Resumo: A Câmara dos Deputados tem presenciado uma ofensiva conservadora desde meados dos anos 2000 contra os direitos das mulheres e da população LGBTQI+. Este artigo tem por objetivo discutir como parlamentares progressistas atuaram no debate e tramitação de dois projetos de lei exemplificativos da disputa naquele espaço: o PL 6583/2013 (busca instituir o Estatuto da Família) e o PL 7180/2014 (relativo ao projeto Escola sem Partido). Foram analisados 294 discursos proferidos em plenário sobre os projetos, e 294 fichas relativas aos pronunciamentos nas comissões. A análise mostra que há parlamentares que atuaram de forma ativa nos dois projetos, indicando um comprometimento em relação à defesa desses direitos; e que esses/as deputados/as são de partidos de esquerda. Além dos discursos, parlamentares fizeram manobras com vistas a não votação dos projetos, sendo bem-sucedidos no caso do Escola sem Partido, e sendo derrotados no que se refere ao Estatuto da Família, aprovado em 2015.
Palavras-chave: Câmara dos Deputados, Debate parlamentar, Reação conservadora, Direitos das mulheres, Direitos da população LGBTQI+.
Abstract: The Chamber of Deputies has witnessed a conservative offensive since the mid-2000s against the rights of women and the LGBTQI+ population. This article aims to discuss how progressive parliamentarians acted in the debate and processing of two bills that illustrate the dispute in that space: PL 6583/2013 (seeking to institute the Family Statute) and PL 7180/2014 (relating to the School without Party project). 294 speeches given in plenary on the projects were analyzed, as well as 294 sheets relating to statements in the commissions. The analysis shows that there are parliamentarians who acted actively in the two projects, indicating a commitment in relation to the defense of these rights; and that these deputies are from left-wing parties. In addition to the speeches, parliamentarians made maneuvers aiming at not voting on the projects, being successful in the case of the School without a Party, and being defeated with regard to the Family Statute, approved in 2015.
Keywords: Chamber of Deputies, Parliamentary debate, Conservative reaction, Women’s rights, LGBTQI+ rights.
Resumen: La Cámara de Diputados ha presenciado una ofensiva conservadora desde mediados de la década de 2000 contra los derechos de las mujeres y la población LGBTQI+. Este artículo tiene como objetivo discutir cómo actuaron los parlamentarios progresistas en el debate y tramitación de dos proyectos de ley que ilustran la disputa en ese espacio: PL 6583/2013 (que busca instituir el Estatuto de Familia) y PL 7180/2014 (relativo al proyecto Escuela sin Partido). Se analizaron 294 discursos pronunciados en plenaria sobre los proyectos y 294 expedientes relacionados con declaraciones de las comisiones. El análisis muestra que hay parlamentarios que actuaron activamente en los dos proyectos, indicando un compromiso en relación con la defensa de estos derechos; y que estos diputados son de partidos de izquierda. Además de los discursos, los parlamentarios realizaron maniobras con el objetivo de no votar los proyectos, teniendo éxito en el caso de la Escuela sin Partido y siendo derrotados respecto al Estatuto de Familia, aprobado en 2015.
Palabras clave: Cámara de Diputados, Debate parlamentario, Reacción conservadora, Derechos de las mujeres, Derechos de la población LGBTQI+.
Artigo
Disputas sobre gênero e sexualidade: o papel de parlamentares progressistas na Câmara dos Deputados no Brasil
Disputes about gender and sexuality: the role of progressive parliamentarians in the Chamber of Deputies in Brazil
Disputas sobre género y sexualidad: el papel de los parlamentarios progresistas en la Cámara de Diputados de Brasil
Recepção: 01 Dezembro 2021
Aprovação: 11 Abril 2022
Desde ao menos a Constituinte formada para a elaboração da Constituição Federal de 1988, os direitos das mulheres e de lésbicas, gays, travestis e transsexuais, queers, pessoas intersexo e outras pessoas com identidades não-cis-heteronormativas (LGBTQI+) estão em disputa na política institucional brasileira1. Naquele momento, os movimentos feministas e de mulheres conseguiram avanços importantes, mas o direito ao aborto não foi um deles, e a proibição de discriminação em razão da “orientação sexual” também não constou no texto da Carta Magna. Nos anos que se seguiram, direitos foram sendo progressivamente conquistados, seja por meio do Executivo, seja pelo Judiciário. O Legislativo vinha sendo o Poder menos propenso à aprovação de mudanças em direção a mais direitos para as mulheres e para a população LGBTQI+, mas desde o golpe parlamentar2 que retirou a primeira presidenta eleita do país, o Executivo também tem se apresentado mais conservador e reacionário.
Até meados dos anos 2000, a Câmara dos Deputados vinha sendo um espaço conservador – sendo este termo entendido no sentido de uma ideologia que busca se contrapor a mudanças –, e alterações profundas em questões controversas relativas aos direitos das mulheres e da população LGBTQI+ não foram realizadas. Porém, a partir desse momento, observa-se naquele espaço uma articulação mais organizada de deputados conservadores e religiosos em busca de barrar avanços na legislação relativa aos direitos das mulheres – especificamente ao direito ao aborto, de início –, e posteriormente, se organizam em direção a retrocessos relativos também aos direitos da população LGBTQI+.
Diferentes pesquisas têm tratado da ofensiva conservadora naquele espaço (LACERDA, 2018; MACHADO, 2018; LUNA, 2017), porém, o papel e a atuação de deputadas/os comprometidas/os com os direitos das mulheres e da população LGBTQI+ têm recebido menos destaque. Por entender que essa atuação, mesmo minoritária, tem sido importante e deve ser mais bem compreendida, as questões centrais discutidas neste trabalho são quem foram e como atuaram parlamentares contrários aos projetos de lei relativos ao Estatuto da Família - PL 6583/2013 (BRASIL, 2013), e ao Escola sem Partido - PL 7180/2014 (BRASIL, 2014), e qual papel tiveram na tramitação desses projetos.
As propostas relativas ao Estatuto da Família e ao Escola sem Partido (ESP) podem ser consideradas como duas das iniciativas mais radicalmente contrárias aos direitos das mulheres e da população LGBTQI+ que conseguiram tramitar na Câmara dos Deputados de forma bem-sucedida no período recente. Em ambos os casos, foram criadas comissões especiais para discutir os projetos, um indicativo do sucesso da articulação conservadora em torno desses temas, já que a tramitação nessas comissões pode ser mais rápida. Além disso, ambos tiveram uma grande repercussão pública.
O projeto do ESP está inserido em um movimento visto também em outros países da América Latina e da Europa que busca restringir políticas educacionais relacionadas a gênero e sexualidade e defende a autoridade familiar (BIROLI, 2019). O Estatuto da Família pretendia excluir outros arranjos familiares da definição de família e do acesso a políticas públicas direcionadas a essa população. Uma enquete realizada no site da Câmara dos Deputados exemplifica a atenção que o estatuto despertou: foram mais de 10 milhões de votos para a pergunta: “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?”. O “não” ganhou por uma pequena margem de votos, com 51,62%, enquanto o “sim” obteve 48,09% (PRAZERES, 2015).
Como se verá adiante, há semelhanças de assuntos e atores/ atrizes que participaram do embate de ambas as ofensivas, mas há também diferenças importantes. Enquanto é possível afirmar que o Estatuto da Família é um projeto que se forjou e ganhou força dentro da Câmara dos Deputados, primeiramente, apesar de também ter se expandido para fora daquele espaço posteriormente, o caso do ESP é diferente, porque já existia um movimento na sociedade civil articulando essa pauta, que chegou à Câmara dos Deputados e ganhou força posteriormente. Essa diferença pode ser um dos elementos que ajudam a explicar porque um dos projetos foi aprovado na Comissão Especial, e o outro, não.
Este artigo busca refletir sobre a atuação de parlamentares que se opuseram a esses dois projetos de lei tanto no plenário da Câmara dos Deputados quanto nas comissões. Para isso, parte-se da análise de discursos proferidos em plenário e nas comissões e dos documentos que embasaram a atuação desses/as parlamentares, como requerimentos, votos em separado e recursos. O site da Câmara dos Deputados tem uma ferramenta de busca por discursos proferidos em plenário e disponibiliza notas taquigráficas de algumas reuniões ou audiências públicas das comissões. No total, foram analisados 294 discursos proferidos em plenário sobre os projetos analisados3, e todos foram fichados no software estatístico Sphinx Lexica. Em relação aos discursos nas comissões, para cada parlamentar ou convidado que se pronunciou durante a reunião, foi preenchida uma ficha no mesmo software. Mesmo que o/a deputado/a ou convidado/a falasse mais de uma vez, o que é bastante comum, foi feita apenas uma ficha por deputado/a que discursou por reunião. Além disso, não foram fichados discursos quando o/a parlamentar não falava do tema, se pronunciando apenas sobre aspectos burocráticos, como questões de ordem. No total, foram analisadas 294 fichas de pronunciamentos de parlamentares em comissões.4
O artigo está organizado em outras três seções além desta introdução. Na próxima, contextualiza-se a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados, especialmente a articulação em torno dos projetos discutidos neste trabalho. Na terceira, são apresentadas as atuações de parlamentares que buscaram se contrapor aos projetos analisados neste artigo. Por fim, nas considerações finais, discute-se a relevância de representantes comprometidos/as com os direitos das mulheres e LGBTQI+.
A ofensiva contra os direitos das mulheres e da população LGBTQI+ na Câmara dos Deputados é observada ao menos desde meados dos anos 2000, quando foi criada a Frente Parlamentar em Defesa da Vida - Contra o Aborto, cujo primeiro presidente foi Luiz Bassuma (PT/BA). Porém, essa atuação tem se intensificado e é colocada por autoras como um diferencial do que era até então caracterizado como conservadorismo, para se referir ao contexto brasileiro atual como neoconservador.
Há vantagens e desvantagens no uso do termo neoconservadorismo. Conforme salientam Vaggione, Machado e Biroli (2020), a palavra destaca a atualidade do fenômeno, permitindo a análise das alianças realizadas em um contexto específico, e também joga luz sobre o fato de que a atuação e as conquistas dos movimentos feministas e LGBTQI+ são centrais para a compreensão da situação. Os autores propõem cinco dimensões para analisar o neoconservadorismo na América Latina: a aliança entre diferentes setores, como católicos e evangélicos; uma juridificação da moralidade mais intensa; a atuação em contextos democráticos; o caráter transnacional; e a relação com o neoliberalismo, localizando a família como aspecto central da sociedade.
Machado (2017) argumenta que esse neoconservadorismo tem origem na mobilização em torno do aborto na Câmara dos Deputados, desde meados de 2005, quando foi criada uma Comissão Tripartite que discutiria a temática e deputados religiosos e conservadores se articularam com o Executivo e conseguiram ram retirar o apoio inicial daquele Poder em relação à questão, esvaziando o movimento que demandava a ampliação do direito ao aborto. Segundo Lacerda (2018), o diferencial do neoconservadorismo para outras ideologias conservadoras é o foco nas questões sexuais, reprodutivas e sobre a família. Dessa forma, no caso brasileiro, ele se fortalece como reação ao feminismo e às demandas dos movimentos LGBTQI+. “Existe, na Câmara dos Deputados brasileira, uma articulação neoconservadora nos moldes existentes nos Estados Unidos, mas com especificidades. Trata-se de um neoconservadorismo periférico, subalterno e tardio” (LACERDA, 2018, p. 206).
O fato de o termo neoconservadorismo ter sido utilizado originalmente para se referir a uma aliança ainda nos anos 1980 em torno da eleição do presidente Ronald Reagan nos Estados Unidos (LACERDA, 2018) traz complexidades quando o que está em análise é outro contexto, outro país, outro fenômeno que, apesar de possuir semelhanças com a situação estadunidense, também tem particularidades. Por esse motivo, o termo utilizado neste artigo para tratar da ofensiva na Câmara dos Deputados contra os direitos das mulheres e da população LGBTQI+ é conservadorismo, indicando uma reação a conquistas recentes e pressupostos dessa ideologia, como a aproximação com a religião, a importância da tradição e a compreensão do caráter desigual na sociedade5.
Alguns projetos que foram discutidos recentemente na Câmara dos Deputados são representativos desse fortalecimento do conservadorismo naquele espaço, como o Estatuto do Nascituro6, o Estatuto da Família e o Escola sem Partido (que incorporou o combate à “ideologia de gênero”). É relevante esclarecer que esses não são os únicos projetos de lei conservadores, mas a escolha por analisar o Estatuto da Família e o Escola sem Partido se justifica porque ambos atraíram grande destaque público e tiveram criadas e instituídas comissões especiais, o que permite a observação da atuação de parlamentares específicos que participavam dessas comissões e atuaram pela aprovação ou rejeição dos PLs. Além disso, nos dois casos, o projeto não está mais sendo discutido, o que não ocorre com o Estatuto do Nascituro, que nunca tramitou em Comissão Especial e continua sendo debatido nas comissões permanentes.
Em 2013, o PL 6.583/2013 (BRASIL, 2013) foi proposto, buscando estabelecer o Estatuto da Família. A proposição foi do deputado Anderson Ferreira (PR/PE). A principal finalidade era definir a “entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL, 2013a, p. 1, grifo no original). Cabe recordar que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu em 2011 uniões estáveis para casais do mesmo sexo, portanto, o PL 6583/2013 (BRASIL, 2013) foi proposto em oposição, e como reação a essa decisão. No final da 54a Legislatura, em 2014, foi criada uma Comissão Especial para discutir o PL, que não chegou a votá-lo, mas realizou diversas reuniões e audiências. Na 55a Legislatura, dessa vez com o parlamentar evangélico Eduardo Cunha (PMDB/ RJ) na presidência da Câmara dos Deputados, uma nova Comissão Especial foi criada e conseguiu aprovar o projeto do Estatuto da Família.
No mesmo período em que o Estatuto da Família estava sendo discutido, outra batalha em relação a questões de gênero e sexualidade teria início na Câmara dos Deputados. A ofensiva contra a “ideologia de gênero” busca proibir discussões em escolas e políticas que tenham a ver com gênero e sexualidade. O combate à chamada “ideologia de gênero” ganhou força com a discussão do Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2011/2020, de que deputados e senadores conseguiram retirar menções às palavras gênero e orientação sexual.
O combate à “ideologia de gênero” no caso brasileiro também está articulado com o combate a uma suposta “doutrinação marxista”. O Movimento Escola sem Partido (MESP) surgiu em 2004 e se organizava, segundo informações do site do MESP, em duas frentes: uma relativa ao Projeto Escola sem Partido que buscava transformar suas concepções em lei; e a outra era uma associação informal de pais, alunos e conselheiros que estariam preocupados com a contaminação político-ideológica do ensino básico ao superior. Em agosto de 2020, após o STF declarar que uma lei de Alagoas inspirada no ESP era inconstitucional, o fundador do movimento, Miguel Nagib, afirmou que iria descontinuar as atividades sob sua responsabilidade. Porém, esse anúncio não significou o fim das ideias e ações articuladas inicialmente pelo movimento.
O MESP pode ser caracterizado como um “movimento conservador que busca mobilizar princípios religiosos, a defesa da família em moldes tradicionais e a oposição a partidos políticos de esquerda e de origem popular” (MACEDO, 2017, p. 509). A estratégia inicial do movimento, segundo Macedo (2017), foi judicializar a relação entre professores e alunos, e depois pressionar as assembleias e câmaras para que aprovassem leis contendo suas ideias.
Na Câmara dos Deputados há projetos de lei relacionados ao movimento. O PL 7.180/2014 (BRASIL, 2014), proposto pelo deputado Erivelton Santana (PSC/BA), busca alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei 9.394/96 (BRASIL, 1996), estabelecendo que os valores de ordem familiar têm precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa. E o PL 867/15 (BRASIL, 2015a), apresentado pelo deputado Izalci (PSDB/DF), que pretende incluir, entre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o Programa Escola sem Partido.
Na Câmara dos Deputados, as discussões dessa temática se organizaram em torno do PL 7180/2014 (BRASIL, 2014) que tramitou, primeiramente, na Comissão de Educação, em 2014, sendo relatado pelo deputado Ariosto Holanda (PROS/CE), que se pronunciou de forma contrária à aprovação. O parecer não chegou a ser votado pela Comissão, e o PL foi arquivado com o fim da 54a Legislatura. Em 2015, ele foi desarquivado e enviado à Comissão de Educação novamente, tendo como relator dessa vez o deputado Diego Garcia (PHS/PR), que se pronunciou pela aprovação. Em maio de 2016, quase um ano após a apresentação do parecer de Diego Garcia na Comissão de Educação, foi criada uma Comissão Especial, e em outubro ela foi constituída. Ocorreram diversas audiências públicas e reuniões para discutir o projeto em 2017 e 2018. Desde o dia 31 de outubro de 2018, deputados favoráveis estavam tentando votar o PL, mas a oposição conseguiu obstruir votações, e o projeto acabou sendo arquivado. Na Legislatura que se iniciou em 2019, o PL foi desarquivado, e outros 13 PLs já foram apensados7.
Como informado na introdução, foram analisados discursos proferidos em plenário e nas comissões especiais em que os PLs relativos ao Estatuto da Família e ao ESP tramitaram, além dos documentos relacionados aos projetos. Cabe salientar que há uma diferença entre discursos proferidos no plenário e discursos proferidos nas comissões. No plenário, na maior parte das vezes, deputados/as escolhem de que tema irão tratar em seus discursos. Muitas vezes, tratam de mais de uma temática nos pronunciamentos. Nas comissões, o assunto discutido é definido, os discursos serão sobre o PL que a Comissão está analisando, principalmente quando as comissões são especiais, ou seja, foram criadas para discutir um projeto de lei específico. Por essa razão, optou-se por analisar a atuação de parlamentares progressistas separadamente em plenário e comissões.
No total, foram analisados 81 discursos proferidos em plenário por parlamentares sobre o Estatuto da Família, sendo que 42 eram contrários ao PL (51,9%). Um quinto do total de discursos foi feito por deputadas mulheres (19,8%), e nenhuma delas se pronunciou a favor do Estatuto. Entre os deputados homens, 46,2% se pronunciaram a favor e 40% foram contra. O restante não se posicionou.
Os argumentos mais mobilizados nos discursos contrários ao Estatuto foram a ideia de que o projeto discrimina e exclui outros arranjos familiares que não são baseados na união entre um homem e uma mulher; promove a homofobia ao buscar proibir o reconhecimento de uniões homoafetivas como famílias; se opõe à decisão do STF de reconhecer os direitos dessas uniões; é atrasado e não acompanha as mudanças pelas quais o país passou e que provocaram transformações nas famílias; e não leva em consideração o afeto para a definição de família. Além desses argumentos mais comuns, parlamentares ressaltaram que o projeto viola a democracia e é inconstitucional; que o Estado não deve legislar definindo o que é uma família; e que o Estatuto ignora a violência que ocorre dentro das famílias, assegurando “ao homem heterossexual sua suposta condição de superioridade”8.
É importante observar quem são os/as parlamentares que mais trouxeram a temática para seus discursos em plenário, já que isso seria um forte indicativo de que estão interessados diretamente no tema, porque poderiam tratar de outros assuntos em seus pronunciamentos. Nesse sentido, dois deputados/as se destacam: Erika Kokay (PT/DF) e Ivan Valente (PSOL/SP). Kokay proferiu dez discursos mencionando o assunto, enquanto Valente proferiu oito. Outras/os cinco parlamentares realizaram mais de um discurso sobre o Estatuto, são elas/es: Maria do Rosário (PT/ RS), com três pronunciamentos; e Chico Alencar (PSOL/RJ), Glauber Braga (PSOL/RJ), Jean Wyllys (PSOL/RJ) e João Daniel (PT/SE), todos com dois discursos. A título de comparação, os deputados Alan Rick (PRB/AC) e Flavinho (PSB/SP) fizeram cinco discursos cada -todos favoráveis ao Estatuto da Família.
Já em relação ao Escola sem Partido, a situação é bastante diferente porque a atuação de parlamentares contrários ao projeto/ movimento foi muito mais intensa no plenário. Em um total de 220 discursos analisados, 168 pronunciamentos (76,4%) eram contrários ao ESP. As mulheres pronunciaram 25% dos discursos, sendo somente um favorável ao PL, ou seja, a defesa do ESP também foi protagonizada no plenário por deputados homens. É relevante ressaltar que o projeto se tornou bastante popular, mas houve uma reação muito grande de professores e organizações relacionadas à educação que se posicionaram de forma contrária, o que talvez ajude a explicar o fato de poucos parlamentares terem ido ao plenário defendê-lo.
Nos discursos contrários ao ESP, as/os parlamentares criticaram a precedência dos valores familiares sobre os currículos escolares; ressaltaram a necessidade de se construir um ambiente escolar plural, democrático e sem censura; contra-argumentaram a ideia de que o projeto visava acabar com a ideologia, afirmando que “a ideologia está presente em todas as coisas, nas pessoas, na cultura, na religião, em todos os valores da sociedade”9; e destacaram um problema de ordem prática que diz respeito a quem vai dizer o que é doutrinação ou se determinada aula está “dentro da normalidade democrática”10. É possível observar nos discursos também a denúncia de que temáticas importantes ficariam ausentes das discussões caso o projeto fosse aprovado e que a educação é relevante para a transformação do mundo, para combater privilégios e para a luta contra as opressões.
Quatro deputados/as se destacaram nessa discussão no plenário: Chico Alencar, Erika Kokay e Ivan Valente, com 17 discursos cada; e Alice Portugal (PCdoB/BA), com 14 pronunciamentos. Outras/os 22 parlamentares fizeram dois discursos ou mais sobre o assunto em plenário. Os/as seguintes fizeram cinco ou mais discursos: cursos: Benedita da Silva (PT/RJ), Bacelar (PTN/BA), Glauber Braga, Luiz Couto (PT/PB), Carlos Zarattini (PT/SP), Leo de Brito (PT/AC), Maria do Rosário e Pedro Uczai (PT/SC). Os deputados favoráveis ao projeto que estão na lista dos que mais se pronunciaram são Izalci (PSDB/DF), Lincoln Portela (PR/MG), Pastor Eurico (Patriota/ PE) e Rogério Marinho (PSDB/RN), cada um com cinco discursos.
Para além das/os parlamentares individualmente, os partidos e suas ideologias são fatores que fizeram diferença quando analisamos os discursos e as posições defendidas. A grande quantidade de partidos no país torna complexa e não consensual na literatura a tarefa de classificá-los quanto a sua ideologia. Neste trabalho, foi utilizada a categorização proposta por Scheeffer (2018), que classificou como partidos de esquerda: PT, PSOL, PSTU, PHS, PCB, PCO, PCdoB, PDT, PPS, PSB, PV, PMN, PPL e REDE; como partidos de centro: PMDB e PSDB; e o restante dos partidos brasileiros foram classificados como de direita.
No que se refere aos discursos no plenário sobre os projetos analisados neste artigo, 88% dos pronunciamentos contrários ao Estatuto da Família (em um total de 42) foram feitos por deputados/as de partidos de esquerda: PT (20 discursos), PSOL (14 discursos), PCdoB (2 discursos) e PSB (1 discurso). Em relação ao ESP, o padrão se repete: em um universo de 171 pronunciamentos contrários ao projeto, 92,3% foram feitos por parlamentares de partidos de esquerda: PT (78 discursos), PSOL (47 discursos), PCdoB (25 discursos), PSB (5 discursos) e PDT (3 discursos). Esses dados trazem uma informação relevante: a defesa dos direitos da população LGBTQI+, das mulheres, de estudantes e professoras/ es no plenário da Câmara dos Deputados foi protagonizada por partidos e parlamentares de esquerda.
Esses dados corroboram os achados de Scheeffer (2018), que analisou votações na Câmara dos Deputados no primeiro governo de Dilma Rousseff (2011-2015) e concluiu que partidos de esquerda são mais preocupados com o meio ambiente e mais progressistas em relação a questões morais, e os de direita, mais conservadores. Tanto o PT quanto o PSOL são partidos próximos do movimento feminista e do movimento LGBTQI+. Santos (2016a) mostra, por exemplo, que PT e PSOL foram os partidos com mais candidatos LGBTQI+ e/ou que assumiam as demandas do movimento entre 2002 e 2012. Além disso, o PT foi o primeiro partido a criar uma setorial de Gays e Lésbicas no país, criando a Setorial Nacional LGBT em 2010 (SANTOS, 2016b). Essas iniciativas corroboram a ideia de que partidos de esquerda estão mais preocupados com a defesa dos direitos da população LGBTQI+ e que há uma maior probabilidade de parlamentares desses partidos defenderem direitos desses grupos.
Apesar de parlamentares de partidos de esquerda pronunciarem a grande maioria dos discursos progressistas, o deputado Bacelar (PTN/BA) foi uma exceção, já que sempre fez parte de um partido de direita11. Deputado federal desde 2015, Bacelar informa em seu site que a “luta contra a violência que afeta os jovens negros, a defesa de todo modelo de família e a atração de novos investimentos para a Bahia” são parte de suas bandeiras12. No total, ele realizou sete discursos no plenário sobre os temas pesquisados e também foi ativo nas comissões, como será possível observar na próxima seção.
O caso de Bacelar mostra que, apesar de a ideologia dos partidos ser um elemento importante nas posições defendidas no debate, ela nem sempre é determinante. O trabalho de Miguel, Biroli e Mariano (2017) já mostrou que no debate sobre aborto na Câmara dos Deputados, entre 1991 e 2014, a interrupção da gestação foi mais defendida por parlamentares de partidos de esquerda, sendo irrisória entre integrantes de agremiações de centro e direita. No entanto, naquela ocasião, mesmo entre deputados de esquerda, a posição mais frequente foi contrária ao direito ao aborto (48% dos discursos, contra 28% favoráveis à ampliação da legislação e o restante em que a posição foi pela manutenção da lei ou não se assumiu posição). É importante enfatizar que na discussão sobre aborto, um dos principais atores contrários foi o deputado Luiz Bassuma (PT/BA), que acabou sendo expulso do partido em função dessa posição.
Nos casos analisados neste artigo, ocorre o inverso: um parlamentar de um partido de direita defendendo direitos da população LGBTQI+. Ambas as situações mostram a complexidade da relação entre ideologia e direitos de mulheres e da população LGBTQI+, mas também indicam que esses casos são mais exceções do que a regra, podendo ser afirmado que, em geral, partidos de esquerda são mais progressistas em questões ditas morais, enquanto os de direita são mais conservadores.
Os discursos em plenário nos ajudam a identificar parlamentares que mais se interessaram pelos temas e os julgavam como relevantes para tratar em seus discursos. Já os debates nas comissões possibilitam observar a atuação de parlamentares durante a discussão nas audiências e, o que é mais importante para os fins deste trabalho, analisar as estratégias utilizadas nos momentos que antecedem as votações dos projetos. Nos próximos parágrafos, a tramitação dos dois projetos analisados será apresentada, destacando a atuação de parlamentares progressistas nessas reuniões.
No início de 2014, foi criada uma Comissão Especial para discutir o PL 6583/2013 (BRASIL, 2013) que buscava instituir o Estatuto da Família. Foram realizadas dez reuniões ou audiências públicas da Comissão Especial13, e foram analisadas notas taquigráficas de nove delas, que ocorreram entre abril e junho de 2014. No total, há 25 fichas que categorizam a participação de deputados/as nas reuniões e 17 sobre a participação de convidados/as. Observando apenas deputados/as, 80% das fichas são de deputados homens, indicando que eles participaram mais das reuniões. E em 64% das fichas, o Estatuto foi defendido. A única deputada que participou e se posicionou contrariamente ao PL foi Erika Kokay, no dia 14 de maio de 2014. Em muitos discursos, não foi apresentada uma posição sobre o PL.
Durante a reunião em que Kokay participou, chama a atenção a maneira informal como o deputado Silas Câmara (PSD/AM), que presidia a Comissão, se refere à deputada, chamando-a de “amiga” e “querida” após ela afirmar que os requerimentos aprovados pela Comissão eram inconstitucionais. Em um dos momentos, a deputada pede que o presidente se acalme e não eleve o tom de voz. Na mesma reunião, o deputado Silas Câmara também se dirige à deputada Margarida Salomão (PT/MG) como “querida”. Na maior parte das vezes, quando se referem a outros/as parlamentares, os/as oradores/as os/as chamam de senhores ou senhoras, por isso as expressões “amiga” e “querida” chamam atenção e indicam violência política de gênero contra as mulheres deputadas.
A sub-representação das mulheres nos espaços de poder é um grave problema no Brasil. No período em que os discursos analisados neste trabalho foram pronunciados, as mulheres parlamentares ocupavam pouco mais de 10% das cadeiras da Câmara dos Deputados. Mesmo assim, elas exerceram um papel relevante no debate, discursando contrariamente aos projetos no plenário e atuando de forma muito ativa nas comissões em momentos decisivos, mesmo sendo alvo de violência política, fenômeno que tem sido frequente em diferentes países da América Latina.
Após as audiências públicas, o relator Ronaldo Fonseca (PROS/ DF) apresentou o substitutivo. Foram apresentadas 11 emendas ao substitutivo, todas pela deputada Erika Kokay (PT/DF), que sempre se posicionou contrariamente à definição de família restrita a um casal heterossexual. As emendas buscavam: adequar o PL à decisão do STF que considerou a união homoafetiva como constitucional; retirar a garantia do direito à vida desde a concepção; retirar artigo que prevê internação compulsória de dependentes químicos; implementar medidas de valorização da frequência dos pais nas escolas; incluir nos currículos do ensino fundamental e médio conteúdo relativo a direitos das crianças e adolescentes e à violência doméstica e familiar; e incluir medidas para coibir a violência doméstica e familiar.
No mérito, o relator não acatou nenhuma das emendas, nem as relativas à violência doméstica e familiar foram incorporadas ao substitutivo. O parecer às emendas só foi apresentado em dezembro. Como a 54a Legislatura já estava chegando ao fim, o projeto não foi votado em 2014. A deputada Manuela D’Ávila (PCdoB/ RS) apresentou voto em separado, argumentando que não existe nenhum impedimento para que casais do mesmo sexo consigam desempenhar qualquer atividade familiar - contrariando a ideia do relator de que a família possui deveres específicos e por isso sua definição não poderia abarcar arranjos mais plurais.
Em 2014, houve eleições para o Congresso, e a bancada eleita suscitou notícias de que era a mais conservadora das últimas décadas. Nesse contexto, com o deputado evangélico Eduardo Cunha (PMDB/RJ) na presidência da Câmara dos Deputados, foi criada outra Comissão Especial para discutir o Estatuto da Família. Foram realizadas diversas audiências públicas em outros estados para a discussão do projeto, mas há notas taquigráficas disponíveis para apenas quatro eventos da Comissão Especial que foi criada em 2015, sendo que três delas se referem às últimas reuniões deliberativas da Comissão, nas quais o projeto foi votado, e elas tiveram grande participação principalmente de parlamentares contrários ao Estatuto.
No total, há 64 fichas sobre participações nas reuniões e audiências da Comissão Especial que funcionou em 2015, sendo que 62 são de parlamentares. Olhando apenas a atuação de deputados/as, nota-se que 87,1% dos participantes eram homens, e 77,4% das fichas têm posição favorável ao Estatuto. Há três parlamentares que participaram e discursaram nas quatro reuniões para as quais as notas taquigráficas estão disponíveis: Erika Kokay, Flavinho (PSB/SP) e Marcos Rogério (PDT/RO).
Em setembro de 2015, o relator do projeto na Comissão, deputado Diego Garcia (PHS/PR), apresentou seu parecer14. Foi apresentada uma emenda ao substitutivo pelo deputado Bacelar (PODE/BA), propondo a ampliação da definição de entidade familiar de forma a abarcar uniões por laços sanguíneos ou afetivos originadas pelo casamento, união estável ou afinidade (BRASIL, 2015c). Porém, o relator Diego Garcia não a acatou. E a deputada Erika Kokay apresentou voto em separado. Utilizando argumentos mobilizados por ministros do STF em sua decisão sobre uniões homoafetivas, a deputada classificou como inconstitucional qualquer interpretação que indique a obrigatoriedade de um homem e uma mulher para classificar uma união estável. A parlamentar também defendeu o afeto como elemento essencial para a definição de família e criticou os conselhos familiares previstos no Estatuto, identificando-os como “órgãos evidentemente concebidos para estabelecer uma verdadeira ditadura religiosa a perseguir pessoas que tenham arranjos familiares não aceitos pelos conservadores” (BRASIL, 2015d,p. 14-15).
As votações do projeto e dos destaques ocorreram em setembro e outubro de 2015. As reuniões em que ocorreram as votações do projeto de lei (24/09/2015) e dos destaques (1º e 8/10/2015) foram bastante turbulentas porque deputadas/os contrárias/os ao Estatuto utilizaram diferentes estratégias para impedir e/ou atrasar a votação. Uma das deputadas mais ativas nessa oposição ao projeto foi Erika Kokay (PT/DF), que realizou diversos discursos em todos os momentos possíveis e apresentou questões de ordem para tentar impedir a votação. Na primeira reunião de votação, o deputado Glauber Braga (PSOL/RJ) perguntou ao presidente da Comissão, deputado Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ), se ele havia feito algum acordo com o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, para que ele não iniciasse a ordem do dia.15
Outra deputada que se pronunciou de forma contrária ao Estatuto foi Maria do Rosário (PT/RS), tendo protagonizado um momento de embate direto com o relator Diego Garcia (PHS/PR). Em sua fala, a deputada disse que o relator deveria retirar a parte em que trata sobre pedofilia do relatório, afirmando que não era correto caracterizar uma “relação doentia e criminosa” como afeto. Após esse e outros comentários sobre o relatório, o deputado Diego Garcia pediu um aparte para dizer que se sentia ofendido por ela dizer que gostaria de mais dedicação, já que a própria deputada não havia se dedicado à Comissão, sendo a primeira vez que ela estaria naquele espaço. Ela respondeu que o relatório não estava “à altura da legislação sobre família no Brasil”16, que tinha vergonha do relatório apresentado e ressaltou que era cristã e católica, afirmando ainda que: “Seria totalmente dispensável dizer isso. Mas não aceito que ninguém aponte o dedo, porque Jesus Cristo não é cabo eleitoral de quem quer que seja”17. Além dela, o deputado Glauber Braga (PSOL/RJ) se autoidentificou como cristão em uma das reuniões. Esse recurso à autoidentificação religiosa parece ser uma forma até dos deputados progressistas legitimarem sua posição.
Outra questão que merece ser destacada em relação às reuniões é a importância de deputadas mulheres se colocando contrariamente ao projeto, principalmente Erika Kokay, Maria do Rosário e a deputada Jô Moraes (PCdoB/MG), que também se pronunciou. Assim como nas reuniões de 2014, em 2015 as deputadas mulheres foram mais interrompidas do que os homens e mais desrespeitadas. Em uma das reuniões, a deputada Jô Moraes disse: “Eu não tenho uma voz masculina do poder e do grito, mas eu queria dizer, Sr. Presidente, que o PCdoB considera que a discussão não está concluída”18. O Estatuto da Família foi aprovado na Comissão Especial, com votos contrários das/os deputadas/os Erika Kokay, Maria do Rosário, Glauber Braga, Bacelar e Jô Moraes. Foram apresentados dois recursos, um da deputada Erika Kokay e outro do deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), contra a apreciação conclusiva do PL na Comissão.
Em relação ao Escola sem Partido, o PL 7180/2014 (BRASIL, 2014)tramitou na Comissão de Educação em 2014, mas, apesar de o relator, deputado Ariosto Holanda (PROS/CE), ter apresentado um parecer desfavorável, o projeto não chegou a ser votado, e o PL foi arquivado com o fim da 54a Legislatura. Em 2015, ele foi desarquivado e enviado à Comissão de Educação novamente, tendo como relator dessa vez o deputado Diego Garcia (PHS/PR), que, como discutido anteriormente, também relatou o PL do Estatuto da Família. O parecer do relator foi apresentado em maio de 2015 pela aprovação, mas não chegou a ser votado. Em maio de 2016, quase um ano após a apresentação do parecer na Comissão de Educação, foi criada uma Comissão Especial, e em outubro ela foi constituída. A mesa foi composta pelo deputado Marcos Rogério (DEM/RO) como presidente; pelos deputados Pastor Eurico (PHS/ PE), Lincoln Portela (PRB/MG) e Hildo Rocha (PMDB/MA) como vice-presidentes; e o deputado Flavinho (PSB/SP) como relator. Cabe mencionar que Flavinho é católico; Hildo Rocha não se identifica publicamente com nenhuma religião, mas já participou de eventos católicos; e os outros são evangélicos.
Ocorreram diversas audiências públicas para discutir o projeto. Foram lidas e fichadas notas taquigráficas disponíveis no site da Câmara dos Deputados de 31 reuniões ou audiências públicas. No total, foram 265 fichas sobre discussões na Comissão Especial que ocorreram entre 7 de fevereiro de 2017 e 11 de dezembro de 2018. Os deputados que mais se pronunciaram foram: Lincoln Portela (PR/MG), Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ), Eduardo Bolsonaro (PSC/SP), Pastor Eurico (PHS/SP), Flavinho (PSB, PSC/SP), Bacelar (PODE/BA), Alan Rick (PRB/AC) e Marco Feliciano (PSC/SP). Todos eles fizeram nove ou mais discursos e, com exceção do deputado Bacelar, se identificam publicamente como evangélicos ou católicos. Nessa lista, o deputado Bacelar era o único contrário ao projeto, tendo apresentado requerimentos para convidar especialistas que tinham visões críticas ao ESP e comparecido e discursado em algumas das reuniões.
Das fichas analisadas, 207 eram de parlamentares, sendo 87,9% de homens e 12,1% de mulheres. Quanto à posição sobre o PL, em 63,3% das fichas de discursos de deputados/as ele foi defendido, e em 34,3% criticado. A maior parte das audiências ocorreu em 2017, e apenas três foram em 2018. Após a última audiência, que ocorreu em 17 de abril de 2018, o relator, deputado Flavinho (PSB/SP), apresentou o parecer pela aprovação.
Dois deputados apresentaram votos em separado sobre o parecer. Em um deles, além de defender a importância da liberdade de cátedra e de discutir a complexidade que reside na relação entre o aprender e o ensinar, citando Paulo Freire, o deputado Bacelar destaca que os valores familiares não são homogêneos. O deputado também critica a ideia de que existe uma “ideologia de gênero” na academia, afirmando que a expressão é utilizada justamente por quem prega uma “ideologia machista, autoritária, heteronormativa e avessa a direitos humanos” (BRASIL, 2018b, p. 12).
O outro voto em separado foi das/os deputadas/os Erika Kokay, Maria do Rosário, Pedro Uczai (PT/SC) e Leo de Brito (PT/AC). Nesse documento, as/os deputadas/os afirmam que a apresentação do PL se insere num contexto autoritário e de intensificação do conservadorismo no país e indicam que não é coincidência o fato de a Comissão Especial ter sido criada poucos dias após o afastamento temporário de Dilma Rousseff (PT) da Presidência. Também argumentam que o ESP busca estabelecer uma “tendência pedagógica conservadora-tradicional [...] subordinada à [sic] valores familiares, hegemônicos, de tipo heteronormativo e judaico-cristão, negando a pluralidade e diversidade de conformações familiares, a liberdade individual e de experiências religiosas e espirituais diversas” (BRASIL, 2018c, p. 3). No documento, também criticam o fato de que havia apenas duas mulheres entre os/as titulares da Comissão Especial, formada por mais de 20 parlamentares.
Foram apresentadas 30 emendas ao substitutivo, quase todas (27) por deputados favoráveis ao projeto. O parecer do relator sobre as emendas foi pela aprovação de algumas e rejeição de outras, e ele também se pronunciou, dessa vez, pela rejeição do PL 6005/2016 (BRASIL, 2016) apresentado pelo deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ) que visava instituir a Escola Livre.
Após o parecer, em 20 de novembro de 2018, o deputado Dagoberto Nogueira (PDT/MS) propôs o PL 10997/2018 (BRASIL, 2018a) para instituir a Política Nacional de Liberdade para Aprender e Ensinar, que foi apensado ao PL principal da Comissão Especial. Em 28 de novembro, o relator apresentou uma complementação de voto pela rejeição desse PL, e nos dias 29 de novembro e 4 de dezembro foram apresentados dois votos em separado, um de parlamentares do PSOL - Glauber Braga (RJ), Ivan Valente (SP), Edmilson Rodrigues (PA), Jean Wyllys (RJ), Chico Alencar (RJ) e Luiza Erundina (SP) - e outro de deputadas do PCdoB - Alice Portugal (BA) e Professora Marcivânia (AP).
Ambos os votos destacaram a ampla oposição ao projeto por parte de entidades do campo da educação. Os dois também citaram a fala na Comissão do convidado Salomão Ximenes, professor de Políticas Públicas na UFABC, que apresentou as diferenças entre educação e ensino, sendo a primeira, em sentido amplo, parte do processo de socialização que ocorre na família e na comunidade; enquanto o ensino é dever do Estado e garante o respeito aos direitos humanos (BRASIL, 2018g; BRASIL, 2018h). O voto das deputadas do PCdoB também citou liminar concedida pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso suspendendo a Lei nº 7.800/2016 de Alagoas. A lei visava instituir o programa “Escola Livre”, mas na realidade era bastante similar aos pressupostos defendidos pelo Escola sem Partido, com artigos estabelecendo direitos dos pais, escola livre de doutrinação, obrigações dos professores etc.
O relatório foi apresentado em uma reunião no dia 8 de maio de 2018, que não contou com a fala de parlamentares contrários ao PL. Já no dia 11 de julho, houve uma reunião para discutir e votar o parecer, na qual deputadas/os contrários compareceram e apresentaram várias questões de ordem visando, por exemplo, fazer com que a Comissão deixasse de existir porque havia passado do limite de reuniões previsto no regimento da Casa, e sobre vários outros assuntos. No final de outubro, após as eleições de 2018, uma reunião estava marcada, mas acabou sendo encerrada porque a ordem do dia havia iniciado.
No final de 2018, foi movimentada a discussão na Comissão porque com o fim da 55a Legislatura, se o PL não fosse votado, ele seria arquivado. Desde o dia 31 de outubro, deputados favoráveis estavam tentando votar o PL, mas a oposição conseguiu obstruir votações, e o projeto acabou sendo arquivado.
Na última reunião, realizada no dia 11 de dezembro de 2018, várias questões de ordem foram apresentadas visando interromper e/ou adiar a votação. As deputadas Erika Kokay e Alice Portugal protagonizaram algumas discussões e apresentaram questões de ordem e reclamações. Apesar das tentativas, o deputado Marcos Rogério (PDT/RO) assumiu a presidência e começou a pedir que os partidos orientassem a votação sobre um requerimento de inversão de ordem dos trabalhos. Alguns partidos orientaram a votação sobre o requerimento; os de oposição aproveitaram para discursar e usar o tempo. E, depois, PT, PSOL, PDT, Podemos, PCdoB e PSB entraram em obstrução. Posteriormente, parlamentares passaram a discursar contra e a favor do projeto, e o deputado Flavinho também falou. Valem destaque as seguintes partes do debate, que exemplificam o clima da última reunião da Comissão:
O SR. FLAVINHO (PSC - SP) - [...] Eu estou falando com os Deputados, querida. Estou falando com os Deputados. Não falo com militantes. Estou falando com os Parlamentares. A discussão é parlamentar aqui.
Nós estamos, sim, querendo amordaçar militantes, como esses, que são autoritários, que estão sempre com o dedo em riste, gritando, cuspindo. Querem impor as suas ideias.
A SRA. ALICE PORTUGAL (PCdoB - BA) - Sr. Presidente, eu peço limite para não provocar a assistência.
O SR. FLAVINHO (PSC - SP) - Eu não estou provocando ninguém, Deputada.
A SRA. ALICE PORTUGAL (PCdoB - BA) - Provocação da assistência nós não vamos admitir.
O SR. FLAVINHO (PSC - SP) - Eu estou com a palavra, e V.Exa. está atrapalhando a minha fala. Eu ouvi V.Exa. gritando até agora. Então me escute.
[...].
A SRA. ERIKA KOKAY (PT - DF) - Não seja cínico! V.Exa. deve respeitar o Código de Ética!
O SR. FLAVINHO (PSC - SP) - Cínica é V.Exa. Além de ser mentirosa e dissimulada, também é cínica agora. Recorra ao Conselho de Ética.19
As discussões e confusões continuaram. No fim da reunião, o deputado Marcos Rogério, que estava presidindo a Comissão, disse:
Faço este registro para chegar ao final desta reunião de hoje -já são 13h33min - dizendo que cada um cumpriu o seu papel, e se essa matéria não será votada no âmbito desta Comissão, Deputado Flavinho, não será por falta de esforço de V.Exa. e não será também por consequência do trabalho da Oposição, embora reconheça o grande papel que a Oposição desempenha aqui. Se esse projeto não foi votado nesta Legislatura, isso ocorreu por consequência da falta de compromisso dos Deputados que são favoráveis à matéria, porque a Oposição chega aqui cedo, senta e fica ouvindo, debatendo, dialogando, fazendo o papel dela no bom combate. Agora, os Parlamentares que são defensores desse projeto, com suas muitas tarefas, em cujo mérito eu não quero entrar, não conseguem ficar aqui algumas horas para enfrentar a matéria, debater, votar, deliberar. [...]
Perdoem-me, meus colegas, mas eu não vou mais convocar reunião desta Comissão. Rendo homenagens à Oposição. (Manifestação na plateia.)
Não vou convocar mais. Não é vitória da Oposição. É ausência dos Parlamentares da nossa base. Lamento.20
Os trechos de discurso acima demonstram os conflitos que ocorreram na última reunião, e mostram que a atuação de parlamentares contrários foi essencial para que o projeto não chegasse a ser votado.
Em meados dos anos 2000, parlamentares conservadores e religiosos passam a se organizar de forma bastante efetiva na Câmara dos Deputados, alcançando vitórias significativas, como a derrota de projeto de lei relativo à descriminalização do aborto em comissões; a interrupção da produção do kit anti-homofobia pelo Poder Executivo; a indicação de Marcos Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos; a aprovação do Estatuto da Família na Comissão Especial; além da criação de frentes parlamentares que articulam e organizam a atuação conservadora naquele espaço. Essa ofensiva tem colocado direitos das mulheres e da população LGBTQI+ em risco, além de atuar junto com outras bancadas que têm ganhado cada vez mais força no contexto brasileiro, como as bancadas ruralista e de segurança. Apesar da importância de compreender esse fenômeno, de identificar quem são esses deputados e seus vínculos religiosos e como têm atuado, é preciso olhar também para quem está na Câmara dos Deputados se contrapondo a esses retrocessos. Este artigo se inclui nesse esforço de olhar para deputadas e deputados progressistas comprometidas/os com os direitos das mulheres e de LGBTQI+.
A primeira questão se relaciona a identificar quem são essas/ es parlamentares que estão comprometidas/os. A seção anterior mostrou que, nos debates sobre o Estatuto da Família e o ESP, foram parlamentares de partidos de esquerda, com destaque para mulheres e, especialmente, para Erika Kokay, que se contrapuseram. Além dela, Ivan Valente, Bacelar, Chico Alencar, Alice Portugal, Maria do Rosário e Glauber Braga se destacaram na atuação contrária a esses projetos, seja no plenário ou nas comissões especiais.
A leitura das biografias dos/as principais deputados/as progressistas dessa discussão, disponíveis em seus próprios sites, indica que a defesa dos direitos das mulheres e da população LGBTQI+ não foi destaque. A maioria ressaltou a defesa da educação e de direitos dos trabalhadores. Esse é um ponto importante que suscita reflexões sobre como esses parlamentares enxergam essas pautas, como veem essas pautas como uma plataforma de campanha. Apesar de elas/es defenderem esses direitos na Câmara dos Deputados, talvez não julguem que seja uma plataforma que atraia eleitoras/es. Uma das únicas exceções foi a deputada Erika Kokay. Não por coincidência, ela foi a principal defensora desses direitos nos temas analisados neste artigo. O deputado Bacelar, conforme indicado, também destaca a defesa de diferentes modelos de família em seu site.
Pontos em comum na trajetória de algumas/alguns dessas/es parlamentares são a atuação nos movimentos estudantil e sindical no início das suas carreiras e também o fato de terem iniciado as carreiras políticas em nível local e depois terem conseguido se eleger para a Câmara dos Deputados. Muitos foram eleitos com a chegada do PT (Partido dos Trabalhadores) à Presidência, o que também coincidiu com o fortalecimento de políticas de gênero. Matos e Biroli (2018) propõem a hipótese de que na década de 2000 o avanço dos anos anteriores, aliado a uma maior possibilidade de ação dos movimentos a partir dos governos do PT, teve como resultado um contexto em direção à “despatriarcalização” do Estado. Esse novo contexto teria provocado reações que levaram as questões de gênero para o centro da política brasileira.
O fato de a Câmara dos Deputados ter presenciado, desde as eleições de 2010, um aumento de deputados de partidos confessionais de direita21 (CODATO; BERLATTO; BOLOGNESI, 2018) é uma das causas dessa ofensiva conservadora estar sendo bem-sucedida. E também pode ser uma razão para o receio de parlamentares progressistas apostarem e darem visibilidade para as pautas relativas a gênero e sexualidade. Como são minoria, sabem que têm pouca chance de vencerem esses embates e que a estratégia mais segura pode ser a manutenção dos direitos já conquistados.
O elemento comum que mais chama a atenção é o fato dessas/es deputadas/os progressistas serem de partidos de esquerda. Com exceção de Bacelar, que é do Podemos (antigo PTN), todos/as são de PT, PSOL ou PCdoB. Apesar das dificuldades em organizar os partidos brasileiros de acordo com a ideologia, outros trabalhos têm indicado que os partidos de esquerda defendem mais os direitos das mulheres e de LGBTQI+, conforme discutido neste artigo.
Outro elemento que merece ser destacado foi a contribuição das mulheres no debate. Na 54a Legislatura, foram eleitas 45 mulheres para a Câmara dos Deputados, enquanto na 55a foram eleitas 51, em um universo de 513 cadeiras (DIAP, 2014). Mesmo sendo minoria naquele espaço, e sofrendo violência política, elas se destacaram na defesa da educação e dos direitos das mulheres e da população LGBTQI+.
Além das características desses/as parlamentares, é relevante discutir como elas/es atuaram naquele espaço. As/os deputadas/ os progressistas identificados neste artigo atuaram através de discursos no plenário e nas comissões, em que foi possível observar qual definição de família, quais as relações familiares e qual tipo de ensino estão defendendo. Elas/es atuaram contrapondo argumentos conservadores, apresentando visões mais plurais sobre as famílias e sobre as escolas e denunciando articulações com religiões e grupos econômicos; agiram apresentando requerimentos para que as audiências tivessem outras perspectivas e convidados/as; não participaram muito nas audiências públicas, com exceção de Bacelar; apresentaram votos em separado com seus argumentos contra os PLs; e discursaram e buscaram atrasar as votações do ESP e do Estatuto da Família nas comissões, sendo bem-sucedidas/os no primeiro caso, mas derrotadas/os no segundo.
Em 2014, as notícias divulgadas logo após as eleições indicavam que o novo Congresso eleito era o mais conservador desde o período da ditadura. O que se seguiu no país parece atestar a veracidade dessas afirmações: a primeira presidenta mulher do país foi afastada de seu cargo com base em motivos frágeis, e diversos projetos de lei que retiravam direitos sociais foram aprovados. Apesar disso, este trabalho buscou mostrar que mesmo em cenários desfavoráveis, atrizes e atores progressistas podem ser essenciais para que retrocessos nos direitos não sejam efetivados.
Miguel (2014) explica que a representação é uma tentativa de diminuir e controlar os conflitos presentes nas sociedades contemporâneas. Como consequência, os/as representantes seriam um grupo mais conservador, no sentido de que mudanças profundas são mais difíceis. Porém, no recente caso brasileiro, temos uma Câmara dos Deputados com parlamentares mais reacionários, que têm buscado mudanças mais drásticas em direção à retirada de direitos de mulheres e LGBTQI+.
Por outro lado, estamos vendo desde 2018 a eleição de pessoas que representam grupos que até então estavam excluídos desses locais - primeiras mulheres negras eleitas em diferentes municípios, primeira indígena eleita na Câmara dos Deputados, primeiras mulheres trans eleitas, mandatos coletivos com pessoas de diferentes origens. Temos, no Brasil atual, atravessado por crises política, econômica, de saúde e social, novidades nas casas legislativas que trazem a necessidade de mais pesquisas que observem a atuação dessas/es representantes, por que fazem a diferença nesses espaços e por que estamos presenciando cada vez mais conflitos no Poder Legislativo dos diferentes níveis.
Por fim, o esforço empreendido neste trabalho foi no sentido de mostrar que existem deputadas e deputados que estão comprometidos na defesa e avanço dos direitos das mulheres e LGBTQI+ e que elas/es tiveram atuação efetiva naquele espaço, mesmo sendo minoritárias/os. Nesse sentido, além da preocupação com a ofensiva conservadora que tem tomado a Câmara dos Deputados desde os anos 2000 e se intensificado mais recentemente, é preciso olhar para as/os parlamentares progressistas e refletir sobre como estão atuando.