Apresentação
Cristianismo da Libertação e Teologia da Libertação na América Latina
Cristianismo da Libertação e Teologia da Libertação na América Latina
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e64381, 2020
UFG - Universidade Federal de Goiás
Sociedade e Cultura publica nesta edição o dossiê Cristianismo da Libertação e Teologia da Libertação na América Latina. Trata-se de um esforço para reunir as análises mais recentes dos principais especialistas acerca desse fenômeno que se tornou menos midiático a partir dos anos 2000, mas permanece vivo no contexto latino-americano.
A Teologia da Libertação (TL) tem sua origem principalmente na América Latina, baseada na convergência de mudanças internas e externas resultantes da modernidade vivida pela Igreja católica e algumas igrejas protestantes na segunda metade do século XX. É um pensamento teológico que nasce da perspectiva de interpretar a realidade latino-americana à luz do Evangelho, usando termos e conceitos marxistas, além de afirmar a “opção preferencial pelos pobres”, ou seja, uma escolha política orientada pela noção de classe social.
O Cristianismo da Libertação (CL), por sua vez, é formado pelo conjunto de todos os cristãos cuja prática sociorreligiosa influenciou a elaboração da TL. Entendemos que para o CL a opção pelos pobres é o eixo estruturante de toda a ação. Há uma mudança da moralidade sexual e familiar para o domínio do social e político. Nesse sentido, chama-se Igreja da práxis, dos pobres e da libertação. Essa forma de religiosidade, que está presente principalmente no catolicismo, é particularmente estruturada em torno das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), cujos grupos favorecem uma certa substituição da estrutura paroquial por pequenas comunidades eclesiais. É uma Igreja formada por comunidades autônomas e autogestionadas, em que a estrutura eclesial tradicional e vertical dá lugar a uma estrutura horizontal e em rede.
Portanto, a Teologia da Libertação é a expressão intelectual e espiritual de um movimento sociorreligioso anterior e muito mais profundo que denominamos de Cristianismo da Libertação. Embora o Concílio Vaticano II (1962-1965) tenha sido um elemento importante na formação da TL, a importância tanto da revolução cubana de 1959 quanto dos movimentos populares das décadas de 1950 e 1960 na América Latina não pode ser negligenciada. Por exemplo, no Brasil a Ação Católica Especializada, em particular a JOC (Juventude Operária Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica), contribuíram para a emergência da TL, que hoje orienta, por exemplo, a ação das pastorais sociais e da juventude. Por isso entendemos que a prática sociorreligiosa precede a produção teológica, sendo que a partir dos anos 1970 passa a existir uma relação recíproca entre as duas.
A proposta do dossiê é refletir sobre a origem, o desenvolvimento e a atualidade, além das convergências e divergências, do Cristianismo da Libertação, assim como da Teologia da Libertação na América Latina. Como procuramos evidenciar anteriormente, compreendemos que há uma distinção analítica e histórica entre ambos: enquanto o Cristianismo da Libertação se refere a um movimento sociorreligioso, anterior à TL, composto principalmente pela Ação Católica Especializada, pelas comunidades eclesiais de base (CEBs), pelas pastorais sociais e da juventude da Igreja católica e por militantes de movimentos sociais referenciados no princípio da “opção preferencial pelos pobres”, a Teologia da Libertação é um conjunto de escritos elaborados em referência a esse movimento e que surge no final dos anos 1960 (Rubem Alves); se desenvolve nos anos 1970 (Gutierrez, Richard, Dussel, Assmann, Melano); se projeta para o mundo nos anos 1980 (Boff); renova-se com a perspectiva feminista e ecológica nos anos 1990 e 2000 (Gebara, M. Althaus-Reid, Tamez) e na atualidade passa a permear novas temáticas que perpassam a ideia de excluído na América Latina (Hinkelammert, Jung Mo Sung).
Assim, os cristãos da libertação são todas as pessoas que participam de projetos sociais e eclesiais baseados na Teologia da Libertação, considerada como uma produção teológica própria da América Latina e que tem como elemento essencial a libertação do pobre, uma noção influenciada pelo conceito de classe social. É principalmente no contexto católico que essa teologia se desenvolve enquanto uma corrente anticapitalista católica minoritária, mas consequente. Mesmo com a hostilidade de Roma nos papados de João Paulo II e Bento XVI, ela continuou se desenvolvendo na América Latina, servindo de exemplo para o catolicismo em outras regiões do mundo, como a Europa e a África, e se reaproxima do Vaticano com a chegada do Papa Francisco.
Apesar das posições conservadoras do Papa sobre os direitos das mulheres de controlar seus corpos e a moral sexual em geral, Francisco tem assumido posições políticas e sociais de esquerda. Sua formação intelectual, espiritual e política é sustentada pela Teologia do Povo, uma variante não marxista da Teologia da Libertação argentina. Ele adotou o nome de São Francisco, considerado um amigo dos pobres. Ele fez uma importante homilia no porto italiano de Lampedusa, um porto de entrada para imigrantes ilegais, denunciando a “globalização da indiferença” com uma crítica à desumanidade da política europeia em relação aos imigrantes.
Podemos citar uma série de ações do Papa para exemplificar nosso argumento: o encontro com Gustavo Gutierrez, ícone da Teologia da Libertação, em setembro de 2013; a beatificação em 2015 e a canonização em 2018 de Oscar Romero, ex-bispo de San Salvador (capital de El Salvador) e ativista dos direitos humanos; a homenagem à memória de Luis Espinal Camps em julho de 2015 na Bolívia; o discurso de aversão ao capitalismo na Bolívia, na cidade de Santa Cruz, por ocasião do Encontro Mundial de Movimentos Sociais em 2015; a recepção no Vaticano, em 2014, dos militantes de esquerda Alexis Tsipras e Walter Baier para o início de um processo de diálogo entre marxistas e cristãos, cujo último encontro ocorreu na Grécia em agosto de 2018. Finalmente, Francisco foi denunciado como “Papa Marxista” por Rush Linebaugh, um jornalista norte-americano, a quem ele respondeu recusando educadamente o adjetivo, enquanto acrescentava que não se ofendia porque “conhecia muitos marxistas que eram boas pessoas”.
Com base em uma perspectiva interdisciplinar, o dossiê selecionou propostas que analisam a importância intelectual e histórica desta tendência cristã e que também procuram compreender as expressões atuais desse cristianismo, principalmente de viés católico, que volta, como procuramos mostrar, a ter a atenção do Vaticano a partir da chegada do Papa Francisco em 2013 e da publicação da encíclica Laudato Si’ em 2015. Nesse sentido, faz-se necessário entender inclusive as expressões contemporâneas dessa corrente no contexto do papado de Francisco. Encontramos na atualidade novas perspectivas teológicas construídas a partir dessa vertente, das quais podemos citar a teologia feminista, indígena, ecológica, queer, negra, decolonial, do pluralismo religioso, entre outras.
É importante mencionar que a Teologia da Libertação é uma reflexão crítica sobre a revolução (Gutierrez) e, por isso, não depende somente do contexto eclesial, mas, sobretudo, do contexto revolucionário (Miguez Bonino, J. Segundo). Embora o contexto sociopolítico da América Latina já não seja o mesmo da década de 1960, há uma continuidade estrutural (capitalismo dependente, colonialidade do saber e do poder, etc.) que merece ser analisada. Daí a importância de estudar os desafios do Cristianismo da Libertação enquanto prática sociorreligiosa animada pelo clamor dos empobrecidos e empobrecidas.
Apresentamos, a seguir, uma síntese do que pode ser encontrado nos artigos que compõem este volume.
O artigo de Ivone Gebara, teóloga feminista, inaugura o dossiê com o debate acerca do papel da mulher na Teologia da Libertação. A autora, que pode ser considerada uma intelectual orgânica do Cristianismo da Libertação, tece críticas contundentes à ausência da figura feminina na elaboração da TL em vistas de sua forte identificação com o catolicismo tradicionalmente patriarcal e de sua gestão no interior da própria instituição. Em contrapartida, Gebara apresenta as iniciativas das principais teólogas da libertação, à margem da hierarquia clerical, em busca da equidade de gênero no interior desse movimento sociorreligioso.
Em seguida, há o texto de Enriqueta Lerma Rodríguez e Adriela Pérez Pérez, que tratam também do papel da mulher na Teologia da Libertação, agora em um contexto local, na fronteira entre Chiapas, no México, e a Guatemala. A análise do papel das mulheres, referenciadas na TL, nesse contexto específico evidencia que o Cristianismo da Libertação precisa se abrir para outros postulados teológicos, além das contribuições clássicas recebidas principalmente em seu diálogo com as ciências sociais. Outras abordagens teórico-metodológicas presentes nos movimentos identitários, feminista e negro principalmente, devem ser incorporadas nessa teologia em complemento à perspectiva de classe social.
O dossiê segue com a contribuição de Fabio Lanza, acompanhado de Luis Gustavo Patrocino e Lenir de Assis, que discutem a presença da Teologia da Libertação no contexto contemporâneo das Comunidades Eclesiais de Base. O texto analisa o 14o Intereclesial das CEBs, ocorrido em 2018, com o objetivo de identificar as expressões do Cristianismo da Libertação presentes hoje nessas comunidades que são o berço formador dessa teologia latino-americana.
Na sequência, há o artigo de Wellington Teodoro da Silva e Paulo Agostinho N. Baptista acerca do debate sobre a revolução no contexto da igreja progressista no Brasil. O texto nos ajuda a entender o papel dos movimentos sociais de esquerda na transformação de grupos cristãos e lideranças católicas de cunho reformista que passam a assumir uma posição radical em defesa dos excluídos. O contato com grupos da esquerda laica possibilitou que os cristãos, principalmente sua juventude, passassem a elaborar caminhos possíveis para uma participação concreta nos movimentos revolucionários da América Latina.
Verónica Giménez Béliveau e Marcos Andrés Carbonelli tratam da realidade da Teologia da Libertação na Argentina e sua relação com a Teologia do Povo. Os autores mostram o papel dessa teologia na resistência ao neoliberalismo no país. Evidenciam também a renovação alcançada pelo Cristianismo da Libertação com o advento do papa Francisco no Vaticano. Os autores tiveram contato com a militância contemporânea que tem atualizado o legado da perspectiva da libertação tanto nos marcos da participação política como no ambiente eclesial.
A contribuição de Félix Pablo Friggeri traz os conceitos de práxis e pobre, além da noção de pessoa e sabedoria popular, para pensar a presença da Teologia da Libertação nas lutas sociais latino-americanas. O artigo coteja a produção em torno dessa teologia com as perspectivas do socialismo indo-americano, peronismo e os escritos do Papa Francisco.
Graham McGeorch discute a concepção de direitos humanos presente na Teologia da Libertação e o papel do Cristianismo da Libertação nas lutas por democracia. O autor argumenta que estes cristãos precisam fazer uma autocrítica no sentido de repensar a temática dos direitos humanos e da democracia para além das grandes narrativas, no sentido de recuperar sua bandeira fundamental que é a da libertação.
André Ricardo de Souza, Breno Minelli Batista e Giulliano Placeres dialogam a respeito de duas vertentes católicas que se opõem no contexto brasileiro: uma ligada ao Catolicismo da Libertação, representada pela Cáritas, e outra ligada ao Catolicismo carismático, patrocinada pelos canais católicos Canção Nova e TV Século XXI. Estas duas frentes distintas de ação política católica possuem lógicas bem diferentes no que diz respeito ao tema da economia, visto que enquanto a Cáritas incide suas práticas sobre a busca pela economia solidária, os canais de TV de vertente carismática praticam uma política pragmática, de laços com agentes religiosos e parlamentares católicos, em busca de sua sustentação financeira.
Por fim, o artigo de Johan Konings apresenta uma interpretação do significado da Teologia da Libertação na América Latina. O autor analisa as consequências da leitura popular da Bíblia na produção da hermenêutica da libertação que sustenta as práticas dos cristãos da libertação na região. Trata-se de uma abordagem teológica indispensável para a compreensão do fenômeno abordado no dossiê, visto que por meio dela podemos entender os caminhos trilhados por essa teologia a partir do diálogo com os paradigmas decolonial e ecológico.
A diversidade de áreas de atuação dos autores e das autoras e a pluralidade de enfoques e temáticas em torno do assunto proposto pelo dossiê têm o sentido de viabilizar a análise contemporânea do significado do Cristianismo da Libertação e da Teologia da Libertação na América Latina. Trata-se de entender a configuração dessa teoria e prática sociorreligiosa nesse início de século XXI, marcado pelo processo de desinstitucionalização da religião e acompanhado pela acelerada diminuição de fiéis nas fileiras dos catolicismos brasileiro e latino-americano.
As recentes transformações sociopolíticas vividas na América Latina (desenvolvimento das igrejas pentecostais, fortalecimento dos governos conservadores, fundamentalismo religioso, entre outros) nos obrigam a repensar o papel da religião (tanto como justificativa do poder quanto como movimento de protesto) neste novo milênio. Portanto, consideramos que este dossiê não é apenas pertinente, mas fundamental para compreender as tensões e as prefigurações da Teologia da Libertação.
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