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A ascensão de Dilma Rousseff e Michelle Bachelet na presidência da República: trajetórias, significados e desafios
Neiva Furlin
Neiva Furlin
A ascensão de Dilma Rousseff e Michelle Bachelet na presidência da República: trajetórias, significados e desafios
The rise of Dilma Rousseff and Michelle Bachelet in the presidency of the Republic: itinerary, meanings and challenges
El ascenso de Dilma Rousseff y Michelle Bachelet en la presidencia de la República: trayectorias, significados y desafíos
Revista Sociedade e Cultura, vol. 25, e70847, 2022
Universidade Federal De Goias (UFG)
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Resumo: O artigo evidencia aspectos da trajetória de Dilma Rousseff e de Michelle Bachelet até a chegada na presidência da República, os significados e desafios de ser mulher em um lugar de poder político, historicamente masculino, e a relação com o feminismo e como isso impactou na promoção de políticas públicas. É um estudo qualitativo pautado na metodologia comparada, cujos dados foram levantados por meio de pesquisa bibliográfica e de entrevistas semiestruturadas com ex-ministras de Dilma e de Bachelet e com integrantes de ONGs feministas. A análise tem como base referenciais teóricos de estudos sociológicos, feministas e de gênero. Os resultados apontam que as trajetórias de Dilma e Bachelet possuem pontos comuns, embora tenham vivido em contextos sociais, políticos e culturais distintos. Ambas foram a primeira mulher a assumir a presidência da República em seus países, enfrentando os desafios de uma cultura que associa a liderança política ao universo masculino. Seus governos foram marcados pelo compromisso com a agenda feminista na promoção de políticas à igualdade e equidade de gênero.

Palavras-chave: Presidência da República, Michelle Bachelet, Dilma Roussef, Feminismo.

Abstract: This article highlights aspects of the trajectory of Dilma Rousseff and Michelle Bachelet until the arrival in the presidency of the republic, the meanings and challenges of being a woman in a place of political power, historically masculine, and the relationship they maintained with feminism and how it happened. impacted the promotion of public policies. It is a qualitative study based on comparative methodology, whose data were collected through bibliographic research and semi-structured interviews with former ministers of Dilma and Bachelet and with members of feminist NGOs. The analysis is based on theoretical references from sociological, feminist and gender studies. The results show that the trajectories of Dilma and Bachelet have common points, although they lived in diferent social, political and cultural contexts. Both were the first women to assume the presidency of the republic in their countries, facing the challenges of a culture that associates political leadership with the male universe. Their governments were marked by their commitment to the feminist agenda in promoting policies for gender equality and equity.

Keywords: Presidency of the Republic, Michelle Bachelet, Dilma Roussef, Feminism.

Resumen: Este artículo destaca aspectos de la trayectoria de Dilma Rousseff y Michelle Bachelet hasta la llegada a la presidencia de la República, los significados y desafíos de ser mujer en un lugar de poder político, históricamente masculino, y la relación que mantuvieron con el feminismo y cómo eso impactó la promoción de políticas públicas. Se trata de un estudio cualitativo basado en metodología comparativa, cuyos datos fueron recolectados a través de investigación bibliográfica y entrevistas semiestructuradas con exministras de Dilma y Bachelet y con integrantes de ONG feministas. El análisis se basa en referentes teóricos de los estudios sociológicos, feministas y de género. Los resultados muestran que las trayectorias de Dilma y Bachelet tienen puntos en común, aunque vivieron en diferentes contextos sociales, políticos y culturales. Ambas fueron las primeras mujeres en asumir la presidencia de la República en sus países, enfrentando los desafíos de una cultura que asocia el liderazgo político al universo masculino. Sus gobiernos estuvieron marcados por su compromiso con la agenda feminista en la promoción de políticas de igualdad y equidad de género.

Palabras clave: Presidencia de la República, Michelle Bachelet, Dilma Roussef, Feminismo.

Carátula del artículo

Artigo

A ascensão de Dilma Rousseff e Michelle Bachelet na presidência da República: trajetórias, significados e desafios

The rise of Dilma Rousseff and Michelle Bachelet in the presidency of the Republic: itinerary, meanings and challenges

El ascenso de Dilma Rousseff y Michelle Bachelet en la presidencia de la República: trayectorias, significados y desafíos

Neiva Furlin
Universidade do Oeste de Santa Catarina, Brasil
Revista Sociedade e Cultura, vol. 25, e70847, 2022
Universidade Federal De Goias (UFG)

Recepção: 12 Novembro 2021

Aprovação: 13 Maio 2022

Questões introdutórias1

Ao longo da história, ser chefe de um Estado-nação2 era uma função reservada aos homens. Tratava-se de um padrão normativo legítimo dentro da ordem de gênero da cultura patriarcal. Ao usar o termo “cultura patriarcal”, aqui, estamos nos referindo ao conceito de patriarcado no sentido de Heleieth Safoti (2015) e bell hooks (2020), compreendido como um sistema político-social que produz estruturas hierárquicas de poder, assegurando a superioridade vantajosa aos homens brancos e heterossexuais3.

Essa configuração patriarcal no sistema político passou a ser alvo de crítica a partir do final do século XIX, quando as mulheres se organizaram para reivindicar o direito de votarem e serem votadas. Aos poucos, foram sendo representadas no parlamento, porém, sempre em número pouco significativo, de modo que a ausência das mulheres nas esferas do poder se constituiu um obstáculo para a consolidação da democracia em diversos países. Um cenário que evidencia claramente a persistência de práticas patriarcais que associam os espaços de poder ao universo masculino.

Nas últimas décadas do século XX, as mudanças socioculturais da década de 1960 e, especificamente, na América Latina, o processo de redemocratização ampliaram os mecanismos de participação político-partidária, sobretudo por meio do sistema de cotas, que permitiu a inserção de mulheres no espaço político partidário (PRÁ, 2013). Nesse cenário, o processo de institucionalização das políticas com perspectiva de gênero abriu um espaço maior para a atuação de mulheres no aparato do Estado, produzindo um cenário favorável para que algumas chegassem à presidência da República.

Segundo o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero (2015), da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, dos 33 países da América Latina e do Caribe, dez países tiveram uma mulher na presidência: Argentina4, Nicarágua, Guiana, Panamá, Chile, Brasil, Costa Rica, sendo que na Bolívia, Haiti e Equador elas assumiram como presidentes interinas.

A eleição de uma mulher para a presidência da República, em sociedades ainda orientadas pelos padrões da cultura patriarcal, por si só produz um efeito simbólico no imaginário das representações socioculturais, por apontar novas possibilidades que se abrem para as mulheres que, ao longo da história, foram excluídas dos lugares de poder de decisão política. Nessa perspectiva, a cientista inglesa Anne Phillips (2001) tem argumentado em favor de uma política não somente de ideias, mas da presença física dos grupos excluídos dos locais de decisão, como forma de buscar um sistema mais justo que incorpore tanto ideias quanto presença.

Vale ressaltar que o fato de se ter uma mulher na presidência, embora produza significados simbólicos importantes às mulheres, nem sempre significa que ela vai impulsionar avanços na igualdade de direitos entre homens e mulheres, pois depende de como essa mulher se posiciona em relação às pautas feministas. Por outro lado, considerando que os Estados continuam regidos por uma estrutura patriarcal, para uma mulher ocupar o mais alto cargo de poder político, assumindo o compromisso com a pauta pela igualdade de gênero, torna-se uma tarefa nem sempre fácil e requer estratégias políticas, alianças e convencimento sobre a importância de tais ações para o desenvolvimento e o progresso de um país.

A eleição de mulheres para o mais alto cargo político se torna um dispositivo de poder para desencadear processos significativos em direção da democracia de gênero. De acordo com Heinrich Böll Stiftung (2007, p. 14), “a democracia de gênero é um conceito normativo que postula direitos iguais, chances iguais, acesso aos recursos econômicos e ao poder político iguais para homens e mulheres. Participação é a condição para a mudança e a transformação de relações injustas entre os gêneros”. Assim, a democracia de gênero requer a renovação de todas as estruturas sociais que reproduzem as injustiças e modelos estereotipados entre os sexos.

Nancy Fraser (2005) argumenta sobre a importância das mulheres, como atrizes sociais, estarem representadas na arena política, locus do poder de decisão das políticas de redistribuição e de reconhecimento, que são necessárias para fazer justiça social às diferentes mulheres que, historicamente, foram privadas do acesso aos bens materiais e simbólicos, por convenções sociais da cultura patriarcal5.

O Brasil e o Chile somente elegeram uma mulher para a presidência da República nas primeiras décadas do século XXI. Michelle Bachelet, no Chile, foi eleita para dois mandatos (2006-2010 e 2014-2018) e Dilma Roussef, em 2010 e reeleita em 20146, sofrendo um duro golpe parlamentar7 em 2016, baseado em acusações sem sustentação jurídica, que tinha como objetivo retirar do poder um projeto político de sociedade, defendido pelo Partido dos Trabalhadores (PT)8.

Portanto, este artigo busca evidenciar aspectos da trajetória de Dilma Rousseff e de Michelle Bachelet até a chegada na presidência da República, os significados e desafios de ser mulher em um lugar de poder político, historicamente masculino e a relação que mantiveram com o feminismo e como isso impactou na promoção de políticas públicas. Trata-se de um recorte dos dados de uma pesquisa mais ampla, realizada em um estudo de pós-doutorado, com foco nas políticas públicas implementadas na gestão de duas mulheres presidentas.

É um estudo qualitativo com base na metodologia comparativa. De acordo com Badie e Hermet (1993), esse método permite comparar fenômenos sociais que pertencem à mesma categoria, mesmo que estejam em contextos diferentes, com o intuito de explicar a sua gênese e suas diferenças de configuração ou de arranjos, considerando a especificidade dos contextos político, social e cultural de cada país. Esses autores alertam que os objetos comparados precisam ter pontos em comum e, ao mesmo tempo, devem se distinguir para que a comparação se torne útil.

Os dados são oriundos de pesquisa bibliográfica e entrevistas semiestruturadas com três ex-ministras do Serviço Nacional da Mulher (Sernam), no Chile, que atuaram nos dois governos de Bachelet e a ex-ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), que atuou durante o governo de Dilma9, no Brasil. Neste artigo, usamos também dados levantados em entrevistas com duas integrantes de Organizações não Governamentais (ONGs) feministas do Chile – Virginia Gusmán, socióloga e pesquisadora do Centro de Estudios de La Mujer (CEM), e Teresa Valdés Echeñique, socióloga e coordenadora do Observatório Gênero y Equidad. No Brasil, entrevistamos Sonia Coelho, educadora popular, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da ONG Sempreviva Organização Feminista (SOF). O nome das interlocutoras é revelado no corpo do trabalho, porque elas falaram de temas públicos que podem facilmente ser encontrados em documentos e na rede da internet10.

As ONGs supracitadas tinham parcerias com os governos das presidentas, seja para a elaboração de planos de políticas públicas para mulheres, seja para a implementação e avaliação das políticas, ou mesmo para a produção de relatórios analíticos. As entrevistas com as integrantes dessas ONGs foram importantes por trazerem elementos complementares, não mencionados pelas ex-ministras dos governos de Dilma e Bachelet.

Nossa proposta inicial era realizar pesquisa bibliográfica com o complemento de dados levantados em entrevistas somente com a última ministra do Mecanismo Nacional de Políticas para as Mulheres dos governos de Bachelet e de Dilma. Contudo, ao estar no Chile durante 15 dias, foi possível realizar outras entrevistas11. Considerando que a pesquisadora é brasileira e os documentos e a literatura consultada forneceram dados para o estudo comparativo, foram suficientes as duas entrevistas realizadas no Brasil. Vale ressaltar que essas mulheres são todas brancas, de classe média, pesquisadoras vinculadas a universidades ou a ONGs feministas. São mulheres fliadas em partidos de centro-esquerda ou que tinham afinidade com as políticas progressistas.

A compreensão comparativa e interpretativa dos dados foi realizada com base em referenciais teóricos dos estudos sociológicos, feministas e de gênero.

Aspectos das trajetórias de Dilma Rousseff e Michelle Bachelet

O Brasil e o Chile integram os países da América Latina que elegeram uma mulher para a Presidência da República. A pergunta que se faz é: como essas mulheres chegaram a ocupar um lugar de poder no cenário político, cujo espaço historicamente foi reservado para homens? É certo que a conjuntura sociocultural das transformações ocorridas na década de 1970, o processo de redemocratização na América Latina e a institucionalização de políticas para a igualdade de gênero abriram precedentes para a inserção e atuação de mulheres no campo da política. Contudo, é preciso olhar para a trajetória dessas mulheres e verificar como elas se apropriaram de capital político, garantindo legitimidade e reconhecimento social para conquistar o lugar mais importante de liderança política, em Estados onde ainda predominam os valores do patriarcado.

O conceito de capital político é oriundo da sociologia bourdieusiana e se inclui no que o autor denomina de “capital simbólico”. O capital simbólico, em Bourdieu (2003), como todas as formas de capital (social, político, cultural e econômico), precisa ser reconhecido e percebido pelos agentes de determinado campo e de campos afins. A percepção e o reconhecimento comum atribuem valoração e funcionam como critério de distribuição dos agentes no interior de um dado campo social. Assim, o capital político pode ser pensado como espécie de crédito social, que depende da crença socialmente difundida em sua validade, de modo que esse reconhecimento social permite que alguns indivíduos, mais que outros, sejam aceitos como atores ou atrizes com capacidade para a ação política.

Na trajetória de Bachelet e de Dilma é possível constatar fatores que foram agregando capital político e lhes conferindo legitimidade para atuarem no campo da política. Suas trajetórias de vida pessoal, profssional e política ocorrem em contextos específicos. Ambas vivem sua juventude em tempo de ditadura militar e se afinam com projetos políticos de esquerda. Vale lembrar que os regimes da ditadura militar no Chile e no Brasil foram bem diferentes, com impactos políticos, sociais, econômicos e culturais distintos12. Contudo, elas presenciam fatos históricos semelhantes de repressão, tortura e violação de direitos humanos, processando experiências e acontecimentos sociais em um cenário de ditadura, o que as coloca como parte de uma mesma geração histórica.

De acordo com Mannheim (1982), a posição comum dos que são nascidos em determinado tempo cronológico não ocorre somente pela possibilidade de presenciarem os mesmos acontecimentos ou por viverem situações semelhantes, mas pela forma semelhante como esses indivíduos processam as experiências e os acontecimentos. Essa é uma questão-chave no seu conceito de “geração”. Na sua visão, a “unidade geracional” não é um vínculo que leva à formação de um grupo concreto, voltado para uma estrutura de coesão com finalidades e objetivos comuns, mas é “constituída através da similaridade de situação dos indivíduos dentro de um todo social.” (MANNHEIM, 1982, p. 71).

Como podemos visualizar, no quadro a seguir, as trajetórias de Bachelet e Dilma, ao mesmo tempo em que são específicas em alguns aspectos, em outros se intercruzam ou encontram pontos comuns, que as colocam em situações similares, fazendo com que participem de uma mesma unidade geracional.

Como se observa, no quadro acima, tanto Dilma quanto Bachelet nasceram em famílias de classe média, cujos pais eram alinhados a partidos de esquerda. Certamente, o contexto familiar exerceu infuência na atuação dessas mulheres enquanto jovens estudantes. Dilma atuou no Colina13, uma organização com “caráter guerrilheiro e revolucionário e de vanguarda política” (LEITE, 2005, p. 2), que depois integrou a VAR-Palmares14. Na época em que cursava a faculdade de economia, manteve interesse por partidos de esquerda. Já Bachelet se fliou ao partido socialista do Chile, quando era estudante de medicina. Por causa do ativismo político, ambas as mulheres interromperam os estudos acadêmicos durante a ditadura.

Dilma se posicionou contra o regime militar da ditadura integrando um movimento revolucionário, a Vanguarda Armada Revolucionária. Foi presa e torturada, entre 1970 e 1972, durante a vigência do Ato Institucional n. 5, AI-5 (1968-1978)15. Para Paz e Moura (2019), essa experiência marcou a trajetória política e o discurso de resistência de Dilma aos governos autocráticos. Já Bachelet, com a chegada da ditadura em 1973, passou a atuar clandestinamente no partido socialista. Seu pai, general da brigada da Força Área e membro do governo da unidade popular, liderada por Salvador Allende, foi preso, torturado e morto pelo regime militar. Bachelet e sua mãe chegaram a ser presas e torturadas, conseguindo, posteriormente, em 1975, asilo político na Áustria e Alemanha (VALDÉS, 2010). O fato de Dilma e Bachelet viverem experiências parecidas, processadas em um contexto de ditadura, torna-as integrantes de uma mesma unidade geracional, no sentido de Mannheim (1982), que se articula pela luta em defesa da democracia em seus engajamentos políticos. Trata-se de experiências que lhes foi agregando capital político, no sentido da teoria bourdieusiana, o qual é reconhecido e acionado simbolicamente como importante, nos partidos de esquerda.

Dilma saiu da prisão em 1972, antes do fim do regime da Ditadura, e Bachelet retornou ao seu país em 1979, quando concluirão a formação superior. Contudo, Dilma foi impedida de retomar o curso de Ciências Econômicas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concluindo-o na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Neste Estado, Dilma e seu marido fliaram-se ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), fundado por Leonel Brizola. Já Bachelet continuou militando no partido socialista e integrou movimentos contrários à ditadura de Augusto Pinochet.

Vale ressaltar que, no período de democratização do Brasil e do Chile, as duas mulheres vão fazer carreira profssional no aparato do Estado. Dilma, como técnica, ocupou funções no âmbito de prefeitura e do estado do RS, em governos do PT, fato que a levou fliar-se neste partido, em 2001. Em 2002, colaborou no processo de transição do governo Lula à Presidência da República, sendo indicada ao Ministério de Minas e Energia. Bachelet ingressou no Estado como funcionária pública, exercendo diferentes funções na área da saúde, como se evidencia no Quadro 1. Era afliada ao Partido Socialista, o qual integrava a Concertación de Partidos por la Democracia16, fato que favoreceu a sua indicação como assessora no Ministério de Saúde e depois no Ministério da Defesa. A experiência de trabalho de Dilma e Bachelet em ministérios estratégicos as tornou reconhecidas no cenário da política e lhes agregou capital político.

Quadro 1
Aspectos das trajetórias de Dilma Rousseff e Michelle Bachelet

Quadro 1 cont


Fonte: Elaborado pela autora a partir de pesquisa bibliográfica (2018).

Chama atenção que tanto Dilma quanto Michelle, embora militassem em partidos de esquerda, não tinham sido eleitas para cargos políticos antes de chegarem à presidência da República. Apenas, em períodos distintos, haviam estado à frente de ministérios importantes do governo, em seus respectivos países. Com a eleição de Lula, Dilma assumiu o Ministério de Minas e Energia e ganhou maior destaque quando assumiu o Ministério da Casa Civil, após os escândalos do “mensalão”17, que derrubaram figuras políticas do PT que eram fortes aliados e mentores do programa de governo de Lula. Nesse período, ela coordenou dois programas importantes do Governo Lula, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), criado em 2007, e o Luz para Todos, criado em 2003.

Em um cenário de confitos políticos no PT que envolveu grandes lideranças do partido no esquema do “mensalão”, a visibilidade política de Dilma, como ministra da Casa Civil, e o impacto positivo de seu trabalho a tornaram uma alternativa para a sucessão do presidente Lula. Embora tenha sido considerada uma figura sem grande popularidade, ela era portadora de uma trajetória de luta pela democracia e havia acumulado certo capital simbólico nas experiências em cargos políticos, aspectos que foram favoráveis para que seu nome encontrasse consenso no conjunto das forças políticas de seu partido. Mesmo que a visibilidade do apoio do então presidente Lula à candidatura de Dilma tenha sido importante para o crescimento da adesão popular em torno de seu nome, Eleonora Menicucci mencionou, em situação de entrevista, que outros fatores tiveram impacto positivo no imaginário popular: o primeiro estaria relacionado à imagem de Dilma como uma “guerreira combatente” na luta em favor da democracia e como uma mulher forte, determinada e competente profssionalmente; o segundo teria a ver com a sua história de vida pessoal, uma mulher que teve dois maridos e estava separada, o que a aproximava da experiência de vida de muitas mulheres brasileiras, que não se enquadram nos padrões sociais hegemônicos de família e de mulheres com uma subjetividade que escapa ao modelo de feminilidade da cultura patriarcal.18

Uma mulher, com tal trajetória ao chegar à presidência da República, produz um imaginário simbólico de que mulheres comuns podem romper as fronteiras de gênero e ocupar espaços políticos, historicamente considerados masculinos. Para Melo (2015), a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2010 deu ânimo às novas gerações de mulheres e seu pronunciamento na vitória do segundo turno, daquele ano, sintetiza muito bem o significado do termo por ela usado: “as mulheres podem”.

Essa mesma perspectiva foi enfatizada por Sonia Coelho, educadora popular, integrante da ONG Sempreviva Organização Feminista (SOF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Para nós a eleição de Dilma foi um fato importante, porque no Brasil as mulheres estão subrepresentadas no legislativo, no executivo e em todas as instâncias de poder. E ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência, com as características de Dilma, de ser uma mulher de esquerda, de ser uma mulher que lutou contra a ditadura, fortaleceu muito as mulheres e deu visibilidade simbólica de que elas devem estar ocupando espaços de decisão e de poder. (Sonia Coelho, SOF, Brasil)

Segundo Eleonora Menicucci de Oliveira, a chegada de Dilma na presidência da República evidencia três aspectos: o simbólico, que aponta para a possibilidade de as mulheres chegarem ao poder e romper com limites da estrutura patriarcal; o compromisso com políticas para as mulheres e a possibilidade de construir um processo para a eliminação da discriminação de gênero, conforme se lê no relato que segue:

Primeiro o aspecto simbólico, no sentido do que representa uma mulher com um passado de ex-guerrilheira, uma mulher da resistência, uma mulher desquitada, uma mulher chegar à presidência da República, ao longo de toda a história do Brasil. Esse é um aspecto simbólico para as mulheres e para a sociedade patriarcal. Porque para as mulheres o significado simbólico é: “nós podemos”. E do ponto de vista da estrutura do patriarcado capitalista, ela rompe com a lógica do poder patriarcal, onde o poder é dos homens e as mulheres ocupam sempre o lugar de segunda categoria. Então, o simbolismo maior é esse. O segundo, tem a ver com ela andar na esplanada e subir a rampa com a filha. Então, quem estava subindo a rampa? Era 52% da população brasileira, ou seja, as mulheres. E nesse aspecto, ela mostra no discurso dela que as mulheres seriam prioridade no seu governo, como o foi. Em todas as políticas, não só nas políticas específicas. E, o último aspecto, que não é o último, porque eu enxergo como um processo, foi mostrar que ali é o começo do fim da discriminação de gênero na política. (Eleonora Menicucci, ex-ministra da SPM, Brasil)

Além dos aspectos simbólicos que presenciamos nos relatos das interlocutoras da pesquisa, podemos afirmar que a eleição de Dilma resultou da confluência de diferentes fatores, que inclui a sua trajetória de vida pessoal e profssional; o capital simbólico acumulado; o cenário político do PT, que deu apoio à presença das mulheres na política; o apoio de Lula, que terminava o seu segundo mandato com grande aprovação popular e uma conjuntura mais favorável para a presença das mulheres na política partidária.

No Chile, Bachelet, antes de ser eleita presidenta da República, ganhou popularidade como Ministra no governo de Ricardo Lagos Escobar, que chegou ao poder no ano 2000, pelo Partido pela Democracia (PPD). Isso já significou uma mudança, porque nos dois primeiros governos da Concertación por la Democracia, os presidentes eram fliados ao Partido da Democracia Cristã (PDC), que era orientado também por princípios conservadores. Ricardo Lagos foi mais sensível às demandas das mulheres e promoveu políticas para ampliar a presença feminina em espaços de poder, como enfatiza Virginia Gusmán, socióloga e pesquisadora da ONG Centro de Estudos da Mulher (CEM).

Com Lagos, pela primeira vez se separa o tema de mulher do tema de família. Apesar de se ter uma institucionalidade de gênero nos programas, este estava dentro do âmbito da família. Se colocou o tema dos direitos, as políticas orientadas pelos direitos, que foi uma mudança fundamental, porque sob os outros governos, as políticas estavam mais orientadas para a igualdade de oportunidades. E Lagos, além disso, colocou cinco mulheres ministras e muitas mulheres intendentes. Isso contribui para a visibilização das mulheres em espaços públicos em funções de autoridade. Ele nomeou Bachelet como ministra da saúde e depois de dois anos, como ministra da defesa. (Virginia Gusmán, CEM, Chile)

Ao assumir o Ministério da Defesa, Bachelet se tornou a primeira mulher dos países ibero-americanos a ocupar um ministério, historicamente vinculado ao universo masculino, o que, de certa forma, criou ruídos nas estruturas patriarcais do Estado. Segundo o relato da pesquisadora Virgínia Gusmán, Bachelet ganhou popularidade pelas mudanças que implementou em um espaço masculino, como o fortalecimento das missões de paz e a ampliação do ingresso das mulheres na carreira militar. Contudo, é preciso assinalar, conforme Rosemeri Moreira (2011), que o ingresso das mulheres nas carreiras militares e sua inserção em missões de paz ocorre dentro de uma visão dicotômica que relaciona as mulheres com a paz e homens com a guerra, o que denota uma concepção próxima do feminismo da diferença. Apesar dessas contradições, Virginia Gusmán considera que a imagem veiculada pelos meios de comunicação de uma mulher, Ministra da Defesa, subindo em tanques de guerra e descendo de aviões, marcava um diferencial e teve um impacto simbólico importante para sua chegada ao poder, por meio do voto popular.

Bachelet foi eleita após três governos da coalizão pela democracia, em um cenário político que tinha a possibilidade de a direita retornar ao poder, uma vez que a eleição de Lagos já havia tido uma pequena margem de vantagem. Virginia Gusmán afirma que a coalizão de centro-esquerda apostou no nome de Bachelet, dada a popularidade que ela conquistou, presumindo que ela poderia garantir a permanência da coalizão no poder. Inicialmente o seu nome não estava na lista de prioridade dos partidos de coalizão, apesar de sua posição de destaque no Partido Socialista. Para esta interlocutora,

Bachelet também simbolizava a situação de muitas mulheres profssionais dos setores médios da sociedade, que tinham sido reprimidas, que tiveram resiliência, que tinham um estilo de vida um pouco tradicional, alguém que tinha um compromisso socialista e com as causas das mulheres, dando certa prioridade às políticas de gênero. (Virginia Gusmán, CEM, Chile)

Na mesma perspectiva, Teresa Valdés Echeñique, socióloga e coordenadora do Observatório de Género y Equidad, considera que o fato de Bachelet ser uma pessoa de grande empatia, próxima das pessoas, de ser uma mulher de esquerda, separada, com filhos de dois maridos, militante e pobre, produzia um significado simbólico, gerando identificação com a vida muitas mulheres.

Já a feminista Carmen Andrade, ex-ministra do Sernam, apresenta uma visão histórica. Argumenta que a chegada de Bachelet ao governo não é algo insólito, como se fosse produto de irrupção de uma figura, pela primeira vez uma mulher, mas resultado de um longo processo que foi ocorrendo no Chile, talvez um pouco invisível. Ou seja, tem a ver com muitos anos de luta das mulheres para que suas demandas fossem incorporadas na agenda pública. Bachelet é parte desse movimento e representa muito da história vivida no Chile. Carmem Andrade concebe que a chegada de Bachelet ao poder precisa ser compreendida como resultado de um intercruzamento de fatores, conforme se lê no relato que segue:

Eu acredito que a chegada de Bachelet ao governo é resultado de um intercruzamento entre uma biografia pessoal, que ela trazia, alguém vinculada a luta pelos direitos humanos, que era vista pela sociedade chilena como alguém muito comprometida com as pessoas que tinham mais problemas, com os mais pobres, enfim com as pessoas que precisam mais da intervenção do Estado. Por uma parte, era uma biografia e, por outra, era um momento político de democratização da sociedade e de abertura cultural, também, em um país que é bastante conservador. Ela não é somente mulher, mas agnóstica em uma sociedade que é bem católica. É uma mulher chefa do lar, sem marido, com filhos de dois casamentos. Então, ela encarna também isso, uma figura cultural que representa transgressão em relação aos cânones tradicionais da sociedade. Por isso, eu insisto que isso foi possível por meio de uma confluência de uma biografia, que era a sua trajetória, com um momento político específico. (Carmen Andrade, ex-ministra do Sernam, Chile)

Esses relatos evidenciam que a chegada da primeira mulher à presidência no Chile é resultado de diferentes fatores, que incluem a sua popularidade pela ação que exerceu no Ministério da Defesa, a sua trajetória de luta pelas causas sociais e das mulheres, a representação simbólica de sua experiência como mulher e o contexto político do país e dos partidos de esquerda. Assim, tanto Michelle Bachelet quanto Dilma Rousseff chegaram ao poder como resultado de diferentes fatores sociais, políticos, simbólicos/culturais, que são específicos em cada contexto. Ambas foram construindo a sua própria trajetória e o seu capital político porque não foram mulheres ou filhas de políticos importantes e nem personalidades colocadas no cenário político para defender determinados interesses.

Além de todos esses fatores favoráveis, é preciso considerar que houve questões pontuais, que são as forças de poder que operam dentro do jogo político e que atuaram em favor da indicação dessas mulheres pelos seus partidos. Certamente em outra situação, considerando as hierarquias de gênero que constituem as instituições políticas (SCOTT, 1990), essas mulheres, talvez, não seriam indicadas, mesmo que tivessem acumulado um capital simbólico valorizado dentro do campo político. Havia um cenário específico que favoreceu, como bem pontuou a socióloga e ex-ministra, Carmem Andrade.

Enquanto no Brasil as denúncias dos escândalos do “mensalão” derrubaram figuras políticas que eram fortes nomes para a sucessão de Lula, no Chile a coalizão dos partidos pela democracia estava um tanto desgastada. E, nesse jogo, duas mulheres, portadoras de um capital simbólico significativo, reconhecido no cenário político, acabam sendo a solução para as forças políticas que estavam no poder. Dilma, conhecida como uma mulher guerreira pelo seu passado de luta em favor da democracia e que se mostrou competente e eficiente nas ações que coordenou dentro dos dois ministérios, e mais o repasse dos votos de Lula, que saía do governo com grande popularidade, apresentava-se como solução para o momento, a fim de que o PT se mantivesse no poder. No Chile, Bachelet, uma mulher que também tinha uma história de luta em favor da democracia e mais a popularidade conquistada pela sua trajetória de trabalho e de articulação política, sobretudo no Ministério da Defesa, apresentou-se como uma solução possível para a coalizão dos governos de centro e centro-esquerda se manter no poder.

Isso nos reporta Bourdieu (2011), para o qual o campo político é um campo de jogo de forças ou de lutas para transformar as relações de forças, em que as condutas dos agentes acabam sendo determinadas pela posição na estrutura da relação de forças. Para o autor,

As lutas políticas são lutas entre responsáveis políticos, mas nessas lutas os adversários, que competem pelo monopólio da manipulação legítima dos bens políticos, têm um objeto comum em disputa, o poder sobre o Estado (que em certa medida põe fim à luta política, visto que as verdades de Estado são verdades transpolíticas, pelo menos oficialmente (BOURDIEU, 2011, p. 4).

Se Dilma e Bachelet foram indicadas pelos seus partidos por conta das disputas que operam para manter o poder político do Estado ou do controle sobre os bens políticos do país, é certo também afirmar que elas fazem dessas brechas que se abrem para uma mulher, em uma situação contextual, a oportunidade para furar as estruturas androcêntricas ou a ordem de gênero do campo político. Uma oportunidade de mostrar que, mesmo colocadas em posição desigual em termos de legitimidade cultural de seu poder político em um campo considerado masculino, as “mulheres podem” tem capacidade tanto quanto os homens para governar um país e, ainda, dar um colorido distinto, que é “o compromisso de trabalhar em favor da justiça social, pautadas em políticas de equidade de gênero” (VALDÉS, 2010, p. 7).

No Quadro 1 observa-se, ainda, como os contextos políticos interferiram de maneira diferente nas duas eleições em que Dilma e Bachelet concorreram à presidência da República. Na primeira eleição, Dilma é eleita com 56,05% dos votos. Era um contexto de estabilidade econômica e de grande aprovação do governo Lula, do qual ela foi sucessora. Já a sua vitória, no processo de reeleição, com 51,64% dos votos, teve pequena margem de vantagem em relação a Aécio Neves, seu adversário. Era um cenário de crise econômica e de certo desgaste do PT no poder. No caso de Bachelet, houve uma relação inversa, isso porque na primeira candidatura à presidência, em 2006, ela foi eleita com 53,5% do total dos votos contra 46,5% de seu adversário Sebastián Piñera, ou seja, teve pequena vantagem. O Chile passava por um contexto de fortalecimento da direita no país, mas a marca simbólica no contexto político da personagem Bachelet garantiu a vitória dos partidos de centro-esquerda. Ela encerrou o primeiro mandato com alto nível de aprovação (81%), pouco atrás do popular líder brasileiro Lula (83%) (MALTA; FONSECA, 2014)19. Em seguida, foi indicada como a primeira Subsecretária Geral e Diretora Executiva da ONU Mulheres, para a Igualdade de Gênero. De certo modo, esse cargo permitiu a Bachelet ampliar seu capital político e sua visibilidade no contexto global, assegurando uma vantagem significativa na eleição de 2013, quando obteve 62,16% dos votos. De acordo com as entrevistadas, Bachelet retornou ao Chile com maior empoderamento político, em razão do reconhecimento internacional que obteve pelo trabalho realizado junto à ONU Mulheres.

É notório que em ambos os países a conjuntura social, política e econômica foi fator decisivo nos pleitos eleitorais que elegeram ou reelegeram Dilma e Bachelet, com maior ou menor vantagem sobre os seus adversários. Mas, independentemente desses números, a eleição dessas mulheres marca uma trajetória de disputa política pela maior representação das mulheres no poder e uma possiblidade de fazer acontecer a democracia de gênero que, segundo Heinrich Böll (2007), postula direitos iguais, chances iguais, acesso aos recursos econômicos e ao poder político iguais para homens e mulheres. E, para isso, requer-se renovar as estruturas sociais que reproduzem as injustiças e os modelos estereotipados entre os sexos, questão ainda marcada por barreiras da cultura patriarcal, como evidenciaremos no ponto seguinte.

Ser mulher na presidência da República: desafios e resistências

Se, por um lado, a presença de mulheres em espaços considerados historicamente masculinos simbolicamente é importante para enfraquecer a lógica de gênero da cultura patriarcal e para abrir novos horizontes às mulheres, por outro lado, estando nesses lugares elas encontram muitos desafios e resistências para garantir a legitimidade desse direito conquistado.

A literatura dos estudos feministas e de gênero tem mostrado que ao conquistar espaços ou cargos em espaços considerados masculinos, as mulheres enfrentam desafios, preconceitos e resistências de seus pares e de setores conservadores da sociedade. Estes se utilizam de práticas sutis de poder, objetivando desqualificar e deslegitimar as conquistas, a liderança e a eficiência profissional feminina, o que mostra que a presença das mulheres desafa a ordem de gênero de lugares considerados redutos masculinos. Em uma estrutura patriarcal, em que a referência é o universo masculino, as conquistas das mulheres não é algo dado, mas um processo de construção continuada que demanda esforço e energias para mostrar que elas sabem e que são capacitadas para tais funções, como se evidencia em estudos, como o de Lombardi (2005), entre outros. Isso indica que não é suficiente lutar por maior representação feminina nos espaços de poder, mas, concomitante a isso, se faz necessário construir estratégias para mudar a cultura.

Nesse sentido, segundo Eleonora Menicucci, apesar da eleição de Dilma representar uma conquista importante do século XXI para a história das mulheres, a presidenta estava consciente de que o fato de ser mulher, em uma estrutura sociopolítica patriarcal, implicaria ter que enfrentar desafios e trabalhar muito para fazer um governo melhor que o dos homens, a fim de ganhar respeito e legitimidade em uma estrutura majoritariamente masculina.

Na concepção da entrevistada Sonia Coelho, a presença de uma mulher no mais alto nível de poder contribui para evidenciar, por meio da análise das práticas e dos discursos linguísticos20, o quanto a mídia e os setores conservadores da política e da sociedade discriminam e desqualificam as ações das mulheres, resistindo aos processos de emancipação feminina. Existe um controle sobre que modelo de feminilidade deve assumir e sobre os espaços que elas devem ocupar.

Tendo uma mulher em um espaço de poder você começa a perceber como a sociedade, a mídia e os próprios políticos vão colocando para fora toda a discriminação em relação as mulheres, que se evidencia pela forma como as tratam. A gente poderia analisar o vocabulário utilizado na mídia, já no primeiro ano da Dilma no governo. Diziam: ‘a Dilma vai fazer uma faxina’, sei lá, na economia; a Dilma vai ‘fazer uma limpeza’ em não sei no que; a Dilma vai fazer... enfim, todas essas coisas que dão conotação do mundo privado, do trabalho doméstico, da dona de casa. E também tinha todo um questionamento em torno da personalidade da Dilma, que ela era dura, que não era emotiva, o que no fundo tem a ver com um padrão de mulher e de feminilidade imposta pela na sociedade, em que você tem que ser doce e meiga. (Sonia Coelho, SOF, Brasil)

Constatamos que setores da mídia trabalham em favor da reprodução de estereótipos de gênero que associam as mulheres ao espaço doméstico, a um modelo de feminilidade considerado ideal e universal para todas as mulheres. Trata-se de uma violência simbólica, que impõe enquadramentos fixos às mulheres, visando manter a hierarquia das relações de poder, segundo a lógica de gênero da cultura patriarcal.

No final do governo Dilma, essas práticas discursivas e imagéticas, com viés misógino e patriarcal, se intensificaram, mostrando que o impeachment que ela sofreu não foi somente um golpe político-parlamentar, mas um golpe contra as mulheres e suas conquistas (GOMES, 2018)21. Dilma Rousseff não conseguiu finalizar o segundo mandato, por sofrer um golpe parlamentar injusto, baseado em uma falsa acusação, sem base jurídica, que objetivou tirar do poder não somente a primeira mulher eleita democraticamente presidenta da República, mas um projeto de sociedade defendido pelo PT. Trata-se de golpe disfarçado de impeachment que visava retomar “o lugar do capital e do mercado como eixos orientadores da política econômica e, com eles, todo um processo de diminuição de direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores, com aumento dos privilégios dos capitalistas” (GOMES, 2018, p. 151). Isso evidencia o caráter político do golpe, que foi possível por meio de uma ação coordenada, envolvendo um judiciário politizado, a grande mídia e a aliança entre partidos e movimentos sociais conservadores (SANTOS; SZWAKO, 2016).

O golpe que impediu Dilma concluir seu mandato teve, ainda, um conteúdo de gênero, porque operou simbolicamente para fortalecer a crença de que a política não é lugar para as mulheres. Os conteúdos sexistas e misóginos presentes nos discursos de parlamentares não eram neutros, isto é, eram usados não somente para contestar a competência de uma mulher eleita democraticamente, como para negar a todas as mulheres o direito de atuação na política (BIROLI, 2018). Podemos dizer que a deposição de Dilma do poder também objetivava restringir o debate sobre gênero nas escolas e a agenda da igualdade e da diversidade nas políticas públicas22.

Em seu governo, Dilma buscou aprofundar as políticas voltadas à igualdade de gênero iniciadas no governo Lula e implementou outras, em diferentes áreas do governo. Também foi a primeira mulher a realizar o discurso de abertura na Assembleia Geral das Nações Unidas, sinalizando a expansão da presença das mulheres na política. O seu governo foi o que mais nomeou mulheres para os ministérios, sobretudo no primeiro mandato, chegando a 26,3%. Foi o número mais expressivo que o Brasil já teve23. Contudo, isso não se consolidou em uma ação afirmativa, devido a difícil conjuntura política do final do primeiro mandato e do primeiro ano do segundo; a crise política dominou o cenário nacional e a participação feminina no primeiro escalão da República arrefeceu (MELO, 2015, p. 52).

Vale ressaltar que o governo Dilma foi atingido por uma crise econômica, em parte gerada pelas decisões políticas e projetos “bombas” votados no congresso, que contribuíram para a instabilidade econômica, no intuito de atingir o governo Dilma. Políticos do PT e de partidos aliados foram alvos da operação Lava Jato, acusados de corrupção na Petrobrás, que envolveu também o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Criou-se um clima de rejeição e de ódio ao PT, em parte produzido pelos partidos de direita, por setores conservadores da sociedade e pelos meios de comunicação social24, com fins eleitorais e de concretização de um modelo de economia e de política.

Bachelet, a primeira presidente do Chile, apesar de ter uma trajetória de visibilidade político-social e “uma personalidade com fácil trato no relacionamento interpessoal”, como pontuaram as interlocutoras da pesquisa, não ficou imune das investidas da cultura patriarcal dos setores conservadores da política e da sociedade chilena. Estando em uma instância de poder legitimado como lugar de homens brancos, heterossexuais e de classe média-alta, Dilma e Bachelet compartilham do fato de estarem submetidas às mesmas dinâmicas de poder e de gênero que tentam desqualificar a capacidade das mulheres nos lugares de liderança política para resgatar a lógica patriarcal de poder no Estado.

Segundo dados das entrevistadas, o grupo dos partidos que integravam a Concertación por lá Democracia, no primeiro governo de Bachelet, queria definir e controlar as políticas de Estado. Bachelet teve de construir suas estratégias para impedir que aqueles que sempre governaram interferissem em suas decisões. Isso nos remete a Valdés (2010), a qual afirma que Bachelet não seguiu os cânones políticos tradicionais e, em certa medida, subverteu a ordem vigente nas políticas que vinham sendo implantadas desde o processo de redemocratização, o que desagradou políticos, inclusive dos partidos de coalizão que apoiaram o seu governo. Bachelet enfrentou posturas agressivas desses políticos, mas não se submeteu, optando por contar com apoio popular, especialmente, das mulheres.

Essa questão corrobora o relato de Virginia Gusmán, segundo a qual “no começo Bachelet não era reconhecida com legitimidade, ou seja, todos os ex-ministros do governo de Ricardo Lagos tratavam de governar por meio dela, mas ela foi muito firme nas suas posições”. Indubitavelmente, essas práticas encontram respaldo em um imaginário de gênero da cultura patriarcal, que entende que são os homens os capacitados para determinar e decidir os caminhos políticos e que as mulheres lhes devem submissão. A irrupção de Bachelet na presidência da República passou a gerar certo incômodo, porque ameaçava a legitimidade do poder masculino na política.

O fato de Bachelet, desde o seu primeiro governo, ter assumido um discurso em favor da equidade de gênero, em todas as suas ações, e de nomear um ministério com paridade de gênero, não agradou a toda a classe política masculina. Por outro lado, isso chamou a atenção da opinião pública de que havia uma novidade no governo, que era a abertura de espaços para as mulheres no poder que, de certo modo, dava-lhe legitimidade, conforme podemos ler no relato de Virginia Gusmán:

Bachelet assumiu um governo com paridade de gênero o que produziu inicialmente uma reação bastante negativa porque muitos homens vão sair do poder, com a eleição de uma mulher presidente. Isso foi como se o pacto de a mulher não estar no espaço público, que era um lugar comum dos homens, passa a ser questionado com força impressionante. E, junto com isso, nos meios de comunicação começa a sair matérias sobre as mulheres. Assim, de alguma maneira o tema de gênero passa a ocupar uma agenda política e isso foi muito forte e eu creio que foi mais forte do que ocorreu com Dilma, na chegada do poder, porque Dilma, de alguma maneira foi sucessora de Lula. (Virginia Gusmán, CEM, Chile)

É necessário reconhecer que no Chile a chegada de Bachelet na presidência ocorreu em um contexto distinto e o fato de ela conquistar o governo com um programa em que gênero era tema transversal certamente trouxe um impacto maior em relação à presença de uma mulher na presidência da República. Diante dos desafios e resistências da classe política masculina, podemos considerar que, enquanto Dilma tinha o apoio de Lula, uma figura-chave na classe política brasileira e das poucas mulheres que estavam nos ministérios25, Bachelet tinha respaldo político de um número significativo de mulheres ministras que fortaleciam a sua posição política, já que ela nomeou, no primeiro governo, um ministério com paridade de gênero, isto é, 10 homens e 10 mulheres. Podemos concordar com Virgínia Gusmán que essa estratégia não somente fortaleceu o governo de Bachelet como foi importante para a elaboração e implementação de políticas com transversalidade de gênero, em diferentes setores do governo.

Em relação à formação do ministério com paridade de gênero, Virgínia Gusmán menciona outro aspecto, ou seja, que a posição de sujeito que essas mulheres ocupavam na sociedade, distinta de seus pares ministros, sinalizava uma nova postura política nas ações do governo.

Quando Bachelet nomeou o seu governo paritário, pense em quem são as mulheres e quem são os ministros homens. Aparece uma série de diferenças. Os ministros eram superconservadores, famílias conservadoras, etc. Essas mulheres eram pessoas que tinham uma trajetória de luta, esforço, com muitos desafios, muitas eram mulheres separadas. Então, é como se houvesse uma outra visão da sociedade, por meio de sua autoridade. (Virginia Gusmán, CEM, Chile)

O segundo mandato de Bachelet teve maior impacto no conjunto de reformas que ela levou a cabo, contudo, terminou o seu governo com baixa aprovação popular. Isso porque as reformas que ela protagonizou não agradaram a uma parcela da elite chilena, somado ao escândalo que envolveu seu filho, que era funcionário do governo. Na ocasião, este se utilizou de informações privilegiadas para conceder alto valor de empréstimo bancário para negócios de uma empresa que tinha sua esposa como uma das principais acionistas. Isto é, teve um crédito de mais de 10 bilhões de dólares concedido pelo Banco do Chile. Tal fato explodiu como um escândalo na imprensa chilena, impactando politicamente o governo de Bachelet26. Assim, enquanto Dilma teve o seu segundo governo interrompido, por questões que já mencionamos, Bachelet chegou ao final de sua gestão com desgaste político, no qual a mídia teve um papel fundamental.

Outro aspecto a se destacar é como as forças sociais e políticas conservadoras reagiram diante da chegada da primeira mulher na presidência da República, em um contexto de avanços das políticas com perspectiva de gênero. Angela M. C. Araújo e Jussara Prá (2014) mencionam que nem sempre a presença de mulheres na presidência de uma nação pode ser expressão de que as demandas dos movimentos feministas serão atendidas. Isso é perceptível quando se estabelecem acordos com grupos religiosos que se opõem aos avanços dos direitos sexuais e reprodutivos. Nesse sentido, o artigo de Richard Miskolci e Maximiliano Campana (2017) descreve como a chegada de algumas mulheres de esquerda à presidência foi acompanhada com certos acordos, sobretudo em contexto de forças opositoras diante do que se chamou “ideologia de gênero”. Para esses autores, o maior temor dos empreendedores morais27 em relação à chegada de uma mulher na presidência da República é a possibilidade das mudanças nas relações de poder que envolvem homens/mulheres ou heterossexuais/homossexuais.

Sobre a chegada de Michelle Bachelet como a primeira mulher presidenta do Chile, segundo Miskolci e Campana (2017), a literatura não apresenta fortes reações ou temor de que ela apoiaria reformas legais ou implantaria políticas que viessem ameaçar as concepções hegemônicas envolvendo os direitos sexuais reprodutivos, até porque, em 2006, quando ela assumiu o poder, ainda não havia se espalhado o pânico moral da “ideologia de gênero”. A reação maior foi durante o seu governo, quando ela anunciou a distribuição gratuita da pílula de contracepção de emergência na rede pública de saúde para qualquer mulher com mais de 14 anos, o que causou rechaço da oposição e da Igreja Católica, interpretado como um ataque à família tradicional.

No segundo governo de Bachelet, o avanço em relação aos direitos sexuais e reprodutivos foi a aprovação da descriminalização do aborto em três casos: estupro, inviabilidade do feto e perigo de vida da mãe, em 2017. Essa conquista envolveu disputas políticas no congresso com parlamentares conservadores. Já a Igreja Católica, que é o principal ator religioso no Chile, não teve forte protagonismo, pois havia perdido o seu poder de infuência moral diante dos escândalos de pedoflia, que envolveu um número significativo de padres.28

No Brasil, na probabilidade da vitória de Dilma nas eleições de 2010, as forças opositoras e conservadoras colocaram no centro do debate questões referentes aos direitos sexuais e reprodutivos. Diante dessas disputas, no segundo turno eleitoral, Dilma Rousseff se aproximou das forças políticas católicas e neopentecostais, comprometendo-se em não modificar “a legislação sobre o aborto ou concernente ao matrimônio homossexual, ao combate da homofobia.” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 741). Justamente na eleição de 2010, houve uma ampliação considerável da bancada neopentecostal no Congresso Nacional, que se constituiu uma força opositora em relação aos direitos sexuais e reprodutivos e das pautas da população LGBT. Esse cenário repercutiu fortemente para que certas demandas dos movimentos feministas não avançassem na agenda política, mesmo tendo uma presidenta mulher afinada com essas pautas e uma ministra feminista à frente da SPM.

Isso evidencia que no cenário da política em que operam disputas e jogo de forças para a manutenção do poder certas pautas feministas acabam perdendo força, mesmo que se tenha uma presidenta comprometida com os movimentos sociais e feministas.

A relação das presidentas com o feminismo

A afinidade com as lutas feministas, mesmo que não seja um critério definidor, é um elemento importante quando está em questão a promoção de políticas para a igualdade e equidade de gênero, que objetivam mudanças culturais. Assim, nesse ponto destacamos, a partir do olhar das entrevistadas, aspectos acerca da relação das presidentas com o feminismo. Conforme os relatos obtidos, embora Bachelet e Dilma nunca tenham se assumido publicamente como feministas, elas estavam comprometidas com as pautas dos movimentos feministas.

Laura Albornoz, ex-ministra do primeiro governo de Bachelet, relata que a presidenta afirmava que o feminismo lhe fazia bem, mas pública e estrategicamente nunca se assumiu feminista29. Para a entrevistada, Bachelet, ao assumir agendas de gênero nos dois governos e o trabalho em prol da equidade de gênero, focado à mudança cultural, mostra, concretamente, que assumiu a causa feminista. Não se autodenominou feminista, mas estando no governo, atuou simbolicamente como feminista porque buscou contribuir para implementar pautas do feminismo. Laura Albornoz, por fim, argumenta que se assumir feminista ou não é uma questão relativa, já que o mais importante é contribuir com a agenda feminista.

Para Teresa Valdés, o discurso de Bachelet, realizado em Quito em 6 de agosto de 2007, durante a X Conferência Regional da Mulher da América Latina e Caribe, apresenta um olhar feminista sobre os fatos, sobre o seu papel como presidenta mulher, que tem a responsabilidade de promover a equidade de gênero em todas as dimensões da sociedade. Na visão dessa interlocutora, Bachelet não tinha uma formação feminista, mas foi se construindo feminista na sua própria experiência de vida.

Ela não vinha da luta feminista, mas do partido socialista e seu pai foi vítima da Ditadura. Ela vem do feminismo que surge de sua própria experiência de vida, de discriminação, mesmo sem ter uma formação feminista. Sua experiência no primeiro governo teve situação de preconceito por parte dos homens e também neste segundo governo. (Teresa Valdés, Observatorio de Género y Equidad, Chile)

A experiência que Bachelet como primeira Subsecretária Geral e Diretora Executiva da ONU Mulheres, quando liderou, apoiou e coordenou o setor de trabalho para a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres em âmbito global, regional e nacional, acabou fortalecendo o seu compromisso com as demandas feministas. Teresa Valdés assim relata: “A passagem de Bachelet na ONU Mulher significou o fortalecimento de sua visão sobre o lugar das mulheres e a importância de sua participação estratégica na política”.

Essa mesma visão é reafirmada no relato da ex-ministra e socióloga Carmem Andrade:

Ela não era, no sentido estrito, uma feminista. Era antes uma socialista que incorporava os temas de igualdade de gênero, como algo que somava, mas que não era o centro de sua agenda, inicialmente. Contudo, eu acredito que ela foi se tornando feminista na sua experiência no governo. (Carmen Andrade, ex-ministra do Sernam, Chile)

Isso nos faz afirmar que as múltiplas experiências vivenciadas por Bachelet, ao ter de lidar com questões desde um lugar de poder historicamente masculino e de seu trabalho em prol da equidade de gênero, foram elementos que, indubitavelmente, transformaram-na subjetivamente.

Dilma também não se assumiu feminista durante seu governo, mas, segundo Eleonora Menicucci, a presidenta teve uma trajetória comprometida com as mulheres, pois já havia participado do movimento feminino pela anistia e esteve sempre envolvida com as causas das mulheres, revelando-se afinada com as pautas do feminismo. Já segundo Sonia Coelho, da ONG Sempreviva Organização Feminista (SOF), Dilma talvez tenha percebido a importância do feminismo e se sensibilizou mais com esses movimentos no processo do impeachment, porque foram justamente as mulheres e os movimentos organizados que deram mais suporte para ela. Os movimentos foram em peso para as ruas, fzeram discussão e apoiaram Dilma pessoalmente. Embora outros movimentos mistos e sindicais tenham se manifestado publicamente nas ruas contra o golpe, a força e a resistência das mulheres, nesse momento do golpe, foram muito mais visíveis. Sonia Coelho acredita que o fato de no período do impeachment haver reuniões de mulheres com Dilma e outros encontros massivos depois do golpe, pode ter sensibilizado ainda mais Dilma sobre a importância do feminismo nos processos de resistência cultural.

No conteúdo dos relatos das interlocutoras é possível evidenciar que tanto Dilma quanto Bachelet se aproximam do feminismo em circunstâncias distintas, contudo, essa aproximação foi significativa para as políticas públicas com perspectiva de gênero, promovidas em seus governos. Indubitavelmente, essas políticas foram fortalecidas pela ação das ministras que assumiram o Sernam e a SPM, em geral, comprometidas com as pautas feministas. Todavia, é importante ressaltar que, independentemente dessas questões, a chegada de uma mulher na presidência da República, no nível mais alto de poder, um lugar por muito tempo considerado não inteligível para as mulheres, constitui-se um fator simbólico positivo nos processos de mudança cultural, como também se lê no discurso de Bachelet durante a X Conferência Regional da Mulher da América Latina e Caribe, realizada na cidade de Quito, Equador, nos dias 5 a 9 de agosto de 2007:

Essa grande mudança social que está sendo experimentada em alguns países, mais rápido que em outros, sem dúvida, se acelera quando uma mulher ocupa posições de autoridade, rompendo com todo um simbolismo tradicionalmente masculino. E eu noto isso todos os dias no Chile, quando eu visito escolas e as meninas naturalmente me dizem que querem ser o mesmo que eu quando crescerem. Antes, elas me diziam que queriam ser médicas como eu; agora elas me dizem que querem se Presidenta, é claro.30

Indubitavelmente, o discurso de Bachelet é uma representação do que significou a presença das mulheres no nível mais alto do poder político, mesmo com limites e desafios. Não somente as políticas para a equidade de gênero ganharam mais espaço, como também produziram um efeito simbólico positivo para as subjetividades femininas, apontando novas possibilidade às mulheres, para além dos limites estabelecidos pela lógica de gênero do patriarcado, ao longo da história.

Os aspectos gerais que evidenciamos acerca da trajetória das primeiras mulheres presidentas da República do Chile e do Brasil, sobre os desafios de ser mulher neste lugar de poder e a relação de Bachelet e de Dilma com o feminismo, são dados significativos, pois apontam o grau de engajamento dessas mulheres com a democracia de gênero, que postula a igualdade de direitos e de acesso aos bens materiais e simbólicos de uma dada sociedade. Como bem pontua Heinrich Böll (2007), a concretização da democracia requer que se renovem as estruturas sociais que reproduzem as injustiças e os modelos estereotipados entre os sexos. Mesmo que não se tenha, ainda, conquistado a democracia de gênero ou a justiça social de gênero, as políticas com perspectiva de gênero, promovidas por Dilma e Bachelet, geraram impacto positivo na vida das mulheres e nos processos culturais, mas também foram alvos de tensões e resistências dos setores políticos conservadores, como vem se evidenciando no contexto atual.

Vale ressaltar que as políticas com perspectiva de gênero são parte dos compromissos dos países signatários de convenções e tratados internacionais da ONU: plataforma de ação, da IV Conferência Mundial da Mulher de Beijing, da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (CEDAW) de 1979 e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de Belém do Pará, de 1994. Contudo, o que se desvela é que quando os atores políticos são mulheres ou homens de partidos de centro-esquerda, a promoção de políticas para a igualdade de gênero tende a ganhar maior ou menor destaque. E, nesse sentido, podemos dizer que Bachelet e Dilma fzeram a diferença no governo, pois reforçaram os mecanismos estatais para avançar nas políticas de equidade de gênero. Enquanto Dilma reestruturou a Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2012, em vista de fortalecer as políticas para a igualdade de gênero, Bachelet não apenas assumiu agendas de gênero, como parte do programa de governo, comprometendo todos os ministérios para a implementação dessas políticas, como transformou o Sernam em Ministério da Mulher e Equidade de Gênero (MMyEG), em 2015. Tais iniciativas corroboram as concepções de Nancy Fraser (2005), de que para fazer justiça social não é suficiente a dimensão econômica (políticas de redistribuição) e cultural (políticas de reconhecimento), mas é preciso incluir a dimensão política, que trata da importância de os sujeitos que, historicamente, estiveram às margens da sociedade, estarem representados na política. Isso porque é justamente na dimensão política que se tomam as decisões sobre os destinatários das políticas de reconhecimento e de distribuição, que é fundamental para a justiça social.

À guisa de conclusão

Este trabalho buscou evidenciar aspectos da trajetória de Dilma e de Bachelet até a conquista do poder, os significados e os desafios de ser mulher em um lugar de poder político, majoritariamente masculino. Também apresentamos, a partir do olhar das entrevistadas, a relação de Dilma e Bachelet com o feminismo e a importância disso para as políticas com perspectiva de gênero.

Constatamos que Dilma e Bachelet possuem uma trajetória com pontos em comum, apesar de terem vivido em cenários sociais, políticos e culturais distintos. Elas fazem parte de uma mesma geração, não somente por sofrerem os impactos de ditaduras na América Latina, mas por viverem experiências parecidas, processadas em um contexto de autoritarismo militar, produzindo uma mesma unidade de sentido, que foi a luta incansável pela democracia.

Essas mulheres, mesmo sem ocuparem cargos políticos por eleição, antes de chegaram à presidência já haviam acumulado capital político e simbólico por meio da luta em prol da democracia, em contexto de ditadura e pela experiência na atuação em cargos técnicos, sobretudo dentro dos ministérios, de modo que foram tendo contato com a estrutura do Estado e com as dinâmicas do poder. Enquanto Dilma se destacou na articulação de importantes programas de governo, estando no Ministério da Casa Civil, Bachelet se popularizou por suas ações no Ministério da Defesa, como a primeira mulher dos países ibero-americanos a ocupar esse Ministério, produzindo um efeito simbólico positivo para as mulheres,

Ambas foram a primeira mulher a chegar na presidência da República no Chile e no Brasil, cuja conquista resultou do intercruzamento de fatores sociais, políticos, simbólicos/culturais, específicos em cada contexto. Não foram herdeiras de capital político (pai, marido), no sentido bourdieusiano, mas construíram as suas possibilidades que as tornaram percebidas em cenários pontuais de crise política, quando estava em jogo a permanência de determinadas forças políticas no poder. É nesse jogo, perpassado por princípios hierárquicos da cultura patriarcal, que elas fazem, de uma brecha que se abre, a oportunidade de mostrar que as mulheres são capazes de exercer o poder como presidentas da República, em um lugar historicamente reservado aos sujeitos masculinos, gerando ruídos na estrutura das relações de gênero da tradição conservadora.

Trata-se de um acontecimento que, além de romper as fronteiras de gênero do patriarcado, produziu efeitos simbólicos sobre as subjetividades femininas, apontando outras possibilidades para a vida das mulheres. Considerando que a presença de Dilma e Bachelet na presidência desestabilizou estruturas de poder, as forças políticas opositoras e conservadoras usaram de estratégicas sexistas e misóginas para desqualificar o governo das mulheres.

Dilma e Bachelet publicamente se mantiveram afinadas com as pautas feministas que demandavam políticas para a igualdade de gênero. A experiência de Bachelet na ONU Mulheres a fortaleceu no compromisso de promover políticas para instaurar uma democracia de gênero. Já Dilma, apesar de sempre ter se mostrado próxima aos movimentos feministas, talvez tenha percebido, com maior evidência, a importância do feminismo quando sofreu o golpe parlamentar, ao contar com o apoio massivo das mulheres de organizações e movimentos feministas.

Estando na presidência da República, Dilma e Bachelet fortaleceram as políticas com perspectiva de gênero, já assumidas pelos governos de centro-esquerda. Apesar dos poucos avanços obtidos, a democracia de gênero, no sentido proposto por Heinrich Böll Stiftung (2007), permanece sendo um desafo.

A implementação das políticas de gênero, pautadas no princípio da equidade, foi uma bandeira nos governos de Dilma e Bachelet, mas também se tornou alvo de disputas políticas e de distorção de sentidos, sobretudo no Brasil, a partir de 2010, quando começou a se ampliar as forças políticas conservadoras no congresso, em grande parte, oriundas de setores conservadores de igrejas evangélicas pentecostais.

Atualmente, com a eleição de governos ultraliberais da direita conservadora, reforçaram-se as inclinações patriarcais e as políticas de gênero perderam espaço. Instaurou-se um contexto de retrocessos aos direitos conquistados durante os governos progressistas, como é bem evidente no cenário político atual do Chile e sobretudo do Brasil. Diante de tal realidade, perguntamos: até que ponto a entrada de mulheres feministas nas estruturas do Estado se constituiu uma força política estratégica para descolonizar/despatriarcalizar o Estado? Para a ex-ministra e socióloga Eleonora Meniccuci, a presença e a ação de mulheres feministas no Estado têm sido importantes para romper barreiras do patriarcado, mas não foi o suficiente para despatriarcalizar um Estado colonial, escravista e patrimonialista.

No Chile, embora o MMyEG continue existindo formalmente como uma estrutura forte, não existe uma agenda transformadora para as relações de gênero, como foi a do governo de Bachelet. Os conteúdos das políticas foram modificados; retirou-se a perspectiva de gênero que visa interferir na mudança cultural e se acentuam as políticas para mulheres, em geral, como o foco na família. Se no Chile, de um lado, evidencia-se a emergência do movimento feminista estudantil31, de outro, existe um processo de involução nas políticas públicas com perspectiva de gênero, como tem afirmado as interlocutoras da pesquisa.

No Brasil se presencia um contexto de enfraquecimento da institucionalidade e de retrocesso nas políticas que garantem os direitos das mulheres. Simone de Beauvoir (1949) já nos alertava de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados, porque eles não são permanentes, de modo que é necessário se manter vigilantes durante toda a vida. O pensamento da flósofa existencialista e feminista traduz o momento do governo de Jair Bolsonaro, em que não somente os direitos das mulheres estão ameaçados, mas de todas as minorias sociais. Vemos se intercruzar no tecido social várias crises ao mesmo tempo, econômica, ética, política, que requer estar vigilante, como assinala Simone Beauvoir. Isso significa que se precisa continuar falando desses temas, pesquisando, fazendo debates e, sobretudo, fortalecer os movimentos sociais.

É importante sinalizar que, em um contexto de política neo-liberal combinada com o neoconservadorismo, manter viva a reflexão sobre os avanços e os desafios em relação às políticas com perspectiva de gênero é uma estratégia política de fazer resistência diante do embate travado pelo que se chamou “ideologia de gênero”, cuja ação discursiva tem interesses políticos de enfraquecer um projeto de sociedade pautada na igualdade de gênero e em valores democráticos.

Parece que a luta atual não é mais para avançar nas políticas de gênero, mas para garantir as conquistas realizadas e, sobretudo, lutar pela democracia, que está ameaçada, e contra o patriarcado, que ganha força nesse governo. Nesse sentido, Matos e Paradis (2014) argumentam que o patriarcado, assim como o capitalismo, continua se transformando e moldando as instituições estatais, visando garantir e sustentar que as mulheres tenham uma inserção subordinada nas diferentes dimensões da esfera pública e, com isso, retardar as demandas por equidade e igualdade protagonizadas pela luta dos movimentos de mulheres.

Em um contexto que sinaliza retrocessos nas políticas de equidade de gênero, faz-se necessário a vigilância ativa das atrizes dos movimentos sociais, sindicatos, ONGs, partidos políticos, fazendo pressão e resistência, como afirmou Simone Beauvoir (1949). Contudo, no Chile, no início do ano de 2022, a eleição do ex-líder estudantil de esquerda Gabriel Borić Font à presidência da República, que iniciou o governo montando sua equipe ministerial de maioria feminina, ou seja, 14 mulheres e 10 homens, sinalizou uma esperança para a retomada das políticas de igualdade e equidade de gênero.

Oxalá que o Brasil siga esse mesmo caminho, em vista da democratização de gênero no poder político, já que a literatura feminista brasileira aponta que, no campo do poder e de tomada de decisão, a igualdade de gênero na representação e participação política continua sendo um desafo a ser superado.

Material suplementar
Referências
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VALDÉS, Teresa Echenique. El Chile de Michelle Bachelet ¿Género en el poder? Santiago, Chile: CEDEM, 2010.
Notas
Notas
1 A pesquisa foi realizada com fomento do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2 Falar em “Estado-nação” implica, para parte da crítica feminista, falar em “Estado patriarcal”.
3 Embora “patriarcado” seja um conceito tensionado por algumas correntes do pensamento feminista, ele possibilita pensar as estruturas de poder que se inscreveram no campo político.
4 A Argentina teve duas mulheres presidentas: Cristina Kirchner (eleita em 2007 e reeleita em 2011) e María Estela Martínez de Perón, que era vice-presidenta e, com a morte do presidente Juan Domingo Perón, que era também seu marido, assumiu o cargo em 1974.
5 Com o termo “convenções sociais” estamos nos referindo ao conjunto de normas e costumes da cultura patriarcal.
6 Segundo o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, Dilma foi a 11ª mulher a assumir a presidência em países da América Latina. Antes de Dilma, das dez mulheres que assumiram este cargo sete haviam sido eleitas e três ocuparam a presidência interinamente.
7 Termo usado para indicar a inexistência de provas jurídicas de que Dilma tenha cometido qualquer tipo de crime que justifique o seu impeachment.
8 Voltaremos a falar sobre isso no corpo do artigo.
9 Neste artigo, usaremos o nome “Dilma” para nos referir ao seu governo porque, diferente de outros presidentes, que são reconhecidos pelo sobrenome, no caso dela é mais comum encontrarmos em notícias, e até mesmo na literatura, a expressão “Governo Dilma”, enquanto que no Chile, a expressão mais recorrente é “Governo de Bachelet”.
10 As entrevistadas consentiram em revelar os seus nomes por meio de documento assinado. Vale ressaltar que todas as entrevistas chilenas foram realizadas em setembro de 2018 e todas as entrevistas brasileiras foram em novembro de 2018.
11 Na viagem in loco, em setembro de 2018, a intenção era entrevistar apenas a última ex-ministra de Bachelet, Claudia Pascual Grau, e a pesquisadora do Centro de Estudios de la Mujer, Virginia Gusmán, com as quais havia estabelecido contato. Contudo, estando no Chile, essas interlocutoras indicaram outras mulheres cujas entrevistas acabaram sendo importantes para conhecer o contexto político estrutural do país.
12 Não é interesse aprofundar aqui as diferenças da ditadura ocorrida no Brasil (1964-1985) e no Chile (1973-1990), uma vez que existe uma vasta literatura sobre esses fatos históricos. Destacamos apenas que foi no cenário da ditadura militar que o Chile, diferentemente do Brasil, implantou com radicalismo o projeto neoliberal.
13 Comando de Libertação Nacional.
14 A Vanguarda Armada Revolucionária Palmares resultou da junção entre o Colina e a Vanguarda Popular Revolucionária.
15 Foi o período mais duro do regime militar, que concedeu poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente quem era considerado inimigo do regime.
16 Em português, Coalizão de Partidos pela Democracia. Nela integravam partidos de esquerda, centro-esquerda e centro, que governaram o Chile desde 11 de março de 1990 até 11 de março de 2010.
17 Termo popularizado para se referir ao “pretenso esquema de propinas pagas regularmente a parlamentares federais, com dinheiro público desviado, para que votassem a favor dos projetos políticos do governo” (MIGUEL; COUTINHO, 2007, p. 98).
18 Informação obtida em entrevista fornecida pela ex-ministra da SPM, Eleonora Menicucci, no mês de novembro de 2018.
19 Teria a possibilidade de segundo mandato consecutivo, mas a Constituição chilena não permite a reeleição consecutiva.
20 Vale enfatizar que os discursos linguísticos expressam construções ideológicas, as quais são diretamente determinadas pelo contexto cultural, político e social em que vive seus autores.
21 Para Nilma Gomes (2018), o impeachment foi um golpe parlamentar, midiático, jurídico, fundamentalista, de classe, raça, gênero e com orientação heteronormativa.
22 Isso porque dois anos antes, a partir de 2014, os grupos conservadores mobilizavam o discurso da “ideologia de gênero”, provocando pânico moral na população e uma campanha de desqualificação das ações políticas de Dilma Rousseff.
23 Segundo Melo (2015, p. 52), “em 121 anos de República, os 31 presidentes anteriores haviam colocado somente dezoito mulheres em pastas ministeriais como efetivas e interinas no Executivo brasileiro. Deve-se destacar mais da metade dessas mulheres foram nomeadas nos dois governos do presidente Lula, nos anos de 2003 a 2010.”
24 Apenas situamos esse evento político uma vez que estamos falando das ações do Governo Dilma em prol das mulheres. Não é nosso interesse aprofundar essa questão, pois já se encontram literaturas que aprofundam e fundamentam este acontecimento histórico.
25 Na entrevista, a ex-ministra Eleonora Menicucci afirmou que Dilma, nos dois governos, nomeou 13 ministras, consideradas as trocas que houve. Embora tenha sido o maior número em todos os governos, nunca se chegou a 40% dos ministérios. Lula, em seus dois governos, nomeou 9 ministras, até então era o maior número em relação aos seus antecessores.
26 Dados levantados nas entrevistas.
27 Termo usado por Miskolci e Campana (2017) para caracterizar os grupos que combatem o que denominam “ideologia de gênero”. De acordo com esses autores, isso evita caracterizar esses grupos como uma espécie de movimento social, que seriam supostamente alocados na sociedade civil. Aqui não está em questão quem são esses grupos, mas a análise de como eles se associam e se articulam, partindo do que Sonia E. Alvarez (2014) denomina de campos discursivos de ação, “nos quais preocupações político-culturais são compartilhadas mesmo que os atores nesses campos tenham diagnósticos divergentes” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 730).
28 Informação dada por Claudia Pascual Grau, Ministra da Mulher e Igualdade de Gênero do governo Bachelet, em entrevista realizada em setembro de 2018.
29 Para Laura Albornoz, no contexto do primeiro governo de Bachelet, uma pessoa pública se assumir feminista não soava bem em razão da existência de conotações pejorativas sobre o feminismo. Já atualmente, sobretudo depois do maio chileno feminista de 2018, as jovens começam a se assumir feministas desde cedo.
30 Discurso impresso de Michelle Bachelet cedido à pesquisadora por Laura Albornoz, ex-ministra do primeiro governo de Bachelet. A presente tradução é de nossa autoria.
31 No primeiro ano do segundo mandato de Sebastián Piñera, em 2018, mulheres estudantes paralisaram diversas faculdades e universidades para exigir uma educação não sexista e o fim do assédio e do abuso sexual dentro das universidades. Tal movimento envolvendo jovens estudantes se tornou conhecido como “Maio Feminista” no Chile.
Quadro 1
Aspectos das trajetórias de Dilma Rousseff e Michelle Bachelet

Quadro 1 cont


Fonte: Elaborado pela autora a partir de pesquisa bibliográfica (2018).
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