Artigo

Sexualidade e violência: análise a partir de uma Parada da Diversidade em Campo Grande-MS1

Sexuality and violence: analysis from a Diversity Parade in Campo Grande-MS

Sexualidad y violencia: análisis de una Marcha de Diversidade en Campo Grande-MS

Marcelo Victor da Rosa
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Alexandre Meira de Vasconcelos
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Esmael Alves de Oliveira
Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil
Guilherme Rodrigues Passamani
Instituto Universitário de Lisboa, Portugal
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil

Sexualidade e violência: análise a partir de uma Parada da Diversidade em Campo Grande-MS1

Revista Sociedade e Cultura, vol. 25, e70444, 2022

Universidade Federal De Goias (UFG)

Recepção: 21 Dezembro 2021

Aprovação: 24 Maio 2022

Financiamento

Fonte: CAPES

Número do contrato: 001

Descrição completa: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Resumo: Este artigo é desdobramento da aplicação de um survey em 2019 na capital de Mato Grosso do Sul com os/as participantes da “18a Parada da Cidadania LGBT” de Campo Grande. O objetivo do texto é problematizar as questões de violência à população LGBTQIA+. Como resultado da pesquisa, temos a centralidade da sexualidade como o marcador principal para pensar a situação de vulnerabilidade da população LGBTQIA+ que participou da Parada. Em termos analíticos, em um primeiro momento, apresentamos os dados estatísticos que mostram como sexualidade e violência caminham próximas no que diz respeito às experiências de vulnerabilidade de LGBTQIA+ campo-grandenses. Em um segundo momento, a partir de uma perspectiva interseccional e pós-estruturalista, refletimos sobre as condições sociais que alocam as pessoas LGBTQIA+ em situações de desigualdade quando comparadas à população heterossexual.

Palavras-chave: Interseccionalidade, Discriminação, Fator de risco, Homofobia, Brasil.

Abstract: This article is the result of a 2019 survey done in the capital of Mato Grosso do Sul with the participants of the “18th LGBT Citizenship Parade” of Campo Grande. The aim of the text is to discuss the issues of violence against the LGBTQIA+ population. As a result of the research, we have the centrality of sexuality as the main marker used to consider the situation of vulnerability of the LGBTQIA+ population that participated in the Parade. In analytical terms, at first, we present statistical data that show how sexuality and violence go hand in hand with regard to the vulnerability experiences of Campo Grande’s LGBTQIA+ population. In a second moment, from an intersectional and post-structuralist perspective, we examine the social conditions that place LGBTQIA+ people in situations of inequality when compared to the heterosexual population.

Keywords: Intersectionality, Discrimination, Risk factor, Homophobia, Brazil.

Resumen: Este artículo es el resultado de una encuesta de 2019 en la capital de Mato Grosso do Sul con los participantes de la “18a Marcha de Ciudadanía LGBT” de Campo Grande. El objetivo del texto es discutir los temas de violencia contra la población LGBTQIA+. Como resultado de la investigación, tenemos la centralidad de la sexualidad como el principal marcador utilizado para considerar la situación de vulnerabilidad de la población LGBTQIA+ que participó en la Marcha. En términos analíticos, en un primer momento presentamos datos estadísticos que muestran cómo la sexualidad y la violencia van de la mano con respecto a las experiencias de vulnerabilidad de la población LGBTQIA+ de Campo Grande. En un segundo momento, desde una perspectiva interseccional y postestructuralista, examinamos las condiciones sociales que colocan a las personas LGBTQIA+ en situaciones de desigualdad en comparación con la población heterosexual.

Palabras clave: Interseccionalidad, Discriminación, Factor de riesgo, Homofobia, Brasil.

Introdução

É ainda no campo do não nomeado e do não pensável que a homofobia, como mecanismo que é produto e produtor das hierarquias sexuais (RUBIN, 1984), das violências e das naturalizações das normas de gênero (BUTLER, 2006), reside e se sustenta. Não nomeado porque sua descrição é de difícil apreensão e não pensável porque não refletida pelos sujeitos e pelas instituições. (PRADO, 2010, p. 9).

A “18ª Parada da Cidadania LGBT” de Campo Grande ocorreu no dia 28 de setembro de 2019, na Praça do Rádio Clube, no centro da cidade. Como de costume, a Associação de Travestis e Transexuais de Mato Grosso do Sul (ATMS) foi a responsável principal pela realização do evento2. Em 2019, o tema da Parada foi “LGBTfobia é crime sim”. Tal escolha ocorreu devido ao desdobramento da decisão do Supremo Tribunal Federal de 13 de junho de 2019, que “criminalizou a LGBTfobia”, a equiparando ao crime de racismo. Segundo a organização do evento, naquele ano, 30 mil pessoas teriam participado da ação.

Na ocasião, o Núcleo de Estudos Néstor Perlongher (NENP/ UFMS) aplicou 303 questionários. A ideia primeira era conhecer as pessoas que participaram da Parada e destacar os marcadores sociais das diferenças mais recorrentes nos inquéritos a fim de traçar um perfil sociológico dos participantes. Esses primeiros resultados foram publicados por Passamani, Vasconcelos, Rosa e Ishii (2020)3 e neste artigo a mesma base de dados foi utilizada para discutir aspectos da violência na percepção dos participantes da Parada.

Buscamos identificar os tipos de violência já sofridas/percebidas pelos respondentes, divididas em dois eixos: discriminação e agressão. Tais eixos, respectivamente caracterizados ou por uma violência simbólica (discriminação) ou por uma violência física (agressão), portanto, aparentemente distintos, articulam-se quanto ao pressuposto. Ou seja, compreende-se que, tanto um quanto outro, funcionam como a face manifesta de uma inteligibilidade heteronormativa latente. Em outros termos, é possível afirmar que tanto a discriminação quanto a agressão são expressões da violência contra LGBTQIA+.

Parker (2012), ao realizar uma genealogia da categoria discriminação, tomando como ponto de partida os pânicos morais4 em torno dos primeiros casos de morte em decorrência da Aids ao longo da década de 1980, assim define o termo:

A discriminação tem sido vista como um tipo de resposta comportamental causada por essas atitudes negativas – ou como uma forma de estigma ou preconceito decretado. Assim, foi feita uma distinção nítida entre ideias, atitudes ou ideologias e suas consequências comportamentais em ações discriminatórias. (PARKER, 2012, p. 165, tradução nossa).

Ou seja, de acordo com o autor, é possível afirmar a estreita correlação entre preconceito e estigma. Além disso, ambos podem ser caracterizados como atitudes negativas dirigidas contra determinadas pessoas ou coletivos com o intuito deliberado de discriminá-los a partir de padrões normativos socialmente estabelecidos – portanto, arbitrários. Essa definição se aproxima da noção de insulto moral, tal como proposta por Cardoso de Oliveira (2008, p. 136), à medida que “implica uma desvalorização ou negação da identidade do outro”.

Nesse enquadre, enquanto resultado de relações de poder, determinados sujeitos, ou coletivos, podem vir a ser discriminados em razão de sua cor de pele, de sua orientação sexual, de sua idade, deficiência, corporalidade, entre outras, a partir da ideia de que seriam possuidores/as de características ou formas de expressão de “menor” valor moral. Tal aspecto nos desafia a não tomarmos a categoria violência como um a priori analítico. Ao contrário, a percebemos entrelaçada às condições simbólicas, materiais, psicológicas, culturais, morais, jurídicas e políticas em razão das quais determinadas pessoas e/ou grupos passam a ser privados/ as, em graus variados, “de direitos, autonomia, reconhecimento e participação” (FERREIRA; BONAN, 2020, p. 1774). A violência ganha contorno (e só pode ser devidamente compreendida) a partir de contextos sócio-político-narrativos específicos.

Portanto, nossa compreensão de violência parte da ideia de que ela, além de ser múltipla e plural, está ligada a determinadas moralidades que se articulam para tornar concreta e real suas diferentes manifestações. É nesse sentido que Cardoso de Oliveira (2008) reforça que a dimensão moral compõe a leitura/experiência da violência. Afinal, o fato de um homem ser xingado de “bichinha” tem relações diretas com a prática de violência física, como uma forma de “correção da masculinidade”.

Tanto Cardoso de Oliveira (2008) como Díaz-Benítez (2015) entendem que a violência é de fato complexa e isso fica perceptível quando ele indaga até que ponto podemos falar de violência quando essa é legalizada em algum contexto. Já Díaz-Benítez nos mostra que a violência, quando associada a práticas eróticas, pode tornar-se um “tensor libidinal”. Ela exemplifica citando filmes que promovem a espetacularização da violência para fins de mercado erótico de pessoas que consomem e sentem prazer com tais produções.

Efrem Filho (2017a) retoma a questão da moralidade quando nos apresenta as “imagens de brutalidade”. Para o autor, as diversas narrativas que explicam a violência produzem discursos sobre gênero e sexualidade e constituem relações de poder que estão em disputa. Há diferentes cenários e uma multiplicidade de violências que se constroem em articulação com outros temas, tais como família, sindicato, ativismo, mulher, maternidade, polícia, política, entre outros, como no caso analisado pelo autor.

A partir de todas essas categorias de articulação que compõem a moralidade da violência, é importante ter clara a distinção entre diferença e desigualdade. Brah (2006) é elucidativa na crítica sobre o entendimento da diferença como questão estanque e sempre opositiva. A autora propõe a diferença como categoria analítica. Nem toda diferença, dependendo de suas intersecções, pode resultar em desigualdade. Ela é eficiente ao aclarar que “a experiência não reflete de maneira transparente uma realidade pré-determinada” (BRAH, 2006, p. 360). Antes disso, ela é resultado de uma construção cultural. Como afirma a autora, “o mesmo contexto pode produzir várias ‘histórias’ coletivas diferentes, diferenciando e ligando biografias através de especificidades contingentes (BRAH, 2006, p. 362)”.

Assim, o que estamos a salientar são os processos de hierarquização da diferença que, por vezes, se expressam em forma de violência física ou moral. No último caso, os xingamentos são os mais recorrentes e comuns. No primeiro, destaque para socos, pontapés, rasteiras, pauladas, pedradas, e que, por vezes, podem resultar na morte da vítima.

É importante ressaltar que, na perspectiva dos marcadores sociais de diferença, na qual sustentamos nossa análise, não é possível afirmar que diferentes sujeitos experimentam do mesmo modo, nem na mesma intensidade, os sistemas de opressão. Ao contrário, acreditamos que é fundamental considerar os complexos contextos (e jogos) relacionais e interacionais. Nesse sentido, marcadores como classe, raça/etnia, gênero, sexualidade, geração, religião, nacionalidade, dentre outros, podem, a depender do contexto, resultar em maiores ou menores condições de vulnerabilidade.

Para pensar esse processo de constituição de muitas diferenciações que podem ou não tornar a diferença uma desigualdade, parece patente um investimento intelectual para refletir sobre essas categorias de articulação que acionadas – aqui em nosso problema de pesquisa – junto à sexualidade, alocam as pessoas LGBTQIA+ em posições de desigualdade quando comparadas aos/às heterossexuais, por exemplo. Problematizar a intersecção entre as diferentes categorias é mais do que trabalhar com a noção de diferença sexual, ou mesmo as relações e pontos de contato entre, por exemplo, gênero e outras categorias, como raça e classe. É perceber como elas constituem-se mutuamente em relação (PISCITELLI, 2008).

Dessa forma, nosso artigo está divido em duas partes. Na primeira delas, apresentamos os dados estatísticos que mostram a relação entre sexualidade e violência contra as pessoas LGBTQIA+ a partir de dados levantados na “18ª Parada da Cidadania LGBT” de Campo Grande. Logo em seguida, os analisamos de maneira mais sistemática, a partir de uma perspectiva interseccional e pós-estruturalista.

Discriminação e agressão contra LGBTQIA+: percepções de violência na 18ª Parada

Já de início, uma nota metodológica faz-se importante. É complexo aplicar um questionário em uma Parada, primeiro porque as pessoas estão em “outro clima”, que não aquele de uma conversa mais privada entre pesquisador e interlocutores/as. Depois, porque trata-se de um espaço público, com grande aglomeração de pessoas e inúmeros ruídos que interferem na comunicação. Por fim, as pessoas estavam em movimento. Deslocando-se. Parar e responder uma pesquisa poderia significar “perder-se” dos seus. Nossa estratégia foi aplicar o questionário na concentração do evento, quando muitos desses “poréns”, imaginávamos, poderiam ser dirimidos. É evidente que o contexto da pesquisa e o seu formato tiveram impacto na produção dos dados. No entanto, resultados significativos foram produzidos, a despeito das condições supracitadas.

Para este artigo, nos concentramos nas 14 perguntas na forma de um survey, com respostas sim ou não (Tabela 1). Dessa forma, este estudo se configura como quanti-qualitativo, uma vez que, segundo Souza e Kerbauy (2017, p. 37), “[...] a realidade é multifacetada e, como tal, não é superficial afirmar que dados gerados por métodos distintos podem ser agregados, na perspectiva de compreensão das várias faces da realidade”.

Tabela 1
Itens do questionário
Itens do questionário
Fonte: elaborado pelos autores.

Em termos qualitativos, para Günther (2006), é importante ter por base a compreensão da realidade social como algo que está sempre em movimento, que é dinâmica e processual. Por isso, as ponderações devem se aproximar da realidade concreta estudada visando se apropriar dos sentidos e significados ali expressos, porém, não na perspectiva de generalizar seus resultados, mas sim que a leitura reflexiva dessa realidade revele as complexidades e conexões com os referenciais teóricos adotados no decorrer da investigação.

No caso específico dos dados obtidos ao longo da pesquisa realizada, foi possível verificar que cor/raça, renda (remetendo à classe social), geração, religião e escolaridade ocuparam menor destaque (ou menor impacto) nas diferentes respostas dos/as participantes no quesito violência (seja discriminação ou agressão) quando comparados ao marcador sexualidade. Ou seja, ser LGBTQIA+, por si só, já seria suficiente para uma condição de maior vulnerabilidade social a partir do que apuramos naquele contexto. Tais dados corroboram resultados de outras pesquisas recentes realizadas no Brasil e que destacam que o país está no topo do ranking dos mais letais para pessoas LGBTQIA+ (OLIVEIRA; ARAUJO, 2020; PINTO et al, 2020; MENDES; SILVA, 2020).

De modo particular, pensando a respeito de pesquisas que focaram em Paradas LGBTQIA+, podemos destacar alguns estudos. Dutra e Miranda (2013) pesquisaram as relações de poder observadas na “Parada LGBT” de Juiz de Fora (MG) e concluíram que o uso de abadá demarcou os espaços que o público teve acesso. Aqui, o principal marcador social da diferença foi classe social, pois quem não o comprou ficou mais distante dos trios elétricos. Sobre a temática de violência, mencionaram que alguns grupos rivais de jovens usavam a grande concentração de pessoas para marcarem encontros e espaços de embate, o que ocasionou a morte de um jovem. Para as autoras, tais violências não estão relacionadas propriamente à Parada.

Moreira e Maia (2017) investigaram a “Parada LGBT” de Goiânia (GO) e, dentre alguns dos seus resultados, destacamos dois. O primeiro diz respeito às exclusões praticadas pelas próprias pessoas LGBTQIA+, pois ainda existe discriminação para com as pessoas afeminadas, e/ou trans, e/ou mais velhas. Já na segunda, a estratégia por parte de alguns/algumas participantes de ficarem próximos dos guardas municipais e/ou policiais para aumentar a segurança e evitar possíveis violências não foi garantia de não-violência. De certa forma, essas conclusões se aproximam dos resultados encontrados por Dutra e Miranda (2013) quando relataram que policiais bateram no público presente na parada de Juiz de Fora.

Ribeiro e Arantes (2017) realizaram uma pesquisa sobre a “Parada LGBT” de São Paulo (SP). Os autores analisaram os discursos midiáticos sobre esse evento e destacaram o uso genérico de pessoas e/ou militantes para se referir aos participantes. A crítica recai justamente sobre o apagamento dos marcadores gênero e sexualidade para identificar politicamente os/as LGBTQIA+. Ainda que a violência não fosse o foco central, os autores relataram o caso de um morador que jogou uma bomba nas pessoas que estavam fazendo barulho próximo ao prédio onde mora. Diferente de Dutra e Miranda (2013), Ribeiro e Arantes (2017) entendem que essa cena de violência faz parte da Parada, mesmo que ela ocorra nas adjacências do evento.

Mota (2016) também pesquisou a “Parada do Orgulho LGBT” de São Paulo e, mesmo sem dados quantitativos, afirma que na avenida Paulista todas as pessoas LGBTQIA+ sofreram algum tipo de violência. A ideia central para o autor é que a Parada, mesmo que, em certa medida, apresente binarismos e estereótipos externalizados pelos/as próprios/as participantes LGBTQIA+, se torna um território de luta contra a heteronormatividade, tal como apresentado na pesquisa de Moreira e Maia (2017).

Além desses fatores, podemos ponderar que o contexto da ação política de uma Parada, por si só, já alocaria a sexualidade em um lugar mais central. A violência em razão da sexualidade é parte fundamental da construção de um discurso que constitui as pessoas LGBTQIA+ como vítimas de violência. Assim, lá, no espaço da militância, politicamente seria esperado que a discriminação e a agressão contra tal expressão da sexualidade fossem invocadas como fundamentais, pois esta é uma estratégia para a conquista de direitos e criminalização desses tipos de violência e mesmo para o reconhecimento dessas pessoas como sujeitos5.

No entanto, é preciso dizer que, por se tratar de uma pesquisa tipo survey, não houve espaço para que os/as respondentes qualificassem os tipos de violência sofridos quanto ao contexto e à forma. Além disso, os dados foram produzidos a partir dos “ditos”, já que, pelo tempo disponível, não nos debruçamos sobre os “vividos”, ainda que dizer seja uma forma de viver.

Passamos à análise dos dados encontrados:

A Análise de Componentes Principais (ACP) é uma técnica estatística de verificação multivariada que foi usada para fazer uma leitura exploratória das respostas. Conclui-se, a partir da análise gráfica da Figura 1, que, como o primeiro fator aparece destacado, o instrumento é unidimensional, ou seja, os 14 itens sobre violência medem um único construto, que neste caso é o grau de exposição à violência. Trata-se de um diagrama de declividade, plotado com auxílio de um programa computacional SPSS, com o número de componentes fatoriais extraídos.

Análise de Componentes Principais
Figura 1
Análise de Componentes Principais
Fonte: elaborado pelos autores.

O teste Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) indica a proporção da variância dos dados que se pode atribuir a um fator comum. O teste resultou em um KMO de 0,860 e valores próximos de 1 indicam que a amostra é adequada à aplicação da análise fatorial (DEVORE, 2015).

Para medir a confiabilidade do teste, utilizou-se o alpha de Cronbach, que é um indicador da consistência interna do teste ou, em outras palavras, o quanto os itens do questionário estão correlacionados. No caso desta pesquisa, o alpha de Cronbach foi de 0,767 e este valor corresponde à média das correlações entre os itens do instrumento e pode variar entre 0 e 1, com resultado aceitável para valores próximos ou superiores a 0,60 (HAIR; ANDERSON; TATHAM, 2009).

As notas de 0 a 14 são a soma das repostas positivas para as 9 questões sobre discriminação e as 5 sobre agressão e é um escore das violências sofridas/percebidas pelos sujeitos. Arbitrou-se a escala de MUITO BAIXA até MUITO ALTA conforme o indicador de violência e a Tabela 2 contém a tabulação dos resultados.

Tabela 2
Tabulação dos principais resultados
Tabulação dos principais resultados
Fonte: elaborado pelos autores.

Os cinco tipos de violência mais relatados pelos respondentes são, em ordem decrescente, a agressão verbal, a discriminação na família, a discriminação no ambiente escolar, a discriminação no ambiente religioso e a discriminação na comunidade, representando quase 60% das respostas ao questionário (Figura 2). De acordo com a ABGLT (2016), 73% dos/as alunos/as LGBTQIA+ já sofreram agressões verbais devido a sua orientação sexual e 68% por conta de sua identidade de gênero. Para Prado (2010),

Tipos de violência assinaladas pelos respondentes
Figura 2
Tipos de violência assinaladas pelos respondentes
Fonte: elaborado pelos autores.

Na sociedade brasileira ainda temos pouco conhecimento sobre a homofobia. Sim, sabemos que ela existe tanto através de dados empíricos, de pesquisas quanto pela lógica da experiência. No entanto, estamos em um momento bastante contraditório: sabemos que ela existe, mas sabemos tão pouco sobre como ela funciona e quais as suas dinâmicas ao se articular com outras formas de inferiorização. Compreender o funcionamento da homofobia, sobretudo quando é evidente que o preconceito não reside só nos indivíduos, mas também se articula na cultura e nas instituições, é fundamental para aprimorar as formas de enfrentamento e desconstrução de suas práticas violentas e silenciosas. (PRADO, 2010, p. 9).

Concluiu-se que, na amostra, 94,9% dos heterossexuais têm um escore de violência entre 0 e 2, ou seja, afirmam que sofreram no máximo duas agressões ou discriminações entre as listadas no survey, sendo que 79,7% deste grupo tiveram escore nulo. Entre LGBTQIA+ a situação é diferente, pois 31,2% têm um escore de violência entre 0 e 2, e somente 17,5% tem escore nulo, ou seja, não sofreu qualquer tipo de violência. Na Figura 3, observa-se graficamente a concentração de escores mais baixos para a população heterossexual.

Gráfico da distribuição dos escores de violência por
                            categoria
Figura 3
Gráfico da distribuição dos escores de violência por categoria
Fonte: elaborado pelos autores.

A orientação sexual é o fator preponderante para predispor ou não o sujeito a sofrer violência, ou seja, independente de estar ou não em relacionamento, de viver só ou acompanhado, de ser jovem ou não, de ser branco ou não, de ter religião ou não, de grau de instrução, de exercer atividade remunerada ou não, o sujeito da população LGBTQIA+, no contexto investigado, sofrerá mais violência que os heterossexuais. Nos termos de Colling e Leopoldo (2016),

[...] o desejo homossexual (não necessariamente o desejo do homossexual) poderia desestruturar uma sociedade falocrata. E esse é um dos motivos da paranoia anti-homossexual, do pânico anti-homossexual que, muitas vezes, transmuta-se em agressão, em terrorismo machista – a atmosfera sombria do medo – e, de forma mais obscena, no assassinato, na eliminação física do outro. (COLLING; LEOPOLDO, 2016, p. 14).

Observa-se, na Tabela 3, os intervalos de confiança (IC) dos escores de violência que comprovam essa afirmação. Em todos os casos, LGBTQIA+ têm escores de violência estatisticamente superiores aos heterossexuais, comprovados por teste One-Way Anova, com p-valor igual a zero em todos os testes, independente do marcador social.

Tabela 3
Intervalos de Confiança por Marcador Social da Diferença
Intervalos de Confiança por Marcador Social da Diferença


Fonte: elaborado pelos autores.

Dessa forma, mesmo que hipoteticamente os/as participantes da “18ª Parada da Cidadania LGBT” de Campo Grande (MS) possam experimentar situações de violência no que diz respeito aos marcadores geração (pessoas velhas), raça/etnia (pessoas negras e/ou indígenas), religião (pessoas não cristãs), escolaridade (pessoas sem formação na educação superior), classe social (pessoas pobres) e territorialidade (pessoas que moram na periferia), nossos dados apontam que a sexualidade pode tornar-se, a depender do contexto, fator para uma maior condição de vulnerabilidade das pessoas LGBTQIA+. Esse dado é extremamente relevante no que tange ao papel político e social da continuidade das Paradas tanto em Campo Grande/MS como em outras regiões do Brasil e do mundo. Afinal, tais eventos têm o intuito de sensibilizar a sociedade como um todo para a importância da garantia dos direitos humanos de pessoas LGBTQIA+, no que diz respeito a uma vida vivível.

Do ponto de vista geral, ainda que visualmente se possa inferir na Figura 3 que a população LGBTQIA+ relata as violências sofridas com maior frequência, recorreu-se à estatística inferencial para validar esta afirmativa. Utilizou-se o teste paramétrico OneWay Anova para evidenciar se há diferença estatística significativa da violência quando se compara a população heterossexual e a LGBTQIA+ com base na amostra de respondentes.

Ainda que os valores não sigam uma distribuição normal, o OneWay Anova tem mais poder estatístico que um teste não paramétrico, considerando-se que os dados provêm de dois grupos com mais de 15 valores em cada. O teste se baseou nas seguintes hipóteses:

H0: Os escores de violência são iguais entre a população LGBTQIA+ e os/as heterossexuais.

H1: Os escores de violência são diferentes entre a população LGBTQIA+ e os/as heterossexuais.

O teste One-Way Anova, com 95% de confiança, aplicado de forma geral em relação à sexualidade, resulta em um IC para os heterossexuais igual a (-0,214; 1,197) e para a população LGBTQIA+ de (3,731; 4,440), com p-valor=0,000, ou seja, rejeita-se a hipótese nula, uma vez que o escore de violência percebido pela população LGBTQIA+ é maior que o dos/das heterossexuais. Essa diferença é facilmente observada na representação gráfica na Figura 4.

Gráfico de intervalos de confiança para o escore de violência
Figura 4
Gráfico de intervalos de confiança para o escore de violência
Fonte: elaborado pelos autores.

Fazendo-se uma aproximação da distribuição de probabilidades para o escore da violência como uma variável discreta com uma distribuição de Poisson, estima-se que a probabilidade de uma pessoa LGBTQIA+ sofrer pelo menos um dos tipos de violência presentes no questionário é de 98,32%. Quando se faz a mesma análise para o público heterossexual, o percentual cai para 38,86%.

Esses dados nos permitem afirmar a existência tanto de um sexismo (sobretudo no que se refere ao gênero) quanto de um heterossexismo (no que tange ao estabelecimento da heterossexualidade como padrão normativo dos desejos). Welzer-Lang (2001) constata a existência do que chama de “paradigma naturalista”. De acordo com o autor, no sexismo prevalece uma pseudo (diríamos pretensa) natureza superior dos homens, já no heterossexismo, para Welzer-Lang (2001), a homofobia seria o grande “sintoma”, a centralidade da heterossexualidade em detrimento da homossexualidade. Nas palavras do autor,

o duplo paradigma naturalista que define, por um lado, a superioridade masculina sobre as mulheres e, por outro lado, normatiza o que deve ser a sexualidade masculina produz uma norma política andro-centrada e homofóbica que nos diz o que deve ser o verdadeiro homem, o homem normal. (WELZER-LANG, 2001, p. 468).

Ou seja, há um contínuo e reiterado controle dos corpos e das subjetividades, que passa por um permanente processo de aprendizado via instituições e suas respectivas gramáticas-códigos. Assim, pensar a heterossexualidade implica, conforme Butler (2003), em concebê-la como uma produção que transcende tanto a natureza como a cultura, ou seja, como a heterossexualidade não está essencializada nem em uma origem biológica, tampouco em transmissão cultural, sua fabricação é constantemente implicada em processos de destruição e violência.

Isso nos permite afirmar que a homossexualidade, enquanto um dispositivo histórico (FOUCAULT, 1999), tem sido um dos alvos privilegiados de produção de diferença que, muitas vezes, desdobram-se em desigualdade. Não por acaso, Foucault (1999), em seu empreendimento genealógico, pondera que:

Se é verdade que a ‘sexualidade’ é o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa, deve-se reconhecer que esse dispositivo não funciona simetricamente lá e cá, e não produz, portanto, os mesmos efeitos. (FOUCAULT, 1999, p. 120).

Nesse enquadre, os/as LGBTQIA+ são produzidos/as tanto como uma verdade ontológica quanto como corpos abjetos. Essa diferença, entendida como sinônimo de desigualdade, será utilizada como razão suficiente para “justificar” que as vidas de pessoas LGBTQIA+ sejam matáveis e não passíveis de luto (BUTLER, 2015). Em pesquisa recente sobre dados da violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em Mato Grosso do Sul, Oliveira e Araujo (2020) apontam que os índices são altíssimos e, quase sempre, vêm acompanhados de violência física e podem resultar em morte. Nesse sentido, afirmam os autores:

Primeiro não é possível ignorarmos o grau de violência que é orientado contra os corpos considerados ininteligíveis: são inúmeras perfurações, golpes, pedradas. Segundo, são atos em partes do corpo que demonstram que as vítimas não tiveram condições de defesa (no geral nas costas). Terceiro, são agressões desferidas em regiões do corpo que são simbolicamente constituintes de nossa ‘humanização’: a face, o rosto. (OLIVEIRA; ARAUJO, 2020, p. 302).

Os autores mostram que muitos crimes contra LGBTQIA+ não são “crimes comuns”. A crueldade que acompanha as mortes de LGBTQIA+ configuram tais fatos como “crimes de ódio”, pois não basta matar, é preciso fazê-lo de forma exemplar, espetacular (FOUCAULT, 2004). Geralmente, a morte é o desdobramento de seções de tortura, com extrema violência. É perceptível nesse tipo de ação a tentativa não de matar um sujeito, mas toda uma “espécie”. Tais questões apareciam na investigação de Carrara (2004) sobre os homicídios de homossexuais nos anos de 1990 no Rio de Janeiro e no recente trabalho de Efrem Filho (2017b) sobre o assassinato de LGBTQIA+ na Paraíba e em Pernambuco. Ou seja, a morte espetaculosa é uma recorrência nessas pesquisas.

Sexualidade e violência: intersecções (im)pertinentes

Para esta análise acionamos sete marcadores sociais da diferença (sexualidade, geração, raça/cor, religião, escolaridade, renda [remetendo à classe social] e territorialidade), a partir da concepção de que tais marcadores “interagem, contextual e conjunturalmente, de modo a promover potenciais cenários de desigualdades sociais e hierarquizações” (HENNING, 2015, p. 100). Entretanto, Henning (2015) amplia essa conceituação a partir da ideia de agência interseccional, apontando para a possibilidade de processos de resistência produzidos pelos sujeitos marcados pelas diferenças, ou seja:

Em outras palavras, ressalta-se a importância de atentar para os modos os quais os sujeitos potencialmente se utilizam de suas próprias marcas identitárias interseccionais (assim como na relação com os traços identitários interseccionais de outras pessoas) de modo a lidar com a criação, o questionamento e a desconstrução social de desigualdades. (HENNING, 2015, p. 117).

Partindo de tal concepção, se faz importante frisar que não tínhamos a pretensão de “comprovar” que a violência vivida pelos sujeitos LGBTQIA+ presentes na Parada seria explicada pela somatória de dois ou mais marcadores sociais da diferença, entretanto, é possível observar na Tabela 3 que a sexualidade sobressai, conforme mencionado anteriormente. Isto porque acreditamos que uma leitura interseccional não deve estabelecer, a priori, quais marcadores são decisivos para compreender tal problemática.

Segundo Henning (2015), uma análise interseccional não possui a obrigatoriedade de iniciar de um específico marcador da diferença, mas uma atenção às configurações sociais com base em seu contexto histórico e cultural. O autor afirma que existe fragilidade quando se multiplicam essas diferenciações, assim, podendo ocasionar certa limitação. Dessa forma, ele contesta o uso de ‘“caráter de abertura ilimitada’ do campo interseccional” (HENNING, 2015, p. 111) e ressalta que a interseccionalidade deve ser pautada nos marcadores mais relevantes.

Nesta pesquisa, a sexualidade revelou-se um marcador relevante para compreender os diferentes processos de violência vividos pelas pessoas LGBTQIA+. Baseados na concepção foucaultiana de que a sexualidade produz efeitos de poder que vão além do campo do desejo, ou, dito de outra forma, vai além da orientação sexual do sujeito, a abrangência da sexualidade se dá em consonância com outras dimensões como econômica, social, educacional, cultural e outras.

Destacamos, neste momento, um conceito importante para entendermos tais processos de construção da heterossexualidade, que, de acordo com Dos Reis e Pinho (2016), trata-se da matriz heteronormativa ou heteronormatividade. Para esse/a autor/a, tal matriz é concebida de forma binária, com a presença de dois polos bem definidos (homem/pênis que deseja mulher/vagina), capturando, inclusive, quem não se constrói a partir desse sistema gênero/sexo/desejo. Dos Reis e Pinho (2016) ainda complementam que quem não corresponde ao que é propagado pela heteronormatividade é exposto a diferentes violências, o que pode levar à morte. Ou seja, em um regime heteronormativo, para se ter uma vida vivível, é preciso a busca pela exata correspondência entre sexo, gênero e desejo – como se isso fosse possível para todas pessoas (BUTLER, 2008).

Não por acaso, nos dizem Saéz e Carrascosa (2016),

‘ser um homem’ tem como base ‘não ser’ outras coisas: não ser mulher, não ser homossexual. É uma identidade gerada por oposição, por negação, ou por repetição de gestos estéticos ou de conduta que carecem de original. É uma noção sem um conteúdo preciso. O poder dos homens, o poder patriarcal e machista, se constrói, por um lado, por meio deste desprezo contra as mulheres e, por outro, pelo ódio contra os homens considerados como menos masculinos, os gays. (SAÉZ; CARRASCOSA, 2016, p. 127).

Nesse sentido, Carvalho e Pocahy (2020) associam a ideia de privilégio às pessoas que conseguem performatizar tal norma e, consequentemente, exercem sua cidadania. Tais privilegiados/as inclusive estariam aptos/as para desqualificar e inferiorizar aqueles/as que escapam da heteronorma. Aqui estaria a autorização para o extermínio das diferenças.

Como contraponto, a crítica de Favero (2019) à ideia de privilégio. Para a autora, a concepção causal de que sou heterossexual, logo, gozo de privilégio em relação às outras identidades sexuais não levaria em conta que o sujeito heterossexual também é construído por outros marcadores sociais da diferença, como, por exemplo, raça, geração, classe social, gênero etc., e que o cruzamento de tais marcadores é que permitiria uma análise mais ampla da configuração de tais “privilégios”. Dessa forma, não basta ser heterossexual para ter uma vida vivível, há de ser branco/a, rico/a, cristão, sem deficiência, jovem, entre outros.

Miskolci (2005) aponta historicamente as condições de emergência do sujeito desviante, aquele que foge à norma. Ao mesmo tempo, problematiza o conceito de diferença que, a partir da teoria queer, compreende o sujeito marcado por ela não necessariamente a partir da ideia de opressão, mas destacando processos de resistência e agência.

Assim, ao aproximarmos suas contribuições à luz de nossos dados de pesquisa, que resultaram da “18ª Parada da Cidadania LGBT” de Campo Grande, entendemos que, embora as condições sociais de existência para minorias sexuais e de gênero sejam por vezes adversas, isso não resulta na impossibilidade de formação de processos de construção identitária e nem de luta por reconhecimento. Ao contrário, ao apontarmos para a visível discrepância das situações de vulnerabilidade vivenciadas por LGBTQIA+ em comparação à população heterossexual, desejamos evidenciar a importância das lutas e mobilizações contemporâneas, ao mesmo tempo em que visibilizamos as arbitrariedades dos regimes de verdade heteronormativos que lhes dão sustentação.

Considerações Finais

Durante a pesquisa que realizamos na “18ª Parada da Cidadania LGBT” de Campo Grande, em 2019, muitos dados foram produzidos. A dificuldade de agrupá-los em uma única análise tem oportunizado contínuos desdobramentos analíticos acerca dos mesmos (PASSAMANI; VASCONCELOS; ROSA; ISHII, 2020). Na atual análise, buscamos problematizar especificamente a questão da violência contra a população LGBTQIA+ participante da Parada. Nesse exercício analítico, evidenciamos diferentes facetas da violência que dão contorno aos processos de discriminação e agressão.

Em nosso itinerário, a perspectiva interseccional e pós-estruturalista foi fundamental para a compreensão de como os marcadores sociais da diferença se articulam para produzir um lugar de vulnerabilidade para sujeitos LGBTQIA+. Não por acaso, a tabulação dos dados nos conduziu à constatação de que a sexualidade sobressai nos processos de produção de violência e desigualdade quando o assunto é dissidência sexual. Assim, a partir dos dados produzidos, pode-se afirmar que o fato de ser LGBTQIA+ já se constitui como “razão suficiente” para tornar-se alvo de práticas violentas.

Com isso, não concluímos que outras categorias de articulação são irrelevantes para pensar a violência contra LGBTQIA+, apenas podemos dizer que as variações dessas categorias, a partir do contexto específico e localizado da pesquisa, não são estatisticamente significativas quanto à sexualidade.

Nesse sentido, os nossos dados mostram que a grande diferença em termos de violência se dá entre ser ou não LGBTQIA+. Ser branco ou negro, pobre ou rico, escolarizado ou não, jovem ou não, não agregou diferença estatística em termos de violência. Reiteramos que esta afirmação está pautada nos resultados estatísticos desta pesquisa e que não é passível de generalização, pois se trata de um contexto específico.

Outrossim, os entrevistados foram escolhidos a esmo e, portanto, com uma amostra não aleatória, o que estatisticamente também impossibilita que os resultados sejam generalizados à população LGBTQIA+ como um todo e que, pela própria característica do survey, tenhamos acesso a mais elementos das características dessas violências sofridas por essa população. A participação de outros sujeitos de pesquisa, outros contextos e eventos podem apontar (ou não) para a prevalência de outros marcadores, uma vez que esses, em uma leitura analítica interseccional, não partem de um a priori no que diz respeito a qual ou quais marcador/es é/são ou não acionado/s na realidade investigada. Dito de outro modo, o campo é a potência para o entendimento de quais marcadores sociais da diferença fazem efetivamente a diferença.

Dentre os dados analisados, do universo de violências sofridas, a maior recorrência é com relação à agressão verbal, seguida de discriminação na família, na escola, no ambiente religioso, na comunidade de maneira geral. Percebe-se, assim, como desde a socialização mais primária, a partir das instituições cujo convívio é mais elementar para uma pessoa, ser LGBTQIA+ é uma condição perigosa em termos de violência. Nesse sentido, não são incomuns que xingamentos e humilhações sejam situações corriqueiras e vivenciadas desde a mais tenra idade por LGBTQIA+ que, em muitos casos, precisarão aprender a conviver pelo resto de suas vidas.

O que nossos dados mostram é que tais situações e ambientes violentos não são experimentados da mesma maneira por pessoas heterossexuais e LGBTQIA+. Não há dúvida de que pessoas LGBTQIA+ negros, pobres, não escolarizados, com deficiência, e/ ou mais velhos, possam ter tais percursos ainda mais agravados. No entanto, no contexto da Parada, onde foi realizada a pesquisa, a sexualidade ganhou maior relevância nas perspectivas de seus/ as participantes a respeito das violências vividas. Certamente, a “maior relevância” pode ter estreita correlação com o contexto político-narrativo que caracteriza eventos desse tipo.

De qualquer modo, tais dados de pesquisa levam-nos a concluir que a heterossexualidade, mesmo quando não articulada com outro marcador de diferença, já é um lugar de privilégio. Tal lugar pode ser incrementado, possivelmente, à medida que haja a intersecção com outras categorias. Portanto, ser heterossexual já oportuniza a experiência de um ambiente familiar e social mais seguro, em contraposição à experiência de um/a LGBTQIA+. A partir desse raciocínio, dificilmente, uma pessoa será agredida, violentada, morta pelo fato de ser heterossexual. O mesmo não pode ser dito em relação a LGBTQIA+. Ser e/ou ser reconhecido como LGBTQIA+ já seria em si uma razão suficiente para pertencer a um espectro de “vida matável” (BUTLER, 2015).

Quando olhamos os dados a partir da perspectiva interseccional, percebemos que a sexualidade é o marcador da diferença que faz diferença no contexto dos/as respondentes da “18ª Parada da Cidadania LGBT” de Campo Grande em 2019. Tais sujeitos podem estar fora da norma a partir de outras marcas que não a sexualidade, mas os dados estatísticos revelam que a violência a eles perpetrada se dá face a ser LGBTQIA+. Tal resultado não é um acaso. Ao contrário, é preciso reafirmar que, historicamente, a heterossexualidade se constituiu como um estatuto de norma. Nesse regime heternormativo, sexo, gênero e desejo precisam ser performados como coerentes e inseparáveis. Isso resulta que todos aqueles/as cuja identidade se torne ininteligível aos padrões heterossexuais, este último reiterado como “genuíno” e “autêntico”, tornam-se alvos fáceis e imediatos dos mais diversos tipos de violências.

Por fim, não podemos encerrar este artigo sem reiterar a importância dos agenciamentos coletivos. Nesse sentido, os dados obtidos a partir das respostas das pessoas participantes da Parada também revelam a importância e atualidade das lutas e estratégias por reconhecimento e enfrentamento das situações de desigualdade. Se a sexualidade ainda é motivo para uma pessoa e/ou um grupo se tornar alvo de qualquer tipo de violência, é urgente a promoção de ações, pesquisas e políticas que contribuam para a visibilização e desnaturalização dos processos sociais produtores de subalternidade, discriminação e morte.

Portanto, é urgente (e necessário) que a heteronormatividade, a partir da matriz de inteligibilidade que lhe dá sustentação, seja questionada e desnaturalizada a fim de que sejam desvelados seu caráter arbitrário, fantasmagórico e ficcional – reveladores do que a heterossexualidade realmente é: “um lugar vazio” (SÁEZ; CARRASCOSA, 2016).

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Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
2 O evento contou com apoio da Prefeitura Municipal de Campo Grande, por meio de secretarias, subsecretarias e coordenadorias. Além disso, também houve apoio do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio de secretarias, fundações, subsecretarias e coordenadorias. Também é preciso destacar a parceria com diversos movimentos da sociedade civil, além de patrocínios variados.
3 A base do formulário de perguntas teve como modelo aquele utilizado por Carrara (2006) na pesquisa da “9ª Parada do Orgulho GLBT São Paulo 2005”, com adaptações para a realidade local.
4 Segundo Miskolci (2007, p. 111), “pânicos morais” foi um conceito criado por Cohen (1972) para explicar “o processo de sensibilização social no qual um tipo de comportamento e uma categoria de ‘desviantes’ são identificados de forma que pequenos desvios da norma são julgados e recebem uma forte reação coletiva”. Ainda segundo Miskolci (2007, p. 111), Cohen criara tal conceito para “caracterizar como a mídia, a opinião pública e os agentes de controle social reagem a determinados rompimentos de padrões normativos”. Para mais detalhes, ver Cohen (1972).
5 Laura Lowenkron (2015), a partir de pesquisas no campo do abuso sexual infantil e do tráfico de pessoas para fim de exploração sexual, e Sérgio Carrara (2015), a partir de reflexão sobre as políticas sexuais e as transformações nos dispositivos da sexualidade, mostram como os discursos que constroem as vítimas operam tática e estrategicamente em dados contextos.
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