Resumo: O artigo analisa embates e aproximações entre distintos atores – órgãos de Direitos Humanos e Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Governo Federal e Tribunais de Justiça, e o Primeiro Comando da Capital (PCC) – no que se refere à emergência da Covid-19 e seu espraiamento nas prisões. A partir da análise de matérias jornalísticas, normativas, e dados estatísticos oficiais, argumenta-se que os discursos do PCC e as diretrizes internacionais e nacionais convergem no que tange a uma pauta central: a necessidade de redução da superlotação prisional. Por outro lado, governo e agentes de justiça mostram-se contrários ao desencar-ceramento de custodiados, alegando que poderia gerar insegurança à população. Em consequência, as já ruins condições carcerárias se tornam ainda mais precárias e a vida das pessoas privadas de liberdade ainda mais frágil. O efeito desse cenário é que o PCC assume o papel de defensor dos direitos dos presos, em potencial intensificação de sua legitimidade nas cadeias e periferias.
Palavras-chave: PCC, Garantias fundamentais, Covid-19, Políticas penais, Direito à vida.
Abstract: The article analyzes clashes and approaches between different actors - Human Rights bodies and the National Council of Justice (CNJ), Federal Government and Courts of Justice, and the First Command of the Capital (PCC) - regarding the emergence of Covid-19 and its spread in prisons. From the analysis of journalistic articles, norms, and oficial statistical data, it is argued that the speeches of the PCC and the international and national guidelines converge with respect to a central agenda: the reduction of prison overcrowding. On the other hand, government and justice agents are opposed to the release of custodians, claiming that it could endanger the population. Consequently, the already bad prison conditions become even more precarious and the lives of people deprived of their liberty even more fragile. The effect of this scenario is that the PCC assumes the role of defender of the rights of prisoners, in a potential intensification of their legitimacy in the jails and peripheries.
Keywords: PCC, Fundamental guarantees, Covid-19, Penal policies, Right to life.
Resumen: Este artículo analiza los enfrentamientos y convergencias que se dieron entre diferentes actores -Órganos de Derechos Humanos y Consejo Nacional de Justicia (CNJ), Gobierno Federal, Tribunales de Justicia y Primer Comando de la Capital (PCC)- en torno al surgimiento del Covid-19 y su propagación en las cárceles. Con base en el análisis de artículos periodísticos, normativa y datos oficiales, se argumenta que el discurso del PCC y los lineamientos internacionales y nacionales han tendido a convergir alrededor de una agenda central: la reducción del hacinamiento carcelario. Paralelamente, en la medida en que los agentes del gobierno y de la justicia se han opuesto a la liberación de los presos, alegando que ello podría generar un aumento de la inseguridad en la población, las ya deficitarias condiciones carcelarias se han vuelto aún más precarias y la vida de los internos más frágil. En este escenario, el PCC, que asume el rol de defensor de los derechos de los presos, puede potencialmente ampliar su legitimidad en las cárceles y periferias.
Palavras chave: PCC, Garantías fundamentales, Covid-19, Políticas penales, Derecho a la vida.
Artigo
Estado e PCC na pandemia: convergências e divergências na proposição de medidas de saúde e segurança pública nas prisões
State and PCC during the pandemic: convergences and divergences in the proposal of measures for health and public security in prisons
Estado y PCC en pandemia: convergencias y divergencias en la propuesta de medidas de salud y seguridad pública en las cárceles
Recepção: 15 Outubro 2020
Aprovação: 25 Fevereiro 2021
Em abril de 2020, durante uma coletiva de imprensa no Palácio do Planalto, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, indicou preparar uma estratégia de combate ao novo coronavírus específica para espaços de periferia: a partir do reconhecimento de que muitos desses territórios estão sob domínio de organizações criminais, afirmou que o Ministério da Saúde estaria disposto a travar conversas sobre o tema com chefes de redes de tráfico de drogas e das milícias. Caso contrário, não seria possível estabelecer medidas eficazes de prevenção à pandemia em áreas identificadas como “excluídas”.
A saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque também são seres humanos e precisam colaborar, ajudar, participar. Então, neste momento, quando a gente faz esse tipo de colocação, a gente deixa claro que todo mundo vai colaborar (no combate à Covid-19). (AGÊNCIA ESTADO, 8 abr. 2020).
A declaração se mostrou polêmica e gerou diversas reações negativas. Elio Gaspari, por exemplo, em sua coluna na Folha de São Paulo, afirmou que o então ministro Mandetta sofria de uma “síndrome do holofote”, perdendo a oportunidade de ficar calado (GASPARI, 2020). O jornalista declarou que, embora o poder público dialogue com a “bandidagem” informalmente há décadas – o que teria se mostrado vital ao bom funcionamento de determinadas políticas públicas em muitos espaços periféricos –, a fala de Mandetta acabaria por legitimar grupos criminais. De igual maneira, o ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungman disse entender as preocupações humanitárias do Ministério da Saúde, mas declarou que o posicionamento de Mandetta era “inaceitável” porque significaria “reconhecer o controle do crime organizado sobre a vida das pessoas” (DECLARAÇÃO..., 10 abr. 2020). Tomamos esse embate como ponto de partida para pensarmos alguns desafios suscitados pela emergência da pandemia da Covid-19 na área da segurança pública, especialmente no que se refere a seu espraiamento nas cadeias e prisões do país.
Sabemos que o encarceramento em massa, aliado à seletividade do sistema criminal, há muito converteu os espaços prisionais em componentes da paisagem urbana, identificados também como territórios periféricos (GODOI, 2015), ou mesmo “excluídos”, conforme as palavras de Mandetta. Sendo o contexto prisional solo fértil para o surgimento e a articulação de grupos criminosos (LESSING, 2017), que se espraiam também pelos espaços de pobreza urbana, estes coletivos ganham centralidade no processo de formulação e de implementação de políticas públicas dentro e fora das grades, gerando um envolvimento entre atores estatais e dinâmicas ilegais na condução cotidiana de espaços marginais. Com a pandemia do novo coronavírus, não está sendo diferente.
Nesse sentido, buscamos entender como a interseção, proposta pelo ex-ministro, entre políticas de saúde e organizações criminais está presente na discussão e na construção de ações para combater o avanço do novo coronavírus no sistema penitenciário nacional. Para tanto, tomamos diferentes grupos de atores, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e tribunais de justiça estaduais como focos de nossas análises. Mais especificamente, buscamos compreender: a) como o PCC tem se posicionado e se articulado no interior do sistema prisional diante da pandemia do novo coronavírus; b) quais as recomendações elaboradas e difundidas pelo CNJ para lidar com a crise de saúde no ambiente carcerário e como os judiciários estaduais se apropriaram (ou não) de tais recomendações; e c) se existem (e quais são) as convergências e divergências entre esses posicionamentos. Em síntese, o objetivo deste artigo é analisar as reivindicações do PCC em face da atual crise de saúde, traçando um paralelo entre tais demandas e as medidas recomendadas e/ ou efetivamente postas em prática por distintos atores oficiais em relação à conjuntura da pandemia nas prisões.
A partir da análise de dados quantitativos, de narrativas da imprensa e de normativas publicadas recentemente, demonstraremos que, em alguma medida, as exigências elaboradas pelo PCC vão ao encontro de diretrizes emanadas pelo CNJ, as quais, por sua vez, são coerentes com as recomendações efetuadas por organizações internacionais de direitos humanos. Argumentamos, também, que a recusa de certos órgãos governamentais e de operadores do direito em atender essas normativas institucionais acaba por gerar – ou intensificar – uma série de violações de direitos de um segmento já vulnerável, como é a população carcerária. Nesse cenário, as demandas do PCC ganham mais espaço, e a organização amplia ainda mais sua legitimidade entre os presos, reforçando, consequentemente, seu status de garantidora de “paz entre os ladrões”. 1
Tratar de debates que equacionam políticas penais e práticas operadas por grupos criminosos originários dos cárceres é tocar em aspectos basilares ao respeito à dignidade da pessoa humana. Neste texto, avançamos nessa discussão a partir da análise das formas como Estado e PCC se interseccionam nas ações que levam à negação ou à materialização de dois direitos fortemente tensionados pela pandemia: o direito fundamental à vida, marcado no artigo 5º da Constituição Federal,2 e o direito à saúde, listado no artigo 196. 3
Para apresentar os resultados do estudo, indicamos inicialmente os passos dados no levantamento de dados. Em seguida, apresentamos uma revisão bibliográfica que conjuga as ideias de democracia, garantia de direitos e políticas penais comumente executadas no país. Ainda na revisão bibliográfica, apresentamos algumas discussões da literatura acadêmica acerca do PCC e de suas ações que acabam por se mesclar à atuação estatal. A partir de então, iniciamos a análise proposta neste artigo e introduzimos quais demandas têm sido efetuadas pelo grupo no cenário da Covid-19, conforme relatos da imprensa. Na seção seguinte, detalhamos as recomendações do CNJ, comparando-as às diretrizes internacionais sobre as políticas sanitárias a serem tomadas em ambientes carcerários durante o cenário estabelecido pelo novo coronavírus. Por fim, apresentamos as convergências e as divergências entre as proposições do PCC e as medidas adotadas pelo Estado no enfrentamento à crise de saúde.
Parte dos dados aqui debatidos se baseia em um estudo de narrativas veiculadas pela imprensa sobre a ação do PCC em meio à crise causada pelo novo coronavírus. A escolha desse método se deveu à impossibilidade de realização de trabalho de campo em prisões decorrente justamente do contexto de pandemia e, mais importante, ao reconhecimento de que o uso de notícias de jornal como fonte de pesquisa social tem sido fundamental em trabalhos sociológicos voltados à compreensão das dinâmicas criminais e carcerárias (SALLA, 2015). Embora não seja nosso intuito aprofundar discussões relativas à mídia e à violência, sabemos que, para além de o conteúdo midiático facilitar interpretações de uma dada realidade como falsas ou verdadeiras, os jornais também orientam os atores sociais em suas rotinas (PORTO, 2009).
A pesquisa foi conduzida em duas fases. A primeira se centrou em um jornal de grande circulação, a Folha de São Paulo, reconhecido por publicar diversas matérias sobre o PCC, algumas das quais bastante minuciosas a respeito de seu modus operandi organizacional (DUARTE; ARAÚJO, 2020). O corte temporal da coleta se ateve entre o momento em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a Covid-19 como pandemia de ordem mundial, em 11 de março de 2020, e o dia 31 de agosto de 2020, momento inicial de escrita deste artigo.
Inicialmente, utilizamos as palavras-chave “PCC” e “Primeiro Comando da Capital” no sistema de busca da Folha de São Paulo. A partir delas, chegou-se a 78 resultados, dentre matérias, notas e colunas de opinião. Muitos desses materiais indicavam prisões de integrantes da organização criminal, ou mesmo apenas citavam o PCC superficialmente. Ao conjugar ambas as palavras ao termo “pandemia”, foram alcançadas 18 notícias, as quais foram lidas e analisadas, sendo o foco das reflexões aqui efetuadas.
Em uma segunda etapa, analisamos a Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),4 sem nos furtarmos a contrastá-la com diretrizes internacionais lançadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, além de medidas emanadas pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura e pelo Alto Comissariado, ambos das Nações Unidas. Todos esses dispositivos tiveram como objetivo regular as condições dos ambientes de privação de liberdade, bem como apontar caminhos para a garantia dos direitos à saúde e à vida das pessoas em julgamento ou julgadas pelos sistemas de justiça criminal no contexto da pandemia. Por fim, consideramos também um conjunto de dados públicos, como os divulgados pelo CNJ e pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a respeito do contexto carcerário brasileiro no quadro atual. Esses dados ajudaram a compreender até que ponto a Recomendação 62 do CNJ foi utilizada para balizar as decisões dos diversos tribunais de justiça do país.
Em suma, este trabalho conjuga um estudo documental, a partir das normativas e notícias de jornais, com uma análise descritiva de dados quantitativos fornecidos por fontes governamentais.
O Brasil tem passado por importantes transformações nas últimas décadas, construindo um cenário permeado por ambiguidades diversas. Se, por um lado, o país viveu uma abertura política e uma ampliação do acesso a direitos em face do declínio da ditadura cívico-militar, por outro, vivenciou o crescimento da criminalidade e da violência, o punitivismo como forma de governo e a manutenção de intensos e persistentes abusos de agências de segurança pública (AZEVEDO, 2004; CALDEIRA; HOLSTON, 1999; FELTRAN, 2007; SANTANDER JOO et al., 2015).
Autores como Valente (2018) e Marques (2017) destacaram que, longe de ser um aspecto que “falhou” ao longo dos anos, a manutenção do caráter repressivo e bélico das forças de segurança brasileiras foi parte das negociações promovidas pela Assembleia Constituinte de 1987, ocupando espaço de relevância em todo o processo de redemocratização do país. A estrutura autoritária forjada sob o domínio dos militares foi, em grande medida, transplantada para as polícias (VALENTE, 2018), em um fomento da expansão do sistema penal do país (MARQUES, 2017). Com efeito, ao mesmo tempo em que o país dispõe de um leque significativo de normas voltadas à garantia das liberdades individuais, há o crescimento de instrumentos de controle repressivo (SALLA; BALLESTEROS, 2008), além de um reconhecido tratamento torturante destinado a grupos vulneráveis da população (PASTORAL CARCERÁRIA, 2016).
Baseadas na literatura e tendo em vista o foco da presente pesquisa, elencamos aqui sete tendências, três ligadas ao aprofundamento democrático e as demais ligadas à transformação do universo criminal, que se avultaram desde a redemocratização e compõem esse contexto de ambiguidades em que estamos imersos no país. 5 Sobre o aprofundamento democrático: a) o crescimento da participação popular em espaços democráticos, seja através de eleições e referendos, seja através de movimentos sociais ou organizações da sociedade civil (SANTANDER JOO et al., 2015); b) um aumento dos investimentos governamentais em políticas de proteção social – ao menos até o processo de impeachment de Dilma Roussef em 2016 (SANTANDER JOO et al., 2015); c) a redução da pobreza e do analfabetismo (SANTANDER JOO et al.,, 2015; PERLMAN, 2003).
Somados a esses, conjugou-se aquilo que Misse (1999, 2009) salientou poder ser compreendido como consequência de um processo de “acumulação social da violência” 6: a) um aumento dos índices de criminalidade, em especial dos delitos contra o patrimônio e dos crimes contra a vida, como homicídios dolosos (SOARES, 2003); b) a expansão do mercado de drogas, sobretudo com o advento da venda de cocaína, marcando um ponto de infexão nas dinâmicas de funcionamento do mercado ilícito (LEEDS, 1996; MISSE, 1999; ZALUAR, 1994); c) a perpetuação de graves violações de direitos humanos (CALDEIRA, 2002); e d) a emergência de organizações criminais associadas ao tráfico de drogas, como o PCC (AMORIM, 2004; BIONDI, 2010, 2014; DIAS, 2011; SILVESTRE, 2016; FELTRAN, 2018; MARQUES, 2009, 2010; MANSO; DIAS, 2017, 2018).
Em consequência, ainda que formalmente seja sustentada a narrativa sobre o ideal de ressocialização dos custodiados, na prática, ficam cada vez mais arrefecidas as determinações que reforçam a função preventiva da sanção penal (GARLAND, 2008).7 Ganham força, assim, medidas de controle social rígido e políticas penais destinadas ao aprisionamento (SINHORETO et al., 2013). Esta vertente de ação estatal se fundamenta na perspectiva de que os riscos devem ser reduzidos, as políticas de prevenção ao crime devem ser amplas, bem como os criminosos devem ser severamente punidos e controlados (BAUMAN, 1999; WACQUANT, 1999). No entanto, essas ações não são desenvolvidas de modo homogêneo para todos os tipos de crimes e criminosos. A seletividade do sistema de justiça e o hiperencarceramento marcam o cotidiano penal do país (SINHORETTO; SILVESTRE; MELO, 2013).
O endurecimento punitivo intensificado a partir da Lei de Drogas (11.343/2006) talvez seja o caso mais emblemático nesse sentido. Apesar de dispor de avanços formais no reconhecimento dos direitos dos usuários de drogas, a norma aumentou a pena mínima do delito de tráfico de entorpecentes de três para cinco anos, o que gerou incrementos significativos nos níveis de encarceramento no país (CARLOS, 2015). Para além do aumento formal da sanção punitiva, ao não definir objetivamente as diferenças entre uso e tráfico, a norma deixou para os operadores da Justiça a função de proceder essa distinção a partir das circunstâncias sociais do acusado e da prisão. Em especial, jovens, negros e pobres costumam ser mais vigiados através do policiamento ostensivo de determinadas áreas geográficas, em geral, dos espaços de periferia. Aumenta-se, pois, o número de fagrantes relativos a crimes cometidos por essas populações, sendo aguçada a marginalização a que já estavam submetidas antes do contato com o sistema de justiça (WILSON; SAMPSON, 1995; FORMAN, 2012). Nesse panorama, as polícias, o Judiciário e o Ministério Público atuam em uma intensificação do processo de criminalização de grupos sociais economicamente desfavorecidos e racialmente oprimidos, e pessoas que antes poderiam ser enquadradas como usuárias acabam condenadas como traficantes sob penas altas (GRILLO; POLICARPO; VERÍSSIMO, 2011).
Os caminhos da pós-democratização no que tange às políticas penais fizeram com que a taxa de encarceramento subisse de 61 presos para grupos de 100.000 habitantes no país em 1990 para 366 custodiados para cada 100.000 brasileiros em 2019. 8 Em outros termos, em menos de 30 anos, a população carcerária nacional cresceu seis vezes. Com efeito, em dezembro de 2019, o sistema penitenciário compreendia 748 mil pessoas privadas de liberdade,9 dentre as quais mais de 30% aguardavam sentença a ser emitida pelo juiz.
Esse universo de presos coloca o país, em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos, cujo conjunto de detidos é superior a dois milhões de indivíduos, e da China, com um contingente superior a um milhão de custodiados.10 Em dezembro de 2019, o Acre era o estado que mais encarcerava, com 897 presos para cada 100.000 habitantes. Por sua vez, São Paulo ficava em quinto lugar no ranking nacional, com 506 custodiados para cada 100.000 habitantes, ao passo que a Bahia se colocava em último, com 105 presos para cada 100.000 habitantes (VELASCO; REIS, 2019). Em números absolutos, São Paulo, nascedouro do PCC, é o detentor da maior população prisional do país, com um total de 233.089 presos e uma taxa de ocupação de suas prisões de quase 160%. 11
Algumas organizações da sociedade civil nacionais têm apontado periodicamente para as violações de direitos que acometem os estabelecimentos prisionais. Em seu relatório “Tortura em tempos de encarceramento em massa”, a Pastoral Carcerária (2016) comparou as prisões brasileiras ao famoso cenário infernal narrado por Dante Alighieri, já que os cárceres são marcados por práticas regulares de tortura, não só através da violência física, mas também da violência psíquica cometida por agentes do Estado contra os presos e suas famílias.
No inferno das prisões não existem placas, mas o condenado sabe que vai começar seu padecimento. Quando as grades se fecham, abre-se um mundo de violência, corrupção, superlotação, promiscuidade e descaso – muito descaso – por parte das autoridades públicas, famílias e sociedade. (PASTORAL CARCERÁRIA, 2016, p. 13)
Esses “padecimentos” se materializam também por meio da negação de atendimentos jurídicos e de saúde. Sobre este último ponto – fundamental para a discussão que propomos no presente texto –, destacam-se os ambientes insalubres dos cárceres brasileiros, com pouca iluminação e quase nenhuma ventilação, aliados à má alimentação e à falta de atendimento médico (PASTORAL CARCERÁRIA, 2016). Em consequência, doenças infecciosas costumam penalizar muito mais os custodiados do que os indivíduos em liberdade. Não à toa, o Ministério da Saúde apontou, em relatório publicado em 2017, que a incidência de tuberculose na população prisional chega a ser quase 30 vezes maior do que na população geral.12
Nesse mesmo sentido, Drake e Karam (2016) evidenciaram a omissão de Estados latino-americanos ao não fornecer aos seus custodiados itens básicos de sobrevivência, como sabonetes ou remédios. A responsabilidade de distribuir esses produtos aos presos recai, então, sobre seus familiares, onerando-os. Ao conjugarem tal tarefa ao cotidiano de visitas em unidades prisionais quase sempre distantes das regiões onde vivem, as famílias enfrentam dificuldades para garantir a continuidade dos vínculos afetivos (GODOI, 2015). Nesse cenário, muitos custodiados e seus parentes acabam à mercê de organizações criminais que ajudam a superar economicamente certos obstáculos. O PCC seria uma dessas organizações, fornecendo não apenas itens necessários à vida na prisão, mas também propiciando transporte aos visitantes para irem regularmente às unidades prisionais (GODOI, 2015).
Em outros termos, a gestão das políticas de segurança pública adotadas em território nacional tende a impactar grupos em condições sociais e econômicas vulneráveis, aprofundando desigualdades. A democracia é um valor ainda em consolidação no Brasil, e as condições carcerárias nacionais indicam que, pelo menos para algumas populações, o acesso a direitos não foi concretizado (SANTANDER JOO et al., 2015). Para tais indivíduos, que se veem a todo momento engajados em uma tentativa incessante por “sobreviver na adversidade” (HIRATA, 2018), outros caminhos, não necessariamente legais, podem ser, muitas vezes, os que se apresentam em seus restritos e conflituosos horizontes de possibilidades. É nesse contexto que grupos como o PCC nascem, crescem e se constituem como interlocutores entre presos e Estado (BARBOSA, 2005; FELTRAN, 2018; DIAS, 2011; SILVESTRE, 2016; BIONDI, 2010, 2014), conforme trataremos mais detalhadamente na seção a seguir.
Adotar a política de encarceramento em massa, somada a violações sistemáticas de direitos, tem gerado impactos severos nas rotinas prisionais e nas trajetórias dos custodiados. Uma vez presos, esses indivíduos são submetidos a condições torturantes. E um dos caminhos possíveis na luta pela sobrevivência é o da formação de grupos de custodiados para organizar demandas e realizar ações coletivas de reivindicações. Essas ações transitam no limiar entre o legal e o ilegal, como destacou Góes (2009) em seu estudo sobre as rebeliões nos presídios paulistas na década de 1980. Já naquele momento, grupos de presos forjavam tréguas e alianças entre si na resistência contra ações policiais repressivas dentro das unidades (GÓES, 2009), o que, alguns anos depois, seria reinterpretado e ganharia novos significados e contornos com o surgimento do PCC.
Em 1992, o assassinato de 111 custodiados durante a repressão policial a uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru, tornou evidente aos olhos da sociedade a realidade violenta característica do cotidiano penitenciário no Brasil (SILVESTRE, 2016). Autora do primeiro trabalho etnográfico de grande envergadura sobre o PCC, Biondi (2010, 2014) argumenta que, para os presos, o horror diante daquilo que ficou conhecido como “massacre do Carandiru” e da explicitação da profunda vulnerabilidade em que se encontravam no interior do sistema carcerário serviu como fator determinante para o crescimento do sentimento de que era preciso investir em estratégias de autopreservação.
Biondi (2010, 2014) destaca também que foram duas as principais respostas estatais que se seguiram ao massacre. A primeira, como já introduzimos, se referiu à intensificação das políticas de aprisionamento. Ou seja, ao invés de promoverem medidas garantidoras de direitos, agentes e instituições estatais atuaram de forma a expandir vertiginosamente a população carcerária paulista. A segunda, ocorrida de forma concomitante à anterior, foi o esforço de descentralização do sistema penitenciário, cujo efeito foi o aumento do número de cárceres por diversas partes do estado de São Paulo. Como consequência, cresciam, simultaneamente, a população prisional estadual e as violações típicas do ambiente prisional, como a tortura, com o diferencial de tais práticas passarem, agora, ainda mais ao largo do controle social (DIAS, 2011; FELTRAN, 2018; SILVESTRE, 2016). 13
No ano de 1993, menos de um ano depois da tragédia do Carandiru, durante uma rebelião no Centro de Reabilitação Penitenciária, anexo à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, em São Paulo, o PCC começou a tomar forma como uma organização que visava à proteção entre os presos e o “combate à opressão carcerária” (DIAS, 2011; FELTRAN, 2018; BIONDI, 2010, 2014).14 O grupo reivindicava o enfrentamento às injustiças por meio da ideia de “paz entre os ladrões, e guerra contra o sistema” (BIONDI, 2010, 2014; DIAS, 2011; FELTRAN, 2018; MARQUES, 2010, 2016). As pessoas custodiadas se uniram contra um inimigo comum, especialmente personificado em agentes de controle do Estado, como a polícia e a administração prisional (FELTRAN, 2018). Com o uso de meios violentos, mas também pelo convencimento e pela pretensa justeza com que aplicava essa violência, o coletivo ingressou inicialmente em uma etapa de embate com outros grupos no interior das prisões e conseguiu, ao longo dos anos, tornar-se o principal ator no universo carcerário paulista (FELTRAN, 2012).
Reconfiguravam-se, portanto, as hierarquias e as relações sociais dentro dos muros. Dias (2011) aponta para duas facetas primordiais dessas mudanças, ambas relacionadas à capacidade que o PCC desenvolveu de acesso às “oportunidades de poder” do universo prisional: a conquista do monopólio mercadológico, com o domínio dos comércios legais e ilegais presentes nas instituições penais; e a obtenção do monopólio do uso da força, com uma regulação dos instrumentos de violência (como facas ou canivetes, até então comuns nas cadeias, por exemplo), que passam a ser exclusividade de membros do “partido”.
Com o passar dos anos e com o enorme contingente de egressos do sistema prisional decorrente do encarceramento massivo (SINHORETTO et al., 2013), o PCC – cujo acesso a recursos letais era nada desprezível – passou a atuar também nas periferias urbanas, em um processo que teve como maior marco os enfrentamentos entre a organização e a Polícia Militar de São Paulo, ocorridos em 2006. Em um intervalo de uma semana, foram assassinadas 493 pessoas em São Paulo, entre agentes do estado e população civil (CANO; ALVADIA, 2008; FELTRAN, 2012). Deste ano em diante, houve uma progressiva estabilização do cenário, e o PCC se consagrou como importante ator nas relações de poder não só no sistema prisional, mas também nas periferias paulistas, se consolidando como uma nova figura social hegemônica dentro e fora dos cárceres (ADORNO; DIAS, 2016).
O PCC passou a deter grande parte da regulação do varejo de drogas, dos roubos, da violência e dos comportamentos dos moradores de bairros pauperizados, mesclando em sua prática cotidiana o uso da força com oferta de garantias costumeiramente negadas pelo Estado aos que vivem sob seu domínio (BIONDI, 2014). Entre outras ações, o grupo fornece cestas básicas aos desempregados e atendimento jurídico à população carcerária, alimentando a retórica de “paz entre os irmãos” e de luta contra injustiças (FELTRAN, 2018). Nota-se que, nessa dinâmica, o “inimigo” já não está mais circunscrito à “opressão carcerária”, mas se expande e passa a abarcar os muitos processos de exclusão a que estão submetidos os pobres urbanos (setores da população que são alvo preferencial das políticas de encarceramento), desde as dificuldades em conseguirem ingressar no mercado de trabalho, passando pela violência policial e pelo preconceito advindo das classes mais abastadas. Contra isso tudo se posiciona o PCC, muitas vezes chamado simplesmente de “crime” (MARQUES, 2009, 2010, 2016).
De fato, o PCC instituiu formas mais racionais de atuação, com execuções planejadas, decorrentes de circunstâncias e motivações específicas (BIONDI, 2014; MARQUES, 2009). Biondi (2014), Willis (2015) e Feltran (2010, 2013) apontaram que, para além da regulação das regras do cotidiano prisional, o grupo passou a disputar espaço de legitimação nas sociabilidades periféricas, tornando-se uma instância de justiça. A principal medida nesse sentido foi a extrapolação da reivindicação do monopólio do uso da força pelo grupo, que já estava em vigor nos cárceres e que passou a avançar também para os territórios empobrecidos das cidades. O PCC estabeleceu, entre os setores pobres paulistas dentro e fora das grades, a necessidade da “autorização para matar”, em uma espécie de “política de paz”, efetivada através do popularmente chamado “tribunal do crime”. Os conflitos passaram a ser resolvidos por julgamentos informais conduzidos pelo PCC em que são apresentadas a acusação, a defesa, bem como é proferida e executada a sentença. Com isso, os homicídios retaliatórios ou motivados por desentendimentos relativamente banais são suprimidos, ocasionando uma substantiva redução nas taxas de mortes violentas no estado de São Paulo (FELTRAN, 2010; WILLIS, 2015).
Após mais de 25 anos de existência, a organização é frequentemente alvo de interesse da imprensa e de outros atores públicos, sendo hoje retratada como o maior grupo criminal do país (DUARTE; ARAÚJO, 2020). Segundo o Ministério Público paulista, o PCC disporia de cerca de 30.000 integrantes espalhados em todas as unidades da federação e em alguns países vizinhos, como Bolívia e Paraguai (DUARTE, 2020). Estes sujeitos estariam divididos em espécies de células autônomas, as chamadas “sintonias”, cujo objetivo final seria a ampliação de novos mercados e, por sua vez, a dilatação da capacidade lucrativa organizacional. É interessante notar o fascínio que o grupo parece suscitar, bem como as perspectivas quase ficcionais que perpassam os discursos acerca de sua atuação (MINGARDI, 2007), especialmente por parte de atores que formam o poder público.
Ainda que existam representações bastante fantasiosas sobre o PCC, é importante ressaltar a natureza idiossincrática que de fato caracteriza a organização (MANSO; DIAS, 2018; FELTRAN, 2018; BIONDI, 2010, 2014). No âmbito econômico, alguns integrantes do grupo podem até apresentar um perfil empresarial e bélico. Contudo, com características de “sociedade secreta”, o PCC se constitui principalmente como um agente de regulação mercantil (FELTRAN, 2018). Sua proposta é agir discretamente, distante de um modelo de guerra pública, de terror e de estrutura piramidal. Procede, então, como irmandade. Garantindo a ordem nas cadeias e nas periferias, o PCC reduziria não apenas os conflitos internos ao crime, mas também com as polícias e o governo, fortalecendo-se junto à população pobre da cidade (FELTRAN, 2018). Alguns autores, principalmente os que trabalham em pesquisas com enfoque nas significações, valorações e linguagens internas ao universo criminal (AQUINO; HIRATA, 2018; BARBOSA, 2016), têm argumentado que o PCC, mais do que um representante do “crime organizado”, pode ser interpretado como uma experiência política (DIAS, 2011; BIONDI, 2010; FELTRAN, 2013).
Tendo o PCC essas características, a organização ganha proeminência, especialmente em tempos de crise social, como a produzida em decorrência da pandemia do novo coronavírus. Na seção a seguir, aprofundaremos esse debate.
Nosso esforço nesta e na próxima seção é discutir as narrativas da imprensa sobre a ação do PCC durante a pandemia, bem como compreender a ação estatal no campo prisional em face da crise de saúde. Partimos da ideia debatida por Prando et al. (2020) de que são propostos dois tipos de relatos sobre a questão. Por um lado, produz-se a imagem de um Estado eficiente, preocupado em garantir direitos e preservar a segurança pública, alinhando, então, políticas penais com as de saúde. Por outro, são reforçadas representações sociais do medo e da periculosidade para legitimar a imagem de um Estado intransigente e purificador.
Esse modo de operar se aproxima do que Leite (2012) chama de “metáfora da guerra”, isto é, a representação socialmente compartilhada de contextos urbanos como cenários de “guerra”, em que setores inimigos se enfrentariam em combates marcados pelo uso da força. De um lado, estariam os “bandidos”, especialmente os “traficantes de drogas”, e, de outro, o Estado ou a polícia. Gestada a partir de episódios violentos como tiroteios, “balas perdidas”, chacinas e rebeliões em presídios, e reforçada por narrativas sensacionalistas veiculadas pela imprensa, essa representação mobiliza um forte sentimento de insegurança entre grupos sociais. A população é, então, chamada a escolher um dos lados, legitimando-se uma perspectiva em que a segurança pública é tida como protetora de parte da sociedade (os “cidadãos de bem” das classes médias e altas, principalmente) contra a ameaça representada por outro segmento da população (os “bandidos” em especial, mas isso também acaba por incluir as “classes perigosas”, os “favelados” de maneira geral).
Nesse mesmo sentido, a representação fortemente difundida por atores públicos sobre o PCC como um inimigo articulado, violento e ameaçador, se dominante em tempos de “normalidade”, também se faz presente de maneira fundamental no contexto da Covid-19. Em meio a uma narrativa que na maioria das vezes pareceu incitar o “temor”, sob o risco de ser instaurado um “caos na segurança pública”, é possível dizer, resumidamente, que a Folha de São Paulo sinalizou para três tipos centrais de demandas do PCC durante a crise de saúde, reveladas entre motins, fugas de presos e rebeliões: a) regularização das visitas familiares aos cárceres; b) liberação de presos idosos e/ou com comorbidades, sujeitos a maiores riscos de agravamento no caso de infecção pelo novo coronavírus; e c) retorno da aplicação das saídas temporárias aos custodiados em regime semiaberto, popularmente conhecidas como “saidinhas”. 15
O que parece ter ocorrido é um rápido escalonamento da conflituosidade nas prisões. Em meados de março, logo após a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar estado de pandemia em razão do novo coronavírus, relatou-se na Folha de São Paulo que presos do PCC fugiram e realizaram “atos de insubordinação” em unidades prisionais paulistas (RODRIGUES et al., 2020). A tensão nas prisões se iniciou após a proibição das visitas em alguns estabelecimentos, o que costuma ocasionar forte impacto no ambiente prisional, mesmo em contexto de dita “normalidade”. Silvestre (2012) ressalta o quanto as famílias de presos, em especial as companheiras e as esposas, são essenciais para manter os cárceres “pacíficos”. Esses atores constituem fontes de afeto, ajudam a estabelecer canais de comunicação entre o fora e o dentro da prisão, trazem alimentos e outros materiais de uso pessoal aos presos, além de, em certas ocasiões, adotarem posições estratégicas na execução de determinados ilegalismos no ambiente prisional e em espaços de periferias urbanas (SILVESTRE, 2012; PADOVANI, 2015). Quando as visitas são raras no cárcere, o que costuma ocorrer em especial em prisões femininas, abre-se margem à barganha entre pessoas privadas de liberdade e ao desenvolvimento de relações assimétricas (PADOVANI, 2015).
O cenário de tensionamento carcerário se agravou ainda mais com a suspensão pela Justiça das audiências nos fóruns e das “saidinhas” temporárias. Essas medidas foram adotadas pelo poder público sob a justificativa de se evitar a circulação do vírus de fora para dentro das prisões, ignorando-se nesse aspecto que, além dos custodiados e seus familiares, outros indivíduos, como os funcionários, saem e entram todos os dias dos estabelecimentos penais.
A medida foi necessária pois o benefício [de saída temporária] contemplaria mais de 34 mil sentenciados do regime semiaberto que, retornando ao cárcere, teriam elevado potencial para instalar e propagar o coronavírus em uma população vulnerável, gerando riscos à saúde de servidores e de custodiados. A SAP [Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo] ainda realiza a contagem para determinar o número exato de fugitivos”, diz, em nota [o chefe do Executivo] (RODRIGUES; PAGNAN; PAULUZE, 2020, s. p., acréscimo nosso).
Outra matéria indicou que integrantes da organização estariam acionando seus advogados para que fosse impetrado habeas corpus a todos os membros do grupo idosos ou que estivessem acometidos por doenças crônicas, como, por exemplo, diabetes e problemas cardiovasculares (ADORNO, 2020). Na ótica do PCC, esse conjunto de custodiados deveria ser liberado com urgência, já que os cárceres estão superlotados, apresentam péssimas condições infraestruturais e não oferecem adequada assistência à saúde. Essas circunstâncias poderiam não só potencializar a propagação do novo coronavírus, como também colocariam em risco a vida de muitos presos.
Noticiou-se, nesse bojo, a concessão da prisão domiciliar a um suposto “chefe” do PCC que sofre de hipertensão. Por ser considerado principal aliado das lideranças “mais violentas da facção”, o governo buscou reverter a decisão (PAGNAN, 2020).
Aliado de integrantes da cúpula, tidos como os mais violentos da facção, segundo a polícia, como Roberto Soriano, o Tiriça, e Daniel Canônico, o cego (ambos no sistema federal), Batatinha ficará em casa sem vigilância externa nem com tornozeleira eletrônica de vigilância. De acordo com o juiz Adjair de Andrade Cintra, do Deecrim (Unidade Regional de Departamento Estadual de Execução Criminal), Lima é hipertenso e, assim, ele se enquadra no grupo de pessoas mais vulneráveis à Covid-19 e, por isso, corre risco de morte se continuar no sistema penitenciário. (PAGNAN, 2020, s. p.).
O trecho acima é revelador, já que demonstra certo espanto da imprensa a respeito da soltura da liderança do PCC e, especialmente, de essa liberação estar associada a uma autorização judicial para cumprir prisão domiciliar sem estar submetida a qualquer forma de controle, como a monitoração eletrônica, por exemplo. Em boa medida, essa narrativa da Folha de São Paulo vai ao encontro de perspectivas ventiladas por certos setores do poder público sobre o tratamento a ser conferido às pessoas privadas de liberdade durante a pandemia. Entretanto, contraria a Recomendação 62 do CNJ e outras diretrizes emanadas por órgãos internacionais de direitos humanos. Na seção a seguir, analisaremos essa recomendação e as diretrizes com as quais ela converge.
Atentos aos níveis e às condições de encarceramento de certos países, logo após a OMS reconhecer a Covid-19 como pandemia, órgãos como o Subcomitê de Prevenção à Tortura e o Alto Comissariado,16 ambos das Nações Unidas, assim como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,17 propuseram que os governos adotassem algumas medidas urgentes, a fim de evitar que o novo coronavírus causasse danos graves em unidades de privação de liberdade. Conforme tais atores, os riscos representados pelo vírus nos cárceres, no que tange à transmissão e ao dano, são muito maiores em comparação aos efeitos causados na população em geral. A proximidade das pessoas presas em face da superlotação, as parcas possibilidades de distanciamento social, a má alimentação, a falta de remédios e de materiais de higiene, assim como os problemas de ventilação e higiene nos estabelecimentos penais, fomentam a propagação da doença.
Por conseguinte, com base em normativas internacionais de direitos humanos,18 os entes propuseram algumas recomendações aos estados. A maioria tem como objetivo diminuir os níveis de encarceramento e a alta ocupação carcerária, como sistematizado na tabela a seguir:

A Recomendação n° 62 do CNJ seguiu a mesma lógica dessas organizações e estipulou uma série de diretrizes às administrações prisionais e aos tribunais de justiça estaduais. Em resumo, a recomendação indica que sejam criados planos de contingências nos estabelecimentos penais e que seja reduzida a superlotação das unidades prisionais. Especificamente sobre este segundo ponto, entre outros aspectos, recomendou-se:

Cabe destacar, ainda, que o CNJ não anteviu a suspensão das visitas familiares, tampouco esse tipo de medida foi previsto pelos órgãos internacionais. Ao contrário, indicou-se que fossem desenvolvidas ações voltadas à garantia de saúde dos visitantes e dos presos, bem como ao asseio dos espaços onde os encontros familiares costumam ser realizados nos cárceres. Entretanto, conforme o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), de todas as unidades da federação, 17 suspenderam por completo as visitas familiares desde o início da pandemia, incluindo São Paulo, o que gerou revolta entre presos, como narrado na seção anterior. Já 10 estados mantiveram os encontros nos cárceres com restrições. 19
De fato, o CNJ tem apontado para o parco efeito da sua recomendação nos sistemas de justiça criminais de distintas localidades. Entre março e maio de 2020, somente 35 mil pessoas foram liberadas de unidades prisionais para cumprirem prisão domiciliar e/ou se submeterem à monitoração eletrônica. Esse número corresponde a uma taxa de apenas 4,6% do total de pessoas em privação de liberdade, excluídas as em regime aberto e os presos em delegacias. Ou seja, um contingente baixo em um país onde a taxa de superlotação gira em torno de 170%, de acordo com o DEPEN. 20 Apesar de não terem sido disponibilizados dados específicos sobre a liberação de presos em São Paulo, é possível destacar que o número geral de solturas especificado pelo CNJ certamente não conseguiu reverter os problemas causados pelo enorme contingente carcerário estadual, submetido a forte superlotação.
A resistência em liberar grupos de presos pode ser interpretada como resultado de ações fomentadas pelos níveis mais altos do Poder Executivo, com impacto direto no trabalho dos operadores do direito. Em abril de 2020 foi publicada uma reportagem a respeito de uma “ofensiva” do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, contra a soltura de custodiados em razão da pandemia. E, como quase sempre é abordado em discussões dessa natureza (DUARTE; ARAÚJO, 2020), o PCC foi retratado na matéria como um grave problema social. Tal como disposto na notícia já analisada, relativa à soltura de uma liderança organizacional, pontuou-se que vários integrantes do grupo poderiam ser beneficiados com medidas de liberação, o que geraria insegurança à população. “A questão opõe Moro ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que recomenda o habeas corpus temporário a pessoas que fazem parte de grupos de risco da Covid-19, como portadores do HIV e idosos” (GIELOW, 2020, s. p.).
Essa mesma reportagem também advertiu que, embora o Poder Executivo paulista faça oposição pública ao governo federal, ambos estavam alinhados no enfrentamento às ações do dito “crime organizado” em cenário de pandemia. “Em São Paulo, centro nervoso do sistema e berço do PCC (Primeiro Comando da Capital), os órgãos de segurança estão de prontidão” (idem). Inclusive, a Folha de São Paulo apontou que tal mote de ação tinha ganhado forte apoio popular, manifestado, segundo a matéria, na aprovação positiva conferida a Moro como ministro da Justiça e Segurança Pública. Não à toa, durante a coletiva de imprensa em que se demitiu do cargo, como forma de prestação de contas das tarefas desempenhadas, ele revelou que:
Nós atuamos muito próximos das forças de segurança estaduais, até mesmo municipais. Nós realmente trabalhamos duro contra a criminalidade organizada. Ouso aqui dizer, claro que tudo isso é sujeito a críticas e segundas opiniões, mas que não houve um combate tão efetivo à criminalidade organizada como houve durante essa gestão do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Trabalhando não contra, mas com os governos estaduais. Tivemos o caso, por exemplo, da transferência e isolamento das lideranças do PCC. Tivemos recentemente a prisão da maior autoridade do PCC em liberdade, 20 anos foragido, graças a um trabalho de investigação eficiente da Polícia Federal. (LEIA..., 2020, s. p.).
Em outros termos, o combate ao “crime organizado”, em boa medida personificado no PCC, é uma ação considerada prioritária por atores dos poderes executivos federal e do estado de São Paulo. E, apesar de a literatura da área salientar as más condições prisionais e a negação de direitos a grupos marginalizados como alguns dos fatores que propiciaram o nascimento e o crescimento do PCC, certos segmentos do poder público buscam combater o grupo acentuando essas mesmas violações. A narrativa do medo, amplamente divulgada pelos jornais, reduz a compreensão popular do que está em jogo na Recomendação 62, criando ambiente favorável para que os atores do sistema judiciário relutem em soltar os custodiados de forma a garantir seus direitos à saúde e à vida. O resultado se refete nos baixos índices de solturas registrados pelo CNJ e no fortalecimento, junto aos grupos marginalizados, da narrativa do PCC como seu defensor contra as injustiças.
Diante da resistência em seguir a Recomendação 62, o que se observou foi o avanço da Covid-19 nas prisões. Segundo o CNJ (2020), entre 8 de abril – data da confirmação do primeiro caso de pessoa presa infectada – e 31 de agosto – data limite para as análises aqui desenvolvidas –, o número de presos infectados pelo novo coronavírus passou de dois para 20.879 custodiados, conforme evolução apresentada no Gráfico 1. Entre servidores do sistema prisional, o crescimento também foi intenso, saindo de um caso em 2 de abril de 2020 para 8.524 em 31 de agosto de 2020. Nesse mesmo intervalo de tempo, o número de óbitos por Covid-19 entre pessoas privadas de liberdade passou de dois para 104. Entre servidores do sistema prisional, avançou de dois para 79, totalizando 183 mortos.

Somente em São Paulo, entre março e 31 de agosto, foram confirmados 4.724 presos e 1.366 servidores infectados por Covid-19. Esses dados parecem até tímidos frente ao amplo universo de pessoas privadas de liberdade no estado. No entanto, em diálogo a essa observação, o CNJ também ressaltou o forte quadro de sub-notificação a respeito da pandemia nas prisões, além de outros pesquisadores já terem chamado a atenção à questão (PRANDO et al., 2020).
Sabendo que o Brasil é um dos países do mundo onde menos são feitos testes entre os diferentes grupos populacionais, é provável que as somas de pessoas infectadas e mortas sejam, na verdade, muito maiores do que as indicadas pelas estatísticas oficiais. O cenário pode ser ainda mais dramático dentro das prisões, onde se sobrepõem uma estrutura facilitadora da propagação do vírus, um acesso precário à saúde e, por consequência, um déficit ainda maior de testagem. Em verdade, talvez nunca conheçamos efetivamente os resultados de todo esse quadro, já que o controle social do sistema prisional, se já escasso em condições de “normalidade”, torna-se quase inexistente com a suspensão das visitas familiares observada na maioria dos estados.
Há muito, Adorno (1991) indicou que toda ação governamental que tenta incidir sobre o sistema carcerário precisa considerar a presença de organizações criminais. Isto é, iniciativas públicas de qualquer ordem não podem ignorar as forças que disputam a formulação de políticas prisionais e as tensões enfrentadas no exercício do controle sobre a massa carcerária. No limite, certos atores criminais gerariam modelos de cultura organizacional, dispondo de papel fundamental no fracasso e no sucesso de determinadas medidas estabelecidas.
Não se trata aqui de dizer que atores estatais de altos cargos devem legitimar a ação de grupos criminosos, tratando-os como sujeitos com papel formal no processo de formulação de políticas. Neste ponto, a crítica de Elio Gaspari, apontada na introdução deste artigo, pode ser considerada como válida. No entanto, vale questionar se o Estado legitima as ações criminais a partir de declarações como as do então ministro Luiz Henrique Mandetta ou se essa legitimação acontece como efeito de uma negação sistemática de direitos a populações empobrecidas, contexto parcialmente suprido por grupos criminosos.
Em outras palavras, os dados apresentados neste texto apontam para uma violação dos direitos à saúde e à vida de pessoas custodiadas em meio à pandemia. De igual maneira, desvela também a conformação de um cenário de tensão, no qual o PCC assume mais uma vez – como faz historicamente ao longo de toda sua trajetória – um papel de defensor dos presos. Em grande medida, ocorre, pois, uma validação, ainda que não planejada, do discurso de “paz entre os irmãos e guerra contra o sistema” que paira entre os custodiados, suas famílias e suas comunidades (FELTRAN, 2018; DIAS, 2011; BIONDI, 2010, 2014).
Em consequência, em meio a tantos discursos e disputas, as demandas de organizações criminais em alguns momentos coincidem com normas legais do Estado desrespeitadas no cotidiano dos cárceres e das periferias. Isto nos leva a duas constatações. A primeira é a de que as exigências proferidas por grupos de presos devem ser escutadas e consideradas na formulação e na execução de políticas públicas prisionais. Ou seja, para dificultar que organizações como PCC se transformem em emissários centrais dos pedidos dos custodiados, cada vez mais se faz necessário o fortalecimento de canais formais de denúncia do Estado, como as ouvidorias dos sistemas prisionais, os mecanismos de prevenção à tortura e a Defensoria Pública. Não à toa, organizações internacionais recomendaram a criação e o reforço desses dispositivos durante a pandemia do novo coronavírus.
Em segundo lugar, negar o direito à vida e à saúde dos presos sob a justificativa de uma “guerra” contra o PCC parece fortalecer, mais uma vez, a retórica da organização criminal. Há de se lembrar que a proporção entre os mais de 700 mil custodiados do país integrantes do PCC é relativamente pequena. Portanto, mobilizar essa porcentagem para ratificar a violência cotidiana sobre todos pode ser considerado não só violador como também perigoso. No limite, pode impelir sujeitos que não estejam vinculados ao PCC a reconhecer o crime (e não o Estado) como defensor dos seus direitos. A “metáfora da guerra” problematizada por Leite (2012) continua a permear a configuração social brasileira, quiçá de maneira ainda mais intensa nos últimos tempos. O PCC é identificado com a figura do inimigo, e ao contrário do que pretensamente buscam alcançar, atores estatais acabam por fomentar a “acumulação social da violência”, como salientado por Misse (1999, 2009).
Se, nos anos 1990, o PCC se fundou a partir da necessidade de articulação entre as pessoas privadas de liberdade contra um “inimigo” comum, a ameaça agora vem também em formato de vírus. É neste bojo que convergem as lógicas dos grupos criminais, do CNJ, dos órgãos sanitários e de organizações de direitos humanos: a preservação da vida torna-se prioritária a todos esses atores. Em se tratando de uma doença altamente infecciosa, como a Covid-19, as formas de se atingir essa preservação também confluem. No âmbito carcerário, tal ação só pode ser efetuada com o esvaziamento das unidades superlotadas. Como essas medidas não são adotadas de forma satisfatória no país, ocorre a super contaminação dos indivíduos custodiados e uma atualização do antagonismo entre “nós” – presos, criminosos e/ou pobres – e “eles” – o sistema, a Justiça e as classes mais abastadas. A situação consolida a desumanização das pessoas privadas de liberdade, realidade perene no país, o que acaba por revigorar o cenário ideal ao fortalecimento de organizações criminais, como o PCC.
A garantia de direitos a todos os cidadãos, pilar indispensável de um Estado democrático, nunca se efetivou no Brasil, mesmo na pós-redemocratização. Populações marginalizadas por questões raciais, étnicas, econômicas e/ou sociais muitas vezes recebem o tratamento diametralmente contrário ao previsto em lei. E as políticas penais que ensejam o encarceramento em massa, pautadas por forte seletividade, são um braço desse Estado violador e segmentador.
Em cenários de fortes pressões, como o prisional, conjuntos de indivíduos tendem a criar sentimentos de coesão, semeando terreno fértil à criação e ao fortalecimento de organizações criminais, como o PCC. A consolidação do grupo se aprofunda a partir de um misto de violência impetrada por seus membros sobre indivíduos que considera como infratores e dos ganhos financeiros auferidos por meios ilícitos. De igual maneira, o PCC também se torna mais robusto a partir de uma retórica e de ações que implicam a defesa de direitos formais, típicos do Estado democrático, mas que, na prática, não se materializam para todos.
A pandemia do novo coronavírus surge, então, como ferramenta potencializadora das diversas variáveis dessa configuração. Quando órgãos estratégicos à pauta penal se negam a seguir as diretrizes nacionais e internacionais de defesa à saúde e à vida dos custodiados, a violação de direitos, que já é uma realidade perene para a população prisional, se aprofunda. Por sua vez, ao denunciar a situação insustentável, ao buscar a articulação com agentes do direito e ao anunciar a contratação de advogados para garantir a efetivação de medidas de contenção da pandemia entre os presos, promovendo a soltura de pessoas com saúde vulnerável, o PCC se fortalece como representante de uma população marginalizada.
Portanto, usar a organização criminal discursivamente para continuar a negar direitos fundamentais aos custodiados de todo o país, tal como vem sendo realizado por certos atores públicos, implica deixar o ambiente prisional mais suscetível ao grupo criminal que dizem querer combater. Instaura-se um ciclo vicioso que articula Estado e PCC sob uma mesma lógica, cujo resultado se distancia cada vez mais dos preceitos de um Estado democrático de Direito. Para romper esse curso, escutar as demandas da população aprisionada por vias formais e atendê-las dentro dos princípios da dignidade humana são medidas fundamentais.


