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Cristianismo da Libertação e Teologia da Libertação na América Latina
Michael Löwy; Flávio Munhoz Sofiati; Luis Martínez Andrade
Michael Löwy; Flávio Munhoz Sofiati; Luis Martínez Andrade
Cristianismo da Libertação e Teologia da Libertação na América Latina
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e64381, 2020
UFG - Universidade Federal de Goiás
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Apresentação

Cristianismo da Libertação e Teologia da Libertação na América Latina

Michael Löwy
Centre National de la Recherche Scientifique, França
Flávio Munhoz Sofiati
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Luis Martínez Andrade
Fondation Maison des Sciences de l'Homme, França
Sociedade e Cultura. Revista de Pesquisa e Debates em Ciências Sociais, vol. 23, e64381, 2020
UFG - Universidade Federal de Goiás

Sociedade e Cultura publica nesta edição o dossiê Cristianismo da Libertação e Teologia da Libertação na América Latina. Trata-se de um esforço para reunir as análises mais recentes dos principais especialistas acerca desse fenômeno que se tornou menos midiático a partir dos anos 2000, mas permanece vivo no contexto latino-americano.

A Teologia da Libertação (TL) tem sua origem principalmente na América Latina, baseada na convergência de mudanças internas e externas resultantes da modernidade vivida pela Igreja católica e algumas igrejas protestantes na segunda metade do século XX. É um pensamento teológico que nasce da perspectiva de interpretar a realidade latino-americana à luz do Evangelho, usando termos e conceitos marxistas, além de afirmar a “opção preferencial pelos pobres”, ou seja, uma escolha política orientada pela noção de classe social.

O Cristianismo da Libertação (CL), por sua vez, é formado pelo conjunto de todos os cristãos cuja prática sociorreligiosa influenciou a elaboração da TL. Entendemos que para o CL a opção pelos pobres é o eixo estruturante de toda a ação. Há uma mudança da moralidade sexual e familiar para o domínio do social e político. Nesse sentido, chama-se Igreja da práxis, dos pobres e da libertação. Essa forma de religiosidade, que está presente principalmente no catolicismo, é particularmente estruturada em torno das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), cujos grupos favorecem uma certa substituição da estrutura paroquial por pequenas comunidades eclesiais. É uma Igreja formada por comunidades autônomas e autogestionadas, em que a estrutura eclesial tradicional e vertical dá lugar a uma estrutura horizontal e em rede.

Portanto, a Teologia da Libertação é a expressão intelectual e espiritual de um movimento sociorreligioso anterior e muito mais profundo que denominamos de Cristianismo da Libertação. Embora o Concílio Vaticano II (1962-1965) tenha sido um elemento importante na formação da TL, a importância tanto da revolução cubana de 1959 quanto dos movimentos populares das décadas de 1950 e 1960 na América Latina não pode ser negligenciada. Por exemplo, no Brasil a Ação Católica Especializada, em particular a JOC (Juventude Operária Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica), contribuíram para a emergência da TL, que hoje orienta, por exemplo, a ação das pastorais sociais e da juventude. Por isso entendemos que a prática sociorreligiosa precede a produção teológica, sendo que a partir dos anos 1970 passa a existir uma relação recíproca entre as duas.

A proposta do dossiê é refletir sobre a origem, o desenvolvimento e a atualidade, além das convergências e divergências, do Cristianismo da Libertação, assim como da Teologia da Libertação na América Latina. Como procuramos evidenciar anteriormente, compreendemos que há uma distinção analítica e histórica entre ambos: enquanto o Cristianismo da Libertação se refere a um movimento sociorreligioso, anterior à TL, composto principalmente pela Ação Católica Especializada, pelas comunidades eclesiais de base (CEBs), pelas pastorais sociais e da juventude da Igreja católica e por militantes de movimentos sociais referenciados no princípio da “opção preferencial pelos pobres”, a Teologia da Libertação é um conjunto de escritos elaborados em referência a esse movimento e que surge no final dos anos 1960 (Rubem Alves); se desenvolve nos anos 1970 (Gutierrez, Richard, Dussel, Assmann, Melano); se projeta para o mundo nos anos 1980 (Boff); renova-se com a perspectiva feminista e ecológica nos anos 1990 e 2000 (Gebara, M. Althaus-Reid, Tamez) e na atualidade passa a permear novas temáticas que perpassam a ideia de excluído na América Latina (Hinkelammert, Jung Mo Sung).

Assim, os cristãos da libertação são todas as pessoas que participam de projetos sociais e eclesiais baseados na Teologia da Libertação, considerada como uma produção teológica própria da América Latina e que tem como elemento essencial a libertação do pobre, uma noção influenciada pelo conceito de classe social. É principalmente no contexto católico que essa teologia se desenvolve enquanto uma corrente anticapitalista católica minoritária, mas consequente. Mesmo com a hostilidade de Roma nos papados de João Paulo II e Bento XVI, ela continuou se desenvolvendo na América Latina, servindo de exemplo para o catolicismo em outras regiões do mundo, como a Europa e a África, e se reaproxima do Vaticano com a chegada do Papa Francisco.

Apesar das posições conservadoras do Papa sobre os direitos das mulheres de controlar seus corpos e a moral sexual em geral, Francisco tem assumido posições políticas e sociais de esquerda. Sua formação intelectual, espiritual e política é sustentada pela Teologia do Povo, uma variante não marxista da Teologia da Libertação argentina. Ele adotou o nome de São Francisco, considerado um amigo dos pobres. Ele fez uma importante homilia no porto italiano de Lampedusa, um porto de entrada para imigrantes ilegais, denunciando a “globalização da indiferença” com uma crítica à desumanidade da política europeia em relação aos imigrantes.

Podemos citar uma série de ações do Papa para exemplificar nosso argumento: o encontro com Gustavo Gutierrez, ícone da Teologia da Libertação, em setembro de 2013; a beatificação em 2015 e a canonização em 2018 de Oscar Romero, ex-bispo de San Salvador (capital de El Salvador) e ativista dos direitos humanos; a homenagem à memória de Luis Espinal Camps em julho de 2015 na Bolívia; o discurso de aversão ao capitalismo na Bolívia, na cidade de Santa Cruz, por ocasião do Encontro Mundial de Movimentos Sociais em 2015; a recepção no Vaticano, em 2014, dos militantes de esquerda Alexis Tsipras e Walter Baier para o início de um processo de diálogo entre marxistas e cristãos, cujo último encontro ocorreu na Grécia em agosto de 2018. Finalmente, Francisco foi denunciado como “Papa Marxista” por Rush Linebaugh, um jornalista norte-americano, a quem ele respondeu recusando educadamente o adjetivo, enquanto acrescentava que não se ofendia porque “conhecia muitos marxistas que eram boas pessoas”.

Com base em uma perspectiva interdisciplinar, o dossiê selecionou propostas que analisam a importância intelectual e histórica desta tendência cristã e que também procuram compreender as expressões atuais desse cristianismo, principalmente de viés católico, que volta, como procuramos mostrar, a ter a atenção do Vaticano a partir da chegada do Papa Francisco em 2013 e da publicação da encíclica Laudato Si’ em 2015. Nesse sentido, faz-se necessário entender inclusive as expressões contemporâneas dessa corrente no contexto do papado de Francisco. Encontramos na atualidade novas perspectivas teológicas construídas a partir dessa vertente, das quais podemos citar a teologia feminista, indígena, ecológica, queer, negra, decolonial, do pluralismo religioso, entre outras.

É importante mencionar que a Teologia da Libertação é uma reflexão crítica sobre a revolução (Gutierrez) e, por isso, não depende somente do contexto eclesial, mas, sobretudo, do contexto revolucionário (Miguez Bonino, J. Segundo). Embora o contexto sociopolítico da América Latina já não seja o mesmo da década de 1960, há uma continuidade estrutural (capitalismo dependente, colonialidade do saber e do poder, etc.) que merece ser analisada. Daí a importância de estudar os desafios do Cristianismo da Libertação enquanto prática sociorreligiosa animada pelo clamor dos empobrecidos e empobrecidas.

Apresentamos, a seguir, uma síntese do que pode ser encontrado nos artigos que compõem este volume.

O artigo de Ivone Gebara, teóloga feminista, inaugura o dossiê com o debate acerca do papel da mulher na Teologia da Libertação. A autora, que pode ser considerada uma intelectual orgânica do Cristianismo da Libertação, tece críticas contundentes à ausência da figura feminina na elaboração da TL em vistas de sua forte identificação com o catolicismo tradicionalmente patriarcal e de sua gestão no interior da própria instituição. Em contrapartida, Gebara apresenta as iniciativas das principais teólogas da libertação, à margem da hierarquia clerical, em busca da equidade de gênero no interior desse movimento sociorreligioso.

Em seguida, há o texto de Enriqueta Lerma Rodríguez e Adriela Pérez Pérez, que tratam também do papel da mulher na Teologia da Libertação, agora em um contexto local, na fronteira entre Chiapas, no México, e a Guatemala. A análise do papel das mulheres, referenciadas na TL, nesse contexto específico evidencia que o Cristianismo da Libertação precisa se abrir para outros postulados teológicos, além das contribuições clássicas recebidas principalmente em seu diálogo com as ciências sociais. Outras abordagens teórico-metodológicas presentes nos movimentos identitários, feminista e negro principalmente, devem ser incorporadas nessa teologia em complemento à perspectiva de classe social.

O dossiê segue com a contribuição de Fabio Lanza, acompanhado de Luis Gustavo Patrocino e Lenir de Assis, que discutem a presença da Teologia da Libertação no contexto contemporâneo das Comunidades Eclesiais de Base. O texto analisa o 14o Intereclesial das CEBs, ocorrido em 2018, com o objetivo de identificar as expressões do Cristianismo da Libertação presentes hoje nessas comunidades que são o berço formador dessa teologia latino-americana.

Na sequência, há o artigo de Wellington Teodoro da Silva e Paulo Agostinho N. Baptista acerca do debate sobre a revolução no contexto da igreja progressista no Brasil. O texto nos ajuda a entender o papel dos movimentos sociais de esquerda na transformação de grupos cristãos e lideranças católicas de cunho reformista que passam a assumir uma posição radical em defesa dos excluídos. O contato com grupos da esquerda laica possibilitou que os cristãos, principalmente sua juventude, passassem a elaborar caminhos possíveis para uma participação concreta nos movimentos revolucionários da América Latina.

Verónica Giménez Béliveau e Marcos Andrés Carbonelli tratam da realidade da Teologia da Libertação na Argentina e sua relação com a Teologia do Povo. Os autores mostram o papel dessa teologia na resistência ao neoliberalismo no país. Evidenciam também a renovação alcançada pelo Cristianismo da Libertação com o advento do papa Francisco no Vaticano. Os autores tiveram contato com a militância contemporânea que tem atualizado o legado da perspectiva da libertação tanto nos marcos da participação política como no ambiente eclesial.

A contribuição de Félix Pablo Friggeri traz os conceitos de práxis e pobre, além da noção de pessoa e sabedoria popular, para pensar a presença da Teologia da Libertação nas lutas sociais latino-americanas. O artigo coteja a produção em torno dessa teologia com as perspectivas do socialismo indo-americano, peronismo e os escritos do Papa Francisco.

Graham McGeorch discute a concepção de direitos humanos presente na Teologia da Libertação e o papel do Cristianismo da Libertação nas lutas por democracia. O autor argumenta que estes cristãos precisam fazer uma autocrítica no sentido de repensar a temática dos direitos humanos e da democracia para além das grandes narrativas, no sentido de recuperar sua bandeira fundamental que é a da libertação.

André Ricardo de Souza, Breno Minelli Batista e Giulliano Placeres dialogam a respeito de duas vertentes católicas que se opõem no contexto brasileiro: uma ligada ao Catolicismo da Libertação, representada pela Cáritas, e outra ligada ao Catolicismo carismático, patrocinada pelos canais católicos Canção Nova e TV Século XXI. Estas duas frentes distintas de ação política católica possuem lógicas bem diferentes no que diz respeito ao tema da economia, visto que enquanto a Cáritas incide suas práticas sobre a busca pela economia solidária, os canais de TV de vertente carismática praticam uma política pragmática, de laços com agentes religiosos e parlamentares católicos, em busca de sua sustentação financeira.

Por fim, o artigo de Johan Konings apresenta uma interpretação do significado da Teologia da Libertação na América Latina. O autor analisa as consequências da leitura popular da Bíblia na produção da hermenêutica da libertação que sustenta as práticas dos cristãos da libertação na região. Trata-se de uma abordagem teológica indispensável para a compreensão do fenômeno abordado no dossiê, visto que por meio dela podemos entender os caminhos trilhados por essa teologia a partir do diálogo com os paradigmas decolonial e ecológico.

A diversidade de áreas de atuação dos autores e das autoras e a pluralidade de enfoques e temáticas em torno do assunto proposto pelo dossiê têm o sentido de viabilizar a análise contemporânea do significado do Cristianismo da Libertação e da Teologia da Libertação na América Latina. Trata-se de entender a configuração dessa teoria e prática sociorreligiosa nesse início de século XXI, marcado pelo processo de desinstitucionalização da religião e acompanhado pela acelerada diminuição de fiéis nas fileiras dos catolicismos brasileiro e latino-americano.

As recentes transformações sociopolíticas vividas na América Latina (desenvolvimento das igrejas pentecostais, fortalecimento dos governos conservadores, fundamentalismo religioso, entre outros) nos obrigam a repensar o papel da religião (tanto como justificativa do poder quanto como movimento de protesto) neste novo milênio. Portanto, consideramos que este dossiê não é apenas pertinente, mas fundamental para compreender as tensões e as prefigurações da Teologia da Libertação.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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