Artigo
Contra “ideologias nefastas”: moralidades e cidadania à brasileira na cerimonia de posse presidencial de Jair Messias Bolsonaro
Against “nefarious ideologies”: moralities and Brazilian citizenship at the presidential inauguration ceremony of Jair Messias Bolsonaro
Contra las “ideologías nefastas”: moralidades y ciudadanía a la brasileña en la ceremonia de investidura presidencial de Jair Messias Bolsonaro
Contra “ideologias nefastas”: moralidades e cidadania à brasileira na cerimonia de posse presidencial de Jair Messias Bolsonaro
Revista Sociedade e Cultura, vol. 25, e71196, 2022
Universidade Federal De Goias (UFG)
Recepção: 28 Janeiro 2022
Aprovação: 25 Maio 2022
Resumo: O presente artigo pretende descrever e analisar a cerimônia de posse presidencial de Jair Messias Bolsonaro, tendo como foco os valores celebrados em seu discurso. A fim de compreender a singularidade desse evento, realizaremos uma comparação por contraste entre o discurso de posse de Bolsonaro e os discursos de posse dos primeiros mandatos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Nossa aposta interpretativa é a de que a chegada de um candidato de extrema direita ao Palácio do Planalto representou tanto descontinuidades quanto continuidades em relação aos seus antecessores. No primeiro caso, o discurso de posse de Bolsonaro expressa a permanência do dissenso e do conflito eleitoral, revela valores excludentes e a ausência da categoria direitos humanos, central nos demais discursos presidenciais abordados. Em relação à continuidade, parece-nos que as ideias-valores do bolsonarismo são reveladoras da maneira pela qual a cidadania tem sido construída no Brasil, isto é, os direitos não são percebidos como universais, mas como “privilégios”.
Palavras-chave: Cidadania, Jair Bolsonaro, Direitos Humanos, Ritual.
Abstract: This article aims to describe and analyze the inauguration ceremony of President Jair Bolsonaro, focusing on the values celebrated in his speech. To understand the uniqueness of this event, we will make a contrast comparison between Bolsonaro's inauguration speech and the inauguration speeches of Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva and Dilma Rousseff. Our interpretive bet is that the arrival of a candidate from the extreme right to the Palácio do Planalto represented both discontinuities and continuities in relation to his predecessors. In the first case, Bolsonaro's investiture speech expresses the permanence of dissidence and the electoral conflict, revealing exclusionary values and the absence of the central category of human rights in the other presidential speeches addressed. Regarding continuity, it seems to us that the idea-value of Bolsonarism reveals the way in which citizenship has been constructed in Brazil, that is, rights are not perceived as universal, but rather as “privileges.”
Keywords: Citizenship, Jair Bolsonaro, Human rights, Ritual.
Resumen: Este artículo pretende describir y analizar la ceremonia de toma de posesión presidencial de Jair Messias Bolsonaro, centrándose en los valores celebrados en su discurso. Para entender la singularidad de este evento, haremos una comparación por contraste entre el discurso inaugural de Bolsonaro y los discursos inaugurales de los primeros mandatos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva y Dilma Rousseff. Nuestra apuesta interpretativa es que la llegada de un candidato de extrema derecha al Palácio do Planalto representó tanto discontinuidades como continuidades en relación con sus predecesores. En el primer caso, el discurso inaugural de Bolsonaro expresa la permanencia de la disidencia y el conflicto electoral, revela valores excluyentes y la ausencia de la categoría central de derechos humanos en los demás discursos presidenciales abordados. En relación a la continuidad, nos parece que las ideas-valores del bolsonarismo revelan la forma en que se ha construido la ciudadanía en Brasil, es decir, los derechos no se perciben como universales, sino como “privilegios”.
Palabras clave: Ciudadanía, Jair Bolsonaro, Derechos humanos, Ritual.
Introdução
No primeiro dia do mês de janeiro de 2019, muitos televisores, smartphones e afins transmitiram um evento bastante significativo para a história do Brasil contemporâneo: a cerimônia de posse presidencial de Jair Messias Bolsonaro. Na encenação daquele ritual, pudemos observar as três dimensões que o Estado (state) aglutina na teoria política moderna: status (“posto”, “posição”, “condição”); pompa (“esplendor”, “aparato”, “dignidade”, “presença”) e governação (“regência”, “regime”, “soberania”, “comando”) (GEERTZ, 1991).
Geertz (1991) critica a ideia segundo a qual a simbologia política não seria mais do que um instrumento de governo. Para compreender os chamados “Estados modernos” e o negara - espécie de entidade estatal balinesa do século XIX -, ele defende a necessidade de se localizar emoções e analisar atos; em outras palavras, propõe que se elabore uma poética do poder. Isso porque a luta pelo poder é dramatizada e exibida nos rituais. Conforme Geertz (1991, p. 156), “o Estado ia buscar a sua força, que era deveras real, às suas energias imaginativas, à sua capacidade semiótica de fazer com que a desigualdade encantasse”. Assim, os balineses não tratavam a imaginação como uma mera fantasia ou especulação; tratavam-na, ao contrário, como uma forma de percepção, representação e realização. O “real” e o “imaginário” eram (são) ambos imaginados (GEERTZ, 1991).
Sob essa perspectiva, neste artigo, analisaremos a cerimônia de posse de Bolsonaro como um ritual de Estado, tendo como foco a moralidade expressa na retórica discursiva. Isso porque, na esfera política, a retórica não é uma mera verborragia, tendo em vista que “discursar é fazer crer, é instituir vínculos, é (rea)firmar lealdades, é construir a realidade empenhando a si próprio - a veracidade do dito não se desvincula de quem o enuncia”, ou seja, ali, dizer é fazer; mas “é preciso saber para quem, quando e de que forma fazê-lo”, pois as palavras são espada e arma contra inimigos (TEIXEIRA, 1998, p. 58). Dizendo de outra forma, a magia da política consistiria na capacidade de agir no mundo social pelas palavras e gestos que, sob certas condições, conseguem gerar os efeitos desejados sobre os homens.
O ritual de posse presidencial é, nos termos de Bourdieu (2008, p. 82), um ato de nomeação e, assim como o insulto, carrega uma intenção performativa ou mágica e faz parte dos atos de instituição. Nesses casos, um indivíduo, ao agir em seu próprio nome ou em nome de um determinado grupo, pretende “transmitir a alguém o significado de que ele possui uma dada qualidade, querendo ao mesmo tempo cobrar de seu interlocutor que se comporte em conformidade com a essência social que lhe é assim atribuída”. Assim, ao assumir a presidência da República, Bolsonaro tornou-se representante do grupo que o constituiu - ainda que esse “grupo”, no sentido sociológico do termo, não seja homogêneo (KALIL, 2019). Como porta-voz, recebeu uma procuração para falar e agir em nome desse grupo.
Grupo feito homem, ele personifica uma pessoa fictícia, que ele arranca do estado de mero agregado de indivíduos separados, permitindo-lhe agir e falar, através dele, “como um único homem”. Em contrapartida, ele recebe o direito de falar e de agir em nome do grupo, de “se tomar pelo” grupo que ele encarna, de se identificar com a função à qual ele “se entrega de corpo e alma”, dando assim um corpo biológico a um corpo constituído. Status est magistratus, “o Estado sou eu”. (BOURDIEU, 2008, p. 82)
O enfoque no discurso não significa reduzir a análise à dimensão linguística, pois a eficácia da palavra não está na linguagem em si, mas na autoridade que lhe é investida externamente: “o poder das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz cujas palavras [...] constituem no máximo um testemunho, um testemunho entre outros da garantia de delegação de que ele está investido” (BOURDIEU, 2008, p. 87, grifo do autor). Além disso, a compreensão da originalidade dessa retórica será mapeada via comparação por contraste (DUMONT, 1991) entre o discurso de posse de Bolsonaro e os discursos de posse dos primeiros mandatos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. O objetivo é que as diferenças possam lançar luz sobre sentidos pouco visíveis quando tal discurso é abordado isoladamente. Dessa perspectiva, buscaremos delinear tanto descontinuidades quanto continuidades que a chegada de um candidato de extrema direita ao Palácio do Planalto apresenta em relação aos seus antecessores.
No primeiro caso, a análise dos discursos proferidos durante o ritual de posse de Bolsonaro expressa o compromisso de governar apenas para alguns brasileiros, mantendo, assim, a divisão que marcou a disputa eleitoral. Os discursos revelam, nessa direção, uma retórica que aposta na dissensão, contrastando com a retórica do consenso adotado pelos ex-presidentes e pela ex-presidenta incluídos na comparação. Ainda revelam uma ausência da categoria direitos humanos e uma mudança de ideias-valores enunciadas nos discursos presidenciais anteriores. Em contrapartida, “família”, “Deus” e “Pátria” - categoria ligada ao universo militar - são ideias-valores defendidas e afirmadas pelo atual mandatário em seus discursos.
No que diz respeito à continuidade, parece-nos que os valores evocados por Bolsonaro - compartilhados por diferentes grupos da sociedade brasileira - são reveladores da maneira pela qual a cidadania tem sido construída no Brasil, isto é, os direitos são percebidos como “privilégios” e não como uma demanda a ser universalizada (MOTA, 2005; EILBAUM; MEDEIROS, 2015). Em uma sociedade que tem como alicerces a desigualdade e a discriminação, a concretização da igualdade torna-se uma quimera.
Como ideias são significados veiculados, tudo o que significa é público e acessível a uma interpretação. Seguindo essa linha de raciocínio, rituais são textos que podem ser lidos pelos antropólogos (GEERTZ, 1991 ). E, sobretudo, as palavras ditas em sequências rituais por pessoas autorizadas constroem o mundo, detêm o “poder de agir sobre o real ao agir sobre a representação do real” (BOURDIEU, 2008, p. 99).
Se rituais podem declarar, instituir, consagrar, sancionar e santificar discursos, ideias, situações e práticas, a investidura de um presidente da República “consiste em sancionar e em santificar uma diferença (preexistente ou não), fazendo-a conhecer e reconhecer, fazendo-a existir enquanto diferença social, conhecida e reconhecida pelo agente investido e pelos demais” (BOURDIEU, 2008, p. 99). Essa é uma diferença que parece se referir tanto à distinção entre porta-voz e aqueles por quem fala, como à separação entre brasileiros para quem governará e os que serão excluídos.
Tendo tais reflexões em mente, primeiramente apresentaremos os elementos mais importantes da cerimônia de posse de Bolsonaro, articulando discurso com outras materialidades relevantes. Aqui, como na abordagem do discursos de posse dos três presidentes que o antecederam, nosso olhar se alarga para incluir, mesmo que em linhas gerais, trajetória individual e atos de governo considerados marcantes dos primeiros meses de governo de cada um. Nosso objetivo com tal recurso é inserir o ritual de posse, com mais foco no discurso proferido nessa ocasião, num processo recente que o transcende e lhe dá sentido - além de lançar luz sobre alguns efeitos que já se anunciavam na moralidade retórica predominante.
Após nos determos na compreensão dos sentidos evocados por Fernando Henrique, Lula e Dilma em seus discursos de posse, retornamos à discursividade de Bolsonaro para estabelecer suas continuidades e descontinuidades. Retomamos a literatura que discute a construção da cidadania no Brasil, em especial, com relação às concepções de igualdade que comporta e suas consequências para a efetivação de direitos universais. Assim, foi possível alinhavarmos algumas ideias que nos permitiram pensar que as formas simbólicas ali expressas e seus respectivos contextos se inserem e se realizam por meio de um conjunto de relações históricas mais duradouras de nossa formação social.
Do quartel à faixa presidencial
Em 1986, após publicar um artigo na revista Veja no qual reivindicava aumento salarial para os militares, o então capitão Bolsonaro ficou preso durante 15 dias por “indisciplina”. No ano seguinte, a mesma revista publicou uma reportagem acerca de um suposto plano de um grupo de oficiais do Exército, sob o comando de Bolsonaro, para explodir bombas em quartéis e academias militares, cuja finalidade seria protestar contra os baixos soldos. Em 1988, Bolsonaro foi absolvido pelo Tribunal Militar das acusações de indisciplina e deslealdade (CARVALHO, 2019). No mesmo ano, foi eleito vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão (PDC), sendo transferido para a reserva remunerada, conforme prevê o Estatuto Militar.
Dois anos depois, foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, o que se repetiria por mais seis mandatos. Durante 28 anos como parlamentar em Brasília, Bolsonaro foi considerado um político do baixo clero em oposição aos cardeais. Ambas as categorias, que remetem à hierarquia eclesiástica, são utilizadas pelos parlamentares para designar as diferenças de prestígio e poder e, consequentemente, para designar aqueles que fazem parte ou não do processo decisório (TEIXEIRA, 1998). De fato, como deputado, aprovou somente duas propostas: uma referente à extensão do imposto sobre produtos industrializados aos produtos de tecnologia e outra a respeito da liberação da chamada “pílula do câncer”, medicamento cuja eficácia passou a ser questionada (FERNANDES; GUIMARÃES, 2019).
Embora o desfecho de uma longa carreira parlamentar inexpressiva em uma relativamente rápida eleição presidencial pareça paradoxal, a atuação de Bolsonaro reunia elementos que, no contexto político desde 2013, foram ressignificados positivamente. Além de sua pertença militar e defesa da “família militar”, Bolsonaro sempre se apresentou como anti-establishment e antipolítico, posicionando-se contrariamente às instituições democráticas: pregou o fechamento do Congresso, elogiou a ditadura militar e a tortura, desrespeitou direitos de minorias e agrediu diretamente quem os defendia dentro e fora da Câmara Deputados. Sem desconsiderar a singularidade da disputa política e eleitoral que o elegeu2, argumentamos que no entrecruzamento de crescentes militarismo, anti-intelectualismo evangélico e monetarismo empresarial em curso, o perfil de Bolsonaro foi sendo construído pelas forças conservadoras e autoritárias como alguém que encarnaria o não político e a desilusão com os avanços democráticos, em especial, os considerados cerceadores das alegadas liberdades individuais e econômicas3.
Foi no lastro do espraiamento bem-sucedido dessa “cruzada antipolítica” que no dia 10 de dezembro de 2018 ocorreu a diplomação4 do candidato vitorioso da eleição presidencial de 2018, Jair Messias Bolsonaro, então filiado ao Partido Social Liberal (PSL), e de seu vice, o general Antônio Hamilton Martins Mourão, do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB). Cumpriu-se, assim, a profecia de que o “messias” - trocadilho com o sobrenome do candidato e categoria de caráter religioso explorada durante a campanha, sobretudo por setores evangélicos - chegaria à presidência. A cerimônia de posse aconteceu no dia 1º de janeiro de 2019, data oficial desde 19955. O circuito da posse foi constituído pelas etapas tradicionais, as quais não passaram por muitas modificações desde que Brasília se tornou a capital do país, em 1960.
Primeiramente, Bolsonaro saiu da Residência Oficial do Torto (casa de veraneio presidencial, situada no bairro Granja do Torto) em direção à Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida, em Brasília. Lá, acompanhado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, cumprimentou o vice-presidente de sua chapa, general Hamilton Mourão, e o padre João Firmino, pároco daquela catedral.
Em seguida, aconteceu o desfile do cortejo presidencial. De pé, dentro de um Rolls-Royce Silver Wraith de 1952 - automóvel conversível utilizado pela primeira vez por Getúlio Vargas, em 1953 -, Bolsonaro e sua esposa transitaram pela esplanada dos Ministérios, localizada no Eixo Monumental, via que corta o Plano Piloto de Brasília no sentido leste-oeste. Na parte traseira do veículo, encontrava-se um de seus filhos, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Social Cristão (PSC).
Em cada um dos lados do veículo presidencial, corriam três seguranças vestidos de terno e gravata. À frente, estavam policiais em motocicletas; atrás, seguiam outros automóveis, os quais eram acompanhados pela cavalaria dos Dragões da Independência (1º Regimento de Cavalaria de Guardas), que também ladeava o conversível. Esse regimento é uma unidade do Exército brasileiro cuja principal função é salvaguardar as instalações da Presidência da República. Vestidos de branco e vermelho, seu uniforme é inspirado nas peças dos antigos oficiais da Imperial Guarda de Honra, que atuou no Brasil de 1822 a 1831. Logo no início do desfile, porém, houve um contratempo: um dos equídeos assustou-se em frente à comitiva de carros e precisou ser retirado às pressas - sem comprometer, contudo, a expressão espetacular do evento.
Às margens do Eixo Monumental, espectadores - muitos vestidos de verde e amarelo e portando a bandeira do Brasil -assistiam o cortejo e recebiam acenos do presidente, incluindo o gesto ao qual sua campanha esteve associada: o polegar e o indicador levantados, em sentido perpendicular, fazendo as vezes de arma de fogo. Os signos distintivos dessa posse presidencial começavam assim a se enunciar.
O desfile terminou no Congresso Nacional, onde Bolsonaro foi recepcionado pelos presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, do Democratas (DEM), e do Senado, Eunício Oliveira, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Sobre um tapete vermelho, Bolsonaro, Hamilton Mourão e os dois chefes do Poder Legislativo, bem como suas respectivas esposas, que lhes encalçavam, caminharam até a entrada do Congresso, onde receberam cumprimentos do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, e da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Os principais Poderes da República encarnados em suas autoridades máximas se faziam presentes no rito de consagração do chefe do Executivo: o presidente da República.
No plenário da Câmara dos Deputados, realizou-se uma sessão conjunta das duas casas legislativas. Na ocasião, a Banda do Corpo de Fuzileiros Navais executou o hino nacional brasileiro, que data de 1831. Com letra de Joaquim Osório Duque-Estrada (1870-1927) e música de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), o hino nacional compõe, ao lado da bandeira nacional, das armas nacionais e do selo nacional, um dos quatro símbolos oficiais da República Federativa do Brasil, em conformidade com a Constituição de 1988.
Ao fim da execução do hino, o presidente e o vice-presidente prestaram o compromisso constitucional - quando prometem defender, manter e cumprir a Constituição Federal - e o presidente do Congresso, Eunício Oliveira, declarou a chapa vencedora da eleição de outubro de 2018 empossada. Em seguida, o primeiro-secretário da Mesa do Congresso Nacional, deputado Fernando Giacobo, do Partido da República (PR), fez a leitura do termo de posse.
Por fim, Bolsonaro discursou pela primeira vez como presidente da República Federativa do Brasil. Em seu pronunciamento, fez jus à sua trajetória como parlamentar ao prometer “honrar e valorizar” as forças policiais e dar as condições necessárias para que as Forças Armadas pudessem “cumprir sua missão constitucional de defesa da soberania, do território nacional e das instituições democráticas”.
Minha campanha eleitoral atendeu ao chamado das ruas e forjou o compromisso de colocar o Brasil acima de tudo, e Deus acima de todos.
Por isso, quando os inimigos da pátria, da ordem e da liberdade tentaram pôr fim à minha vida, milhões de brasileiros foram às ruas. Uma campanha eleitoral transformou-se em um movimento cívico, cobriu-se de verde e amarelo, tornou-se espontâneo, forte e indestrutível, e nos trouxe até aqui. (BOLSONARO, 2019)
O presidente pediu apoio aos congressistas para “restaurar”, “reerguer” e “libertar” a “pátria” “do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”. Ainda no que diz respeito à ideologia, repetiu alguns temas caros aos seus discursos como deputado e como candidato à presidência: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um País livre das amarras ideológicas” (BOLSONARO, 2019).
Ao mesmo tempo em que pregou a conservação dos “nossos valores”, a união do “povo”, a valorização da “família”, o respeito às religiões e “nossa tradição judaico-cristã”, bem como o combate à “ideologia de gênero”, paradoxalmente, como veremos abaixo, em outro momento de seu discurso, comprometeu-se em “construir uma sociedade sem discriminação ou divisão”. Foi o único momento em que o termo “discriminação” apareceu em sua fala.
A categoria direitos humanos não foi mencionada explícita e diretamente em seu discurso de posse. A noção de “liberdade” veio acompanhada implicitamente da ideia de “segurança”, que é ameaçada pelo “crime”, enquanto a noção de “dignidade” foi utilizada para se referir ao sustento de famílias e ao desejo de “conquistar, pelo mérito, bons empregos”. Já palavras como “saúde”, “educação”, “saneamento básico” e “direitos e garantias fundamentais” vieram como exigências “daqueles brasileiros” que pautariam o governo Bolsonaro:
Daqui em diante, nos pautaremos pela vontade soberana daqueles brasileiros que querem boas escolas, capazes de preparar seus filhos para o mercado de trabalho e não para a militância política; que sonham com a liberdade de ir e vir, sem serem vitimados pelo crime; que desejam conquistar, pelo mérito, bons empregos e sustentar com dignidade suas famílias; que exigem saúde, educação, infraestrutura e saneamento básico, em respeito aos direitos e garantias fundamentais da nossa Constituição. (BOLSONARO, 2019)
Aqui vale uma observação: os direitos mencionados estariam atrelados à “vontade soberana daqueles brasileiros”, ou seja, não há uma referência que contemple todos os brasileiros; refere-se principalmente àqueles que, “por mérito”, desejam “bons empregos”. O discurso parece contemplar os meritocrotos, um dos perfis de eleitores de Bolsonaro que foram delineados na pesquisa Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro, realizada pelo Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual (NEU) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, sob a coordenação da antropóloga Isabela Kalil (2019, p. 20):
Perfil: Este perfil é caracterizado por pessoas de classe média alta e elites, com alto nível de escolarização. São empresários, advogados, médicos, intelectuais, professores, e outras profissões que se apoiam em alguma forma de autoridade. Como o nível educacional é uma forma de distinção, enfatizam como “venceram pelo próprio mérito”. Este perfil assume um dos discursos mais convictos principalmente contra a corrupção, tendo como expressão um acentuado antipetismo. Possuem uma visão mais racional e esclarecida a respeito de um projeto de Estado neoliberal ou Estado mínimo. Defendem redução ou corte de programas sociais, tendem a ver estes programas ou como privilégios ou como formas de tornar as pessoas pouco produtivas. São contra cotas e direitos dos territórios indígenas e se expressam com a máxima “é preciso ensinar a pescar e não dar o peixe”. Usam a si mesmos como exemplos ou pessoas conhecidas - como o filho da empregada que recusou entrar na universidade pelas cotas por ter dignidade e querer vencer pelo próprio mérito.
Durante o discurso, Bolsonaro (2019) fez menção a uma de suas principais propostas eleitorais: a facilitação da posse e do porte de armas de fogo (“o cidadão de bem merece dispor de meios para se defender”). Prometeu a criação de um “ciclo virtuoso para a economia”, informou que sua equipe foi constituída de “forma técnica, sem o tradicional viés político que tornou nosso estado ineficiente e corrupto”, e propôs um “pacto nacional entre a sociedade e os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”.
O caráter ufanista de sua campanha eleitoral encontrou eco em seu discurso de posse, permeado por categorias como verde e amarelo, nação brasileira, pátria e inimigos da pátria. Bolsonaro exaltou, ainda, o lema da bandeira (“ordem e progresso”) e repetiu mais de uma vez o mote de sua campanha (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Em resposta às críticas segundo as quais o seu governo flertaria com o autoritarismo (ABBUD, 2018), ele prometeu “proteger” e “revigorar” a “democracia brasileira”, assim como respeitar o “Estado Democrático”.
Ao ser empossado como presidente, Bolsonaro, como aqueles que o antecederam, tornou-se, ao mesmo tempo, comandante em chefe das forças armadas6, motivo pelo qual, ao sair do Congresso, foi cumprimentado pelos militares ali presentes com a continência - saudação militar que demonstra apreço e respeito aos seus superiores. Não à toa, na etapa seguinte do evento, o atual mandatário passou em revista às tropas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e, novamente ao som do hino - e dos gritos dos espectadores que observavam à distância -, recebeu uma salva de 21 tiros de canhões.
Após deixar o Congresso, o presidente seguiu para o Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo federal. Quando chegou, com a primeira-dama, seu vice e sua respectiva esposa, o presidente parou na subida da rampa de acesso do Palácio para, mais uma vez, ser entoado o hino nacional. No topo, aguardavam-lhe o seu antecessor direto, Michel Temer, e sua esposa, Marcela Temer. Subiram a rampa e, no parlatório, Temer entregou a faixa presidencial ao 38º presidente a governar o país. Esse objeto, nas cores verde e amarela, mede 15 centímetros de largura e possui o brasão da República Federativa do Brasil bordado com fios de ouro.
Houve, enfim, mais uma execução do hino, dessa vez realizada pelo 1º Regimento de Cavalaria de Guardas e com direito a uma interpretação simultânea em libras. Ao ser finalizado, as autoridades entraram no Palácio, esperaram por alguns minutos e logo retornaram ao parlatório para que o presidente discursasse uma segunda vez. No entanto, antes a primeira-dama Michelle Bolsonaro quebrou o protocolo e realizou um discurso em Libras (CERIONI, 2019). O pronunciamento deu, na sequência do ritual, o único tom de inclusão e de engajamento com causas de minorias, no caso, de pessoas com deficiência auditiva. A valorização da tradução para Língua de Sinais Brasileira se tornaria um marco da atuação da primeira-dama, que faz parte do Ministério dos Surdos e Mudos da Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Na sequência, em seu pronunciamento à nação - discurso mais breve voltado à população e no qual o presidente sintetiza seus propósitos -, o capitão reformado do Exército foi consequente com a retórica por ele adotada durante sua vida política e se comprometeu a “libertar” o país “do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”. As ideias-valores foram basicamente as mesmas do primeiro discurso: “Brasil”, “nação”, “Deus”, “ideologias nefastas”, “valores tradicionais”, “cidadão de bem”, “ideologização de nossas crianças”, “desconstrução da família”, “crise econômica”, “restabelecer a ordem” e “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade.
E convido a todos para iniciarmos um movimento nesse sentido. Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil.
[...]
Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do desemprego recorde, da ideologização de nossas crianças, do desvirtuamento dos direitos humanos e da desconstrução da família. (BOLSONARO, 2019)
Novamente Bolsonaro manteve a coerência com sua trajetória e criticou, indiretamente, práticas e ações de atores, grupos e coletivos de diferentes perfis políticos (partidos de esquerda, os movimentos indígena, negro, feminista e LGBTQIA+, associações e ONGs voltadas à defesa dos direitos humanos etc.) com os quais manteve inúmeros embates no decorrer de sua vida parlamentar. Para dimensionar o tom e o conteúdo desses embates, vale lembrar aqui alguns de seus pronunciamentos como deputado federal.
Em 2010, durante uma entrevista concedida ao programa “Participação Popular”, na TV Câmara, Bolsonaro disse, ao ser indagado sobre a “Lei da Palmada” (projeto de lei que proibia punições corporais às crianças), que “se o filho começa a ficar assim, meio gayzinho, [ele] leva um couro e muda o comportamento dele” (TOLEDO, 2011). No ano seguinte, o então deputado distribuiu o Informativo Kit Gay (ou Panfleto Anti-Gay) nas dependências da Câmara, no qual se podia ler: “Querem, na escola, transformar seu filho de 6 a 8 anos em homossexual” (GRESPAN; GOELLNER, 2011, p. 103). Trava-se de uma manifestação contrária à elaboração do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT. Em 2014, às vésperas do Dia Internacional dos Direitos Humanos - qualificado por Bolsonaro como “Dia Internacional dos Vagabundos” -, dirigiu-se da seguinte maneira à deputada e ex--ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, em resposta às críticas feitas por ela à ditadura militar e aos assassinatos e torturas praticadas naquele período: “Já disse que não estupro porque você não merece”, (ARIAS, 2014).
Na ocasião de sua posse como presidente da República, contudo, conforme argumentamos acima, esses valores não foram diretamente explicitados, ficaram nas entrelinhas de outras ideias-valores enfatizadas e foram englobados sob a expressão “ideologias nefastas”.
Dando seguimento ao ritual de posse, o mandatário e seu vice dirigiram-se para o salão leste do Palácio do Planalto, onde receberam os cumprimentos de chefes de Estado, vice-chefes de Estado, chefes de Governo, vice-chefes de Governo, ministros de Relações Exteriores e de secretários-gerais de organismos internacionais. Os últimos atos formais da cerimônia de posse foram a fotografia oficial e a realização de um coquetel no Palácio do Itamaraty (ou Palácio dos Arcos), a sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Nos meses seguintes, para celebrar os 100 dias de seu governo, Bolsonaro assinou o Decreto nº 9.759 de 2019, que buscou reduzir de 700 para menos de 50 os conselhos anteriormente estabelecidos pela Política Nacional de Participação Social e pelo Sistema Nacional de Participação Social. Sob o argumento de dar fim ao desperdício de recursos do Estado e ao seu aparelhamento ideológico pelos governos anteriores que a política social permitia, a medida veio ao encontro do que havia explicitado em seus discursos: que reestabeleceria padrões alegadamente éticos, impedindo que “ideologias nefastas” dividissem os brasileiros.
Três discursos (pretéritos) presidenciais
No decorrer da análise dos discursos de posse dos presidentes eleitos após a redemocratização7, apresentaremos, como o fizemos para Jair Messias Bolsonaro, uma breve recuperação de suas respectivas trajetórias políticas, assim como destacaremos medidas que marcaram o início de seus governos. Como veremos, o posicionamento político de Bolsonaro como alguém de extrema direita, além de distingui-lo dos presidentes e da presidenta que governaram o Brasil em anos anteriores, marcará discursos e práticas norteadas por uma moralidade singular.
Sociólogo, cientista político e senador pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) nos anos 1980, Fernando Henrique Cardoso foi um dos fundadores do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), em 1988, e assumiu o cargo de ministro das Relações Exteriores e ministro da Fazenda no governo de Itamar Franco (1992-1995).
Em maio de 1996, logo após ser eleito presidente da República, Fernando Henrique lançou o I Programa Nacional de Direitos Humanos (I PNDH). Essa iniciativa, de acordo com Silva (2014, p. 41), estava atrelada a duas dimensões: no plano internacional, relacionava-se com a atuação de “instituições e dispositivos de governança global no contexto da redemocratização do país, tendo como marco a Constituição de 1988”; no plano nacional, estava ligada às trajetórias institucionais dos atores envolvidos na concepção do programa.
No que diz respeito à primeira dimensão, o Brasil passou a cultivar, internacionalmente, uma imagem de “república democrática” e, paralelamente, moldava-se como um global player. Em relação à segunda dimensão, muitos atores que protagonizaram a institucionalização do I PNDH, enquanto política de Estado, haviam participado das mobilizações pelos direitos humanos no contexto da ditadura civil-militar (1964-1985), o que ajuda a compreender a ênfase dada aos direitos civis e políticos naquele programa (SILVA, 2014).
Para os fins deste artigo, é importante frisar que muitas categorias, valores e proposições do I PNDH estiveram presentes, anteriormente, no discurso de posse de Fernando Henrique, em janeiro de 1995, no Congresso Nacional. Na ocasião, em uma referência indireta ao fim da Guerra Fria e ao regime ditatorial brasileiro, o presidente defendia que os “velhos dilemas ideológicos e as velhas formas de confrontação” fossem aposentados. Passou em retrospecto à ditadura civil-militar: “Vieram então anos sombrios, que primeiro trouxeram de volta o crescimento, mas sacrificaram a liberdade. Trouxeram progresso, mas para poucos” (CARDOSO, 1995, p. 10). E continuou:
Pacificamente, com tranquilidade, apesar das mágoas e cicatrizes que ficam como um símbolo para que novas situações de violência não se repitam, viramos a página do autoritarismo que, com nomes e formas diferentes, desvirtuou nossa República desde a sua fundação. (CARDOSO, 1995, p. 11 )
Passados os “anos sombrios”, os temas que precisariam ser enfrentados eram “direitos humanos e democracia; meio ambiente e desenvolvimento sustentável; as tarefas ampliadas do multilateralismo e os desafios da regionalização; a dinamização do comércio internacional e a superação das formas de protecionismo e unilateralismo” (CARDOSO, 1995, p. 18). Otimista, Fernando Henrique afirmava sua crença de que o Brasil teria um “lugar reservado entre os países bem-sucedidos do planeta no próximo século”. Todavia, para que lograsse êxito, seria necessário vencer os “desequilíbrios internos”, quais sejam, as “desigualdades externas entre regiões e grupos sociais” (CARDOSO, 1995, p. 19).
Nesse ponto, nos parece que Fernando Henrique invocou, de maneira indireta, a ideologia da “democracia racial”, a qual pode ser lida como uma estratégia que, a partir da defesa, exaltação e afirmação de que seríamos um “povo mestiço”, desarticula os conflitos étnico-raciais e oculta as formas hegemônicas de discriminação racial. Tal estratégia está articulada nas ideias de cordialidade, clientelismo e patrimonialismo que, associadas, reproduzem relações de dependência e paternalismo diversas (SALES JR., 2006). Nas palavras do então presidente, “nós, brasileiros, somos um povo com grande homogeneidade cultural. Nossos regionalismos constituem variações da nossa cultura básica, nascida do encontro da tradição ocidental-portuguesa com a africana e a indígena” (CARDOSO, 1995, p. 19).
A categoria cidadania foi acionada em um momento de exaltação dos intelectuais, artistas e produtores culturais. O mandatário prometeu “prestigiá-los e dar-lhes condições para que sejam construtores da cidadania”, pois, segundo ele, “a cidadania, além de ser um direito do indivíduo, é também o orgulho de fazer parte de um país que tem valores e estilo próprios” (CARDOSO, 1995, p. 20).
Entre as prioridades de seu governo enunciadas estavam emprego, saúde, segurança, educação e produção de alimentos. O “grande desafio” seria “diminuir as desigualdades até acabar com elas” (CARDOSO, 1995, p. 20). Mas era preciso, igualmente, eliminar a “miséria espiritual”, o que seria realizado junto com as instituições de ensino e os meios de comunicação, com o foco voltado para o “resgate da cidadania através do ensino” e “uma intensa ação de alfabetização e formação cultural” (CARDOSO, 1995, p. 21-22).
Na parte final de seu pronunciamento proferido no Congresso Nacional, Fernando Henrique retomou a noção de cidadania e de união:
Nós, brasileiros, somos um povo solidário.
Vamos fazer desse sentimento a mola de um grande mutirão nacional, unindo o governo e a comunidade, para varrer do mapa do Brasil a fome e a miséria.
Vamos assegurar uma vida decente às nossas crianças, tirando-as do abandono das ruas e, sobretudo, pondo um paradeiro nos vergonhosos massacres de crianças e jovens.
Vamos assegurar com energia direitos iguais aos iguais.
Às mulheres, que são a maioria do nosso povo e às quais o País deve respeito e oportunidades de educação e trabalho.
Às minorias raciais e a algumas quase maiorias - aos negros, principalmente - que esperam que igualdade seja, mais do que uma palavra, o retrato de uma realidade.
Aos grupos indígenas, alguns deles testemunhas vivas da arqueologia humana, e todos testemunhas da nossa diversidade.
Vamos fazer da solidariedade o fermento da nossa cidadania em busca da igualdade. (CARDOSO, 1995, p. 24-25)
A ideologia da harmonia (NADER, 1994) parece ter encarnado na figura do “povo solidário” que, por meio da “solidariedade”, seria capaz de combater a fome e a miséria e alcançar a igualdade. A partir da união entre “governo” e “comunidade” - o que pressupõe que “Estado” e “sociedade civil” estariam apartados, revelando, assim, um dos efeitos do Estado (MITCHELL, 2015) -, o presidente propôs um “mutirão nacional” para combater a fome e a miséria, uma metáfora que aciona a força dos movimentos sociais urbanos de construção autogestionária, marcantes na luta pela redemocratização do país a partir dos anos 19808. Em um chamamento à harmonização, diferentemente do que Nader (1994) analisa nos EUA, Fernando Henrique buscou também assegurar justiça por meio da promoção de “direitos iguais aos iguais”, mais especificamente para “crianças e jovens”, “mulheres”, “minorias raciais” (principalmente, “negros”) e “grupos indígenas”.
No dia 1º de janeiro de 2003, quase dez anos depois da posse do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o cargo de presidente da República. Sua vitória representou um marco na história política brasileira, uma vez que, pela primeira vez, um trabalhador, nordestino, oriundo de uma classe subalterna, chegou ao Palácio do Planalto. Metalúrgico e uma das principais lideranças das mobilizações sindicais do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, Lula é membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT). Antes de sua primeira vitória em uma disputa pela cadeira no Palácio do Planalto, elegeu-se deputado federal em 1986 e foi candidato a presidente em 1989,1994 e 1998.
Embora o discurso de Lula estivesse norteado por uma tentativa de ruptura com o governo de seu antecessor - que, da sua perspectiva, teria sido marcado por “estagnação”, “desemprego”, “fome”, “cultura do individualismo” e “indiferença perante o próximo”, sua fala apresentou pontos de convergência com a de Fernando Henrique, notadamente em relação às ideias-valores ali presentes: “dignidade humana”, “justiça social”, “desenvolvimento social”, “combate à fome”, “pluralismo democrático”. O seu pronunciamento no Congresso Nacional esteve marcado, assim, pelo reconhecimento da existência de “desigualdades” e “discriminações” e a necessidade de se lutar por “justiça social”, o que implica em - e este é um ponto bastante enfatizado - combater a “fome”9.
[...] chegou a hora de transformar o Brasil naquela Nação com a qual a gente sempre sonhou: uma Nação soberana, digna, consciente da própria importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos. (SILVA, 2003, p. 2)
[...]
É por isso que hoje conclamo: vamos acabar com a fome em nosso país. Transformaremos o fim da fome em uma grande causa nacional, como foram no passado a criação da Petrobrás e a memorável luta pela redemocratização do país. Essa é uma causa que pode e deve ser de todos, sem distinção de classe, partido, ideologia. Em face do clamor dos que padecem o flagelo da fome, deve prevalecer o imperativo ético de somar forças, capacidades e instrumentos para defender o que é mais sagrado: a dignidade humana. Para isso, será também imprescindível fazer uma reforma agrária pacífica, organizada e planejada. (SILVA, 2003, p. 4)
Assim como Fernando Henrique, Lula retomou, também de forma indireta, a ideologia da “democracia racial” para ressaltar a importância que as “comunidades indígenas e negras” tiveram na “construção nacional”. Após elencar uma série de símbolos que seriam representativos de determinados lugares do Brasil, a exemplo do samba do Rio de Janeiro e da arquitetura de Brasília, Lula enalteceu a diversidade e, ao mesmo tempo, o fato de que seríamos uma “nação” que compartilha “os mesmos valores fundamentais” e o sentimento de ser “brasileiro” - evocando também a dimensão cultural como constituinte dessa construção nacional.
O Brasil é grande. Apesar de todas as crueldades e discriminações, especialmente contra as comunidades indígenas e negras, e de todas as desigualdades e dores que não devemos esquecer jamais, o povo brasileiro realizou uma obra de resistência e construção nacional admirável. Construiu, ao logo dos séculos, uma Nação plural, diversificada, contraditória até, mas que se entende de uma ponta a outra do território. Dos encantados da Amazônia aos orixás da Bahia; do frevo pernambucano às escolas de samba do Rio de Janeiro; dos tambores do Maranhão ao barroco mineiro; da arquitetura de Brasília à música sertaneja. Estendendo o arco de sua multiplicidade nas culturas de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e da região Centro-Oeste. Esta é uma Nação que fala a mesma língua, partilha os mesmos valores fundamentais, se sente que é brasileira. Onde a mestiçagem e o sincretismo se impuseram, dando uma contribuição original ao mundo. Onde judeus e árabes conversam sem medo. Onde toda migração é bem-vinda, porque sabemos que, em pouco tempo, pela nossa própria capacidade de assimilação e de bem-querer, cada migrante se transforma em mais um brasileiro. (SILVA, 2003, p. 8)
Orientado por uma “perspectiva humanista”, Lula afirmou que a “grande prioridade da política externa durante o meu Governo será a construção de urna América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social” (SILVA, 2003, p. 9). Em parceria com organismos internacionais, o então presidente comprometeu-se com a promoção “do desenvolvimento social e econômico, do combate à pobreza, às desigualdades e a todas as formas de discriminação, da defesa dos direitos humanos e da preservação do meio ambiente” (SILVA, 2003, p. 11).
Ao abordar sua proposta de uma política de segurança pública, na qual a prevenção à violência e a repressão à criminalidade estariam atreladas a ações de saúde e educação, Lula voltou a falar no respeito às diferenças:
Se conseguirmos voltar a andar em paz em nossas ruas e praças, daremos um extraordinário impulso ao projeto nacional de construir, neste rincão da América, um bastião mundial da tolerância, do pluralismo democrático e do convívio respeitoso com as diferenças.
[...]
Estamos começando hoje um novo capítulo na história do Brasil, não como Nação submissa, abrindo mão de sua soberania, não como Nação injusta, assistindo passivamente ao sofrimento dos mais pobres, mas como Nação altiva, nobre, afirmando-se corajosamente no mundo como Nação de todos, sem distinção de classe, etnia, sexo e crença. (SILVA, 2003, p. 12-13)
Em tom otimista, nesta parte final de seu discurso, Lula retomou a ideia da (re)construção de uma nação, por meio da proposta de um projeto nacional “sem distinção de classe, etnia, sexo e crença”. Essa ideia seria materializada na implementação de políticas públicas voltadas para o combate às desigualdades socioeconômicas, como o programa Fome Zero, instituído em fevereiro de 2003, e seu sucessor, o Programa Bolsa Família (PBF), extinto pelo governo Bolsonaro por meio da Medida Provisória nº 1.061, de 9 de agosto de 2021, e substituído de maneira ainda incerta pelo Auxílio Brasil.
Vale notar que tanto Lula quanto Fernando Henrique enfatizaram mais os elementos “classe” e “etnia” do que os elementos “sexo” - que traz a ideia de “gênero” - e “crença”, os quais apareceram timidamente em seus discursos. A categoria cidadania, por sua vez, acionada por Fernando Henrique, não apareceu nos discursos de Lula, Dilma e Bolsonaro.
Em janeiro de 2011, uma mulher discursou pela primeira vez como presidenta do Brasil. Dilma Rousseff trazia em seu currículo a participação na luta armada contra a ditadura civil-militar10 e na fundação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 1979, assim como os cargos de secretária Municipal da Fazenda da prefeitura de Porto Alegre (1985-1988), presidenta da Fundação de Economia e Estatística (1991-1993) e secretária Estadual de Minas e Energia (1993-1994 e 1999-2002). Em 2002, já filiada ao PT, contribuiu na elaboração de diretrizes para a área energética do plano de governo de Lula, em cujo mandato ela assumiu o Ministério de Minas e Energia e a Casa Civil.
Em seu discurso de posse, proferido no Congresso Nacional, Dilma Rousseff trouxe a dimensão de gênero ao primeiro plano:
E sei que meu mandato deve incluir a tradução mais generosa desta ousadia do voto popular que, após levar à Presidência um homem do povo, um trabalhador, decide convocar uma mulher para dirigir os destinos do país.
[...]
Não venho para enaltecer a minha biografia; mas para glorificar a vida de cada mulher brasileira. Meu compromisso supremo - eu reitero - é honrar as mulheres, proteger os mais frágeis e governar para todos! (ROUSSEFF, 2011)
Além defrisara singularidade e a importância de ser a primeira mulher a chegar à presidência, Dilma Rousseff (2011) teceu elogios e reverenciou o seu antecessor. Prometendo dar continuidade ao seu legado, a então presidenta comprometeu-se com “uma democracia vibrante e moderna, plena de compromisso social, liberdade política e criatividade”.
A luta mais obstinada do meu governo será pela erradicação da pobreza extrema e a criação de oportunidades para todos.
[...]
Não vou descansar enquanto houver brasileiros sem alimentos na mesa, enquanto houver famílias no desalento das ruas, enquanto houver crianças pobres abandonadas à própria sorte. O congraçamento das famílias se dá no alimento, na paz e na alegria. É este o sonho que vou perseguir!
[...]
Junto com a erradicação da miséria, será prioridade do meu governo a luta pela qualidade da educação, da saúde e da segurança. (ROUSSEFF, 2011)
Se o combate à miséria e à fome não apareceu em nenhum momento nos discursos de Bolsonaro, ele foi sistematicamente enfatizado pelos presidentes que o antecederam - no caso de Lula e Dilma, por meio, principalmente, da ideia-valor “justiça social”. O mesmo ocorreu no que diz respeito ao reconhecimento da “diversidade cultural”. Bolsonaro não fez menção nem a essa expressão nem aos grupos étnicos citados por Fernando Henrique, Lula e Dilma: negros e indígenas. Já a dimensão de gênero somente apareceu no pronunciamento de Bolsonaro sob o signo da negatividade, como “ideologia de gênero”. Ainda, nas palavras de Dilma, uma “nação desenvolvida” não prescinde do “avanço social” e da “valorização da nossa imensa diversidade cultural. A cultura é a alma de um povo, essência de sua identidade”. Destacamos aqui, para retomar ao final deste artigo, que a noção de cultura aparece de forma relevante tanto no discurso de Dilma quanto no de Fernando Henrique e Lula, e está, por sua vez, ausente nos de Bolsonaro.
Os direitos humanos foram explicitamente mencionados por Dilma Rousseff (2011): “Nossa política externa estará baseada nos valores clássicos da tradição diplomática brasileira: promoção da paz, respeito ao princípio de não intervenção, defesa dos Direitos Humanos e fortalecimento do multilateralismo”. Os sentidos que atribuiu à categoria assemelham-se àqueles adotados por Fernando Henrique e Lula, vinculados aos direitos civis, políticos e sociais, bem como à defesa do combate à desigualdade socioeconômica e à discriminação.
Reafirmo meu compromisso inegociável com a garantia plena das liberdades individuais; da liberdade de culto e de religião; da liberdade de imprensa e de opinião.
[...]
Reafirmo o que disse ao longo da campanha, que prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras. Quem, como eu e tantos outros da minha geração lutamos contra o arbítrio, a censura e a ditadura, somos naturalmente amantes da mais plena democracia e da defesa intransigente dos direitos humanos, no nosso país e como bandeira sagrada de todos os povos. (ROUSSEFF, 2011)
Se na fala de Bolsonaro a categoria brasileiro assume um caráter totalizante referenciado em um perfil particular, de modo a não permitir elementos que destoem do todo, Fernando Henrique e Lula operam a partir da ideologia da “democracia racial”, de modo que, embora o direito à diferença seja reconhecido, a assimilação a um projeto nacional e a consequente incorporação da identidade de “brasileiro” parecem ser o fim político desejado.
Diferentemente, no discurso de Dilma a categoria brasileiro assume um caráter englobante (no sentido dumontiano), na medida em que o Brasil enquanto conjunto seria constituído pelos diferentes, como fica explícito quando conclama que todos os brasileiros e brasileiras de todos os cantos do país participem de seu governo: “movimentos sociais”, os que “labutam no campo”, “profissionais liberais”, “trabalhadores” e “pequenos empreendedores”, “intelectuais”, “servidores públicos”, “empresários”, “mulheres”, “negros”, “índios”, “jovens” e “todos aqueles que lutam para superar distintas formas de discriminação”.
Já no primeiro ano de seu governo, Dilma sancionou a lei que criou a Comissão da Verdade para apurar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar. No início de seu segundo mandato, instituiu a Política Nacional de Participação Social, após as manifestações de rua de 2013, consolidando em lei as instâncias de controle social (conselhos, comissões, conferências etc.) já existentes e propondo sua expansão11.
Os três presidentes que antecederam Bolsonaro compunham o campo das forças políticas que lutaram pelo fim da ditadura civil-militar e foram por ela perseguidos. Assim que eclodiu o golpe, Fernando Henrique teve que se exilar no Chile e, depois, na França. Em 1968, retornou para o Brasil, tornando-se professor de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP). Todavia, com a vigência do Ato Institucional nº 5 (AI-5), foi aposentado compulsoriamente (MEMÓRIAS, 2014b). Na segunda metade da década de 1970, Lula era uma das principais lideranças do movimento operário do ABC paulista, estando à frente de greves e reivindicações salariais. Em 1980, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema foi invadido por militares e Lula foi detido: com base na Lei de Segurança Nacional, passou 31 dias no Departamento de Ordem Polícia e Social (DOPS) (MEMÓRIAS, 2014c). Dilma, por sua vez, com apenas 16 anos, iniciou sua militância política na Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (Polop), em 1964. Posteriormente, em períodos distintos, ingressou no Comando de Libertação Nacional (Colina) e na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Em 1970, Dilma foi presa e submetida a práticas de tortura pelos órgãos do regime (MEMÓRIAS, 2014a).
Diferentemente de Bolsonaro, portanto, os três antecessores contribuíram para a redemocratização do país, o que se refletiu nos programas de seus respectivos governos. Se eles estão à esquerda do espectro político, Bolsonaro está situado na extrema direita. E isso não é pouco significativo, uma vez que, depois de uma década de governos de esquerda, correntes de direita têm ganhado cada vez mais fôlego na América Latina, principalmente no que diz respeito à formação de novas bases eleitorais (PINHEIRO-MACHADO; SCALCO, 2021; MAYKA; SMITH, 2022).
Como demonstram Mayka e Smith (2022), as bases que dão sustentação à direita, geralmente são formadas por indivíduos, organizações da sociedade civil e religiosas que atuam em diferentes frentes: restrição do aborto, fim das ações afirmativas, cerceamento de direitos da população LGBTQIA+, direito ao porte de armas, defesa do combate ao crime por meio de repressão e violência, apoio ao livre mercado e oposição a políticas de redistribuição de renda. Não por acaso, essas são algumas das principais pautas do bolsonahsmo.
Podemos observar, portanto, pelas conexões tecidas a partir da retomada das trajetórias e alguns marcos dos governos focalizados, que não apenas as retóricas discursivas se distinguem, mas, também, as ações que qualificaram os diferentes períodos de governo que essas retóricas consagraram, projetaram e inauguraram. Afinal, como nos lembra Tambiah (2018), nos rituais - entendidos como atos performativos - há uma conexão entre palavra, gesto e ação. Segundo ele, todo ritual é direcionado “aos participantes humanos e utiliza uma técnica que tenta reestruturar e integrar as mentes e as emoções dos atores” por meio de uma combinação entre comportamento verbal e não verbal. O primeiro “dispõe do poder de invocar imagens e comparações, de se referir ao tempo passado e ao futuro e de relacionar eventos que não podem ser representados através da ação”(TAMBIAH, 2018, p. 63-64).
Em nome da família, de Deus e da pátria
O ritual da posse presidencial pode ser compreendido como uma tentativa de “edificar, em termos de drama e decoração, um padrão irrefutável de analogia política” (GEERTZ, 1991, p. 138-139). Sob tal perspectiva, os discursos, cumprimentos, saudações militares, aplausos, execuções do hino e salvas de tiros indicam que a cerimônia de posse é uma forma de retórica e, ao mesmo tempo, uma forma de devoção. É um evento emblemático durante o qual o Estado se apresenta como espetáculo e serve enquanto exemplo de poder de grandeza para organizar o mundo, de modo que os símbolos, assim como as crenças, sejam utilizados para encenarem suas ideias a respeito de como as coisas são (GEERTZ, 1991). Na cerimônia de posse, nosso foco de análise aqui, uma estrutura de ação caminha junto a uma estrutura de pensamento.
A cerimônia de posse de Jair Bolsonaro foi um ritual singularmente significativo. Primeiro, porque marcou o fim de um longo período da administração petista, precedido pelo processo de impeachment que destituiu a então presidenta reeleita, Dilma Rousseff, e pela prisão de Lula, cujas condenações foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021 (OLIVEIRA, 2021). Em segundo lugar, pelo caráter inusitado da vitória de Bolsonaro: além de ter sido a primeira vez em que concorreu ao cargo, possui, como vimos, uma trajetória inexpressiva como deputado. Em terceiro lugar, vivenciamos uma das eleições presidenciais mais polarizadas da história do país, marcada por desdobramentos dignos de um drama: a mencionada prisão de Lula, até então o líder nas pesquisas de intenções de voto, e seu impedimento de concorrer à presidência e de conceder entrevistas ou se manifestar publicamente - o que contrariou a orientação do Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) - (WENTZEL; SCHREIBER, 2019); a tentativa de homicídio sofrida por Bolsonaro em uma passeata; as agressões e os assassinatos de militantes posicionados à esquerda por grupos de apoiadores de Bolsonaro; a proliferação das chamadas fake news pelas redes sociais etc.
Como espectadores daquele espetáculo, presenciamos, na cerimônia de posse, a dramatização pública de determinados temas do pensamento político brasileiro, como a defesa da “família”, da “tradição judaico-cristã” e da “pátria”, que aqui deve ser entendida como um importante símbolo do pensamento militar. Além disso, ao enfatizar esses temas, Bolsonaro revelou alguns efeitos de Estado (MITCHELL, 2015) que povoam o imaginário político ocidental, notadamente a ideia segundo a qual haveria uma separação entre “público” e “privado”, “política” e “religião” e “civil” e “militar”.
Entre Bolsonaro e seus apoiadores, há a percepção de que a defesa da família e da “tradição judaico-cristã” estaria sob a ameaça dos direitos humanos e das “ideologias nefastas” que corromperiam as crianças; daí a relação com uma das fake news disseminada pelo próprio presidente: a suposta distribuição de um “kit gay” em escolas. Ademais, a ênfase na defesa da família foi corroborada, seja pela presença de seu filho Carlos no Rolls-Royce, seja pela participação direta de sua prole em sua atuação política antes, durante e após as eleições. Tendo em vista as vitórias eleitorais da família Bolsonaro, podemos observar que, na esfera política brasileira, a separação entre “público” e “privado” deve ser relativizada, uma vez que ora é desejada, ora é rejeitada, a depender das situações sociais e dos valores que estão em jogo (TEIXEIRA, 1998).
Uma outra questão diz respeito às relações estabelecidas entre o mundo político e o mundo religioso. Para além dos crucifixos pendurados nas repartições estatais brasileiras, percebemos a complexidade desse tema quando observamos que a primeira parada do presidente durante a cerimônia de posse foi a Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida, onde recebeu os cumprimentos de um padre. A despeito da Constituição Federal estar norteada pela ideia de laicidade do Estado brasileiro12, as instituições religiosas exercem, historicamente, um importante papel na vida política do Brasil. Esse tema ganha novos contornos quando constatamos o forte apoio que Bolsonaro recebeu de lideranças evangélicas, sobretudo do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário do grupo de comunicação Record.
Responsáveis pela defesa da “pátria”, as Forças Armadas marcaram presença tanto na cerimônia - o que faz parte do ritual de posse presidencial - quanto no discurso do presidente, o que o distingue de seus antecessores. Para Bolsonaro, era necessário combater “os inimigos da pátria”, vinculados ao “socialismo”, à “militância política” e às “ideologias nefastas”. Naquele ritual, o mundo civil e o mundo militar entrecruzavam-se e, vez e outra, confundiam-se num balé de difícil apreensão. Uma cavalaria que nos remete ao período imperial, continências, revista às tropas, tiros de canhão e um presidente que é, ao mesmo tempo, comandante em chefe das forças armadas; tudo isso em uma República Federativa que adotou como regime político a democracia e como sistema de governo, o presidencialismo. Todavia, independentemente dos regimes ditatoriais pelos quais passamos, recordemos que o primeiro presidente do Brasil, Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), era um militar. Essa relação se torna mais significativa se atentarmos para a participação de militares na campanha e na equipe de Bolsonaro.
Um quarto tema dramatizado na cerimônia de posse diz respeito à cidadania à brasileira. Irmã dos direitos humanos, a construção da cidadania no Brasil confunde-se com a luta pela democracia durante e após o fim da ditadura civil-militar (CARVALHO, 2008; MENDES, 2005). Nesse ponto, é importante lembrarmos que Bolsonaro sempre se posicionou favoravelmente ao regime dos generais. De maneira radicalmente oposta, Fernando Henrique, Lula e Dilma, cada um à sua maneira, fizeram oposição ao regime ditatorial, o que se expressa em seus respectivos discursos de posse. Em 1999, como deputado, Bolsonaro disse, em entrevista, que “no período da ditadura, deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique, o que seria um grande ganho para a Nação” e que “o erro da ditadura foi torturar e não matar” (CARVALHO, 2018). Além disso, dedicou seu voto favorável ao prosseguimento do processo de impeachment de Dilma à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante listra13, Comandante do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo, um dos principais centros de repressão do regime militar. Ustra participou e comandou sessões de tortura durante a ditadura, motivo pelo qual foi reconhecido como torturador pela Justiça brasileira em 2008 (BARRUCHO, 2016). Como presidente, Bolsonaro negou que tenha havido uma ditadura no país (DAMÉ; GIRALDI, 2019) e orientou as Formas Armadas a comemorarem, oficialmente, o golpe de 31 de março de 1964 (ALESSI, 2019).
Em diálogo com as noções de casa e rua propostas por DaMatta (1997), Kant de Lima (2010) elaborou dois modelos - ideais e normativos - denominados de paralelepípedo e pirâmide. No paralelepípedo, onde o topo é igual à base, a sociedade seria constituída por indivíduos com diferentes interesses, porém iguais em direitos, o que os colocaria, permanentemente, em oposição e conflito. Em relação à pirâmide, onde a base é maior que o topo, a sociedade seria composta de segmentos desiguais e complementares que deveriam se ajustar harmonicamente. Nossa sociedade possui, sob esse ponto de vista, um modelo dual, utilizado alternada e alternativamente, no qual o paralelepípedo responde por sua vertente igualitária e a pirâmide, por sua vertente estratificada. No primeiro caso, como a base é igual ao topo e todos são substancialmente iguais, qualquer um poderia chegar ao topo. No segundo, entretanto, os caminhos em direção ao topo vão estreitando-se gradativamente. “Aqui a igualdade é formal, e as pessoas são estruturalmente diferentes” (LOBÃO, 2010, p. 147-148).
Uma das peculiaridades da cidadania no Brasil seria, portanto, a combinação, no espaço público, de lógicas igualitárias (uma sociedade de indivíduos) e hierárquicas (uma sociedade de pessoas), o que fomentaria a existência de uma situação jurídica paradoxal que conjugaria princípios constitucionais liberais-igualitários com um sistema judicial hierárquico (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2015). Conforme propõem Mendes (2005) e Cardoso de Oliveira (2015), haveria uma tensão entre duas concepções de igualdade no Brasil: 1) a concepção de igualdade presente na Constituição de 1988, segundo a qual todos são iguais perante a lei; 2) e a concepção de igualdade enquanto tratamento diferenciado, expressa na célebre frase de Rui Barbosa, para quem a igualdade consistiria em tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. A peculiaridade dessa concepção reside no fato de que, para que a igualdade seja realizada no plano da justiça, é necessário relativizar ou diferenciar os direitos no plano da cidadania, levando-se em conta o status e a condição social do cidadão.
De fato, a tensão entre direitos formais e a possibilidade de eles serem efetivados não é uma especificidade do Brasil. Trata-se de um dos elementos que caracterizam o liberalismo. Todavia, a desigualdade formal, explicitada, por exemplo, na prisão diferenciada para portadores de diplomas, parece ser um dos traços que nos caracterizam sociologicamente. Tal desigualdade é atualizada cotidianamente em práticas estatais que contribuem para que os direitos sejam construídos de maneira diferenciada em nosso país. Para fins de exemplo, destacamos as pesquisas de Eilbaum e Medeiros (2015), que analisaram os múltiplos sentidos atribuídos à categoria violência policial. Por meio de etnografías sobre instituições de segurança pública e de Justiça Criminal, as autoras observam que nem todas as ações violentas são classificadas como tal, variando conforme sensibilidades jurídicas e moralidades. Se o assassinato de uma juíza por policiais militares pode ser considerado como “violência policial”, casos relacionados à morte de homens negros em operações policiais nas periferias do Rio de Janeiro podem ser classificados como “extraordinários” ou “autos de resistência”. Não por acaso, seus familiares dificilmente logram êxito na abertura de boletins de ocorrência. A essa desigualdade formal, combina-se, portanto, de maneira perversa, a produção de desigualdades econômicas14. Em uma dinâmica de reforço mútuo que as tem perpetuado a despeito de quem ocupa o cargo presidencial.
Há que se destacar, contudo, que diferentemente dos três presidentes que o antecederam, Bolsonaro não fez menção explícita à defesa dos direitos humanos, tampouco reconheceu a existência de desigualdades socioeconômicas durante o seu discurso de posse - a palavra “discriminação” foi utilizada por ele apenas genericamente e de maneira evasiva. Em seu pronunciamento à nação, fez uso da expressão “desvirtuamento dos direitos humanos”, cuja significação é revelada contextualmente, na medida em que é correlata da expressão “direitos humanos: esterco da vagabundagem”, compartilhada por Bolsonaro e seu filho Carlos nas redes sociais (CARDIM, 2017), bem como da expressão “direitos humanos para humanos direitos”, repetida por Bolsonaro, seus filhos, sua equipe - entre os quais o general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República -, e parte de seu eleitorado que pode ser enquadrada no perfil os pessoas de bem (KALIL, 2018). Essas frases servem “como síntese para expressar que o Estado só age de maneira mais bruta ou viola direitos daqueles que não são 'pessoas de bem'” (KALIL, 2018, p. 14), ou seja, a violência estatal é justificada nos demais casos. Isso significa que no caso da “violência policial”, por exemplo, a denúncia de violação de direitos nunca é universalizada, nunca é uma violação de direitos de todos, uma vez que suas vítimas são construídas social e moralmente como se fossem uma exceção à regra (EILBAUM; MEDEIROS, 2015).
Nesse sentido, o discurso de Bolsonaro, que é compartilhado não apenas pelos seus eleitores, mas por diferentes grupos da sociedade brasileira, particulariza a categoria direitos humanos, decodificando-a como “privilégio” ou benefícios de uns em detrimento de outros (MOTA, 2005). O mesmo ocorre com a categoria “violência policial”, que exige sempre a indagação: “Violência policial contra quem?” (EILBAUM; MEDEIROS, 2015). Em outras palavras, como os direitos não são percebidos como universais, somente haveria violação de direitos a depender do local, do território e da “vítima/privilegiado”15.
Por outro lado, essa noção é reveladora de uma cidadania que, como sugere Carvalho (2008), pode ser dividida em três “classes”. A primeira é composta pelos que, de fato, são privilegiados (nossos “doutores”), dotados de poder econômico e prestígio social e que se colocam acima da lei. A segunda é constituída pelos “cidadãos simples” (classe média modesta, trabalhadores assalariados, pequenos funcionários etc.), os quais estão sujeitos aos rigores e aos benefícios da lei. Por fim, a terceira classe é constituída pelos trabalhadores sem carteira assinada, biscateiros, camelôs, posseiros, mendigos, população de rua, ou seja, mulheres e homens que “têm seus direitos civis sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo, pela polícia” e que, portanto, “não se sentem protegidos pela sociedade e pelas leis” (MENDES, 2005, p. 22).
Dessa forma, se o acesso à cidadania está condicionado a indivíduos e situações particulares, o mesmo se dá com o outro lado da moeda, isto é, a discriminação. Na gestão tutelar de populações e territórios, atos discriminatórios resultam da combinação e sobreposição de fatores como fenótipo, expressão cultural e local de moradia, “vindo a representar, ao invés de uma diferença de qualidade, uma questão de grau, do estabelecimento de um contínuo que vai do menos ao mais passível de discriminação” (PACHECO DE OLIVEIRA, 2014, p. 144). Essa concepção explicita o impasse da cidadania no Brasil, caracterizada pelo desrespeito sistemático de direitos básicos por agentes e instituições estatais, tal como pela dificuldade que temos de “internalizar o valor da igualdade como um princípio para a orientação da ação na vida cotidiana” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2008, p. 137).
A cerimônia de posse de Bolsonaro pode ser interpretada, dessa forma, em um contexto mais amplo, como um “ritual de naturalização de uma subcidadania” (PACHECO DE OLIVEIRA, 2014, p. 140), encenado cotidianamente nas operações policiais de “pacificação” de comunidades cariocas (PACHECO DE OLIVEIRA, 2014), nas tentativas frustradas de povos e comunidades tradicionais de terem os seus direitos culturais reconhecidos (LOBÃO, 2010), nas classificações que são operadas por agentes e instituições estatais que estabelecem uma distinção entre “mais humanos” e “menos humanos”, em relação aos direitos de crianças e adolescentes (FONSECA; CARDARELLO, 2005) e em uma lista infindável de dramas enfrentados por milhares de “brasileiros”.
Algumas considerações finais
O ritual de posse constituiu um locus onde as personagens do drama reafirmavam seus status (LEACH, 2014), lutavam pelo acúmulo de prestígio e pela construção de alianças com pessoas (GEERTZ, 1991). Tratava-se de uma disputa simbólica e política de poder (BOURDIEU, 2015), na medida em que a capacidade de definir significados põe em xeque tanto o significado dos objetos quanto os próprios objetos e sua posição estrutural, ou seja, os sujeitos “deixam de ser escravos de seus conceitos para se tornarem seus senhores” (SAHLINS, 1990, p. 11).
Contudo se os rituais de instituição notificam a alguém sua identidade, seja no sentido de exprimi-la ou impô-la, seja notificando “com autoridade o que esse alguém é e o que deve ser” (BOURDIEU, 2008, p. 101), durante o ritual de posse Bolsonaro foi intimado a ser em conformidade com a sua própria definição. Nesse sentido, os discursos que proferiu consistiram em atos de comunicação que, ao se desviarem dos discursos dos presidentes que o antecederam, buscavam gerar efeitos de atribuição estatutária distintos, ou seja, buscavam estabelecer fronteiras morais que passaram a demarcar discursos e práticas contrastantes.
Em cada um dos lugares que compuseram o circuito da posse as autoridades/atores ali presentes encenavam os conflitos referentes aos status e a disputa de valores, uma das características da luta política. Se o negara ganhava vida nos rituais de corte (GEERTZ, 1991), podemos dizer que o Estado brasileiro ganha vida nas encenações estatais, a exemplo da cerimônia de posse, levadas a cabo pelos seus inúmeros agentes e instituições. A cerimônia de posse pode ser lida, portanto, como uma representação simbólica da organização política brasileira. Como argumentamos, o poder simbólico não está restrito à produção de sentidos, ele também gera efeitos no mundo material. O simbólico tem, portanto, implicações na materialidade do poder, e vice-versa. Dessa forma, o Estado pode ser compreendido como um sistema de ideias e de instituições; como um constructo ideológico (ABRAMS, 2015). Destacamos a concepção de cidadania que compunha esse constructo, inserida em um jogo contextual de combinação entre os princípios da igualdade e da hierarquia, do direito e do privilégio.
Como tentamos demonstrar no decorrer deste artigo, a chegada de um candidato de extrema direita ao Palácio do Planalto representou tanto descontinuidades quanto continuidades quando contrastadas com as de seus antecessores. Por um lado, a moralidade que norteou os discursos e os governos de Fernando Henrique, Lula e Dilma trazia no cerne ideias-valores como “justiça social”, “diversidade cultural” e “direitos humanos”, além da defesa do regime democrático. Em contrapartida, Bolsonaro apostou no dissenso e no combate às tais “ideologias nefastas”, que se relacionam àquilo que orientava o conteúdo dos discursos dos presidentes e da presidenta que lhe antecederam.
Entretanto não havia apenas descontinuidades naquele ritual de posse e no governo que seria implementado daquele momento em diante. A produção das mais variadas formas de desigualdade tem sido um dos traços mais marcantes do Brasil. A chamada “questão agrária” brasileira talvez seja um dos exemplos mais simbólicos. Conflitos entre trabalhadores rurais e latifundiários, entre povos indígenas, fazendeiros e garimpeiros têm como palco uma estrutura fundiária iníqua e desigual, baseada na concentração de terra por uma pequena parcela da sociedade (PACHECO; PACHECO, 2010). Esse panorama se manteve praticamente inalterado em todos os governos aqui analisados, salvo raríssimas exceções. “Não obstante, vale ressaltar que Michel Temer e Jair Bolsonaro foram os únicos presidentes, desde 1985, que não demarcaram nenhuma terra indígena” (AUGUSTO, 2020).
Outra continuidade pode ser encontrada no apelo à “democracia racial”. Ainda que Bolsonaro não tenha lançado mão dessa ideologia, é importante observar que ela está atrelada a práticas cotidianas que a contradizem e, ao mesmo tempo, são por ela escamoteadas. Nos referimos mais precisamente ao elevado número de homicídios cometidos contra a população negra, que se intensifica a cada ano, tendo acompanhado todos os governos aqui analisados. Como observam Cerqueira e Coelho (2017, p. 9), no Brasil, “a diferença de letalidade entre negros e o restante da população não é apenas um problema antigo, mas veio se acentuando na última década”: de cada sete indivíduos assassinados cinco são negros. Em 2019, 77% das vítimas de homicídios eram negras, de acordo com os dados do Atlas da Violência de 2021.
Além das continuidades e descontinuidades já mencionadas, uma dimensão contrastiva que ficou subentendida entre os diferentes discursos presidenciais e que agora gostaríamos de explicitar refere-se à celebração da “nação” na posse de Fernando Henrique, Lula e Dilma, enquanto Bolsonaro focalizou a “pátria”. Pudemos ver que seus antecessores celebraram a dimensão cultural como constitutiva da construção nacional; nas palavras de Dilma Rousseff (2011): “Cultura é a alma de um povo, essência de sua identidade”. Em outras palavras, a nação é por eles imaginada a partir de uma comunhão de valores: por um lado, a harmonía da democracia racial; por outro, o convívio cívico-legal da diversidade. A “pátria” vocalizada por Bolsonaro, em contrapartida, evoca outros sentidos: o da territorialidade nacional, de um mundo de aliados e inimigos, da defesa das fronteiras, de uma imaginação geográfica (simbólica e material) e não de uma biografia imaginada (identidade e alma de um povo). Historicamente, “estado”, “nação” e “pátria” são dimensões interligadas em um mesmo processo, mas o que queremos destacar é que no contexto em tela apontam para configurações de valores distintos16.
Observamos também, durante a cerimônia de posse, os atos de fala como parte de um ritual que, na combinação entre o dito e o feito, ganhavam estatuto político de ações (TEIXEIRA, 2002), ou seja, as intenções contidas nas palavras podiam se transformar em ação concreta (TEIXEIRA, 1998). Os discursos proferidos por Bolsonaro não somente indicavam intenções, uma retórica inócua ou simples atos burocráticos necessários à homologação de um processo eleitoral. Explicitavam as ações praticadas por ele individualmente enquanto militar da reserva e deputado, bem como as ações que orientariam os passos do Estado brasileiro nos próximos quatro anos, seja na escolha de seus ministros, na criação de leis ou nas relações estabelecidas com os demais poderes, seja na condução da política externa do país, na extinção, elaboração e aplicação de políticas públicas ou em suas falas como presidente do Brasil.
Assim como os automóveis, cavalos, soldados, uniformes, faixa presidencial, autoridades e hino nacional, Bolsonaro era um objeto daquele ritual. Ele era “um actor político, poder entre poderes, assim como signo entre signos” (GEERTZ, 1991, p. 165), sem o qual o drama do Estado enquanto espetáculo e simbolismo não poderia ser encenado. Isso não quer dizer que o atual mandatário seja um tipo de marionete articulada, talhada em madeira e manipulada por “forças ocultas”. Significa que, enquanto símbolo pragmático (SAHLINS, 1990), o presidente está sujeito às contingências dos acontecimentos da vida social e aos interesses das diferentes personagens que atuam no tablado político, ao mesmo tempo em que sobre eles atua.
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Notas