Artigo
Reprodução social como trabalho e condição de existência: entrevista com Silvia Federici
Social Reproduction as work and condition of existence: interview with Silvia Federici
Reproducción Social como trabajo y condición de existencia: entrevista con Silvia Federici
A entrevista que vocês, leitoras e leitores de Sociedade e Cultura, lerão a seguir apresenta as ideias e reflexões de um dos nomes mais reconhecidos da teoria social crítica e da teoria feminista contemporânea. Silvia Federici, filósofa, feminista, nascida na Itália e residente nos EUA desde os anos 1970, escreveu muitos livros influentes que têm sido, aos poucos, traduzidos e publicados no Brasil, em geral em trabalho colaborativo por coletivos como o Sycorax1.
Silvia Federici foi a convidada que proferiu a conferência de encerramento do VI Simpósio Internacional da Faculdade de Ciências Sociais da UFG intitulado “A qualquer descuido da vida, a morte é certa...”,2 realizado entre os dias 10 e 12 de agosto de 2022. Sua participação está entre os momentos mais estimulantes do evento, tendo aberto espaço para um rico debate.3 A ideia de realizar a entrevista veio de Luiz Mello, atual diretor da Faculdade de Ciências Sociais, como uma forma de expandir o alcance desta fala tão necessária para as ciências sociais em seus diálogos transdisciplinares e, sobretudo, em interlocução com os movimentos sociais progressistas. Mariana se encarregou do convite, que Silvia prontamente aceitou, para nossa alegria. Eliane se juntou ao time e eis, aqui, o produto desta conversa intergeracional, internacional e recortada pelas experiências de três mulheres feministas, professoras, profundamente motivadas pelas inovações que os movimentos de mulheres em diferentes partes do mundo trazem aos feminismos globais. A entrevista foi realizada remotamente numa manhã de agosto, a partir de nossas casas – Silvia em Nova Iorque, Eliane em Goiânia e Mariana em Brasília – e permeada por interrupções domésticas típicas de quem trabalha e cuida.
Embora Silvia Federici dispense introdução, nosso papel aqui é de fazê-la e decidimos começar com breves histórias de como cada uma de nós se encontrou, muito tempo antes da realização desta entrevista, com essa filósofa e ativista que a todas inspira.
Ainda na década de 2010, Mariana era estudante de doutorado em Nova Iorque quando um grupo de amigas iranianas a convidaram para assistir a uma conferência que Silvia Federici faria em apoio às mobilizações políticas contra as sanções dos Estados Unidos ao Irã. Mariana já conhecia os livros e as teorizações da autora e obviamente não perderia a oportunidade de vê-la. Pensou, contudo, que se tratava de um evento enorme, em um auditório com muitas cadeiras, uma vez que a convidada era, para ela, uma verdadeira celebridade. E qual não foi sua surpresa quando chegou ao local do evento! Era uma sala pequena, com poucas cadeiras e muitas almofadas coloridas no chão, e claro, muita, muita gente, muito mais do que o local podia comportar. Silvia Federici chegou e imediatamente começou a conversar com as pessoas até o momento que a convidaram a falar. Falou e escutou com atenção e interesse cada uma das perguntas e comentários, e ao fim, ainda ficou por ali por mais um tempo, compartilhando uma comida. Mariana a olhava com muita admiração, agora não mais por ser a celebridade que havia escrito os livros com os quais tanto aprendia, mas porque tinha ali o exemplo de pensadora feminista orgânica que um dia aspirava ser: generosa, acolhedora e comprometida com as lutas sociais, praticante de seus princípios políticos na vida cotidiana, que leva a sério a ideia de que o conhecimento é um bem comum, de todas e todos, e deve servir à transformação social.
Eliane encontrou Silvia Federici na obra Calibã e a Bruxa antes da tradução ao português, por indicação de seu amigo Danilo de Assis Clímaco, antropólogo, pesquisador feminista decolonial atualmente residindo e trabalhando na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, no Peru. Em 2016, em sua disciplina de Teoria Social Feminista ministrada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás, a obra foi lida e discutida com paixão. A partir de então, outras obras da autora foram incluídas nas disciplinas da graduação e da pós-graduação causando sempre um grande impacto. Tendo sido muito influenciada pelos feminismos dos anos 19704, Eliane encontrou em Silvia Federici a radicalidade e o rigor teórico que tanto aprecia. E a entrevista lhe revelou a mulher viva, inteligente, possuidora de aguçada memória e bem-humorada, que são algumas das características marcantes de Federici no contato pessoal, além, é claro, de sua extrema generosidade.
Silvia Federici nasceu em Parma, na Itália, em 1942, e nos anos 1960, foi viver nos Estados Unidos, onde mais tarde fundou com Mariarosa Dalla Costa e Selma James o International Feminist Collective (Coletivo Feminista Internacional), responsável pela campanha global Wages For Housework que reivindicava salário para o trabalho doméstico realizado por mulheres sem qualquer retribuição ou reconhecimento como uma demanda da economia feminista. Desde então, é uma figura central no desenvolvimento do conceito de reprodução social como uma chave para compreender as relações de classe, de exploração e de dominação no capitalismo. Nos anos 1980, viveu na Nigeria, onde foi professora da Universidade de Port Harcourt e trabalhou com a organização feminista Women in Nigeria (Mulheres na Nigeria). Ambas as trajetórias convergem em duas de suas obras mais conhecidas: Calibã e a Bruxa: Mulheres, corpo e acumulação originária, e O ponto zero da revolução: Trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas.
Nos anos 1990, Silvia Federici foi ativa no movimento antiglobalização e denunciou as consequências fatais dos programas de ajuste fiscal do Fundo Monetário Internacional na África e na América Latina. Também participou do movimento contra a pena de morte nos Estados Unidos. De 1987 a 2005, foi professora de estudos internacionais, estudos das mulheres e filosofia na Universidade de Hofstra, nos Estados Unidos, onde hoje é professora emérita.
Ao longo de todas essas décadas, escreveu, e muito, sobre filosofia e teoria feminista, sobre a luta anticapitalista, e mais recentemente, por uma reconstrução feminista do comum. De um modo potente e singular, Silvia Federici analisa as relações de trabalho assalariado e reprodutivo a partir da crítica de que os corpos das mulheres são a última fronteira do capitalismo. No Brasil, hoje temos traduzidos e publicados Calibã e a Bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017), O Ponto Zero da Revolução: Trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas (2019), Mulheres e Caça às Bruxas (2019), O patriarcado do salário: Notas sobre Marx, Gênero e Feminismo (2020) e Reencantando o Mundo (2021).
Além da crítica penetrante, a autora também nos ensina a esperançar, para utilizar o verbo de Paulo Freire (1992). E esperançar desde um novo feminismo, como Silvia Federici o define, “dissidente, alternativo, popular, como o que existe na América Latina”, que se une a outros movimentos sociais como o antirracista, o campesino, o indígena e o anticapitalista, pois todas essas lutas convergem no “lugar da transformação real da sociedade” (DIP, 2021).
Mariana Prandini Assis: Muito obrigada por aceitar o nosso pedido para conversar conosco nesta manhã, Silvia! Foi uma honra e uma alegria ter você em nosso Simpósio na sexta-feira passada, e estamos muito contentes em poder continuar o diálogo com você hoje. É muita generosidade sua, sobretudo por ainda estarmos em um contexto de pandemia, de distanciamento social e carência de encontros.
Eliane Gonçalves: Sim, estamos muito contentes em te receber novamente! Antes de mais nada, eu pensei nesta entrevista como um momento intergeracional, porque somamos três gerações distintas dos feminismos se considerarmos o período dos anos 1970 aos dias atuais. Isto é muito interessante. Meu contato com sua obra se deu em 2016 com Calibã e a Bruxa e desde então, tenho adotado seus livros em minhas aulas. Acabei de ler Reencantando o Mundo, recém-publicado aqui no Brasil e comecei a ler Beyond the Periphery of the Skin (Além da Periferia da Pele) que ainda está sem tradução. Então eu estou muito feliz de estar aqui com você. Muito obrigada!
Silvia Federici: Esses momentos virtuais de diálogo foram, durante o período mais grave da pandemia, e continuam sendo, momentos de alento e esperança. Vivemos numa época em que muitas pessoas não têm esperança...
MPA: Para começarmos a conversa, gostaríamos de ouvir de você sobre sua trajetória intelectual e pessoal. Você tem uma formação em filosofia e seu trabalho se destaca como um tipo de teoria social informada tanto pelos movimentos sociais e suas lutas e demandas, quanto pelos problemas sociais reais que afetam as pessoas, particularmente as mulheres. Você poderia nos falar um pouco mais sobre sua formação acadêmica, tanto na Itália como nos EUA? E como você desenvolve esta abordagem, que não é a dominante no mundo acadêmico em geral, mas especialmente na filosofia e na teoria social, que geralmente são muito distanciadas das lutas reais concretas?
SF: A história é um pouco mais complicada do que isso porque, por muitas razões existenciais das quais não falarei, eu me inscrevi primeiro em um programa de línguas e literatura. E me formei na Itália, na Universidade de Bolonha, em línguas e literaturas modernas e fiz minha tese de doutorado sobre a literatura americana baseada na obra de Melville.5 Daí, compreendi que com o diploma que obtive, eu só poderia lecionar. E eu não queria fazer isso. Fui por algum tempo professora substituta, o suficiente para me fazer querer mudar de carreira. E assim me inscrevi na filosofia. Pensei que, se eu tivesse que ensinar, queria que fosse em um nível diferente.
E foi isto que eu fiz. Mas eu também mantive uma certa relação com a literatura, pois sempre me interessei por arte, literatura e não vejo, na verdade, uma grande diferença entre o trabalho que tenho feito e meu interesse pela filosofia. Porque eu sempre tentei, por um lado, construir uma crítica da filosofia tradicional que é totalmente masculina. E, por outro lado, eu fazia parte de uma geração de mulheres que estavam tentando realmente produzir um pensamento feminista, ou seja, desenvolver uma crítica feminista e criar uma filosofia feminista, diferente daquela da academia. Por exemplo, há muitos trabalhos desenvolvidos sobre a questão do conhecimento e a categorização e divisão entre o intelectual e o emocional, etc, e um ponto de vista feminista sempre procura ver a complexidade, a riqueza e a indivisibilidade da experiência humana, onde a estética, o emocional e o intelectual não estão separados. Em qualquer momento da nossa vida, quando caminhamos num parque, quando conversamos, todos esses elementos estão presentes. Mesmo no trabalho doméstico eles estão presentes, o trabalho que as mulheres fazem para estetizar, embelezar a casa, embelezar uma toalha de mesa, uma janela com plantas, com flores, etc. Então, durante toda minha vida, busquei ver o meu trabalho, como uma estudante de filosofia, em um continuum, por mais que eu tenha sido crítica da filosofia dominante e da teoria política evolucionária tradicional.
Assim, minha formação filosófica me direciona de muitas maneiras, me encaminha a buscar sempre uma síntese mais ampla em vez de me concentrar em aspectos específicos. E eu fiquei muito perturbada com as novas tendências que chegaram nos anos 1980, com a perspectiva pós-moderna sobre particularidades, porque eu sempre busquei esquemas mais amplos, colocando tudo, mesmo o micro, em um contexto mais amplo. Acredito que esse sempre foi um elemento do meu trabalho intelectual e político.
MPA: Vamos mudar um pouco o foco e olhar agora para a reprodução social, que é uma das principais categorias que você mobiliza para fazer não apenas uma crítica à teoria marxista dominante, mas também uma poderosa crítica ao capitalismo como um sistema de acumulação que impede pessoas, comunidades e natureza de viverem com dignidade e prosperarem. Você poderia nos explicar o que é a reprodução social e por que é um conceito tão central para uma política da emancipação?
SF: Primeiro, falarei sobre a questão da reprodução e da reprodução social tal como figurou no movimento feminista dos anos 1970. Pois foi realmente o movimento feminista, em polêmicas muito justificadas com o pensamento marxista e socialista tradicional, que enfatizou a necessidade de iniciar nossa análise do capitalismo e nossa luta contra o capitalismo, com a questão da reprodução.
E foi assim, em primeiro lugar, por causa das experiências das mulheres. A questão da reprodução surgiu da tentativa de entender por que éramos discriminadas, por que éramos consideradas seres humanos inferiores aos homens. E estava muito claro que nossa vida na sociedade burguesa, ainda nos anos 70 e historicamente, era bastante diferente da dos homens, pois éramos excluídas de todos os tipos de atividades, incluindo áreas de trabalho explorado, como a produção de commodities para o mercado. E então, olhando para nossa experiência, que era a experiência de mulheres de quem se esperava que dedicassem a maior parte de sua vida à reprodução de suas famílias, à procriação, à educação dos filhos, ao trabalho doméstico, percebemos que este trabalho, no capitalismo, não era considerado trabalho, mas sim uma atividade natural ou um serviço pessoal prestado aos homens. Começamos a analisar essa questão e chegamos à conclusão de que essa retórica funcionou, pois o trabalho reprodutivo sempre foi definido como não trabalho, algo natural como os animais fazem. Essa constatação foi extremamente importante porque percebemos que este trabalho reproduz não apenas nossa vida e a vida de nossa família e comunidades, mas reproduz para o capitalismo todos os dias uma massiva força de trabalho. As mulheres têm sido as produtoras. Então, na verdade, aplicamos a noção marxista de produção, a ideia de que, no processo de produção, o capitalismo nos explora e acumula riqueza. Mas vimos que isso se dava de uma forma muito diferente: enquanto a classe trabalhadora masculina historicamente adentrou no capitalismo como produtora de commodities para o mercado, nós fomos confinadas ao trabalho de reprodução da mão de obra. É isso o que chamamos de reprodução ou reprodução social.
Reprodução social enfatiza que isso não é um trabalho individual ou pessoal, mas tem um caráter muito social, social porque milhões de mulheres estão fazendo, e social porque tem uma finalidade que afeta a sociedade como um todo, já que o objetivo não é a reprodução de famílias individuais, mas de todo um sistema de trabalho.
E assim, aos poucos, fomos virando o jogo da tradicional análise marxista do processo de exploração capitalista e de acumulação de riqueza, para afirmar que este trabalho, sempre desprezado, tornado invisível, naturalizado, desvalorizado, não remunerado, é, na verdade, o sistema de apoio, a condição de existência de qualquer outra forma de exploração ou de qualquer outra atividade de trabalho. Então partimos daí, e vimos que o fato deste trabalho não ser remunerado e ser naturalizado teve uma poderosa função ideológica e econômica. Sua representação e definição como nãotrabalho permitiu à classe capitalista economizar bilhões e bilhões e fazer com que gerações de mulheres trabalhassem de graça. É isso.
Isso também criou um sistema através da organização da família nuclear, da casa, como um tipo particular de fábrica, contra o qual é muito difícil as mulheres lutarem. Pois, com a construção da família nuclear, parece que trabalhamos para nossas famílias, e assim o trabalho que fazemos para o capital se torna completamente invisível diante da falsa aparência de que esse trabalho é um serviço pessoal para os filhos, a família e a comunidade. E dessa forma, foi possível não só acumular uma enorme quantidade de trabalho de graça, mas também dificultar a luta contra ele, porque quando dissemos “não queremos fazer trabalho doméstico”, parecia que estávamos lutando contra nossa família. Então criou-se um sistema por meio da organização da família nuclear que afasta a mulher de uma relação direta com o capital, a relação direta será sempre com o homem, com o marido, com o trabalho assalariado adequado. Em um livro recente meu chamado O Patriarcado do Salário, já traduzido no Brasil, eu salientei que, através do sistema do trabalho assalariado, o capitalismo delegou ao trabalhador assalariado, ao homem, o poder de supervisionar o trabalho da mulher, o poder de assegurar que a mulher realizará de fato o trabalho de reprodução. Assim, na família, o trabalhador assalariado é o representante do capital, é o representante do Estado. Você sabe, quando ele diz “a casa não está limpa”, “o que você está fazendo?”, ele tem o poder do salário, e a mulher é sua dependente.
E então, a violência doméstica. Descobrimos que a violência doméstica foi tolerada, se não justificada, precisamente porque faz parte do sistema disciplinar as mulheres para realizar seu trabalho assalariado de reprodução da força de trabalho. Portanto, esta foi uma importante análise que revolucionou nossa concepção de como o capitalismo acumula riqueza. Eu escrevi que existe um acúmulo de diferenças, um acúmulo de hierarquias. Já sabíamos disso pelo racismo e agora víamos também pela questão de gênero.
Então a hierarquia homem/masculino vs. mulher/feminino tem um elemento econômico muito poderoso. Porque através desse diferencial as mulheres são realmente forçadas a fazer trabalho reprodutivo e o capitalismo pode continuar a explorar uma enorme quantidade de trabalho não remunerado. Com o tempo, a noção de reprodução social também se expandiu, e no meu caso ela se expandiu porque entrei em contato com muitas outras situações das mulheres, por exemplo, na África e na América Latina, e percebi que a agricultura de subsistência também faz parte dessa reprodução social. Ou seja, a agricultura de subsistência faz parte das tarefas domésticas diárias; você alimenta sua família não indo ao supermercado, mas colocando algumas sementes no solo. E, em muitos países, as mulheres estão muito conectadas à luta pela manutenção do acesso à terra, tanto que, em processos de urbanização recente, elas se apropriam de qualquer pedaço de terra não utilizado no ambiente urbano e continuam a produzir para ganhar alguma autonomia em face do mercado.
Então começamos também a expandir e ver que a questão da reprodução tem muitas vertentes, por exemplo, os cuidados com a saúde. As mulheres cuidam das pessoas que estão doentes em casa e fora de casa. Há também a questão do meio ambiente; estão matando o meio ambiente. E hoje não é uma casualidade que as mulheres estejam tão envolvidas na luta ecológica, na luta contra a mineração, contra a perfuração de petróleo, contra o desmatamento. São as mulheres quem estão plantando árvores no Quênia e em outros lugares, porque isso faz parte da questão da saúde e da reprodução. Isso é parte da luta para garantir que não coloquemos nada na terra que possa nos matar.
E agora, para mim, a questão da reprodução chegou em outro nível, porque quando falamos de reprodução, falamos não apenas de todas essas atividades, mas também nos colocamos diante do mundo, diante do capitalismo, diante da luta desde o ponto de vista da reprodução, também nos colocamos em um lugar onde a principal preocupação é não apenas a luta contra o capital, que é central, mas também que tipo de sociedade queremos construir. Colocando-nos no lugar da reprodução é igualmente importante começarmos a entender que tipo de sociedade estamos construindo, transformando a luta em uma luta construtiva e não apenas oposicionista. Assim começamos a tentar entender o que significa a luta em si, que tipo de atividade é essa. Ou seja, a perguntar: a luta está construindo bons laços? Está construindo uma relação afetiva entre nós? Ou apenas estamos na luta como indivíduos isolados? Por isso, é mais rico examinar a luta desde a perspectiva da reprodução. Mulheres na América Latina, mulheres na Espanha, nos mostram que a luta é para colocar a vida no centro, para construir uma sociedade que coloque nossas vidas no centro. O bem-estar da comunidade é o objetivo da atividade social, do trabalho de organização social, isso é o que reprodução representa para mim; não apenas uma forma de exploração, mas também uma forma de olhar para a sociedade que começa a pensar e a implementar no presente os elementos da sociedade que queremos construir.
EG: Acho que todos os nossos colegas marxistas estão fazendo um bom trabalho ao ler você, porque finalmente alguns valorizam a reprodução social. Quero agora perguntar algo relacionado com o mercado de trabalho. Simone de Beauvoir acreditava que o trabalho remunerado significava liberdade e emancipação para as mulheres, sendo a chave para a sua independência. Você, ao contrário, tem enfatizado que as mulheres no mercado de trabalho perderam mais do que ganharam. Então minha pergunta se desdobra em três. Você já foi influenciada por Simone de Beauvoir? Se sim, qual a importância de O Segundo Sexo, especialmente para as gerações mais jovens de feministas? E, finalmente, você não teme que a ênfase na reprodução social possa trazer de volta a velha domesticidade e o trabalho do cuidado como o único lugar onde as mulheres podem estar?
SF: Eu gosto muito de Simone de Beauvoir e fui realmente influenciada por ela, inevitavelmente... [risos]. Mas, ao longo do tempo, também me tornei muito crítica. Quando eu tinha 18 anos, eu queria ser um homem e eu realmente fiz tudo o que podia. Eu escrevi sobre parte disso em Wages Against Housework. Porque eu lutei tanto, eu e minha irmã, para não nos tornarmos donas de casa. Eu entendi que todo o contraste que ela faz, mulheres passivas e homens ativos, eu não compro mais isso. Eu compreendo que em parte é isso. Mas também comecei a ver o poder, a luta que as mulheres têm travado, e a importância do seu trabalho, e acho que, ao longo do tempo, eu reavaliei o trabalho das mulheres não nessa forma capitalista, mas no seu potencial. No capitalismo, o trabalho reprodutivo é subsumido à reprodução da força de trabalho. E por causa de sua subsunção, ele se converteu em um trabalho que é sufocante, alienante e maçante. Eu entendo que há muitas mulheres, como eu quando tinha 15 ou 20 anos, que talvez queiram fugir dele, porque nesta forma capitalista, é terrível. Acredito que em uma sociedade não capitalista, o trabalho reprodutivo pode se tornar algo diferente e integrar todos aqueles aspectos que de fato são parte dele, aspectos do conhecimento. Imagine o conhecimento que você precisa para cuidar de uma pessoa, para cuidar de seu corpo. O conhecimento que você precisa adquirir sobre o corpo, sobre a emoção, sobre a propriedade das plantas, etc, o que não quer dizer que a reprodução deva ser o único tipo de trabalho ao qual as mulheres aspiram.
Mas ao longo do tempo comecei a ver e a prestar mais atenção à luta que as mulheres têm travado pelo lado ativo, para rejeitar a tese de Simone de Beauvoir sobre a passividade das mulheres. Essa é uma visão masculina das mulheres. As mulheres têm travado uma luta tremenda em todos os níveis, historicamente, nos movimentos e fora deles, também no dia a dia. Então comecei a valorizar essa luta, e também a valorizar o trabalho em termos do que poderia ser, potencialmente, quando liberado de todos seus elementos sufocantes e degradantes no capitalismo. E antes de tudo, o fato de que este trabalho é feito isoladamente, que não é feito coletivamente, que é feito basicamente de uma maneira que se destina a economizar dinheiro em vez de realmente satisfazer as necessidades das pessoas. Na verdade, o trabalho reprodutivo requer uma quantidade realmente muito grande de conhecimento, conhecimento sobre comida, nutrição, corpo, medicamentos etc.
Isso não significa que eu não tenha lutado contra a divisão do trabalho, ou que eu acredite que devam ser as mulheres as únicas a fazer este tipo de trabalho. Absolutamente não. Mas há razões pelas quais nesta sociedade o trabalho é dividido dessa forma. Não é apenas porque os homens são dominantes, mas também porque frequentemente o salário masculino é o mais alto na família, e assim são as mulheres que ficam em casa. Portanto, há todo um sistema que precisa ser alterado para que a divisão de trabalho mude.
Agora minha crítica à segunda jornada. Desde os meus 20 anos, ou até antes disso, eu tenho uma segunda jornada. Então, não estou dizendo que as mulheres não deveriam ter um emprego fora de casa no capitalismo, pois esta é a única maneira de não serem dependentes de outras pessoas e de não serem dependentes dos homens. A posição de dependência é muito degradante, humilhante e perigosa. Muita violência doméstica seria evitada se as mulheres tivessem o poder de sair de casa e fechar a porta atrás delas. O que critico é a luta do movimento feminista concentrar-se no trabalho remunerado às custas da luta pela reprodução, porque os dois estão umbilicalmente conectados. E o que as mulheres foram capazes de fazer e alcançar no trabalho fora de casa também está relacionado com o trabalho doméstico. Por exemplo, descobrimos que quando as mulheres saem de casa para trabalhar, elas acabam fazendo tarefas domésticas, e a desvalorização das tarefas domésticas e da reprodução continua fora de casa. Quando você sai de casa para trabalhar como enfermeira, como professora, como diarista, que são os tipos de trabalho que a maioria das mulheres consegue, a definição de dona de casa te persegue, e também te persegue a desvalorização do trabalho que você faz. Por isso é tão difícil para as enfermeiras, professoras, diaristas, etc, ter horário de trabalho decente, salário decente, pois é uma continuação da exploração do trabalho reprodutivo.
Recentemente tive uma reunião via Zoom com muitas mulheres jovens na Índia, na cidade de Jaipur. Elas foram fantásticas. Elas estavam lendo e discutindo Wages Against Housework, que foi traduzido para o hindi, e dizendo: “Oh meu Deus, isso fala de nós!”. O livro as ajudou a compreender por que a luta por um salário decente como professora do ensino fundamental é tão difícil: você é tratada como uma dona de casa, é tratada como uma mãe, e a desvalorização da maternidade te persegue quando você se torna uma professora, quando você se torna uma enfermeira, quando você se torna uma diarista. Então minha crítica não é dirigida ao fato de que as mulheres aceitam empregos. Mas sim ao fato de que, em quase todo o mundo, ao longo dos anos 1980, quando as mulheres estavam entrando em maior número na força de trabalho assalariado, os governos estavam cortando investimento em educação, cuidado infantil e saúde. E isso acontece até hoje. As mulheres, que ganham salários muito baixos, têm que usar seu salário para pagar pelo cuidado das crianças e por todos esses outros serviços.
Estamos falando da financeirização da reprodução: o fato de que agora você tem um emprego, mas vive com o cartão de crédito. Você tem um emprego, mas não consegue sobreviver até o final do mês a menos que tenha um cartão de crédito. E descobrimos, recentemente eu escrevi sobre isso, que nos Estados Unidos a maioria das mulheres da classe trabalhadora tem uma dívida enorme, porque não ganha o suficiente para custear suas necessidades, de seus filhos e de sua família. Então você vive com um cartão de crédito, você trabalha, trabalha, trabalha... às vezes as mulheres têm dois, até mesmo três empregos. E aí você não consegue pagar as contas e você tem que usar um cartão de crédito, e você se endivida. E com a entrada das mulheres no mercado de trabalho assalariado, um novo tipo de empresa foi criada, a do empréstimo no dia do pagamento. Eles te dão um empréstimo no dia do pagamento e não lhe pedem garantia. Isso é perfeito para as mulheres, mas é cobrada uma taxa de juros de 50%. Portanto, você continua se afundando na dívida. Isso é uma política, uma política de escravização. Agora eles estão acumulando dinheiro, não apenas através do trabalho que fazemos reproduzindo trabalhadores, mas também cada vez que usamos um cartão de crédito para ir às compras. Um momento de reprodução está se tornando um momento de acumulação.
Então esta é a minha crítica. Precisamos de um movimento feminista que não lute apenas pela entrada das mulheres em áreas de trabalho dominadas pelos homens, por salário igual, etc. Precisamos de um movimento feminista que olhe para a questão da produção conectada com a questão da reprodução. Não se pode separar as duas.
Voltando ao O segundo sexo, eu acho que ainda é uma boa leitura, mas com alguns ajustes. E não creio que tenhamos o perigo de, ao reavaliar a reprodução, cair na domesticidade, porque essa reavaliação coloca a reprodução em um nível muito diferente, em termos de organização coletiva e traz à tona todos aqueles elementos que hoje não são problematizados. A comida, por exemplo, você tem o chef, você tem o artista. Toda a glória vai para ele, certo? As mulheres têm feito comidas fantásticas, mas elas não são consideradas chefs nem artistas, apesar de toda cultura culinária que transmitem. Portanto, existe mais essa limitação. Agora temos fast food, agora temos crianças que nascem obesas, crianças que nascem com diabetes. A ramificação do que a reprodução implica em termos de saúde, em termos de estética, em termos de relação social entre as pessoas, é enorme, mas no capitalismo, tudo é reduzido, tudo é comprimido, isolado.
MPA: Ainda sobre reprodução e trabalho doméstico, eu gostaria de ouvir um pouco mais sobre a campanha Wages for Housework (Salários para o Trabalho Doméstico) que você liderou nos anos 1970 com Selma James e Mariarosa Dalla Costa.6 Como essa ideia foi gestada naquele contexto histórico e qual impacto ela teve não apenas nos movimentos feministas, mas também na vida das mulheres que não estavam organizadas em movimentos? Uma das críticas das feministas negras ao feminismo liberal, representado por figuras como Betty Friedan, é de que as mulheres negras sempre trabalharam fora de casa – primeiro em condições de escravidão e trabalho forçado, e depois fazendo todo tipo de trabalho de cuidado precário, desprotegidas e fora do alcance das políticas sociais. Como a Campanha se dirigiu a essa parte da população que, além de fazer trabalho doméstico não pago em suas casas, tinha também que vender sua força de trabalho para manter a si e a suas famílias? Além disso, eu tenho curiosidade sobre os dias atuais. Eu venho desenvolvendo pesquisas sobre trabalho informal, especialmente trabalho doméstico. Quando olhamos para o sul global, seus mercados de trabalho são caracterizados pela informalidade, com 30% a 80% da população trabalhando na economia informal. Qual a sua análise sobre esse contexto? Que tipos de campanhas poderiam galvanizar resistência nesse setor, algo como Wages for Informal Work?
SF: Realmente, isso é verdade, porque você sabe, agora mesmo na Argentina, todos estão exigindo do governo a renta básica universal. Eu sou crítica da forma como a renda básica universal vem sendo concebida e apresentada por homens, por exemplo, os marxistas italianos autonomistas que a apresentam como uma forma de recusa ao trabalho, e isso não é verdade. Minha opinião sempre foi a de que precisamos dizer que estamos trabalhando. Estou travando esta discussão com Verónica Gago7 e Luci Cavallero,8 e temos escrito muito sobre isso, especialmente sobre a questão da renda básica e como formulá-la de uma forma que não invisibilize novamente o trabalho das mulheres e que lance luz sobre o fato de que não é caridade. Porque há um perigo em algumas das formas em que a renda básica tem sido reivindicada, porque podem levar a concepções como “ah, estas são as pessoas pobres, que não estão trabalhando, vamos dar-lhes um pouco de dinheiro”. Veja, há muitos conservadores que são a favor da renda básica, porque sua ideia é transferir uma pequena soma de dinheiro para os mais pobres dos pobres e então cortar todos os serviços sociais mantidos pelo estado. Portanto, temos que ser muito cuidadosas sobre como articulamos isso.
E o que me preocupa também é que o trabalho de reprodução que estamos fazendo se expresse na forma como a renda básica universal está organizada. Na Espanha, algumas mulheres feministas estão dizendo “renda básica não, vamos chamá-la de “renta de cura”, ou seja, renda básica para o trabalho de cuidado, porque nós precisamos nos reproduzir. Tenho enfatizado a necessidade de criar formas coletivas de reprodução, inspiradas em experiências no Brasil, na Argentina - Los Comedores Populares, as hortas urbanas – todas essas formas pelas quais as mulheres estão se tornando mais independentes do mercado. Então isto é muito importante. Mas acho que nos anos 1970, especialmente nos Estados Unidos, a luta por salários para o trabalho doméstico estava muito ligada à luta das mulheres negras. Daí Angela Davis e outras, que foram críticas, elas não foram muito justas, porque naquela época havia um poderoso movimento de mães que dependiam das políticas de assistência social (welfare mothers) que era integrado principalmente por mulheres negras que iam para as ruas e lutavam para dizer que ser mãe é trabalho, que reproduzir filhos é trabalho, e que as políticas de bem-estar social não deveriam ser vistas como caridade, mas sim como remuneração por seu trabalho.
Por isso, quando você olha para nossa escrita, as políticas de bem-estar social e a luta das mulheres amparadas por elas figurava de forma proeminente em nosso material, porque nós dissemos que esse welfare é na verdade a primeira forma de reconhecimento do trabalho reprodutivo como trabalho. E as mulheres estavam dizendo, “nós não queremos ser forçadas a um casamento, não queremos ser dependentes de um homem; este dinheiro que recebemos do governo é o primeiro dinheiro que chamamos de nosso e, se não tivermos este dinheiro, somos forçadas a aceitar qualquer trabalho que apareça e sermos ainda mais pobres”. Porque com o trabalho, geralmente mal pago, você ainda tem que pagar pelo cuidado das crianças. Onde você coloca seu filho? Até mesmo para poder ter acesso a cuidado infantil gratuito, você tem que enfatizar que isso é trabalho, que não é caridade, que é parte de todo um processo de reprodução social.
Então, nossa luta não era insensível a essa questão; ao contrário, era uma forma de dar às mulheres outras possibilidades, de ampliar o seu espectro de oportunidades e permitir que elas, por exemplo, não fossem forçadas a casamentos, a depender dos homens ou de empregos que nem sequer lhes davam o mínimo para sobreviver. Nós estávamos bem conscientes, já nos anos 1980, de que, com a destruição da economia global, o ajuste estrutural e o empobrecimento de muitos países do antigo mundo colonial, muitas mulheres se tornavam migrantes para realizar trabalho doméstico ou trabalho sexual. Estas eram as duas alternativas. E muitas vezes as mulheres começavam com o trabalho doméstico e depois mudavam para o trabalho sexual, porque o trabalho doméstico era tão mal pago e tão opressivo que elas preferiam fazer trabalho sexual, pois assim elas poderiam enviar mais dinheiro para casa. Então, eu acredito que toda a questão das diferenças entre as mulheres estava muito presente em nossa Campanha, mas a questão fundamental era a desvalorização do trabalho reprodutivo que afetava todas as mulheres.
Claramente, muitas mulheres negras não podiam contar com o salário masculino e por isso tinham que fazer muito trabalho fora de casa, mas também tinham que trabalhar dentro de casa quando voltavam, ou elas tinham mulheres mais jovens fazendo esse trabalho. E a desvalorização da reprodução da vida, não importa como ela seja feita, sob que condições, o fato de que as atividades por mais das quais reproduzimos a vida são desvalorizadas, que é o que estávamos falando, esta é uma questão importante, independentemente das diferentes situações em que as mulheres estão. Estamos em uma sociedade que vê a guerra e a produção para a guerra como economicamente produtiva, contribuindo para a riqueza social, mas que não vê o trabalho reprodutivo, a reprodução da vida, da mesma forma. [Joe] Biden chegou ao poder prometendo investimento para as famílias e cuidado das crianças, mas ele já transferiu quase 100 bilhões de dólares em armamentos para a Ucrânia. Neste momento, as empresas que produzem armas nos Estados Unidos já receberam uma quantidade imensa de riqueza, pois são elas que se beneficiam, enquanto o povo ucraniano vê suas terras sendo transformadas em uma zona de desastre. Mas lá se foi todo o investimento que poderia ser aplicado na reprodução. Portanto, esta questão é muito central.
EG: Vamos falar agora de maternidade. Pela nossa conversa até aqui, parece que concordamos que maternidade é trabalho, e trabalho duro, mas continua sendo muito atrativo para muitas mulheres. Eu sempre volto ao feminismo da maneira como o aprendi, e por isso vejo a maternidade como o aspecto mais naturalizado da reprodução social e da sexualidade. Eu gostaria de saber se você acha que a maternidade é sempre uma forma de opressão. E se não, quando ela não é opressão? Que tensões ela provoca no feminismo? E o que você pensa sobre o fato de que mulheres como eu, sem filhos e não casadas, ainda são uma espécie de pária social em muitas partes do mundo?
SF: Tomei uma decisão muito cedo em minha vida de que não teria filhos. E sou muito feliz por isso, foi a melhor decisão da minha vida. Saio, olho em volta, e vejo mulheres com filhos... adoro as crianças, mas digo, “Oh meu Deus, como elas fazem isso?” Eu não tenho ideia de como fazem. Penso que são heroínas. Mas, para mim, o feminismo tem que acomodar ambas as situações e nós temos que escolher. Todos os dias eu vou ao parque pela manhã e vejo todas aquelas crianças... Vi tantas crianças no parque pela manhã agora no verão... E me pergunto: por que as pessoas continuam reproduzindo crianças? E cheguei à conclusão de que, além do fato de que elas podem ser adoráveis ou não, além do fato de que as pessoas são motivadas por questões de propriedade e herança, para a maioria das pessoas, ter um filho, ver um filho crescer, é o que dá sentido à vida. Não são muitas as coisas que dão sentido à vida neste mundo hoje. Para a maioria das pessoas, a vida é trabalho árido e alienado.
E ter um filho, ter alguém que você acredita que vai cuidar de você, ter uma fonte de emoção, e filhos são uma aventura constante. É claro que eles também podem proporcionar momentos infelizes se, por exemplo, estão doentes, mas eles também podem ser uma grande fonte de emoção e esperança para o futuro, o que te conecta à ideia de que há algo na vida além levantar todas as manhãs, pegar o café, ir ao trabalho, voltar para casa etc. Acredito que, para muitas pessoas, as crianças são a alma da vida; eu não sei explicar de outra forma porque há toda essa reprodução. Porque não é só a burguesia querendo deixar sua propriedade para os filhos. A maioria das pessoas não tem nada para deixar. Eu poderia deixar alguns livros...
EG: Eu acho que você deve!
MPA: É muito interessante que nós três, mesmo sendo de gerações diferentes, tomamos essa decisão de não ter filhos. Porque eu também tomei essa decisão muito cedo. Há alguns momentos em que penso: “Talvez eu queira ter um filho”. Mas aí interajo com crianças ao meu redor e digo, “não, não, estou bem assim”.
SF: Eu também, totalmente.
EG: Nossos livros são os nossos filhos...
SF: E veja, outra coisa. Eu fui uma professora. Isto é como ser mãe. Eu fui mãe por muito tempo, porque meu ensinar era diferente dos meus colegas homens. Eu conhecia os problemas de meus/minhas estudantes. Se eles/as precisavam chorar, vinham ao meu escritório. Não choravam nos escritórios de meus colegas homens. Então, há muito de mãe na docência.
Há muita gente que pensa em termos de futuro, mas eu vejo muitas pessoas idosas cujos filhos não estão cuidando delas. Então a ideia de ter um filho que cuide de você algum dia talvez funcione. Mas em muitos lugares, dos quais o Banco Mundial reclama pela alta taxa de natalidade, que ele associa com a geração da pobreza, o que está acontecendo é exatamente o contrário. É a pobreza que produz uma alta taxa de natalidade, porque você precisa ter um filho que faça algum tipo de trabalho. Muitas famílias na África nunca seriam capazes de sobreviver se não tivessem a renda proveniente de três ou quatro filhos trabalhando em uma loja de automóveis, vendendo amendoim nas ruas, a menina ajudando a mãe enquanto ela vai para o mercado, as meninas com as crianças nas costas enquanto a mãe está no armazém ou no campo. Então é exatamente o oposto. Como estatisticamente comprovado, toda vez que um país tem um nível de renda maior, a taxa de natalidade cai. Se você não tem seguridade social para o futuro, você espera que algumas das quatro ou cinco crianças sobreviverão. E se você tiver um acidente de trabalho, se ficar doente, você terá alguém lá. Mas isso é totalmente distorcido intencionalmente, porque sempre tentam apresentar as pessoas como tolos que não sabem quais são os seus verdadeiros interesses.
MPA: Está muito claro em seus escritos que você acredita na ação coletiva autônoma fora e contra o estado como o espaço para a transformação social. Mas não apenas isto, você já disse que esta ação coletiva precisa ir além de uma política de ideias ou imaginação e incorporar a ação direta como sua estratégia principal. Ou seja, é preciso oferecer às pessoas hoje experiências reais de um projeto político transformador que se projeta para o futuro, algo que estudiosas do assunto chamaram de política prefigurativa. Você poderia nos falar um pouco mais sobre por que você vê a emancipação vindo desse tipo de movimento, e não de partidos políticos, organizações não-governamentais, ou outras formas institucionalizadas de ação coletiva?
SF: Antes de mais nada, não estou dizendo que esta política prefigurativa da qual falo é a única forma de política. Acredito que existem muitas formas de luta, muitos tipos de movimentos que são necessários para lutar contra o capitalismo. A questão, contudo, é até que ponto esses movimentos se unem, até que ponto eles podem criar um terreno comum. Minha crítica ao partido é que a história do partido é a história de uma organização que reflete internamente a mesma hierarquia da sociedade capitalista. Os partidos de esquerda têm sido dominados por homens, homens brancos, então, sempre selecionam um tipo particular de sujeito revolucionário. E cada vez mais, os partidos têm se tornado organizações burocráticas distanciadas da realidade e que, de certa forma, transformam a política no que eu chamei de trabalho alienado, fazem da política uma outra forma de trabalho porque você não participa de fato do processo de tomada de decisão, você não é realmente parte da transformação. O que não quer dizer que não existam outras formas de movimento, há movimentos sociais.
Mas eu acredito que não pode haver movimentos que não trabalhem ao mesmo tempo na transformação da reprodução cotidiana da vida das pessoas e na reprodução da luta. A luta precisa ser reproduzida. E reproduzir a luta é o mesmo que mudar a maneira como reproduzimos nossa vida cotidiana, precisamos mudar a reprodução da nossa vida cotidiana de tal forma que a reprodução se torne cada vez mais a reprodução da luta e cada vez menos a reprodução da força de trabalho. O nosso sucesso se dará na medida em que pudermos deslocar o trabalho reprodutivo que fazemos para reproduzir a força de trabalho para o capital, para reproduzir nossas energias para a luta. Portanto, toda a questão de superar o isolamento, criar formas coletivas, laços afetivos, confiança etc., ou seja, construir uma infraestrutura reprodutiva para nossa luta e todo um novo conjunto de relações. Isso nos fortalece. E assim podemos confrontar o estado.
Já vi isso na América Latina, por exemplo, nos acampamentos. Mulheres e homens construindo relações muito fortes. Forçados a se urbanizar sem nada, ele/as começaram a construir casas, ruas, e junto/as, foram à prefeitura e disseram, “precisamos disso, precisamos daquilo”. Eles/as puderam fazer isso porque eram um coletivo, porque se reuniram no processo de ocupação de um pedaço de terra, no processo de construção de uma rua. Então, esse tipo de trabalho coletivo é o que também confere poder para enfrentar o estado e se mover em um outro nível. Mas a criação da infraestrutura reprodutiva de base é fundamental. E uma outra razão é que a luta também deve melhorar nossa vida de forma imediata, deve acrescentar algo, o que não significa que você não vai correr algum risco e sofrer. Mas, para a maioria das pessoas, a menos que participar de reuniões, encontrar com outras mulheres, manter a luta, também lhes dê algo prazeroso, lhes faça sentir menos só, menos impotente, lhes enriqueça a vida de alguma forma, elas farão outra coisa com seu tempo. Irão ao cinema se tiverem algum dinheiro extra. Irão aos jogos de futebol. Irão a uma reunião de Pentecostes. Alguma coisa que lhes dê um senso de comunidade.
Então, esta é a minha opinião. Penso que a política prefigurativa é o que faz da política algo que não é um trabalho extra, um fardo extra em uma vida já difícil e que também cria uma base de resistência a partir da qual se pode então confrontar o estado com mais poder e se conectar com outros movimentos. Isso é algo que todo movimento deveria cultivar. Todo movimento deveria partir do ponto de convocar uma reunião na rua para também descobrir o que acontece com você quando você vai para casa. Como sua vida está organizada? Como podemos mudar as condições em que você vive? Conheci mulheres que me ajudaram, as mulheres do meu grupo. Às vezes eu estava realmente desesperada por não saber a quem recorrer e foi muito importante que eu tivesse essa conexão com elas.
EG: Isso é lindo. Eu realmente gosto como você chama atenção para esse tipo particular de feminismo, nossa metodologia para evitar a solidão e enfrentar o mundo juntas, nossa amizade ou solidariedade ou irmandade, qualquer que seja o nome. Podemos partir agora para nossa última pergunta sobre as cidades feministas? Estou pensando nos comuns urbanos, que são um de seus temas, em especial como desenvolvido nos artigos reunidos em Reencantando o mundo: feminismo a luta pelos comuns. Leslie Kern, uma geógrafa feminista canadense, escreveu em Feminist Cities: Claiming space in in a man-made world, que “nossas cidades são o patriarcado escrito em pedra, tijolo, vidro e concreto”. Diante disso, eu te pergunto: Pode uma cidade ser feminista? E se a resposta for sim, como seria?
SF: Sim, acho que uma cidade é feminista quando é organizada não do ponto de vista da acumulação de riqueza, do movimento de bens e mercadorias, para tornar a transação necessária à acumulação capitalista o mais rápido e funcional possível, mas, ao invés, é construída do ponto de vista do bem comum, para assegurar o bem-estar de todo mundo, crianças, mulheres, das pessoas com deficiência, com espaços para encontros, para estar junto/as, com lugares onde você não se sinta alienada e onde você não esteja apenas de passagem.
Eu penso nos mercados na América Latina ou na África, onde você vê mulheres se reunindo ou trabalhando na rua. Tem sido uma luta, em todo o mundo, da Índia à América Latina, para liberar as ruas de mulheres que estavam fazendo algumas vendas e não apenas algumas vendas porque elas estavam se conectando com outras mulheres, olhando os filhos umas das outras, criando toda uma forma coletiva de reprodução, enquanto ganhavam algum dinheiro. E elas eram muito frequentemente reprimidas, a polícia as empurrava e as retirava das ruas, confiscando a mercadoria que estavam vendendo, forçando-as a ir para espaços precários onde tinham que pagar um imposto para vender alguma coisa. Então, acho que é basicamente a reestruturação da cidade a partir do ponto de vista da reprodução e do bem comum. E claro, também de diferentes tipos de moradia e espaços para atividades coletivas, da rua não como algo que nos separa, mas algo que nos une. A rua como um lugar onde nos sentimos como no slogan “De quem é a rua? A rua é nossa”. É isso o que queremos dizer.