 jun. 2020.
Notas
Notas
1 As traduções que seguem são todas de autoria própria.
2 Programas de mobilidade para estudantes de graduação e pós-graduação provenientes de países com os quais o Brasil tenha embaixadas e que mantenha acordos culturais e econômicos. Os participantes são provenientes, em sua grande maioria, de países do continente africano. Disponível em: http://www.dce.mre.gov.br/PEC/G/processo_seletivo/resultados.php. Acesso em: 08 jun. 2020
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