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Modernização, racialização e branqueamento na música sertaneja
Modernization, Racialization and Whitening in Brazilian Country Music
Modernización, racialización y blanquiamiento en la música country brasileña
Revista Sociedade e Cultura, vol. 25, e70760, 2022
Universidade Federal De Goias (UFG)

Artigo


Recepção: 04 Novembro 2021

Aprovação: 10 Maio 2022

DOI: https://doi.org/105216/sec.v25.e70760

Resumo: Este artigo aborda a modernização da música sertaneja brasileira, tentando entender como esse gênero musical integra, ao longo de sua história, determinados processos de racialização. Através da análise da estética presente na obra de alguns cantores, pretende-se desenvolver o argumento, segundo o qual, a música sertaneja desenvolveu, mesmo que de maneira difusa, narrativas e sonoridades racializadas, especialmente aquela conhecida hoje como “música caipira”. Todavia, assim como aconteceu com outros gêneros musicais, o sertanejo, ao se modernizar e se nacionalizar, atravessou um processo de “branqueamento”, fato perceptível, atualmente, tanto na composição racial de seus artistas como nas expressões narrativas, estéticas, sonoras e performáticas presentes nesse gênero musical.

Palavras-chave: Música sertaneja, Branqueamento, Modernização, Branquitude, Apropriação cultural.

Abstract: This article addresses Brazilian country music in order to understand how this musical genre integrated, in its history, certain processes of racialization. Through the analysis of songs, aesthetics and sonority present in the work of some singers, it is intended to develop the argument according to which country music, throughout its origins, developed, albeit in a diffuse way, racialized narratives and aesthetics. However, as with other musical rhythms, the country music, when modernizing and nationalizing itself, went through a process of “whitening”, a fact that is currently noticeable both in the racial composition of its artists and in the narrative, aesthetic, performance and sonority expression of this musical genre.

Keywords: Country music, Whitening, Modernization, Whiteness, Cultural Appropriation.

Resumen: Este artículo aborda la modernización de la música country brasileña tratando de comprender cómo este género musical integró, en su historia, ciertos procesos de racialización. A través del análisis de canciones y estéticas presentes en la obra de algunos cantantes, se pretende desarrollar el argumento según el cual la música country, a lo largo de sus orígenes, desarrolló, aunque de manera difusa, narrativas, estéticas y sonoridades racializadas, especialmente la que hoy se conoce como “música caipira”. Sin embargo, al igual que ocurrió con otros ritmos musicales, el sertanejo, al modernizarse y nacionalizarse, pasó por un proceso de “blanqueamiento”, hecho que actualmente es perceptible tanto en la composición racial de sus artistas como en las expresiones narrativos, estéticos y performativos dese género musical.

Palabras clave: Música country, Blanqueamiento, Modernización, Blancura, Apropiación cultural.

Introdução

Desde as palavras escritas por W. E. B. Du Bois nas primeiras linhas de As Almas do Povo Negro (2021, p. 15), segundo as quais “o problema do século XX é o problema da linha de cor”, a relação entre racialização1 e sociedades modernas foi colocada em outros termos. Diante do desenrolar histórico dos processos de modernização mundo afora, tornou-se evidente que, ao se estudar aquilo que os sociólogos vieram a conceituar como Modernidade, seria indispensável olhar para a posição específica da população negra dentro dessas formações sociais. Mais ainda, analisar como as experiências de escravidão, racismo, diáspora e etnocídio (e a consequente construção de respostas, por parte da população negra, a essas políticas de subalternização) seriam fundamentais para se entender os processos de modernização (ALMEIDA, 2019, p. 103-104)2.

O campo da cultura seria um desses espaços privilegiados para a observação sociológica da relação entre conflitos raciais e experiências de modernização (GILROY, 2001). Atualmente, sabe-se que os mercados culturais, construídos e reproduzidos a partir de relações de poder, atuam como mediadores simbólicos e, por isso, são fundamentais no processo de construção social de gostos, preferências, valores, comportamentos e, além disso, na delimitação do lugar social de certos grupos (BOURDIEU, 2007; MARTIN-BARBEIRO, 2000).

Este artigo, por sua vez, aborda a modernização da música sertaneja brasileira, tentando entender como ela integrou, ao longo da sua história, determinados processos de racialização. Pretendese desenvolver o argumento, segundo o qual, a música sertaneja desenvolveu, mesmo que de maneira difusa, uma estética racializada, especialmente aquela conhecida hoje como “música caipira”. Todavia, assim como aconteceu com outros ritmos musicais, como o Country e o Rock and Roll, o sertanejo, ao se modernizar e se nacionalizar, atravessou um processo de “branqueamento”3, fato perceptível, atualmente, tanto na composição racial de seus artistas como nas expressões narrativas, estéticas, performáticas e sonoras presentes nesse gênero musical4.

Para realizar tal argumentação, discorreremos, primeiramente, sobre como a racialização de certos elementos culturais está vinculada à própria construção da nossa identidade nacional ao longo do século XX. A ideia de branqueamento tornou-se, entre nós, política de Estado, influenciando diretamente a construção do campo cultural brasileiro. Por fim, analisaremos, em três tópicos, a história da música sertaneja, tentando demonstrar como a modernização desse gênero culminou no branqueamento de seus personagens e de suas expressões estéticas, tanto narrativas como sonoras.

Políticas de branqueamento, racialização da cultura e identidade nacional

A ideia de “branqueamento” se institucionalizou, no Brasil, em política de Estado. As teorias raciais começaram a circular no país justamente em um momento no qual a pressão pelo fim do escravismo chegava ao seu ápice. A articulação do movimento abolicionista e a rebeldia de muitos escravos aceleravam nas elites a necessidade de se projetar uma sociedade pós-abolição. E, cada vez mais, duvidava-se que a população mestiça formada a partir da história colonial fosse capaz de construir neste solo uma sociedade moderna e civilizada. Justamente o seu caráter mestiço era visto como um obstáculo para o rompimento com o passado colonial. Foi a partir desse raciocínio que a imigração europeia ganhou força como proposta para “branquear” a nação e, assim, criar condições para a sua evolução. Embora a política imigratória tenha conseguido trazer alta quantidade de trabalhadores somente para a região sul e para o estado de São Paulo, o desejo de atrair imigrantes europeus estava presente em praticamente todos os lugares do país. Apenas essas regiões, todavia, tiveram capital político e econômico para trazer milhões de trabalhadores estrangeiros. Para se modernizar, o país precisava embranquecer. Começa aqui o estabelecimento de uma nítida associação entre modernização (seja ela econômica, política e/ou cultural) e “branqueamento”.

Durante a Primeira República, as ambições modernizantes/ branqueadoras cristalizaram-se em diversas políticas. No entanto, para se romper com o atraso representado pelo passado colonial, não bastava apenas o branqueamento físico da população. Era necessário também um branqueamento cultural. Tendo a Europa, em especial a França, como referência, os governos republicanos intensificaram a importação de elementos estrangeiros em sua política cultural e educacional. Financiando exposições e a vinda de artistas e intelectuais franceses, o Estado pretendia construir uma nova cultura nacional por meio da negação de elementos da sua própria história. Negação esta que se efetuava a partir da tentativa de se apagar qualquer expressão cultural que remetesse ao passado colonial. Ou, mais precisamente, com a repressão a práticas que caracterizavam os grupos inferiores desse passado. Observa-se, durante a virada do século XIX para o século XX, uma clara perseguição a qualquer tipo de manifestação cultural considerada de origem africana. Para se colocar um fim às “incivilizadas” práticas que agregavam grupos de negros, o Estado brasileiro aplicou uma política de criminalização à capoeira, ao samba, ao candomblé, enfim, a tudo o que lembrasse a cultura afro-brasileira (ANDREWS, 2007, p. 152-158).

A década de 1930, com a ascensão do governo Getúlio Vargas, marcou uma guinada na construção da identidade nacional/racial brasileira. Se antes a mestiçagem deveria ser combatida, como um defeito a ser corrigido, agora ela passa ser exaltada. A mestiçagem corresponde a um conjunto de práticas e saberes sobre as consequências socioculturais da miscigenação, entendida como a herança físico-biológica de populações cujos membros são fruto de relacionamentos inter-raciais. No entanto, ambas podem ser conceituadas como fenômenos políticos, pois a própria construção das identidades raciais, longe de constituir um fato biológico, depende do sistema de classificação racial de cada sociedade. Pode-se, dessa maneira, conceituar a mestiçagem como um dispositivo de poder atuante na constituição da identidade nacional de diversos países latino-americanos (TADEI, 2002)5. Sem deixar de lado às aspirações de pureza, o elogio à diversidade racial foi disseminado pelo Estado brasileiro e transformado na chave, através da qual, o passado de miscigenação poderia ser interpretado agora como potencialmente promissor para a construção do futuro. Ao invés de combatida, a mestiçagem deveria, a partir desse momento, ser elogiada e utilizada a serviço do progresso da nação. Pela primeira vez, difunde-se a ideia de que é possível modernizar-se sendo mestiço.

Segundo George Andrews (2007), o nacional desenvolvimento proposto pelo governo Vargas, presente também em outros países latino-americanos, impulsionou a industrialização apoiando-se no “amorenamento” da população. Importante para esse processo de “amorenamento” teria sido a redefinição da identidade brasileira através da cultura, a qual está estritamente associada à disseminação da ideia de democracia racial.

Em vez de brancura como o ideal nacional, o pensamento da democracia racial exaltava a morenidade. E isto aconteceu não apenas nos conceitos de identidade racial nacional, mas também de identidade cultural nacional. (ANDREWS, 2007, p. 201).

No Brasil, atividades antes reprimidas, como o samba, a capoeira e o carnaval, foram elevadas, neste momento, a símbolos da cultura nacional. Elas já não mais pertenciam a um grupo, cuja influência deveria ser reduzida (nesse caso, a população de origem africana), mas sim à própria cultura nacional, historicamente mestiça. É correto afirmar que os governos populistas como um todo, de 1930 até 1964, trataram de implementar o nacional-desenvolvimentismo por meio da institucionalização, no plano simbólico, da imagem de uma nação mestiça. Para alguns autores, “o modelo desenvolvimentista acabou sendo forjado utilizando como motor ideológico o próprio mito da democracia racial” (GOMES; PAIXÃO, 2008, p. 184-185). Ela teria sido utilizada como um elemento mobilizador do desenvolvimento e do progresso.

Esse período foi o auge da celebração da democracia racial. O elogio à mestiçagem, essa característica que singulariza o Brasil, tornou-se a linguagem através da qual o brasileiro se autopercebeu ao longo de boa parte do século XX. Citando Abdias do Nascimento, intelectual e ativista histórico do movimento negro, Kabengele Munanga (1999) afirma que o projeto de mestiçagem do Estado brasileiro tinha como objetivo o etnocídio da população negra. Segundo Munanga (1999), o discurso da mestiçagem acabou impedindo a construção, de modo positivo, de uma identidade negra. Ele suprimiu a formação de identificações que reivindicavam a diferença.

A mestiçagem tanto biológica quanto cultural teria entre outras conseqüências a destruição da identidade racial e étnica dos grupos dominados, ou seja, o etnocídio. Por isso, a mestiçagem como etapa transitória no processo de branqueamento, constitui peça central da ideologia racial brasileira, embora reconheçamos que todos os intercursos sexuais entre brancos e negros não foram sugeridos por essa ideologia. (MUNANGA, 1999, p. 110).

De fato, as noções de mestiçagem e de democracia racial não conseguiram eliminar a branquitude como norma6. Ana Maria Rodrigues (1984), ao estudar as escolas de samba do Rio de Janeiro, demonstrou como houve um processo de apropriação da população branca dentro dessas instituições após a década de 1930. Sob a capa da “democracia racial”, brancos passaram a ocupar todas as posições de poder e prestígio dentro dessas entidades fundadas, em sua maioria, por negros e negras dos morros cariocas. O samba, alçado a símbolo nacional, passou, na verdade, por um processo de branqueamento.

As tensões em torno da reconstrução política da identidade negra ganharam novos contornos a partir de 1964. A ditadura civil-militar não abandonou a ideologia da democracia racial. Pelo contrário. O discurso nacionalista difundido pelos militares combinava com a unidade proposta na ideia de democracia racial. O “povo brasileiro” seria um só. Reivindicar identidades raciais seria tentar fragmentar a uniformidade desse povo. A estratégia, portanto, era negar qualquer tipo de tensão racial.

A agenda política construída pelo Movimento Negro Unificado (MNU), por sua vez, chocava-se com os interesses autoritários do governo civil-militar. Lideranças passaram a buscar uma reidentificação das expressões afro-culturais, as quais, com o passar do tempo, foram diluídas no rótulo de “cultura brasileira” pelas narrativas nacionalistas que se apoiavam no discurso da mestiçagem. O intuito era exatamente valorizar a especificidade da experiência negra por meio da reivindicação de uma “cultura afro-brasileira”.

Essa estratégia de politização da cultura era, para os integrantes do MNU, fundamental para a valorização da negritude, ou seja, para a construção política de uma identidade negra positiva7. A institucionalização de uma identidade nacional mestiça, que se supunha integradora, teria, na verdade, apagado a contribuição negra na formação nacional e, concomitantemente, encoberto o racismo através do qual a sociedade brasileira se reproduziu. Valorizar e enaltecer a negritude tornava-se, a partir de agora, uma ação de combate ao racismo8. A luta pela instituição de uma “cultura negra” repercutiu, contudo, junto às instâncias de repressão do regime civil-militar. Entidades, encontros e reuniões que visavam promovê-la, às vezes sem nem mesmo contar como um conotação política explícita, tornaram-se alvo de perseguições (PIRES, 2018, p. 1059-1060).

Com a abertura democrática, o empenho em racializar a cultura prosseguiu, especialmente com o surgimento de novas manifestações culturais negras na virada da década de 1980 para a década de 1990, em especial o Funk, no Rio de Janeiro, e o Rap, em São Paulo. Ambos os movimentos, também surgidos em solo norte-americano, representam uma continuidade do Black Soul. Protagonizados por jovens negros das periferias das grandes cidades, o Rap e o Funk destacavam, do mesmo modo, a experiência singular da população negra frente aos processos de modernização. Experiência que continuaria sendo marcada por uma relação tensa, heterogênea e desigual em relação aos padrões hegemônicos da branquitude.

As manifestações culturais, nas suas mais variadas expressões, transformaram-se em símbolos fundamentais para a constituição de identidades racializadas. De acordo com Amilcar Araújo Pereira (2010), a constituição do movimento negro contemporâneo muito se deve ao campo da cultura. O contato com a música, assim como com outras manifestações artísticas, foi responsável por despertar o senso de uma negritude positivada em várias das suas futuras lideranças.9 A afirmação da negritude passava por uma disputa simbólica que está em constante renegociação. A construção de identidades racializadas quase sempre leva a uma disputa pela “apropriação” de certos elementos culturais, tornando-se um processo político de substancialização que vincula o pertencimento a certo grupo, ao pertencimento a determinada “cultura”. Isso frente a ações institucionais que visaram sempre embranquecer determinadas manifestações culturais.

Música sertaneja: suas origens e as narrativas racializadas

Atualmente, quando se adota uma visão temporal sobre a produção musical sertaneja, logo nos deparamos com uma divisão estabelecida entre música caipira e música sertaneja. Muitas vezes encaradas, inclusive, como gêneros musicais distintos. Na verdade, tal distinção, como se pretende demonstrar, foi sendo construída, paulatinamente, ao longo dos anos, por intelectuais, produtores, críticos, jornalistas e também pelos próprios músicos (NEPOMUCENO, 1999; SANTOS, 2005; DENT, 2009; ANTUNES, 2012; OLIVEIRA, 2012; ALONSO, 2015; RIBEIRO, 2015; CAMPOS E ALMEIDA, 2018). Na medida em que a música sertaneja passa a se modernizar, e assim ganhar um alcance nacional, vão surgindo divisões e novas formas de classificação para os diferentes estilos que emergem. Essa história, como se perceberá mais adiante, não é linear e nem mesmo ausente de tensões, pois possui descontinuidades e conflitos.

Dito isso, pode-se afirmar que, até a década de 1930, tudo aquilo que era produzido no interior do país era considerado como música sertaneja. Somente a partir do momento que o samba é institucionalizado como ritmo nacional, assim como o interior do país passa a regionalizar-se10, que a música sertaneja passa a ser identificada com o centro-sul do país (ALONSO, 2015). É considerado o início da música sertaneja, enquanto gênero musical moderno, a década de 1920, quando Cornelio Pires gravou aquele que é considerado o primeiro LP desse gênero musical (ALONSO, 2015; NEPOMUCENO, 1999). Ainda nos 1930, surgiram nomes importantes, que foram fundamentais para a consolidação da música sertaneja, como Alvarenga & Ranchinho, João Pacífico, Caçula & Mariano e Torres & Florêncio.

O surgimento da música sertaneja, por sua vez, esteve associado à gradual formação de uma identidade interiorana no Centro-Sul do país. Foi nas décadas de 1940, em especial na de 1950, a época de ascensão de diversas duplas que viriam a se tornar verdadeiros clássicos desse estilo. São eles Tonico & Tinoco, Tião Carreiro & Pardinho, Liu & Léo, Jacó & Jacozinho e Cascatinha & Inhana. É certo que eles encontraram um grande facilitador para o seu sucesso: a difusão do rádio entre as camadas populares, algo notável nessa época. Com exceção de Cascatinha & Inhana que priorizavam o romantismo em suas canções, tais duplas, mesmo com um repertório heterogêneo, ficaram marcadas por reproduzir, em suas opções estéticas, imagens de um sertão que começava a se desmanchar perante o processo de modernização da sociedade brasileira.

Dentre elas, é interessante, para o nosso trabalho, destacar a obra de Tião Carreiro & Pardinho que foram parceiros, entre voltas e separações, de meados da década de 1950 até fins da década de 1980. Entre os mais de 50 LP’s gravados pela dupla, podemos selecionar um repertório que cristaliza uma visão racializada sobre o sertão. Em diversas canções, os personagens possuem uma caraterística racial bem definida: ganha-se destaque o cotidiano específico da população rural negra, com menção até mesmo para o universo afro-religioso. É o caso de “Segredo da Chave”, “Pagode do Pai Tomé”, “Candieiro de Fazenda”, “Arapó”, “Abrindo caminho”, “Pretinho Aleijado” e “Negrinho parafuso”. Em outras, a negatividade dos estereótipos raciais é contestada abertamente, como, por exemplo, nas músicas “Preto de Alma Branca”, “Preto Inocente” e “O preto e o Granfino”.

Nessas canções, aparece uma crítica às discriminações raciais vivenciadas por negros e negras. Em especial, elas tocam em representações muito disseminadas nos conflitos raciais do Brasil: a associação da população negra a aspectos negativos como a pobreza, a violência e a criminalidade. Tais representações contribuíram para a reificação do lugar social dos negros/as na hierarquia da sociedade brasileira, uma vez que orientavam os comportamentos discriminatórios contra eles/elas. É interessante mencionar que a música sertaneja herdou as sonoridades de outros ritmos de origem rural, muitos deles de origem negra e/ou indígena, como a catira, a congada, batuques, o cururu e o calango de roda. Cantado geralmente em dueto, com viola e violão, o sertanejo pré-1970 reproduziu muito da experiência musical da população negra do interior do país. Além do uso da viola, instrumento utilizado na catira, no cururu e nos calangos, muitos introduziram batuques em algumas canções, como é o caso, que será analisado adiante, das músicas sobre o personagem Preto Velho. Em “Arapó”, Tião Carreiro & Pardinho fazem, através de um som que mistura viola e pandeiro, menção ao jongo, outro ritmo negro ligado aos escravos de origem banto. “Arapó, Arapó/ É ponto de nego veio/ De jongueiro cantador”. Até mesmo a toada histórica, muito utilizada por diversas duplas consideradas caipiras, foi inventada por João Pacífico, músico negro importantíssimo para a história da música sertaneja11.

Outro ponto a se mencionar na obra de Tião Carreiro & Pardinho diz respeito à presença do personagem Preto Velho, caricatura do antigo escravo que adquiriu diversas versões na cultura e no folclore brasileiro12. Dentre outras, ela está presente em canções como “Preto Velho” e “Pai João”. Nessa última, está retratada a vida de um homem negro, cuja trajetória foi marcada pelo trabalho árduo e pela dedicação e obediência ao patrão. Fica registrada a decepção do antigo trabalhador que sente a ingratidão do empregador ao ser abandonado por ele após não conseguir mais servi-lo. Tal narrativa mostra a realidade dos trabalhadores rurais negros após o fim da escravidão, na qual a ausência de direitos é uma constante. Especialmente daqueles que permaneceram nas fazendas nas quais seus ascendentes foram escravizados os quais tiveram que lidar com as tentativas, por parte de fazendeiros e autoridades da fazenda, de continuidade de práticas de subalternização dos tempos da escravidão.

O Preto Velho também é um personagem muito importante no universo espiritual afro-religioso, em especial da Umbanda. Nessa última, os Pretos Velhos são entidades que se apresentam sob o arquétipo de velhos que foram escravos. Outros nomes da música sertaneja gravaram músicas com menção direta a essas entidades. O Trio Parada Dura, outra formação muito conhecida na história da música sertaneja, gravou ao menos três músicas sobre essa entidade, com menção direta a seus poderes espirituais. São elas: “Preto Velho da Senzala”, composta por Mangabinha (líder do trio e um dos compositores, ao lado de Tião Carreiro e Lourival dos Santos, de “Pagode do Pai Tomé”), Barrerito e Romanito; “Pai Joaquim”, composta por Jaci Cardoso; e “Pai Tomé”, cuja composição é de Antonia de Quadros Ribeiro e Creone.

O Trio Parada Dura ainda gravou, em 1981, a música “Homem de Cor”, que trata do racismo nas relações amorosas. Em tal canção, mais uma vez, percebemos a discussão do racismo a partir da posição masculina. Outro fato que chama a atenção é a utilização do termo “homem de cor” em detrimento da palavra “preto” - tão empregada até tempos atrás. Isso indica o início da discussão pública sobre quais formas de tratamento não reproduzem imperativos racistas e, portanto, são consideradas mais respeitosas. Discussão essa que só aumenta nos anos seguintes. Através da expressão “Homem de cor”, além de seus significados sexistas, também já é possível visualizar um debate que será aprofundado mais a frente: a capacidade da branquitude se apresentar como neutra. Em tal expressão, está implícita a ideia de que somente o homem negro tem cor. A norma e a normalidade estariam em ser homem branco.

Recentemente, em 2007, Pedro Bento & Zé da Estrada, contemporâneos de Tião Carreiro & Pardinho e do Trio Parada Dura, gravaram “Preto Velho Sebastião”, canção composta por Ademar Braga e o próprio Pedro Bento. A letra enfatiza os poderes espirituais-terapêuticos e os saberes dos Preto-Velhos, tecendo, assim como as outras canções abordadas, uma narrativa acerca da experiência específica da população afro-sertaneja. Pedro Bento & Zé da Estrada ainda gravaram “A visão de um Preto Velho”, composição de Caetano Erba e Paraíso (um dos parceiros musicais de Tião Carreiro). Em 1977, Carreirinho (antigo parceiro musical e quem abrigou Tião Carreiro na própria casa logo quando esse último veio morar na cidade de São Paulo) lançou, em parceria com sua então esposa Zita Carreiro, um LP intitulado “Amor e Felicidade”. Duas músicas desse álbum fazem referência ao Preto-Velho. Trata-se de “Filho da Umbanda” e a própria “Preto Velho”. A primeira, na qual nota-se, além da viola e do violão, o som de atabaques e uma introdução com direito a imitação da fala de um espírito de Preto Velho, aborda a “descida” da entidade em um terreiro de Umbanda. Já “Preto Velho” narra, mais uma vez, a experiência social, já conhecida em outras canções, sobre esse personagem: a vida injusta de um carreiro de boi, que trabalhou arduamente a vida toda sem recompensa nesse plano espiritual13.

A década de 1970 foi um período de surgimento de muitas duplas negras ligadas à música sertaneja. Podemos listar Pena Branca & Xavantinho, Irmãs Barboza, André & Andrade, Irmãs Freitas, Zé Matão & Matãozinho, Durval & Davi e João Mulato & Douradinho. Também surgiram formações inter-raciais, como Mococa & Moraci (posteriormente Paraíso), Vadico & Vidoco (os quais eram conhecidos como a dupla “café com leite”), Galvan & Galvãozinho e João Mineiro & Marciano. No entanto, a composição de letras abordando a temática racial parece diminuir consideravelmente. Podemos destacar aqui “O Grande Milagre”, de composição de Miltinho Rodrigues e gravada por Mococa & Moraci em 1973, que traça uma narrativa religiosa sobre o fim do passado escravista. No mesmo ano, foi lançado “A Pérola Negra”, música que deu nome ao segundo álbum da cantora mineira Carmen Silva, que viria a ficar reconhecida nacionalmente pelo nome da canção. Na capa do LP, há uma ilustração do rosto da cantora na qual ela aparece com um penteado Black Power. João Mulato & Douradinho lançaram, em 1986, “Preto Doutor”, a canção narra a estória de um homem negro, doutor, que salva, por meio de uma transfusão de sangue, a mulher que um dia o desprezou. Por fim, Moreno & Moreninho gravaram, ainda na década de 1970, “13 de maio”, música cuja letra é pautada por aquela que foi, por muito tempo, a narrativa oficial sobre a abolição brasileira, ou seja, uma narrativa centralizada nas ações da Princesa Isabel.

Modernização e branqueamento da música sertaneja

Cabe ressaltar, também, que a década de 1970 marca o acirramento de uma tensão presente no processo de modernização desse gênero musical. Com o crescimento da indústria cultural no Brasil, a partir dos anos 1960, também aumentou o contato dos brasileiros com obras de artistas estrangeiros, seja na música ou cinema. No caso da música sertaneja, duplas como Leo Canhoto & Robertinho, Milionário & José Rico e os já mencionados Pedro Bento & Zé da Estrada passaram a adotar musicalidades e estéticas surgidas em outros países. Os primeiros sob a influência do rock e do western norte-americanos, enquanto os dois últimos incluíram em suas obras, respectivamente, o ritmo e o visual da guarania paraguaia e da rancheira mexicana. Na década de 1980, Chitãozinho & Xororó encabeçaram a modernização do sertanejo, incluindo novos instrumentos (como teclado, guitarra e bateria) e a estética dos grandes espetáculos. Todas essas duplas foram responsáveis pela paulatina construção da distinção entre música caipira e música sertaneja, gestada a partir da década 1970 e consolidada na década de 1990, com a ascensão do chamado “sertanejo romântico” de duplas como Leandro & Leonardo, Zezé di Camargo & Luciano e Chrystian & Ralf.

Essa distinção, embora faça muito sentido hoje em dia, na verdade acaba simplificando toda a complexidade da obra de determinados artistas. Considerado o maior expoente do sertanejo “raiz”14, ou seja, da música caipira, Tião Carreiro também gravou músicas românticas, boleros, tangos e até samba. Milionário & José Rico, como vimos, foram agentes da modernização do gênero nas décadas de 1970 e 1980. Atualmente, esses artistas são considerados como expoentes da “tradição”. Boa parte da intelectualidade brasileira, inclusive pensadores e políticos considerados de esquerda, contribuiu fortemente para o estabelecimento da separação entre o “caipira” e o “sertanejo”. Para eles, o primeiro representava a “pureza” e a “autenticidade” das populações rurais, enquanto que os modernos sertanejos seriam uma tentativa de imposição, por parte da indústria cultural, de um estilo artificial. Essa é a posição dos sociólogos José de Souza Martins (1975) e Waldenyr Caldas (1977). Entre os defensores da música caipira, os quais avaliavam o sertanejo pós-1980 como deturpadores da primeira, podemos citar Inezita Barroso, Rolando Boldrin e a jornalista Rosa Nepomuceno (1999). Junto a eles, somaram-se artistas que tentaram, a partir da década de 1980, estabelecer um contra-movimento a essa tendência modernizadora, atribuindo uma feição intelectualizada à música caipira, como são os casos de cantores que migraram da MPB, como Renato Teixeira e Almir Sater, e do ex-Jovem Guarda Sérgio Reis, que passou a regravar clássicos do gênero15.

Aos poucos, foi se consolidando esse discurso essencialista que separava o “caipira raiz” do “sertanejo modernizado” 16:

[...] sobretudo nos anos 70, a música sertaneja foi taxada de “falsa música do campo” por variadas correntes intelectuais que não compreenderam o significado da transição da música rural brasileira. Houve um frequente desprezo destes artistas e seu público, o que distanciou grande parte da intelectualidade da compreensão deste chamado “Brasil profundo”. [...] Demarca-se aqui que esse pensamento catalisado nos anos 70 foi essencial para a construção, delimitação e distinção de campos culturais diferenciados na música rural. Pensando através das categorias de Bourdieu, a música caipira foi sendo ao mesmo tempo “inventada” enquanto projeto estético e campo cultural ao mesmo tempo que criava e delimitava sua oposição, os sertanejos. Em diálogo dinâmico de autonomia relativa, foram sendo gestados campos gradualmente opostos. (ALONSO, 2012, p. 450).

Além de Alonso (2012), 2015), há pesquisas recentes (FRANÇA, 2021; CAMPOS; ALMEIDA, 2018; OLIVEIRA, 2012), ancoradas em novas teorias sobre a circulação dos bens culturais, que contestam essa visão, segundo a qual, o sertanejo contemporâneo representa apenas um projeto de alienação da indústria cultural. Sem deixar de levar em conta a lógica mercadológica presente na estruturação desse campo musical, elas afirmam ser necessária uma abordagem menos determinista para entender como esse gênero musical “mobiliza as intimidades, as emoções e as interações de milhões de pessoas cotidianamente” (FRANÇA, 2021, p. 309). Se olharmos para como os sujeitos que consomem esse gênero musical imprimem significados e se relacionam com ele, percebe-se que, mesmo se tecnificando e se midiatizando, o sertanejo ainda guardaria uma relação com os valores e sentimentos da população. Seria possível, nesse caso, pensar também nas continuidades presentes nesse gênero musical, tratando “música caipira” e “música sertaneja” não como dois objetos estanques. Conforme afirma Elizete Ignácio dos Santos (2005b, p. 104), “a autenticidade” não [pode ser encarada] como algo em si mesma, mas como um recurso discursivo dos grupos envolvidos, que está em constante reformulação”.

De fato, exceto em relação à intelectualidade e às classes médias de grandes centros urbanos, a modernização da música sertaneja fez com que esse gênero musical obtivesse bastante sucesso, tornando-o, já na década de 1990, não mais um gênero musical regional, mas de alcance nacional. Tal sucesso ocorreu de forma concomitante, todavia, ao quase desaparecimento da temática racial nas canções sertanejas. A exceção é a música “Olhos de Luar”. Em 1992, a dupla Chrystian & Ralf lança um álbum com o nome da dupla. Além de outras canções que fizeram bastante sucesso durante essa época, nele está presente essa canção, composta por Gilson e Carlos Colla. Lançada durante um período de contestação política da ideia de “democracia racial”, a música aborda o preconceito racial de um fazendeiro, que não aceita o relacionamento da filha com um trabalhador negro. Muito menos o filho fruto dessa relação. Alternando ao longo da narrativa diversos termos (mulato, moreno e negro) para descrever o personagem principal17, a música escancara uma situação de discriminação justamente nas relações que, durante anos, pareciam basear os argumentos da “mestiçagem”: as uniões afetivas entre brancos/as e negros/as. Talvez essa seja a última música sertaneja a retratar um sertão racializado. Entre os músicos, percebe-se também uma acentuada diminuição da presença de negros. Das duplas que foram destaque a partir de 1990, conseguimos identificar somente Rick, da dupla Rick & Renner, e João Paulo, que fez parceria de sucesso com Daniel e faleceu no auge da carreira, em 1997, durante um acidente de automóvel.

O “sertanejo universitário”: ápice do branqueamento

Com a ascensão do “sertanejo universitário”, a partir dos anos 2000, a modernização prossegue e, ao que tudo indica, o branqueamento desse gênero também. Foi intitulado de “universitário”, pois o público desse novo tipo de sertanejo era, de início, composta majoritariamente por universitários. Em alguns casos, os próprios cantores frequentavam universidades do interior de São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso do Sul. Longe de restringir a esses estados, o sertanejo universitário alcançou um enorme sucesso. Hoje em dia, ele é ouvido em todas as regiões do país e por praticamente todas as camadas sociais. É o gênero musical mais escutado no país. Seus artistas lotam shows de Porto Alegre a Manaus e são os mais procurados e escutados nas mídias digitais, redes sociais e plataformas de streaming18.

Obviamente, há núcleos de resistência. Mesmo sendo considerado “universitário” e tendo alcançado bastante sucesso nos grandes centros urbanos, setores mais escolarizados e localizados nas maiores cidades do país ainda compõe a grande parcela daqueles que não se simpatizam com o gênero sertanejo (ALONSO, 2012).

É de se ressaltar, todavia, que por trás do rótulo de universitário estão artistas com propostas musicais distintas. Alguns setores desse segmento, por exemplo, colaboram para a consolidação de uma narrativa voltada para o “sertanejo raiz”. Tal narrativa é o que Alonso (2015, p. 431-433) denomina de processo de recaipirização dentro da música sertaneja. O chamado “sertanejo universitário”, se, por um lado, representa um extremo de modernização desse estilo musical, também trouxe consigo a revalorização de cantores que passaram a ser intitulados de “sertanejo raiz”. Nessa onda, estão duplas caipiras, como Tião Carreiro & Pardinho e Tonico & Tinoco, e até mesmo cantores que foram expoentes da modernização da música sertaneja, como Milionário & José Rico, Chitãozinho & Xororó e Zezé di Camargo & Luciano, os quais passaram a ser adjetivados como “raiz”. Além disso, o “sertanejo universitário” reconfigura a geopolítica da indústria musical brasileira, a qual, pela primeira vez, tem seu polo principal deslocado do eixo Rio-São Paulo. Se antes as duplas sertanejas tinham de migrar para São Paulo a fim de gravarem seus discos e divulgarem seu trabalho, agora o centro de produção e divulgação está em cidades como Goiânia, Campo Grande, Uberlândia, Londrina e até Palmas.

No que diz respeito à temática racial, ela praticamente desaparece das canções. Muitas vezes, o que é silenciado ou ocultado torna-se tão importante quanto aquilo que é dito. O silenciamento sobre as relações raciais, portanto, é significativo, especialmente levando-se em consideração o fato de que, após a geração que surge nos anos 1990, não são mais encontrados artistas sertanejos negros - consultar as imagens 1, 2 e 3. Pelo menos não entre as duplas de maior sucesso. Rick e o falecido João Paulo parecem ser os últimos, pelo menos entre as duplas de grande sucesso. Eles, ao que tudo indica, já compõem uma minoria em um estilo musical que, como vimos, tem uma presença negra marcante. O sertanejo universitário, se abriu espaço para vozes femininas como Marília Mendonça, Maria Cecília, Maiara & Maraísa e Simone & Simaria, parece que enterrou de vez a participação negra na música sertaneja.


Imagem 1
Músicos sertanejos negros que iniciaram carreira entre os anos 1950-197019
Fonte: compilação do autor a partir de imagens de domínio público.


Imagem 2
Principais músicos sertanejos surgidos entre os anos 1980-1990
Fonte: compilação do autor a partir de imagens de domínio público.


Imagem 3
Principais cantores sertanejos após os anos 2000
Fonte: compilação do autor a partir de imagens de domínio público.

Ao destacarmos esse processo de branqueamento, devemos, por sua vez, entender também o papel da branquitude dentro de sociedades racialmente estruturadas como a brasileira. Muitas vezes, tem-se dificuldade em enxergar o fato de que os corpos e as culturas colocados como superiores também passam por um processo de racialização. Essa aparente “cegueira racial” em relação à branquitude é exatamente a que a torna os seus postulados tão eficazes em determinados contextos.

A branquitude é entendida como uma construção sócio-histórica produzida pela ideia falaciosa de superioridade racial branca, e que resulta, nas sociedades estruturadas pelo racismo, em uma posição em que os sujeitos identificados como brancos adquirem privilégios simbólicos e materiais em relação aos não brancos. (SCHUCMAN, 2012, p. 22).

Ao se auto estabelecer como norma, a branquitude deixa quase sempre uma aparência de “neutralidade” em determinadas relações sociais. No entanto, a brancura, enquanto identidade branca silenciada, é atuante nas ações modernas de subalternização racial.

Dentro dos estudos étnico-raciais há um consenso sobre a invisibilidade da racialização do branco, onde ser branco é possuir identidade neutra. Dyer analisa que, em alguns produtos culturais, a noção de identidade neutra do branco se perpetua, sendo considerada apenas enquanto ‘raça humana’ – assegurando, assim, uma posição de poder. [...] a hegemonia de homens heterossexuais brancos configura um elemento social importante que é reencenado em produtos culturais. (SOARES; TENÓRIO, 2021, p. 27).

Ao se modernizar, a música sertaneja conseguiu ser consumida por um público cada vez maior, sendo, atualmente, o principal gênero musical do Brasil, tanto em termos de quantidade de público como de rendimento econômico. Tal processo de modernização, como se pretendeu aqui demonstrar, trouxe consigo um apagamento das narrativas racializadas até então presentes nesse gênero musical. A ausência da raça nas letras das canções não significa, todavia, que a música sertaneja se reproduza em um contexto não racializado. Não é possível vislumbrar uma suposta “neutralidade racial” em um campo musical predominantemente branco – desde os cantores até os empresários e produtores, os quais financiam e gerenciam as carreiras desses artistas. Na verdade, desde as décadas de 1980 e 1990, a modernização da música sertaneja se apoiou na branquitude para se valorizar esteticamente no mercado musical.

Primeiro, com o sertanejo se modernizando e movimentando muito dinheiro, os artistas desse gênero tinham sua imagem bem mais exposta: eram CD`s, DVD’s, videoclipes, participações em programa de TV, propagandas, revistas e, atualmente, a internet (redes socais) e as mídias digitais. O emprego cada vez maior de tecnologias visuais fez com que a aparência física dos cantores fosse algo central no negócio da música. Tratando-se de um país estruturalmente racista como o Brasil, é de se supor que, dentro desse contexto, os músicos negros sofressem muitas dificuldades para ascensão. Durante os anos 1990, o principal concorrente do sertanejo, no mercado musical brasileiro, era o pagode. Feito majoritariamente por negros, esse último, ao contrário do sertanejo, não conseguiu estabilizar sua ascensão e estabelecer-se por mais de uma década no topo desse mercado. O funk brasileiro, apesar de sua origem negra, ainda hoje faz sucesso, em sua maioria, na imagem de cantores/as brancos/as. O próprio Axé music, ritmo de origem baiana, também passou por um branqueamento no seu caminho de ascensão durante o final dos anos 1990.

Além disso, o “sertanejo universitário”, embora pareça “neutro” racialmente, explora narrativas estéticas da branquitude. As vestimentas utilizadas, os vídeos clipes e shows transmitidos, assim como suas letras (com ausência de tensões explicitamente raciais até mesmo no que toca aos conflitos expressos nas relações afetivas, a principal temática do sertanejo contemporâneo)20, reproduzem símbolos de constituição da branquitude. Até mesmo na parcela do “sertanejo universitário” que ainda resguarda uma “estética cowboy”, caso de duplas como Jades & Jadson, Leo & Raphel, Antony & Gabriel e João Carreiro & Capataz, o sertão expresso por eles é aquele presente no discurso do agronegócio, hoje um agente político-econômico muito expressivo na realidade social brasileira.

Aqui cabe fazer uma ligação entre a modernização da música sertaneja (caracterizada pela inserção de novos instrumentos e ritmos musicais, assim como a uma acelerada adoção de novas estratégias econômicas e tecnológicas de produção e difusão de seus trabalhos) e a modernização da sociedade brasileira. Diversos autores já tentaram pensar as especificidades da modernização brasileira/periférica.

Desde meados do século passado, parte da tradição sociológica brasileira, como Florestan Fernandes, Luiz Werneck Vianna e Clóvis Moura, apontava uma tendência de inserção do Brasil no mundo moderno. Nela, o país apresentaria avanços modernizantes (urbanização, industrialização, a emergência de uma sociedade de classes, a complexificação da vida cultural e política etc.) que conviveriam com uma pesada herança “arcaica” (o latifúndio monocultor, o autoritarismo, a extrema desigualdade social, a baixa democracia, o capitalismo dependente etc.). Otimistas ou pessimistas, a pergunta de fundo que norteava o debate era: qual o lugar do Brasil na modernidade? Ou melhor: o que seria a modernidade brasileira? (QUEIROZ, 2021a, s/p).

Segundo Florestan Fernandes (1981), (2005), o que caracterizaria a modernização brasileira (no sentido que, desde o final do século XIX, surgiram projetos nacionais que tentaram “importar” elementos das sociedades europeias para o Brasil) seria o seu caráter conservador. Para ele, a sociedade brasileira possui uma “resistência sociopática à mudança social”, no sentido que sua elite permanece a mesma desde os tempos coloniais. Ao contrário dos projetos de modernização observados nas sociedades europeias, os quais foram construídos a partir de atos revolucionários, no Brasil as transformações até ocorrem, mas somente quando representam a continuidade dos grupos dominantes. Assim o país conseguiu, ao longo do século XX, industrializar-se e se urbanizar, aspectos fundamentais das ambições modernizantes, mas continuou com uma inserção periférica na economia mundial, como exportador de produtos primários, e com uma democracia instável. E não devido somente à dominação estrangeira, mas porque a própria elite local explora, tanto do ponto de vista econômico como político, essa posição de subdesenvolvimento.

Os argumentos de Fernandes são interessantes para pensar a atuação do agronegócio atualmente. Seus membros se vangloriam, constantemente, dos recordes de safras e lucros obtidos através da sua atuação política no controle dos projetos econômicos. Esse controle, por sua vez, também diz respeito à tentativa de construção de uma hegemonia cultural através dos investimentos em feiras agropecuárias, rodeios e agrishows, além dos patrocínios em filmes, peças de teatro e na TV21. Tal qual aparece em algumas músicas sertanejas recentes, esses eventos culturais tentam passar a imagem do agronegócio como um modelo de sucesso; como uma espécie de “Brasil que venceu”.22

No caso específico das canções sertanejas, elas visam simbolizar uma ruralidade homogênea e sem distinções sociais, exaltando a importância do setor agroexportador para a economia brasileira. Seria ele o principal gerador de riquezas para o país. Nessa lógica, o rural é resumido a esse setor, criando uma dicotomia campo-cidade, com o primeiro tendo um papel também fundamental para o desenvolvimento do país. O universo simbólico construído, no entanto, estiliza a vida de um grupo específico: dos grandes fazendeiros, os quais, com muito dinheiro, ao invés de ostentar Ferraris e roupas luxuosas, “vestem chapéu de palha, usam botinas sujas e rodam em Hilux 4 x 4”23. O agronegócio, na verdade, sempre se apoiou em relações racializadas para manter o seu domínio econômico e político. Sendo a maioria deles originários do sul do país, os grandes pecuaristas e plantadores de grãos da região Centro-Oeste construíram uma narrativa colonizadora sobre esse território, no qual eles aparecem como os principais agentes da civilização. Desde a década de 1970, com as propostas de modernização do campo executados pelo regime militar, a marcha da soja e da pecuária em direção ao Centro-Oeste sempre foi carregada de discursos e símbolos que exaltam o trabalho material e civilizatório dos sulistas brancos na “ocupação” dos “espaços vazios” (ou seja, pertencentes a comunidades tradicionais) dessa região24.

O fato é que o sertão repleto de adversidades sociais e naturais, conforme consta na obra de Tião Carreiro, não está presente na estética da música sertaneja contemporânea; as epopeias e dramas retratados não são mais os de peões, boiadeiros, carroceiros e demais trabalhadores rurais, mas prevalece o discurso vitorioso de um setor econômico em constante conflito socioambiental com outros segmentos da população, dentre eles as populações indígenas e quilombolas25. Não se pretende reproduzir aqui um discurso essencialista e valorativo, segundo o qual existe um “sertão verdadeiro” ou então uma “verdadeira música sertaneja”. Isso já foi algo bem explorado pelos autores já citados. Mas somente constatar que as mudanças apresentadas por esse gênero musical estão imersas em determinados conflitos raciais que, por sua vez, dizem respeito à própria dinâmica das modernizações brasileiras.

A hegemonia sertaneja reflete características da sociedade brasileira desde os 1980, na qual a monocultura musical e a monocultura econômica alimentam-se uma da outra. A evidência desse lado conservador da modernização não deve ser entendida como uma simples adequação da superestrutura cultural à lógica da estrutura social, muito menos como um generalizado processo de alienação da população brasileira. Nuances, disputas, incorporações e distensões praticadas pelo sertanejo – pelo estilo em si, mas por aqueles que o produzem, circulam, ouvem e vivem – denotam batalhas vencidas e perdidas na esfera cultural brasileira, atravessadas por distintos projetos de país. Vitórias e derrotas de um tortuoso caminho nacional. (QUEIROZ, 2021a, s/p).

Além disso, há aspectos técnicos, e não somente estético-narrativos, que geram indícios desse processo de branqueamento, como a eletrificação das sonoridades sertanejas a partir da utilização da guitarra. Conforme afirma Queiroz (2021), o uso extensivo da guitarra no sertanejo contemporâneo representa uma “eletrificação estética” de ritmos tradicionais. “Com isso, nas disputas em torno da modernidade brasileira por meio da guitarra nos anos 1990, o sertanejo é o grande vencedor” (QUEIROZ, 2021a, s/p).

O universo simbólico performado pelo “sertanejo universitário” diz respeito a experiências alcançáveis somente para parcela da população branca – seja as experiências associadas às baladas luxuosas26 ou então aquelas das “roças” de milhares de hectares, habitadas prioritariamente por bois e circuladas por camionetes 4 x 4. E ele retira exatamente daí sua eficácia: gera branqueamento, apresentando a branquitude como algo universal que supostamente “qualquer um” poderia vivenciar.

O poder de categorizar o Outro é o poder de construir sua identidade sem ter de explicitar suas características, mas somente através da negação daquilo que julga ser negativo nesse Outro. A negritude, por exemplo, é pautada pelo princípio da ausência, segundo o qual quem existe deixa de existir. 27

Durante toda a história a cultura negra foi apropriada, roubada, destroçada por brancos. Nem a música preta fugiu desse processo.

A principal problemática da apropriação cultural é o apagamento da identidade de símbolos oriundos da cultura africana para adaptá-los ao gosto da branquitude. (NOGUEIRA, 2017).

O cantor Rick foi questionado, em um dos principais podcasts sobre música sertaneja, sobre a existência de racismo no universo da música sertaneja, haja vista ele ser, atualmente, o único negro de sucesso nesse gênero musical. O cantor pareceu não se sentir confortável com a pergunta, retrucando-a com um comentário que tentou parecer engraçado: “Isso tem um lado bom! É quando dizem: é aquela dupla que tem um negão! Logo sei que se trata de mim”, deixando a entender que o fato de ser o único negro nesse campo aumentava a sua própria visibilidade. Em seguida, o músico tratou o assunto de forma séria. Afirmou ter presenciado vários casos de racismo ao longo da sua carreira. Citou, inclusive, uma história contada a ele por João Paulo, que fez dupla com Daniel. De acordo com Rick, João Paulo & Daniel, ainda em início de carreira, foram fazer uma apresentação em determinada cidade. Chegando lá, o contratante não gostou nada de perceber que um negro fazia parte da dupla. “Se tivessem falado que era um preto e um branco, não teria nem contratado”, disse o empresário.

Rick ainda mencionou o fato de uma vez ter sido empurrado por uma mulher, que não gostaria de tirar foto com a dupla Rick & Renner, mas somente com este último, mesmo o primeiro sendo a primeira voz e o compositor das principais músicas do dueto. No fim, Rick destacou que “o racismo sempre vai existir”, mas a discriminação nunca o afetou, pois sempre “levou tudo na base da piada”. Ainda sobre esse assunto, uma de suas falas demonstra a força do branqueamento no racismo reproduzido no Brasil. Rick fez questão de afirmar: “João Paulo, por ser mais negro que eu, deve ter sofrido bem mais com o racismo”28.

Se a história das últimas décadas da música sertaneja é marcada pela mediação e transição entre o tradicional e o moderno, o sujeito dessa história é o branco (e cada vez mais). Como mostra a trajetória símbolo de Sérgio Reis — e de tantos outros –, ao branco é facilitado o poder de transitar entre diversos lugares, sem congelamento da sua imagem em uma identidade única. Assim, a nacionalização do gênero significa o seu embranquecimento, pois só a branquidade pode ocupar o universal nacional, só ela pode realizar de maneira mais livre a antropofagia. Deglutir e digerir pressupõem um lugar de transparência, que, no jogo racial, é negado a negros e indígenas. Ademais, a branquidade não só assume o universal, como inventa, cria e delimita o que é o nacional, estabelecendo-se como força dinamizadora e consumidora. Neste delineamento sucessivo, ao negríndio é reservado o espaço do tradicional, do antigo, do passado, do fóssil (do caipira?), o qual sempre pode ser alvo de novas investidas de deglutição e digestão do sujeito brasileiro. (QUEIROZ, 2021b, s/p).

Considerações finais

Ao longo deste artigo, pretendeu-se evidenciar como a modernização da música sertaneja estava imersa nos racializados processos de modernização da sociedade brasileira, o que levou a um branqueamento desse gênero musical. Conforme observou Rodrigues (1984), branqueamento, quando se refere ao universo cultural, vem sempre acompanhado espoliação. Primeiramente, tentou-se entender como o branqueamento norteou as relações raciais brasileiras, especialmente no que diz respeito ao âmbito da cultura. Depois, adentrou-se na história da música sertaneja propriamente dita. Sem cair em essencialismos ou então se apropriar de categorias estanques, foi observado, dentro da complexidade apresentada por esse gênero musical, como ocorreu o embranquecimento de seus principais personagens, assim como também da sua estética narrativa e sonora como um todo. Longe de propor uma polarização para o entendimento dessa história, entendeu-se o branqueamento não como um processo linear e gradual, mas que ocorreu paulatinamente, com encontros e desencontros, ao longo da modernização da música sertaneja.

Enquanto invenção simbólica, a identidade de um grupo sempre se apoia em elementos culturais. Um dos principais dispositivos de poder presentes nos projetos coloniais estava no epistemicídio praticado contra os povos dominados (MENESES, 2009). Além dos corpos, o racismo sempre atuou também contra as manifestações culturais das populações subalternizadas. A apropriação cultural foi, e continua sendo, uma estratégia de dominação muito eficiente. Franz Fanon (2008) foi um dos primeiros a perceber o impacto subjetivo do racismo frente às populações colonizadas. A branquitude leva o negro a se identificar com o seu próprio dominante e, consequentemente, a desprezar a si mesmo. Reside aí o impacto psíquico-político da apropriação cultural: sem ter elementos culturais positivos para se identificar, é impossível construir uma narrativa identitária autoafirmativa.

Ao analisar o embranquecimento da cultura como estratégia de genocídio [...] Abdias Nascimento indica que a apropriação cultural está longe de ser uma questão banal, uma vez que também pode estar a serviço dos mecanismos de opressão e das políticas de morte. A apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual um grupo dominante se apodera de uma cultura inferiorizada, esvaziando de significados suas produções, costumes, tradições e demais elementos. [...] Portanto, escamotear os traços negros e indígenas das tradições culturais brasileiras é o mesmo que roubar a humanidade desses povos e impulsionar seu genocídio. É uma violência, um crime. (WILLIAM, 2020, p. 47).

As palavras de Abdias do Nascimento podem parecer fortes demais para serem aplicadas à música sertaneja. No entanto, há de se considerar, como se tentou aqui demonstrar, que a história recente do sertanejo, sendo ele o gênero musical mais consumido no país, acabou contribuindo com a reprodução simbólica da normalização da branquitude e, assim, para a continuidade do racismo estrutural constituído historicamente no Brasil.

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Notas

1 “Racialização é o termo usado para descrever processos sociais, culturais, econômicos e psicológicos que fazem raça importante e as formas que raça é usada como uma base para desigualdade e discriminação, sendo que o principal produto do processo de racialização é a classificação de pessoas em categorias raciais e a criação de hierarquias entre estas categorias” (SOUZA, 2017, p. 23).
2 Para uma análise sobre como a modernização brasileira também foi racializada, consultar Barbara Weinstein (2015).
3 Essa afirmação foi desenvolvida por Marcos Queiroz (2021a), (2021b) em dois de seus artigos publicados recentemente em revistas eletrônicas, assim como Matheus Gonçalves França (2021, p. 163-164) também lançou essa possibilidade em um trecho da sua tese de doutorado.
4 Conforme afirma Rafael José de Menezes Bastos (1995), não se pode, nas análises sobre música, considerar suas tecnicidades e seus conteúdos como universos distintos e separados. “A música é social não só por seu conteúdo, mas também em sua forma” (BASTOS, 1995, p. 13).
5 Cabe aqui destacar que, embora presente em diversos contextos desse território, os discursos e práticas em torno da mestiçagem adquiriram diferentes contornos ao longo da América Latina.
6 Mais adiante, conceituaremos a ideia de branquitude.
7 A construção de uma cultura negra sempre passou por disputas pela sua institucionalização no âmbito do Estado. Para entender o processo político que levou à instituição da Bahia como “estado negro”, ver Jocélio Teles dos Santos (2005).
8 Para uma análise sobre as lutas do movimento negro para enfrentar o discurso da mestiçagem e, assim, instituir uma negritude positiva, ler Munanga (1999).
9 Outra referência importante para se pensar a relação entre política e cultura na formatação do movimento negro brasileiro é Flavia Matheus Rios (2008).
10 Luiz Gonzaga, por exemplo, afirmará o baião como gênero tipicamente “nordestino”.
11 Para saber mais sobre a história de João Pacífico, ler Rosa Nepomuceno (1999).
12 Para uma abordagem mais ampla das múltiplas representações sobre o personagem Preto Velho, ler Martha Abreu (2004).
13 Em 2011, foi lançada uma coletânea intitulada “Macumba no Sertão (viola na macumba)”, a qual, além de algumas músicas de Tião Carreiro & Pardinho que já foram aqui analisadas, apresenta outros nomes da música caipira interpretando canções relacionadas à temática abordada neste trabalho. São nomes como Zico & Zeca, Leôncio & Leonel e Zé Tapera & Teodoro.
14 “Sertanejo raiz” é outra maneira através da qual o público, e também alguns artistas, referem-se à música sertaneja tradicional. Martha Ulhôa (1999) também utiliza esse termo para se referir à música caipira, ou seja, ao estilo de sertanejo produzido até a década de 1970. Geralmente, ele é empregado por críticos do sertanejo atual, que teria fugido de suas “raízes”.
15 Para saber um pouco mais sobre as trajetórias de Almir Sater e Renato Teixeira na música sertaneja, consultar os já citados Alonso (2015) e Nepomuceno (1999). Sobre a inserção de Sérgio Reis nesse gênero, ler a dissertação de Alessandro Henrique Cavichia Dias (2014).
16 Para saber mais sobre essa distinção entre música sertaneja e caipira, consultar as obras de Gustavo Alonso (2015), (2017).
17 Essa inconstância na utilização dos termos classificatórios parece já refletir a tensão trazida pelo debate acerca da politização das identidades, surgido a partir dos anos 1980.
19 Também havia, é bom deixar claro, brancos entre as duplas caipiras de sucesso, como Tonico & Tinoco, Zilo & Zalo, Jacó & Jacozinho. No entanto, a sequência de imagens cumpre o papel de demonstrar o branqueamento no mercado de cantores sertanejos.
20 Conforme abordado, anteriormente, a identidade racial era muitas vezes vista como fonte de conflitos afetivos. São os casos de “Homem de Cor”, “Preto Doutor” e “Olhos de Luar”.
21 Para uma análise das conexões entre o modelo de produção do agronegócio e a indústria cultural no Brasil a partir da década de 1960, ler Ana Manuela de Jesus Chã (2016).
22 Alexander Sebastian Dent (2009) também tentou relacionar a modernização da música sertaneja com a modernização da sociedade brasileira, mas com enfoque sobre como a relação rural-urbano é performada nesse contexto. Segundo ele, que também divide a história do gênero musical entre “música caipira” (pré-década de 1980) e “música sertaneja”, um dos aspectos mais interessantes do processo de modernização brasileiro ó seu caráter paradoxal, uma vez que as ambições modernizantes (como industrialização, urbanização, progresso) são sempre pensadas por meio da projeção do rural como lugar de passado. A emotividade e a tristeza presentes na música sertaneja seriam indícios dessa “modernidade em tom menor” (SAUTCHUK, 2013).
23 Esse é um trecho da canção “Meninos da Pecuária”, interpretada por Léo & Raphael. Essa narrativa do agronegócio também está presente em músicas como “A roça venceu”, “Agrofarra”, “Us roça chegou” e “O Agro é Top”. Fernando & Sorocaba lançaram recentemente “Doutor do Agronegócio”.
24 Para maiores informações sobre como a branquitude opera na divisão socioespacial dos municípios dominados pelo agronegócio, bem como a forma através da qual está instituída (em monumentos e outros espaços públicos) uma história oficial racializada sobre a ocupação dessas regiões, ler a reportagem: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/03/apartheid-e-racismo-nas-cidades-da-soja/. Acesso em: 20 mar. 2022, às 19 horas.
25 Sobre a prática do racismo ambiental por parte do agronegócio brasileiro, consultar o site: https://racismoambiental.net.br/. Acesso em: 02 out. 2022, às 9 horas.
26 Realizando uma etnografia nas baladas sertanejas de Goiânia, França realizou a seguinte afirmação: “nas boates mais caras, a presença de pessoas brancas é absolutamente majoritária, enquanto nas baladas mais “baratas” (que ainda assim cobram valores caros levando em consideração a média salarial do país) encontra-se um número maior de pessoas não-brancas” (FRANÇA, 2021, p. 164).
27 E é com este princípio de ausência que espaços brancos são mantidos como brancos, que por sua vez tornam a branquitude a norma nacional. A norma e a normalidade, que perigosamente indicam quem pode representar a verdadeira existência humana. (KILOMBA, 2020, p. 14-15, grifos da autora).
28 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5G4Q6u6HGhU. Acesso em: 21 ago. 2021 às 10 horas.


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