Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir o embate entre ideias conservadoras/reacionárias e progressistas em torno das ações afirmativas de recorte racial nas universidades públicas brasileiras a partir de uma revisão bibliográfica e de análise em redes sociais virtuais. Tomando as proposições de Hirschman (1992) acerca das três teses da Retórica da Intransigência – ameaça, futilidade e perversidade –, as quais subsidiam a compreensão de argumentos comumente utilizados contra essa política afirmativa, este artigo contrapõe tais retóricas a resultados de pesquisas realizadas no país envolvendo as cotas raciais. Argumentase que, contra toda retórica intransigente e previamente concebida em torno das ações afirmativas de caráter racial na educação, as pesquisas exercem papel fundamental na avaliação de seus efeitos e resultados. Espera-se que a compreensão dos argumentos intransigentes possa conduzir à superação do bloqueio de diálogo e auxilie na construção de uma discussão profícua e real acerca desta temática no país.
Palavras-chave: Retórica da intransigência, Ações afirmativas, Cotas raciais, Universidade pública, Ensino superior.
Abstract: This study aims to discuss the dispute between conservative/ reactionary and progressive ideas about racially-oriented affirmative action in Brazilian public universities based on a literature review and social media analysis. Taking the propositions of Hirschman (1992) on the three theses of the Rhetoric of Reaction - jeopardy, futility and perversity - which subsidize the understanding of arguments commonly used against this affirmative policy, this article contrasts these rhetorics with the results of research conducted in Brazil involving racial quotas. It is argued that, against all the intransigent rhetoric previously conceived regarding racial affirmative action in education, research plays a fundamental role in the evaluation of its effects and results. An understanding of the reactionary arguments is expected to lead to overcoming the barriers to dialogue and to contribute to the construction of a productive and genuine discussion on this issue in Brazil.
Keywords: Rhetoric of Reaction, Affirmative actions, Racial quotas, Public university, Higher education.
Resumen: El objetivo de este artículo es discutir el enfrentamiento entre ideas conservadoras/reaccionarias y progresistas sobre la acción afirmativa racial en las universidades públicas brasileñas a partir de una revisión bibliográfica y un análisis en redes sociales virtuales. Tomando las proposiciones de Hirschman (1992) sobre las tres tesis de la Retórica de la Intransigencia - riesgo, futilidad y perversidad - que subvencionan la comprensión de los argumentos comúnmente utilizados contra esta política afirmativa, este artículo contrasta estas retóricas con los resultados de la investigación brasileña sobre cuotas raciales. Se argumenta que, en contra de toda la retórica intransigente concebida anteriormente en torno a la acción afirmativa de carácter racial en la educación, la investigación desempeña un papel clave en la evaluación de sus efectos y resultados. Se espera que la comprensión de los argumentos intransigentes pueda llevar a superar el bloqueo del diálogo y ayudar a la construcción de un debate productivo y genuino sobre este tema en el país.
Palabras clave: Retórica de la intransigencia, Acciones afirmativas, Cuotas raciales, Universidad pública, Enseñanza superior.
Artigo
A retórica da intransigência e as ações afirmativas: uma discussão das teses de Hirschman aplicadas às cotas raciais na educação superior pública brasileira
The rhetoric of intransigence and affirmative action: a discussion of Hirschman’s theses applied to racial quotas in Brazilian public higher education
La retórica de la intransigencia y las acciones afirmativas: una discusión de las tesis de Hirschman aplicadas a las cuotas raciales en la educación superior pública brasileña
Recepção: 14 Novembro 2021
Aprovação: 26 Julho 2022
As políticas públicas são construídas a partir de disputas ideológicas sustentadas em argumentos que, contrários ou favoráveis a uma determinada ação, formam o corpo que tais políticas assumirão (FERRAZ, 2016). As conquistas sociais e de direitos, em especial, sempre foram envoltas em muitos certames e abarcadas em redes de argumentos e retóricas que tentam, a todo tempo, impulsioná-las ou limitá-las.
Essa arena de debates é essencial em uma democracia, porque possibilita a interlocução de atores capazes de expor suas ideias e convicções e que estejam dispostos a dialogar com os demais, independentemente do lado argumentativo em que estão, para obter êxito em suas causas, aspecto fundamental em sistemas democráticos consensuais, como o brasileiro (LIJPHART, 2003). Considerando a importância do debate, a análise das teses argumentativas que sustentam distintos posicionamentos torna-se relevante para a compreensão dos caminhos percorridos pelas políticas sociais, seja por conduzi-las ao avanço ou ao declínio.
Este artigo, que se fundamenta em uma revisão bibliográfica (GIL, 2002) e na análise de postagens e comentários em redes sociais virtuais, notadamente o Facebook e o Instagram (RECUERO, 2009), tem por objetivo explorar o embate entre ideias conservadoras/reacionárias e progressistas em torno das ações afirmativas no Brasil, especificamente as cotas raciais para acesso à universidade pública.
Para tanto, utilizamos as proposições da obra A Retórica da Intransigência, de Albert Otto Hirschman (1992), e articulamos, a partir das ideias do autor, uma análise do reacionarismo brasileiro contra as ações afirmativas de recorte racial na educação superior pública. A contraposição aos argumentos das teses intransigentes propostas pelo autor é delineada tomando como base estudos e pesquisas que, desde 2012, elucidaram os resultados das políticas de cotas na educação.
Apontamos a relevância da presente discussão tendo em vista que a Lei de Cotas (Lei Federal nº 12.711/12) está completando dez anos de sua aprovação e, conforme previsto no texto original, deverá passar por avaliação, tanto de sua pertinência quanto de sua eficácia (BRASIL, 2016). Dados o contexto de investidas autoritárias e de fortalecimento de grupos reacionários no país (SILVA S., 2021; ARAÚJO; CARVALHO, 2021) e os impactos da pandemia do vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19, que acirraram as desigualdades na educação (GOMES; OLIVEIRA E SÁ; VÁZQUEZ-JUSTO; COSTA-LOBO, 2021; MACEDO, 2021), as discussões referentes a esta lei mostram-se, ao mesmo tempo, complexas e necessárias.
Considerando tal cenário e ainda o fato de estarmos em um ano eleitoral, as mobilizações de defensores das cotas no Congresso Nacional e na sociedade civil são para que a apreciação entre em pauta em 2023 (KRUSE, 2022). O fato é que a revisão da Lei nº 12.711/12, ou outra medida legal que a prorrogue, certamente gerará debates em torno das cotas no país.
Pelo exposto, pretendemos com o presente texto contribuir com a discussão, analisando-a do ponto de vista da teoria política, subsidiada pelas teses de Hirschman (1992), que entendemos ser profícua para a compreensão da estruturação de argumentos intransigentes articulados em torno das cotas raciais na educação superior.
Para compreender as ações afirmativas é profícua a definição do conceito de “igualdade” à luz do Direito. Ora, desde as observações seminais sobre a democracia americana realizadas por Tocqueville (1805-1859), ficou nítido que a igualdade é a essência desse regime, que pressupõe que todos são iguais perante a lei em termos de direitos e deveres. Todavia, essa concepção de igualdade por vezes desconsidera as diferenças sobre as quais se assenta uma lógica social de privilégios históricos para uns em detrimento de outros, excluídos. De acordo com Piovesan (2005), para que haja o direito à igualdade, é necessário tanto que se eliminem as formas de discriminação quanto que se promovam formas de alcance dessa necessária igualdade.
Se, tradicionalmente, a igualdade era usada para punir o tratamento distinto ou discriminatório, percebeu-se que essa ação não bastaria para corrigir ou evitar a perpetuação das desigualdades sociais (GOMES, J., 2001). Desse modo, buscando modificar construtos e práticas sociais arraigados na diferenciação é que se apresenta um entendimento da promoção da igualdade concentrado não apenas na ação pacífica de punir a discriminação.
Essa visão admite uma mudança na concepção da igualdade: de um princípio para um objetivo, deixando de ser um pressuposto para transformar-se em um conjunto de ações denominado “ações afirmativas”. Sua trajetória possui um marco internacional na Declaração dos Direitos Humanos de 1948 que, em conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), estabeleceu os princípios da universalidade e da indivisibilidade dos direitos aplicados a toda pessoa humana, sem qualquer distinção, abrindo um importante campo de debates em torno de discriminações e desigualdades nas sociedades, bem como sobre a necessidade de combatê-las (PIOVESAN, 2005; RODRIGUES, 2020).
Inicialmente cunhado nos Estados Unidos da América, em meio às lutas do movimento pelos direitos civis e pela igualdade, o debate sobre ações afirmativas partia da ideia de que a atuação do Estado não se limitava apenas a garantir leis, mas, sobretudo, promover ações concretas para melhorar as condições de vida e oportunidades do povo negro (MOEHLECKE, 2002). As discussões abriram espaço para que as reivindicações conduzissem à construção de políticas públicas direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades para negros e negras.
O conceito de políticas públicas é tomado aqui enquanto “discussão e prática de ações relacionadas ao conteúdo, concreto ou simbólico, de decisões reconhecidas como políticas; isto é, o campo de construção e atuação de decisões políticas” (AGUM; RISCADO; MENEZES, 2015, p. 16). Esse conceito de política pública envolve as ações que os governos escolhem ou não realizar, e como respondem às questões sobre quem ganha o quê, por que e que diferença isso faz (SOUZA, C., 2006).
Considerando que toda política pública possui como característica básica a intencionalidade de resposta a um problema coletivo e considerado relevante e passível de ser amenizado ou eliminado, buscando, deliberadamente, agir com a intenção de criar respostas a ele (SECCHI, 2013), no contexto brasileiro, cumpre destacar a importância histórica do Movimento Negro que, como demonstra Nilma Gomes (2017), foi fundamental para trazer visibilidade social ao racismo, à desigualdade, à discriminação e à falta de oportunidades para a população negra. Sua luta política e educadora deu voz a temas não ouvidos e representados nos espaços instituídos de poder, ressignificando o olhar e imprimindo urgência à necessidade de agir sobre a desigualdade racial (GOMES, N., 2017).
Destacamos como marco da atuação do Movimento Negro a realização da “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, em 1995, que possibilitou uma articulação de suas bandeiras com o campo social, cultural, educacional e político (GOMES, N., 2017). O protagonismo da marcha foi basilar para expor a necessidade de transformação das pautas apresentadas em políticas públicas (MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021).
Um primeiro passo em resposta ao conjunto de reivindicações ocorreu em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso, que iniciou o debate sobre a instituição das ações afirmativas raciais na educação discutindo os melhores caminhos a serem trilhados a fim de promover, por meio de políticas específicas, a oportunidade de acesso à educação aos grupos excluídos (SOUZA, J., 1997; DINIZ; SÖHNGEN, 2021). Esse debate teve continuidade no país angariando forças favoráveis e contrárias às cotas.
Em 2001, ao tornar-se signatário do Plano de Ação de Durban por ocasião da “III Conferência Mundial contra o Racismo a Discriminação Racial e Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância”, o Estado brasileiro reconheceu a existência do racismo em seu território assumindo, em decorrência, o compromisso de adotar medidas para a superação do racismo e a construção de melhores condições para a igualdade dos negros, passo fundamental para iniciar o debate sobre a implementação das ações afirmativas (GOMES, N., 2017; GUIMARÃES; RIOS; SOTERO, 2020; RODRIGUES, 2020).
Neste contexto, ações afirmativas podem ser definidas como “políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física” (GOMES, J., 2001, p. 132). Piovesan (2005) acrescenta que ações afirmativas são medidas temporárias e especiais e um importante instrumento para a inclusão social, uma vez que, ao enfrentarem um legado de discriminação, promovem importantes transformações no seio da sociedade. Desse modo, ações afirmativas constituem, de acordo com a autora, um mecanismo de passagem da “igualdade formal para a igualdade material e substantiva” (PIOVESAN, 2005, p. 49), compreendendo a importância do respeito à diferença e à diversidade.
Vale reiterar que a importância das políticas afirmativas reside em sua capacidade de incidir sobre os graves problemas sociais. Conforme pontuou Amaral (2019), o alvo específico das ações afirmativas, enquanto modalidade de política compensatória, é, justamente, atuar na reversão de características sociais e históricas de discriminação por meio da promoção do respeito à multiplicidade de nossa sociedade brasileira para atingir a igualdade.
A universidade brasileira, aqui destacamos a pública, desde a sua fundação foi marcada por injustiças sociais e históricas advindas da colonização, da escravidão e da pobreza, que contribuíram para afastar, do ensino superior, negros, indígenas e estudantes da rede pública, sobretudo os de menor renda, tornando-o elitista e excludente (KRUGER; ALVES, 2020; MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021). Em contraponto, o sistema de cotas na educação foi concebido para reparar tal realidade, permitindo que a formação superior pudesse ser um local que refletisse a diversidade de maneira mais igualitária.
Segundo Moehlecke (2002), o sistema de cotas ficou conhecido no país por meio de ações implementadas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) devido à aprovação de uma lei estadual que previa a reserva de 50% das vagas dos cursos de graduação para alunos que cursaram o ensino fundamental e médio em escolas públicas e aos autodeclarados negros. Desde então, outras universidades e órgãos públicos iniciaram a adoção de medidas similares em seus vestibulares e concursos. No caso das instituições federais de ensino, foi a Universidade de Brasília (UnB) a primeira a contemplar o sistema de cotas raciais em seus cursos de graduação, em junho de 2004 (VELOSO, 2018).
Após muitos debates e disputas, a consolidação das ações afirmativas raciais ocorreu, em âmbito nacional, com a aprovação da Lei Federal nº 12.711/12, conhecida como Lei de Cotas na educação, cujo objetivo é diminuir a desigualdade racial, social e econômica. Pelo texto da lei, em cada concurso seletivo, pelo menos 50% (cinquenta por cento) das vagas, em cada turno e curso, serão destinados a estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Criou, em seus artigos subsequentes, cotas específicas para estudantes oriundos de famílias com menor renda e para estudantes pretos, pardos e indígenas e, posteriormente, para pessoas com deficiência, a quem o percentual de vagas é calculado a partir da proporção desta população em relação ao número de habitantes do Estado no qual a Instituição de Ensino Superior (IES) está localizada.
Cumpre salientar que, da forma como se estruturou, a Lei de Cotas preconiza o aspecto social, uma vez que prioriza estudantes advindos de escolas públicas, sua renda familiar e, em seguida, a questão étnico-racial. Todavia, considerando a desigualdade de oportunidades à população negra no Brasil, em especial seu ingresso na universidade pública, a Lei de Cotas constitui-se uma importante política contra o racismo estrutural e as marcas do colonialismo ainda presentes em nossa sociedade (MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021; SOUZA; MENDES; REIS, 2021).
Desde a sua aprovação, as cotas enfrentam desafios inúmeros em sua implementação, dos quais destacamos: a resistência de algumas universidades à reserva de vagas; as tentativas de fraudes por candidatos; a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de controle da política pública, seja pela validação ou verificação da heteroidentificação étnico-racial de candidatos e cotistas (JESUS, 2018; SANTOS, 2021); a definição de estratégias para promover a permanência e conclusão do curso por estes estudantes (COSTA; PICANÇO, 2020); a descolonização do currículo (SOUZA; MENDES; REIS, 2021); a ampliação da inclusão e valorização da cultura negra no ambiente acadêmico e para além dele (GOMES, N., 2017), dentre tantos outros.
Como toda política pública, as cotas de cunho racial também precisam ser submetidas a um processo de avaliação e terem repensados sua trajetória e seu futuro, contemplando os desafios da realidade atual. Em 2022, completam-se dez anos do sancionamento da Lei de Cotas, prazo previsto, no texto original, para que sua revisão seja realizada. Ainda que não ocorra no presente ano, essa revisão pode levar a um intenso debate no país, mobilizando grupos que se articulam a favor e contra as cotas raciais. Merece destaque o fato de que, nos tempos atuais, o debate político situa-se, muitas das vezes, em redes sociais cujos algoritmos formam bolhas que dificultam a troca de ideias com pessoas e grupos que pensam de modo diferente (SILVA, Y., 2021).
Para defender a continuidade das cotas na educação, pesquisadores, movimentos sociais e parlamentares1 (DINIZ, 2021) juntos promoveram, em 13 de maio de 2021, o lançamento da frente ampla “Cotas Sim”, composta por cerca de 50 instituições em defesa da Lei, que objetiva angariar diversificado apoio à sua continuidade. Ao mesmo tempo, surgem também medidas que tentam, de antemão, acabar com as ações afirmativas de recorte racial na educação2, retomando pontos já pacificados do debate e referendados por decisão do Supremo Tribunal Federal ocorrida em 2012.
O debate democrático e profundo do tema poderá, de fato, contribuir para o aprimoramento da política pública, desde que assentado em uma análise real do processo das cotas, seus impactos, efeitos e as correções necessárias. Na próxima seção, faremos uma breve explanação sobre a oposição entre as concepções conservadoras, reacionárias e progressistas e suas relações com as ações afirmativas.
Primeiramente, é importante entender por que defendemos a ideia de que as ações afirmativas podem ser classificadas como progressistas e os argumentos contrários a elas como conservadores e/ou reacionários. Nesta seção, dedicamo-nos a distinguir tais posicionamentos políticos e ideológicos.
O conservadorismo, cujas bases teóricas retomam a Edmund Burke (1729-1797), pressupõe que as mudanças sociais devem ser evitadas, visto que o preço da alteração em posições e pensamentos seria muito caro para uma sociedade. Conservadores – tanto os do passado quanto os do presente – são indivíduos adeptos da ideia de que as ações que promovam mudanças na forma como as sociedades funcionam e se desenvolvem são uma ameaça para todos, acreditando em uma espécie de ordem natural das coisas que deve ser preservada e garantida contra toda reforma ou política que vise alterá-la, corrigi-la ou aperfeiçoá-la. Na visão conservadora, quando necessárias, as mudanças devem ser realizadas em um ritmo muito lento (BURKE, 1982). Nas palavras de Burke (1982, p. 221), esse pensamento não rejeita a mudança, “mas gostaria que as mudanças fossem feitas sempre com o intuito de conservar”, ou seja, o foco deveria ser o de manter as práticas sociais tradicionais e não o de produzir mudanças para o futuro.
Por outro lado, ideias progressistas acreditam e valorizam a mudança como forma de melhorar a sociedade em que vivemos, apostando na possibilidade de corrigir, alterar ou aperfeiçoar a realidade social (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998) por meio de ações de intervenção que podem ser expressas em políticas e programas governamentais ou não. Nas palavras de Fuser (2018, p. 81), progressistas são “atores políticos favoráveis ao que se costuma chamar de ‘transformação social’ [...] interpretada como a conquista de níveis crescentes de bem-estar para a maioria da população, ampliação dos direitos sociais e igualdade no exercício dos direitos políticos”.
Em muitos casos, as mudanças sociais, sobretudo as que impactam a ordem histórica, econômica e política tradicionais, podem contribuir para o surgimento de ideias e grupos reacionários, definidos como aqueles que visam ao:
desmantelamento cultural, social e político que buscam desestruturar a amplificação do cosmopolitismo e da inclusão social. Movimentos reacionários não acontecem porque seus quadros e seguidores conservadores são antimodernos, irracionais ou mesmo especialmente intolerantes. A reação é desencadeada, antes, porque estruturas ideológicas e materiais do status quo foram abruptamente abaladas, e aqueles que ocupavam essas estruturas desejam voltar ao tempo anterior ao abalo, quando estavam estabelecidos no que era obviamente, e não apenas em retrospecto, uma posição melhor. (ALEXANDER, 2019, n. p.).
Importa acrescentar, em conformidade com Almeida (2018), que o racismo estrutural brasileiro provocou a discriminação sistemática dos negros, causando desvantagens a esse grupo perante os privilégios aos brancos; por sua vez, a implementação das cotas raciais na educação superior brasileira modificou a ordem social estabelecida, transformando o espaço universitário, antes elitizado pela raça e pela classe econômica. Desse modo, do ponto de vista reacionário, as cotas constituem uma ameaça.
Esse intenso debate deve-se ao fato de que tais políticas aludem aos elementos constitutivos das relações raciais brasileiras: a identidade racial, o dilema “raça e classe” e o lugar do racismo e da discriminação na configuração das desigualdades sociais brasileiras. Não é exagero dizer que o advento das cotas colocou em crise aberta toda uma concepção arraigada de nossa identidade nacional, historicamente calcada no elogio da mestiçagem e na recusa de que o racismo fosse uma marca de nossa estrutura racial. (LIMA; CAMPOS, 2020, p. 246).
Adicionando à discussão sobre diferentes concepções políticas, especificamente envolvendo o papel do Estado na redução das desigualdades, a obra do economista liberal Thomas Sowell3 (2004; 2011), localizamos contribuição para a compreensão das visões que norteiam os indivíduos na formação de suas opções e julgamentos. Sowell, um forte opositor às ações afirmativas, entende que as concepções políticas partem de duas visões, as quais o autor designa como restrita e irrestrita.
A visão restrita, da qual Sowell compartilha, assume que a atuação do Estado deve ser limitada, posto que este não é responsável por corrigir as desigualdades entre as pessoas, sejam tais diferenças motivadas por classe, raça ou gênero, uma vez que elas são causadas pela própria dinâmica do esforço individual somada a questões históricas de difícil reversão (SOWELL, 2011). Em essência, essa concepção política considera restrita a ação do Estado e da sociedade quanto à capacidade de alteração do curso das questões sociais. De maneira semelhante à visão política conservadora, atribui ao Estado uma isenção de correção sobre as desigualdades de oportunidade e, certamente, norteia indivíduos que são contrários às políticas voltadas às ações afirmativas.
Mais próxima às ideias progressistas, a visão irrestrita entende que o Estado possui papel central na resolução dos problemas sociais, econômicos e políticos e que a ele cabe definir ações para reverter quadros de desigualdade e exclusão existentes. Adeptos dessa linha de pensamento consideram fundamental que governos promovam ações efetivas para corrigir as distorções sociais, históricas, econômicas e políticas.
Sowell (2011) argumenta que a visão irrestrita conduz a uma sobrecarga do Estado pela não limitação de sua ação, retirando, em sua visão, a responsabilidade dos cidadãos. Todavia, há que se pensar que, se o Estado não se presta a corrigir as distorções sociais que impactam a qualidade de vida das pessoas, sua relevância torna-se questionável. No contexto brasileiro, muitas são as situações passíveis de intervenção social, tendo em vista os indicadores de desigualdades econômica, racial, regional e de gênero presentes em nossa sociedade. Neste artigo, concentramo-nos, especificamente, na questão racial.
Historicamente, o Brasil criou uma ordem de classes e raça, oriunda da colonização, pela qual o racismo velado dificultou, por anos, que fosse de fato encarada a realidade de exclusão dos negros na escola, na política, no mercado de trabalho etc. (DA MATTA, 1997; ALMEIDA, 2018; MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021). Por outro lado, o “mito da democracia racial como elemento de coesão nacional” (JESUS, 2018, p. 135) permeou o imaginário brasileiro, fazendo crer que somos um só povo, para quem a mistura de raças teria sido capaz de solucionar os nossos problemas de colonização, escravidão, racismo e desigualdade, suscitando, ainda hoje, questões relacionadas acerca de quem é negro no Brasil (JESUS, 2018).
Neste contexto, ao atuarem sobre essa realidade social e alterá-la, podemos entender que as ações afirmativas se situam no campo progressista ao proporem mudanças e correções na lógica histórica de dominação e exclusão fundamentadas em questões raciais, reconhecendo a importância da ação estatal na reversão destas desigualdades. Em vista disso, ações afirmativas nascem de um questionamento do princípio da igualdade jurídica e social e da efetividade dessa concepção ideal, ou seja, de que seja, por si só, capaz de garantir a igualdade entre indivíduos, considerando, sobretudo, a realidade de privilégios históricos de nossa sociedade (GOMES, J., 2001).
Cumpre destacar que, em muitos casos, as pessoas são levadas à formação de suas ideias e posicionamentos a partir da informação que chega pela mídia e, mais recentemente, pelas redes sociais. Trabalhos anteriores sobre a temática (CAMPOS; FERES-JUNIOR; DAFLON, 2013; FERREIRA, 2019) apontaram de que forma os grandes jornais brasileiros, por meio de seus editorais e matérias, buscaram criar, na opinião pública, uma resistência ou oposição às cotas, estabelecendo uma teia de narrativas. Nessa disputa retórica, entendemos que as teses propostas por Hirschman (1992) podem ser de grande valia, conforme será discutido no tópico subsequente.
Para analisar a construção de teses argumentativas conservadoras e/ou reacionárias contra as ações afirmativas raciais na educação, utilizaremos a obra de Hirschman (1992) e sua importante contribuição ao pensamento político moderno e à compreensão das dinâmicas e retóricas inclinadas ao reacionarismo.
Influente economista e autor de importantes livros sobre ideologia e economia política, Hirschman (1992) conduz sua explanação a partir de análises históricas, econômicas e das ciências políticas e das artes, o que nos permite compreender de que modo os argumentos reacionários, em diferentes épocas, valem-se da mesma base de sustentação. Seus estudos reunidos sobre esses argumentos deram origem à demonstração das três teses reacionárias da chamada “retórica da intransigência”. Apesar do autor em tela não ter seus estudos voltados às ações afirmativas, em nosso entendimento, suas proposições são profícuas para compreendermos, à luz da ciência política, a estruturação de narrativas e argumentos contrários à implementação das cotas raciais na educação. Esta é a razão pela qual utilizaremos sua obra A Retórica da Intransigência como base para a análise argumentativa conservadora e/ou reacionária contra a política de cotas no Brasil.
Historicamente, a base de argumentação descrita nessas três teses foi amplamente empregada para reagir aos programas de direitos sociais (educação, saúde, renda), direitos políticos (como o voto universal), e até mesmo civis (como a igualdade entre as pessoas), elucidando uma luta histórica contra as conquistas populares (HIRSCHMAN, 1992). Ainda hoje, a cada ação proposta no campo progressista, argumentos ligados a uma dessas teses podem ser empregados para sustentar a reação contrária.
No presente trabalho, o foco se volta para a análise das teses reacionárias – ameaça, futilidade e perversidade – e seu emprego em torno das ações afirmativas de recorte racial no Brasil, mas consideramos salutar demonstrar que Hirschman (1992) defende que a resposta progressista4 também se articula em torno de teses argumentativas estruturadas. Esperamos que, ao buscar em resultados de pesquisa argumentos para contrapor as retóricas reacionárias contra as cotas, tenhamos conseguido fugir da retórica progressista puramente preconcebida.
Os argumentos contrários às cotas que apresentamos foram retirados de análises que realizamos em postagens e comentários feitos por usuários em páginas e grupos nas redes sociais virtuais – Facebook e Instagram – que se manifestam deliberadamente adversos às cotas raciais. Salientamos, em conformidade com Recuero (2009), a importância de tais espaços virtuais para a pesquisa social e política, uma vez que permitem ao pesquisador perceber as trocas de ideias e posicionamentos. A análise do discurso argumentativo contra as ações afirmativas raciais na educação brasileira será apresentada nos tópicos seguintes, a partir das três teses reacionárias, discutidas separadamente.
A tese da perversidade consiste no uso de argumentos para demonstrar que qualquer esforço deliberado do ser humano para melhorar aspectos econômicos, políticos e sociais apenas serve para fazer com que a situação que se deseja intervir seja prejudicada. Adeptos dessa tese usam a retórica para levar os demais à crença de que esforços numa direção conduzem à direção oposta (HIRSCHMAN, 1992).
Hirschman (1992) observa que a tese da perversidade se vale de um profundo desprezo às massas, o que repercutiria nos argumentos contrários a todo tipo de políticas sociais que visem incluir pessoas e assegurar direitos a todos. A perversidade reside em crer na suposta incapacidade humana de prover melhorias e, por extensão, na ideia de que sua ação conduz a situações indesejáveis. A principal linha de sustentação dessa tese argumenta que as consequências da ação humana, seja ela econômica, política ou social, pioram o mundo.
Podemos encontrar o emprego dessa retórica no discurso conservador que pressupõe que as cotas raciais não alcançariam os resultados almejados e ainda poderiam promover o efeito oposto aos objetivos traçados, como o creamy layer5, beneficiando um pequeno grupo já privilegiado dentro do público-alvo das cotas raciais.
Alguns discursos comumente proferidos dão conta de que: “cotas raciais atacam um problema que não existe e podem criar uma convulsão social”; “essas políticas afirmativas acham que podem controlar o curso da história, mas vão é dar início a uma história de conflitos”; “quando incluírem negros e indígenas na universidade conseguirão acabar com a qualidade do ensino superior público para brancos, negros e índios”; “só os negros mais ricos se beneficiarão das cotas, o que vai ampliar a desigualdade entre eles”.
As frases destacadas no parágrafo anterior são empregadas com frequência por aqueles que, não considerando a mudança social possível, tentam espalhar o medo geral por seus possíveis efeitos contrários. Percebe-se, então, que os argumentos utilizados pela tese da perversidade são simples e, ao mesmo tempo, extremados, mas se mostram populares entre os reacionários ao longo do tempo e possuem forte apelo junto ao público em geral, sobretudo por não atacarem diretamente um ponto específico, mas, antes, tentarem provar que a ação total é inválida (HIRSCHMAN, 1992).
Em contraposição a essa retórica, pesquisas têm comprovado que o problema da desigualdade nas universidades é real e que, por meio da Lei de Cotas, foram obtidos avanços para negros no ensino superior brasileiro, além do fato de que a adoção dessa política não implicou prejuízos para a educação superior (CARDOSO, 2008; MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021; OLIVA, 2020; VELLOSO, 2009).
Estudo realizado pelo Ministério da Educação em 2016 (MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021) pontuou que, em 1997, o percentual de jovens negros, entre 18 e 24 anos, que cursavam ou haviam concluído o ensino superior era de 1,8% e o de pardos, 2,2%. Em 2014, esse índice aumentou para 40%, com 60.731 vagas preenchidas por negros. Em 2011, 11% das matrículas em universidades públicas brasileiras foram feitas por alunos pretos ou pardos; em 2016 esse número chegou a 30% das vagas, demonstrando uma tendência de ampliação da participação desta população nas vagas universitárias (LIMA; CAMPOS, 2020).
A pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que em 2019, pela primeira vez, a população que se declara de cor preta ou parda passou a representar 50,3%, mais da metade dos estudantes de ensino superior da rede pública (DESIGUALDADES…, 2019). Outra pesquisa, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgada em 2020, a respeito das transformações no perfil e acesso de negros e pardos nas universidades, mostra um crescimento de 25% da presença desse público nas instituições de ensino superior entre 2009 e 2015, enquanto sua presença na população total foi ampliada em 5% (IPEA, 2020).
Esses números já demonstram o que vem sendo alcançado por meio das ações afirmativas na educação: promover a equidade nos postos socialmente almejados e contribuir para a diminuição das vulnerabilidades sociais entre o público-alvo das medidas e a população em geral (AMARAL, 2019).
No que tange aos conflitos que poderiam ser gerados a partir da adoção da política de cotas, percebe-se que, embora haja casos de tentativa e de fraudes nesse sistema, algo que poderia ser classificado como uma espécie de “conflito”, essas ocorrências não invalidam as conquistas obtidas para os beneficiários da política pública. Aliás, no que se refere especificamente às cotas raciais, a validação desse direito assegurado por lei ocorre, hoje, por meio da autodeclaração seguida de análise de uma comissão de heteroidentificação étnico-racial, composta por avaliadores de diferentes etnias. Tais comissões promovem o controle da política de cotas e foram adotadas para evitar possíveis tentativas de fraudes (BATISTA, 2020; JESUS, 2018; SANTOS, 2021).
Apesar de dificuldades e de lacunas na formalização da atuação das comissões de validação e verificação da heteroidentificação, há esforços significativos sendo desenvolvidos nas universidades para aprimorar tais mecanismos (JESUS, 2018; SANTOS, 2021), destacando-se ainda a importância dos coletivos negros universitários no acompanhamento da implementação das cotas raciais e do próprio processo educativo sobre este direito e a quem ele pertence (GOMES, N., 2017; GUIMARÃES; RIOS; SOTERO, 2020).
Quanto ao argumento de que a política de cotas diminuiria a qualidade da educação pública superior no Brasil, Vilela, Tachibana, Menezes-Filho e Komatsu (2017) demonstraram, com base em microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Censo da Educação Superior, que o sistema de cotas não implica a redução da nota média dos ingressantes nas universidades federais, uma vez que a nota de corte para ingresso nos cursos superiores é crescente. A pesquisa mostra que cotistas são aprovados com notas iguais ou superiores às dos não-cotistas em exames aplicados um ano antes do ingresso. Os pesquisadores concluem, ainda que parcialmente, que essa política de ação afirmativa não pressupõe a redução da qualidade do ensino superior público no país (VILELA; TACHIBANA; MENEZES-FILHO; KOMATSU, 2017).
Pode-se, ainda, acrescentar à argumentação os estudos de Cardoso (2008), Velloso (2009), Campos, Feres-Junior e Daflon (2014), Silame, Martins-Junior e Fonseca (2020) e Oliva (2020), cujas análises, tanto das notas de ingressantes cotistas como de seus desempenhos durante o curso superior, mostraram que as cotas não acarretam perda de qualidade à universidade pública.
Resultado interessante foi mostrado pela pesquisa de Pinheiro, Pereira e Xavier (2021), na qual, a partir de um estudo conduzido em universidades estaduais brasileiras, comprovou-se que os cotistas, além de ter rendimento igual ao obtido por não cotistas, supera o segundo grupo nos índices de permanência e diplomação.
Contra o argumento do creamy layer, conforme mostraram Feres-Junior e Daflon (2015), as políticas de cotas raciais implantadas nas universidades brasileiras possuem critérios específicos que evitam a ocorrência de favorecimento aos socialmente privilegiados, promovendo acesso igualitário a todos. Ademais, a Lei 12.711/12 possui uma combinação de critérios para o ingresso por cotas, incluindo origem em escola pública secundária, renda familiar e a questão racial, o que a transforma também em uma política de inclusão social, e não apenas racial (MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021), forma distinta do que ocorreu, por exemplo, na Índia, caso comumente citado por Sowell (2011) para demonstrar o efeito do creamy layer vinculado às cotas.
Pesa ainda, contra os argumentos da perversidade, os efeitos positivos não planejados das cotas, por exemplo, uma inclusão maior de mulheres na universidade (CERVI, 2013), o que também ataca um outro problema na sociedade brasileira: a exclusão por gênero.
Merece destaque a renovação do Movimento Negro e sua ampliação por meio dos coletivos negros universitários, o qual tem exercido importante papel político de representação racial (GUIMARÃES; RIOS; SOTERO, 2020), além da própria educação e valorização da cultura, história, memória e saberes das populações negras, permitindo que, pela primeira vez, o espaço universitário brasileiro seja adentrado por eventos, pautas, artistas e autores representantes de um saber negro tão negligenciado pelos currículos escolares colonizados do Brasil (GOMES, N., 2017; GUIMARÃES; RIOS; SOTERO, 2020; SOUZA; MENDES; REIS, 2021). Essa diversidade na universidade não tem acirrado o conflito entre negros e brancos; ao contrário, tem contribuído para um repensar das práticas sociais no âmbito das relações étnico-raciais no espaço universitário. Diante do exposto, entendemos que os argumentos da tese da perversidade não se sustentam.
Hirschman (1992) descreve a tese da futilidade como um conjunto de argumentos que se articulam em torno da visão de que qualquer mudança proposta não passa de uma “maquiagem” na situação, visto que as estruturas profundas da sociedade são impossíveis de serem alteradas pela ação humana.
O argumento da futilidade utiliza-se de uma retórica de negação ou subestimação da mudança proposta, tendo como premissa a existência de uma espécie de lei ou ordem maior que governa as sociedades e contra a qual não adianta lutar, pois toda ação servirá apenas como adereço e não produzirá resultados na estrutura social maior (HIRSCHMAN, 1992).
Os argumentos conservadores dessa tese são utilizados, frequentemente, contra políticas de promoção da igualdade social, uma vez que seus propositores tendem a naturalizar a pobreza e a desigualdade, as quais são, para eles, parte do estado geral de como as coisas são e devem permanecer. Essa retórica intransigente, apesar de mais sofisticada que a tese da perversidade, ainda é simples, constituindo-se uma tese focada na defesa do não movimento, posto que acredita que o movimento é inútil, fútil, incapaz de produzir resultados concretos (HIRSCHMAN, 1992).
Hirschman (1992) salienta que os argumentos da tese da perversidade e da tese da futilidade são raramente utilizados em conjunto, pois tornar-se-ia muito difícil sustentar que uma determinada política é nula ao mesmo tempo que produz efeitos inversos.
No campo das ações afirmativas de raça, buscam demonstrar a ineficácia das políticas propostas: “vão incluir os negros na universidade, mas o racismo continuará existindo”; “podem até promover alguma inclusão, mas a sociedade brasileira continuará desigual”; “a educação sempre funcionou assim e alguns negros conseguiam entrar na universidade sem cotas, é só se esforçarem”.
Na essência desses argumentos, reside a campanha deliberada de mostrar a futilidade das ações afirmativas de cunho racial quanto à mudança social. Essa linha não é apenas conservadora, mas retrógrada. Se fosse toda intervenção inútil, deveríamos deixar a sociedade caminhar para a barbárie extrema? Essa pergunta pode parecer inquietadora, mas se faz pertinente quando o que se tem em pauta são políticas que objetivam a “reparação histórica”. Apesar de lentas, as mudanças sociais promovem impacto ao longo dos anos.
Ribeiro (2020) observa o impacto da ocupação de pais e mães sobre a mobilidade intergeracional quando se analisa o fator raça: uma melhor formação/ocupação de pais e mães negros contribui para que os filhos tenham mais oportunidades e condições de moverem-se social e economicamente, o que valida a importância do acesso universitário como forma de amenizar e/ou combater a discriminação e as desigualdades oriundas da raça.
Essa amenização das desigualdades, por menor que seja, já se mostra capaz de promover mudanças significativas na composição social, econômica e do trabalho para pretos, pardos e indígenas, além de contribuir para a evolução da sociedade brasileira como um todo, haja vista que a qualificação educacional pode oportunizar melhores condições de trabalho, assegurando autonomia e desenvolvendo conhecimento, raciocínio crítico, cidadania e consciência social.
Em um trabalho que objetiva refletir sobre as reações contrárias à instauração de políticas de cotas raciais no Brasil, Segato (2006) pontua o que chama de “formas de eficácia”, transformações não somente no sistema educativo, mas também na sociedade, que seriam promovidas pela introdução desse sistema. A autora declara que as cotas não se restringem apenas a uma tentativa de reverter a injustiça social ou mesmo um recurso para o desenvolvimento socioeconômico, mas se consolidam como uma política que impacta em diversas dimensões (SEGATO, 2006). Assim, ela identifica dez benefícios que o programa de cotas pode proporcionar ao corpo social, ilustrados no quadro a seguir.

Esses apontamentos já refutam os argumentos sustentadores da tese da futilidade, que tentam desacreditar as possibilidades de mudanças sociais por julgá-las ineficientes. Os dados apresentados na seção anterior, referentes à crescente diversidade étnica nas universidades públicas brasileiras após a adoção do regime de cotas, também são válidos aqui.
Acrescenta-se, em conformidade com o que ocorre com qualquer política pública, que não é possível prever todos os efeitos de uma ação e controlar as variáveis e consequências que atuam de maneira simultânea e não prevista (AGUM; RISCADO; MENEZES, 2015; FERES-JÚNIOR; ZONINSEIN, 2005; SECCHI, 2013). Justamente por isso, as políticas públicas, e em especial, aqui, as ações afirmativas de caráter racial, devem estar sempre desobstruídas a avaliações e a reformulações para o bem da sociedade.
É fato que há um longo caminho a ser percorrido até que as mudanças alcancem resultados mais significativos e em outros âmbitos da sociedade. O desemprego, por exemplo, permanece mais alto entre pretos e pardos (que constituem a maior parte da força de trabalho do país) do que entre brancos; além disso, pretos e pardos recebem até 31% a menos (DESIGUALDADES..., 2019). A população preta e parda também é a que mais sofre com a informalidade, a precarização das condições de trabalho, com a menor remuneração e a baixa ocupação de cargos gerenciais em relação aos brancos (MAIA; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021). Também há muitos desafios em relação à representatividade de negros e pardos nos cargos políticos do país (DINIZ; SÖHNGEN, 2021).
No entanto, apesar dos desafios a serem superados, esses números não invalidam a pertinência das ações afirmativas; ao contrário, as repercussões positivas alcançadas nas universidades demonstram que é possível transpô-las para o mercado de trabalho. Trata-se, por conseguinte, de uma medida consequencialista, orientada para o futuro. Portanto, seus resultados se mostram no decorrer do tempo, a partir do reconhecimento e da valorização, por meio dessas ações de cunho reparatório e inclusivo, dos grupos excluídos (AMARAL, 2019).
Ademais, cumpre acrescentar que as ações afirmativas, considerando seu caráter temporário e específico, não pretendem resolver todos os problemas sociais, mas, antes, visam contribuir sobre o que é possível em seu âmbito de ação. A implementação das cotas nas universidades não dispensa políticas públicas de erradicação das desigualdades sociais, de melhoria da escola pública, de combate à pobreza e às disparidades regionais e, sobretudo, não substitui programas governamentais estruturais e estruturantes que objetivem reverter o quadro de exclusão existente no país.
Apesar de os indicadores apontarem para a melhoria da qualidade da educação básica da rede pública na última década no Brasil, ainda assim a adoção das cotas tem se mostrado fundamental para a inclusão. O ingresso de negros não teria sido possível na mesma proporção sem as garantias advindas de ações afirmativas raciais (SILVA; BORBA, 2018), o que nos aponta para a total necessidade das cotas em detrimento de qualquer argumento que tente torná-las fúteis.
A mais sofisticada das teses descritas por Hirschman (1992), a tese da ameaça, se baseia nos argumentos de que o custo das mudanças progressistas é muito alto e que ele sempre coloca em risco outra realização anterior. Esses argumentos tentam mostrar o quanto se pode perder ao mudar a sociedade e, desse modo, trabalham com o medo da mudança e da perda, que são comuns à maioria das pessoas.
A tese da ameaça mostra-se mais elaborada e desafiadora que as duas anteriores, visto que seus argumentos reconhecem a importância da mudança, mas se propõem a provar que o preço a pagar por ela é alto demais e não vale a pena. O que está na essência de todos os seus argumentos é a ameaça a algo que não se pode colocar em risco (HIRSCHMAN, 1992). Do ponto de vista dessa retórica, é melhor não fazer nada para não se criar expectativas nos excluídos e abrir um precedente que o governo não poderá atender.
Baseada nos argumentos do princípio gerador de expectativas e precedente perigoso, esta tese, quando empregada contra as ações afirmativas raciais, transforma-se em retóricas como: “propõem cotas para universidade hoje, mas amanhã vão querer a maioria das vagas”; “começa com pedido de igualdade de acesso, mas depois vão querer superioridade para vingar o passado”; “hoje querem cotas para negros e indígenas, depois será para os homossexuais”.
Essas falácias podem ser contra-argumentadas por meio da História do Brasil. Aqui, a escravidão durou mais de três séculos, de 1550 até 1888. Ao longo desse tempo, negros foram alvo de extrema violência, além de serem impedidos de ter acesso a recursos e oportunidades básicas (ALMEIDA, 2018). Na contemporaneidade, no que se refere aos signos sociais, o fenótipo negro ainda carrega o peso desse passado escravocrata, o que resulta na discriminação e no racismo, às vezes velado, por vezes explícito, ainda que seja configurado crime previsto na Lei 7.716/89 (BRASIL, 2012; GOMES, N., 2017; SOUZA; MENDES; REIS, 2021).
Portanto, as políticas de ações afirmativas, precisamente as cotas raciais, pretendem, como já dito, reparar as sequelas que a escravidão deixou na sociedade. Essa reparação histórica se dá por meio da oportunidade de acesso dos negros à educação pública de qualidade que, em uma perspectiva futura, proporcionará a igualdade de oportunidades. Nas palavras de Cordeiro (2013, p. 34), as políticas de cotas são “um caminho para a superação da igualdade formal para uma igualdade real”.
Conforme mencionado na segunda seção deste artigo, a Lei de Cotas completa dez anos em 2022 e ainda estamos distantes do dia em que se poderá dizer que a desigualdade e a discriminação social e racial foram superadas. Logo, argumentos contrários a essas ações afirmativas, os quais se baseiam na suposta “vingança” dos negros contra os brancos ou mesmo na ampliação das cotas para outros públicos excluídos, não se sustentam em dados e conhecimentos empíricos, até porque, desde sua aprovação em 2012, a Lei de Cotas na educação superior não acarretou nenhum “motim” por parte dos beneficiários das cotas ou algo semelhante; ao contrário, tornou a universidade diversa e plural – mais semelhante à sociedade brasileira (GUIMARÃES; RIOS; SOTERO, 2020).
Ademais, a própria evolução da sociedade e do pensamento político podem levar à ampliação das ações afirmativas para além do acesso à universidade. E isso, advogamos aqui, não é decorrência negativa das cotas, mas antes uma reparação ainda parcial perto de nossa história de exclusão e oportunidades desiguais para pretos, pardos e indígenas.
Por meio deste artigo, buscamos refletir a respeito das retóricas conservadoras e reacionárias em torno das cotas de recorte racial na educação superior a partir dos argumentos contrários proferidos contra a implementação desta política e contrapô-los a dados de pesquisas que reforçam os resultados favoráveis desta ação afirmativa adotada nas universidades públicas do Brasil a partir da aprovação da Lei 12.711/12.
O levantamento de estudos e pesquisas nos permitiu defender a legitimidade da política de cotas enquanto mecanismo de promoção do acesso mais igualitário de pretos e pardos à universidade e da democratização deste espaço público. Embora ainda não se possa dizer que o problema da desigualdade foi superado, ao contrário, há um longo caminho a ser percorrido, é possível reconhecer que houve avanço no que tange à equiparação de oportunidades à população negra.
Consideramos que as posturas contrárias às ações afirmativas se mostram alinhadas às ideias conservadoras e reacionárias, uma vez que visam a preservação das estruturas sociais, ao passo que a defesa das cotas raciais revela uma postura progressista, reconhecendo a necessidade de ações, sobretudo por meio de políticas públicas, que promovam o aprimoramento da sociedade, isto é, o combate às desigualdades historicamente estabelecidas.
A realização do estudo das narrativas argumentativas intransigentes contra as cotas na educação, analisadas a partir das três teses da Retórica da Intransigência descritas por Hirschman (1992), nos permite compreender a estrutura de discursos conservadores e reacionários, o que, esperamos, possa ser útil ao debate à luz da teoria política.
A contribuição de Hirschman, em nosso entendimento, ultrapassa a discussão sobre conservadorismo, reacionarismo e progressismo em torno das cotas raciais e auxilia-nos a pensar a democracia como um todo e a necessidade de fortalecimento do campo do debate pautado, sobretudo, em mensuração das políticas públicas e seus efeitos.
Cumpre salientar que, entre o otimismo dos progressistas e o pessimismo de conservadores e reacionários, há espaço para várias interações retóricas, discursivas e argumentativas, tão necessárias em uma democracia. Sabe-se que a exclusão social e o racismo levam à necessidade de implantar medidas que objetivam a igualdade, como a adoção de um sistema de equidade diante das dificuldades enfrentadas pelos indivíduos e grupos sociais estigmatizados.
Ainda que alguns resultados sejam passíveis de intervenção e correção no rumo da política de cotas, isso, obviamente, não invalida os resultados benéficos alcançados e a tentativa de reversão de uma ordem social excludente, desigual, injusta e inumana para com a população preta e parda. De fato, não se trata de defender aqui que ações afirmativas de recorte racial nas universidades e os resultados produzidos por elas serão sempre positivos. Todavia, há que se pensar em cada contexto social em que tais ações são implementadas e verificar in loco os resultados positivos ou negativos de sua efetivação, bem como os desafios a serem superados para o aprimoramento desta política pública.
Ao longo desses dez anos, novos desafios surgiram em torno da implementação das cotas: a instituição de melhores ferramentas e mecanismos de controles de acesso e de acompanhamento dos candidatos e ingressantes por cotas, o aperfeiçoamento da atuação das comissões de validação e verificação da heteroidentificação (JESUS, 2018; SANTOS, 2021), a descolonização dos currículos (SOUZA; MENDES; REIS, 2021), a incorporação de saberes, eventos, pautas, autores e obras que valorizem a cultura de negros e pardos e possam enriquecer o ambiente acadêmico (GUIMARÃES; RIOS; SOTERO, 2020) dentre outros.
A revisão da Lei de Cotas e o debate acerca da continuidade dessa política, num momento em que o conservadorismo e a extrema direita ganham força no país, requerem uma atenção redobrada sob o risco de tornarmos o debate raso, perdendo a oportunidade de aprimoramento e de instituição de novos mecanismos que possam tornar a Lei 12.711/12 ainda mais efetiva no atendimento às demandas sociais surgidas ao longo da implementação desta tão importante política pública de promoção da igualdade. Ressaltamos o papel fundamental do Movimento Negro, cuja luta nos possibilitou caminhar para uma sociedade mais justa e cujas novas formas de atuação, sobretudo por meio dos coletivos negros universitários, muito têm a contribuir na sustentação do debate e na construção de novos caminhos (GOMES, N., 2017; GUIMARÃES; RIOS; SOTERO, 2020).
É necessário reconhecer que a mudança das estruturas sociais é processual e apenas a partir do ingresso e da inclusão de negros e pardos na universidade é que poderemos contribuir para a reversão do racismo e o rompimento com a lógica de segregação e exclusão, seja do ambiente acadêmico, seja de outros espaços sociais.
Por fim, animando aqueles que desejarem empreender a desafiadora mas fundamental tarefa de superação do discurso intransigente tradicional em relação às cotas raciais na educação, debatendo a construção de novos objetivos, recorremos a Hirschman (1992, p. 140), que nos alerta só haver um caminho: a construção de um diálogo amistoso e democrático.
