Artigo
Antropologia das Epidemias
The Anthropology of Epidemics
La antropología de las epidemias
| KELLY Ann, KECK Frédérick, LYNTERIS Christos. The Anthropology of Epidemics. 2019. London. Routledge |
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Recepção: 19 Novembro 2020
Aprovação: 02 Fevereiro 2021
Publicado antes do contexto da pandemia contemporânea da Covid-19, este livro pode ser compreendido como um esforço epistemológico de como a antropologia, como campo de estudo, pode ser útil para uma compreensão singular desses processos e de seus efeitos em relações sociais, demonstrando dimensões obliteradas por abordagens tradicionais do tema. A complexidade das epidemias, assim como a criatividade etnográfica como tentativa de capturar o emaranhamento de diversos fenômenos, são marcas de cada capítulo.
Epidemias, conforme sugerem os organizadores, indagam-nos uma importante questão: “Como e através de quais mecanismos podemos continuar a viver juntos?”. Em termos de teoria social, o desafio imbuído de tal constatação é instigante: como se produzir uma análise social em que o próprio não é mais preconizado em termos habituais ou de como a doença, por mais individual que seja experimentada e/ou sentida, sempre é contextual e relacional. Essa constatação reforça uma longa tradição antropológica de epidemias/pandemias, capturando as diversas crises de saúde, todas fortemente influenciadas por um conjunto mais amplo de fatores: políticos, econômicos, sociais, raciais, de gênero etc. Ademais, os artigos compostos representam uma reflexão não necessariamente nova, mas de suma importância para o mundo contemporâneo e globalizado: sobre o processo de modernização, do progresso médico e político, que representaria a impossibilidade de assegurar o corpo político em um mundo cada vez mais interconectado, tecnologicamente avançado e globalizado (KECK et al., 2019). Epidemias e doenças infecciosas, portanto, desafiamnos não só com a doença per se, mas em nossas estruturas de organização social, dramatizando nossa vida cotidiana e o prisma em que baseamos nossas sociabilidades.
Tendo em vista essa orientação básica, cada artigo selecionado traz um esforço e rigor metodológico de se produzir não só etnografias singulares dos efeitos epidêmicos, mas como cada abordagem analítica original pode ajudar a reconstituição de fenômenos adjuntos, aos quais nós não podemos dar a devida atenção por inúmeros motivos. Por esse ângulo, seja qual for a abordagem utilizada, sempre somos indiretamente convidados a repensar as nossas próprias pesquisas, sendo as curiosas estratégias etnográficas um destaque de cada trabalho abordado. Por exemplo, como as fotografias podem dimensionar o fim da epidemia na Manchúria entre 1910-1911? Como a análise da disciplina de epidemiologia molecular pode transcrever como vírus e outros agentes infecciosos viajam muitas vezes ao longo de rotas comerciais e/ou de parentesco?
Seja qual tipo curioso de perspectiva apresentada, o resultado é um livro complexo e textualmente denso, mesmo apresentando 182 páginas. Somos convidados a contemplar três grandes temas, que produzem conjuntamente um panorama bastante complexo da realidade social epidêmica. Nota-se que essa divisão não busca estabelecer fronteiras conceituais essencialmente, mas facilitar ao leitor em sua navegação durante a leitura. É notável que, em certos momentos, um ou mais temas cruzam-se em determinado capítulo, o que não prejudica de forma alguma a compreensão, ilustrando ainda mais os desafios epistemológicos para o campo, vide o cruzamento de inúmeros fenômenos sociais num contexto epidêmico. Dadas essas constatações, refletiremos acerca de cada temática a seguir, demonstrando a sua pertinência em favor de uma antropologia das epidemias. Apontaremos também, secundariamente e de maneira sucinta, artigos-chave que podem não somente ilustrar a problemática explorada, mas contribuir através de teoria social.
A primeira temática é a de transmissão interespécies ou de patógenos zoonóticos, remetendo-se à dimensão interacional de humanos e não humanos em contextos epidêmicos. Aqui, devidamente, temos etnografias que priorizam a denominada “virada ontológica” na antropologia nos últimos vinte anos. Somos convidados a reflexionar, em maior ou menor grau, a ideia dos animais como atores importantes em redes de coexistência instáveis (assim como nós). Talvez o artigo mais marcante que compõe este eixo seja o de Lynteris (2019), em antropologia visual, seguindo um caminho de pesquisa bastante peculiar, de como a fotografia é operacionalizada através de atores-chave após o fim de um surto epidêmico. Por exemplo, o exame de uma produção fotográfica da expedição de peste sino-russa ao Sul da Sibéria e Mongólia, liderada por Wu Liande e Danilo Zab Olotn. Temos a percepção de que o fim de uma epidemia dificilmente significa que a história acabou. As imagens conseguem produzir uma dimensão de suspensão epistemológica na medida em que o elo de transmissão zoonótico não foi estabelecido, mas também não é negado pelo fotógrafo. Em imersão naquilo que é “[...] visível, mas invisível, reconhecível, mas desconhecido, determinável e ainda assim esquivo [...]” (LYNTERIS, 2019, p. 98) vislumbra-se uma janela ao passado de incompletude e incerteza: eram os animais vetores de transmissão? Ou a epidemia poderia retornar? As fotografias refletem, então, o drama do desconhecimento, que de certo modo é um elemento sempre presente no imaginário epidêmico.
A segunda temática é a de infraestrutura e materialidades, elaborando-se uma análise que prioriza o entrelaçamento de diversos fenômenos em contextos de epidemias. Contra explicações monolíticas, é sugerido que o olhar antropológico pode fornecer explicações causais que reverberam a necessidade de compreender o mundo social epidêmico como complexo e fruto de diversas condicionantes. De modo a ilustrar, categorias tais como parentesco, classe social, reciprocidade ou até mesmo como ancestrais são enterrados, podem ser problematizadas. Nesse contexto, Portner (2019) ilustra a magnitude da compreensão antropológica ao utilizar histórias de migração transnacional entre trabalhadores da província de Bac Giang na Zona rural do Vietnã para elucidar como infusões de capital em economias rurais transformam a produção aviária, melhorando a vida de alguns enquanto produz vulnerabilidades zoonóticas. As oportunidades econômicas se adaptam às localidades, impactando as teias de obrigação de parentesco e trocas. São formadas novas “ecologias de doença”, pois certos princípios fundamentais de biossegurança agrícola podem ser ignorados e, em outros casos, possibilidades de contaminação podem ser mitigadas através da combinação de cooperação e experiência, por exemplo. Mesmo assim, o diferencial é perceber a multiplicidade de fatores que podem influenciar na produção de uma epidemia e que o processo de globalização não é um fenômeno neutro. As galinhas, acima de tudo, são atores centrais na medida em que são imbuídas de esperança de vida melhor, apesar de que no processo, os seus corpos (e estados biológicos), expõem as suas limitações e capacidades (PORTNER, 2019, p. 89).
A terceira temática trata da intervenção e da colaboração, sendo possível vislumbrar os processos e os diversos atores envolvidos na intervenção contra epidêmica. A maioria dos artigos, de certo modo, encaixa nesse tema de suma importância para o reconhecimento das ciências sociais na medida em que podemos vislumbrar o papel em potencial que a disciplina pode fornecer tanto para a elaboração de políticas públicas quanto para nos apontar as distorções, lacunas e falhas no conhecimento e prática epidemiológica. De maneira insigne, somos lembrados em maior ou menor grau que os próprios sociólogos e antropólogos não são autores neutros nesse contexto: somos intimados a reconhecer o papel da herança colonial, tendo em vista que o engajamento da disciplina foi muitas vezes utilizado para fins de dominação e controle de populações. Exemplarmente, Prince (2019) demonstra como populações e públicos específicos disputam fluxos de financiamento global e intervenções transnacionais a partir do vírus HIV/AIDS na cidade de Kisumu, Quênia. Através de nove meses de pesquisa de campo, é possível acompanhar os laços que compõem as intervenções de saúde pública com respectivas economias morais, fundadas prioritariamente sob a ótica de cuidado e também de sobrevivência. Assim, tais fluxos caminham em paralelo à formação de grupos ou comunidades que essencialmente disputam a atenção de ONGS (e não dos governos eleitos e do estado). Nesse processo de designação de responsabilidades, é possível acompanhar o drama em que sujeitos lutam pela presença, atenção e visibilidade dessas políticas, demonstrando desigualdades, dimensões morais e o estigma de ser portador do vírus do HIV.
Ainda no eixo anterior, outros autores desenvolvem análises justamente importantes, privilegiando o sentido semiótico ou narrativo de como as epidemias são contadas por atores selecionados. Sejam tais discursos materializados através de exercícios de simulação (preparação para catástrofes epidêmicas), sejam expostos pela mídia, demonstrando como tais podem ser manipulados para ganhos próprios/pessoais. A análise de Caduff (2019) sobressai ao explorar o fascínio midiático em torno da próxima pandemia que parte, segundo o seu argumento, da necessidade desses meios de criar e manter um constante senso de novidade. Analisando diversos renomados jornais, objetiva-se contribuir não como uma análise simplória do conteúdo destes, mas o que poderia ser denominado como a estrutura discursiva recorrente, colocando em evidência um movimento dinâmico de uma “Grande Antecipação” jornalística, frase que faz juz ao próprio título do artigo. Percebemos, portanto, a recorrente possibilidade de uma catástrofe epidemiológica de maneira teatralizada, com claros objetivos de promoção do consumo e não essencialmente de prevenção.
Por fim, à primeira vista, este livro aparenta ser somente mais um livro que aborda simplesmente contextos epidêmicos, o que não é o caso. Trata-se de uma compilação – muito bem selecionada por sinal – de artigos que podem contribuir para o campo como um todo. Explicitamente, os organizadores não estão interessados em mais uma coleção de “etnografias de doença”, mas como o estudo antropológico das epidemias pode produzir inquietações e percepções para a disciplina; trazendo as epidemias para a vanguarda do debate antropológico como uma arena exemplar para análise e estudo científico social (KÉCK et al., 2019, p. 4). À vista disso, encontramos nessa constatação, talvez, uma análise pretensiosa dos autores diante do campo de maneira geral, como se grande parte dos estudos de análise social produzido pela disciplina, ao longo das décadas, fossem simplesmente descrições que focalizaram excessivamente na doença. Muito pelo contrário, a tradição desse campo, ao comentar sobre o adoecimento, nunca fala apenas da doença em si. Mas é reconhecível, contudo, que epidemias com toda força e poder desestabilizam prioritariamente o social, dado o impacto do medo do adoecimento e da morte; o que não implica, de forma alguma, que sociólogos e antropólogos de maneira geral não tenham circunscrito em suas análises problemáticas subjacentes ao adoecimento. Diríamos ainda que as epidemias sempre estiveram na vanguarda do debate antropológico, pois sempre afetaram ou desestabilizaram categorias tradicionais do nosso campo. De recomendação, para os interessados na história do papel antropológico no contexto epidêmico, a leitura do primeiro capítulo de Singer (2015) é bastante didática, nesse sentido, ao descrever a trajetória da antropologia em diversas doenças infecciosas.
Mesmo com a constatação do parágrafo anterior, sugeriríamos para o leitor que este trabalho deveria ser lido por todos aqueles que queiram analisar o social num contexto epidêmico. De forma alguma anula o esforço e a criatividade em abordar o social em um contexto epidêmico, que são, novamente, marcas de cada capítulo, sem sombra de dúvida. A grande contribuição deste livro, por assim dizer, é perceber que epidemias são sempre sociais, por mais óbvia que seja essa constatação à primeira vista.