Resumo: Este ensaio apresenta o direito à saúde como direito humano no contexto da pandemia da COVID-19. Primeiramente, aproxima saúde e direitos humanos em termos conceituais, apresentando uma perspectiva latino-americana a partir da vulnerabilidade. Em seguida, analisa criticamente os modelos de pesquisa e intervenção em saúde, reconstruídos a partir das políticas em relação ao HIV/AIDS, para pensar o direito à saúde e as políticas de saúde em tempos de COVID-19. Na sequência, apresenta os resultados de uma investigação de abril de 2020 sobre as preocupações e demandas de profissionais de saúde diante da pandemia que estava começando na Argentina. Por fim, discute o problema da morte e recapitula desafios essenciais para considerar o direito à saúde ou, mais amplamente, o vínculo entre saúde e direitos humanos em relação à pandemia COVID-19 e o que está por vir.
Palavras-chave: COVID-19, Saúde, Direitos Humanos, América Latina, Argentina.
Abstract: This essay presents the right to health as a human right, in the context of the COVID-19 pandemic. First, it analyzes health and human rights from a Latin American perspective based on vulnerability. Second, it critically examines the models of research and intervention in health, reconstructed from the policies in relation to HIV/AIDS, to think about the right to health and health policies in times of COVID-19. Third, it presents the results of a research about the perceptions and demands of health professionals in the face of the pandemic that was starting in Argentina in April 2020. Finally, it discusses the problem of death and recapitulates essential challenges to consider the right to health or, more broadly, the link between health and human rights in relation to the COVID-19 pandemic and what is to come.
Keywords: COVID-19, Health, Human rights, Latin America, Argentina.
Resumen: Este ensayo presenta el derecho a la salud como un derecho humano, en el contexto de la pandemia COVID-19. Primero, aproxima la salud y los derechos humanos en términos conceptuales, presentando una perspectiva latinoamericana basada en la vulnerabilidad. Luego, analiza críticamente los modelos de investigación e intervención en salud, reconstruidos a partir de las políticas en relación al VIH/SIDA, para pensar en el derecho a la salud y las políticas de salud en tiempos del COVID-19. A continuación, presenta los resultados de una investigación realizada en abril de 2020 sobre las inquietudes y demandas de los profesionales de la salud ante la pandemia que se estaba iniciando en Argentina. Finalmente, se discute el problema de la muerte y recapitula desafíos esenciales para considerar el derecho a la salud o, más ampliamente, el vínculo entre salud y derechos humanos en relación a la pandemia de COVID-19 y lo que está por venir.
Palabras clave: COVID-19, Salud, Derechos humanos, América Latina, Argentina.
Artigo
Covid-19 na perspectiva de vulnerabilidade e direitos humanos: reflexões desde Argentina
Covid 19, vulnerability and human rights: reflections from Argentina
Covid 19 en perspectiva de vulnerabilidade y derechos humanos: reflexiones desde Argentina
Recepção: 20 Outubro 2020
Aprovação: 05 Fevereiro 2021
Neste ensaio1 proponho pensar o direito à saúde como direito humano, no contexto da pandemia da COVID-19. Em primeiro lugar, apresentarei as coordenadas conceituais que representam uma sinergia entre saúde e direitos humanos. Em segundo lugar, apresentarei os pontos centrais de uma perspectiva latino-americana que pensa a saúde a partir da vulnerabilidade e dos direitos humanos. Em terceiro lugar, recupero uma análise crítica dos modelos de pesquisa e intervenção em saúde, reconstruídos a partir das políticas em relação ao HIV/AIDS, para pensar o direito à saúde e as políticas de saúde em tempos da COVID-19. Em quarto lugar, volto às conclusões de uma investigação de abril de 2020 sobre as preocupações e demandas de profissionais de saúde diante da pandemia que estava começando na Argentina. Na sequência, refiro-me ao problema da morte e do fim da vida. Por fim, recapitulo esses desafios que me parecem essenciais para considerar o direito à saúde ou, mais amplamente, o vínculo entre saúde e direitos humanos em relação à pandemia COVID-19 e o que está por vir.
A ideia central é que o direito à saúde não se limita a certas garantias de acesso à prevenção, promoção e tratamento, mas sim que seu exame deve considerar num sentido amplo o vínculo entre saúde e direitos humanos, determinado pelas estruturas sociais e processos históricos, e as regulamentações e ações do Estado. Ao apresentar tais temas, procurarei exemplificá-los ou pensar sobre eles a partir do fenômeno que vivemos atualmente com a pandemia da COVID-19, bem como dos desafios colocados pelas medidas implementadas para enfrentá-la, especialmente aquelas relacionadas à “quarentena”, isolamento social ou distância social (que na Argentina foram batizadas como Isolamento Social Preventivo Obrigatório e como Distância Social Preventiva Obrigatória).
A saúde e os direitos humanos têm dimensões individuais e coletivas e constituem linguagens para dar sentido ao bem-estar ou desconforto de indivíduos e grupos sociais. Como muitos outros aspectos da vida, percebemos o valor de ter boa saúde ou de gozar dos direitos quando eles faltam. Ao sentirmos dores físicas, se a qualquer momento temos uma deficiência que não nos permite nos mover (uma fratura de tornozelo, por exemplo), quando começamos a perder a visão ou recebemos o diagnóstico de uma doença grave ou fatal, percebemos o quão importante é a boa saúde, não só para o nosso cotidiano e nossas relações pessoais, mas para exercer o conjunto de direitos que a princípio deveriam nos ser garantidos: ir trabalhar ou estudar, constituir família, viajar, mudar-se, votar... Vida e saúde são, então, condições para poder exercer qualquer um dos direitos que temos. O mesmo acontece quando os direitos humanos são violados, especialmente quando isso ocorre de forma sistemática: em tempos de prisões arbitrárias, desaparecimentos, tortura, censura à liberdade de expressão, por exemplo, percebemos com mais nitidez o valor do respeito aos direitos humanos para nossa liberdade e nosso bem-estar individual e coletivo. A formalidade dos direitos é, cruelmente, substancial. Em suma, o gozo da saúde e dos direitos, num quadro de garantias, é um fator determinante na qualidade de vida individual e coletiva.
A ideia que proponho aqui é simples. De um amplo universo de autores e autoras, opto por retornar a Jonathan Mann e outros (2000) que levantaram a ideia de que existe uma sinergia entre saúde e direitos humanos. Essa ideia pode ser resumida das seguintes formas:
A seguir, revisarei e discutirei cada uma delas, discutindo suas implicações sociológicas.
1. Políticas e programas de saúde têm efeitos sobre os direitos humanos (Saúde → Direitos Humanos)
Já mencionei que ter uma doença ou deficiência2 pode afetar o exercício dos direitos humanos, incluindo a titularidade dos direitos (uma pessoa com deficiência intelectual, por exemplo, pode ser privada de seus direitos políticos). Como Amartya Sen (2002) apontou em “Por que equidade em saúde?”, se morremos não podemos gozar de nenhum direito. Quando estamos doentes, não podemos trabalhar, escrever textos, viver o amor, estudar, fazer greve ou protestar. A saúde precária ameaça a possibilidade de exercer quase todos os nossos direitos, sejam eles econômicos, sociais, culturais ou quaisquer que sejam. Isso tanto em nível individual quanto coletivo.
Não apenas a saúde afeta os direitos, mas as políticas de saúde também podem ter um impacto positivo ou negativo sobre eles. Podem contribuir para criar ou melhorar as condições de exercício dos direitos, mas também podem violá-los. Como vemos agora com a quarentena, as políticas de saúde muitas vezes limitam, por meio de algum tipo de equilíbrio razoável, legítimo e legitimado, o exercício dos direitos individuais. O caso mais conhecido é o das vacinas: pode-se recusar a vacinação ou vacinar as crianças, em nome de direito individual, mas mesmo assim o Estado determina que certas vacinas são “obrigatórias”. Os movimentos anti-vacinas, que de tempos em tempos ganham certo grau de visibilidade pública, recorrem a um discurso “libertário” para questionar a vacinação de seus filhos e filhas. Se fossem casos muito isolados, esses “egoístas” (caronas)3 não causariam tantos danos: quando praticamente todo mundo está vacinado e poucos não, pouco ou nada acontece. Mas se um certo limiar de não imunizados é ultrapassado, doenças hoje erradicadas da face da Terra ou muito controladas reaparecem retumbantemente, como o sarampo recentemente.
Não existe princípio ou algoritmo que permita determinar a priori quando as limitações e imposições do Estado em matéria de saúde são razoáveis e legítimas, e quando são injustificadamente arbitrárias e autoritárias. Determinar o grau de razoabilidade e legitimidade das medidas que são e devem ser obrigatórias e universais (no sentido de que “todos” devem cumprir as medidas para que sejam eficazes) é um desafio crucial para nossos Estados modernos e nossas democracias. É um equilíbrio difícil, principalmente em contextos de incerteza como o atual, que afeta todos e cada um dos planos de nossas vidas.
Quarentenas ou isolamento social preventivo obrigatório são, por definição, medidas que limitam alguns direitos básicos individuais e da população. Por exemplo, o direito de andar na rua, trabalhar ou ir à escola. Em tempos normais, ninguém poderia defender, em um Estado democrático de direito, que o Estado proíba sair de casa, exercer um trabalho honesto ou tentar aprender e ensinar. Porém, diante de uma pandemia (ou diante de alguma catástrofe natural ou do risco dela, como um furacão) existem medidas restritivas que adquirem razoabilidade e legitimidade. Foi o que aconteceu com a COVID-19 em quase todos os países do mundo. Retornaremos a isso mais tarde. Por ora, quero apenas salientar que a implementação de políticas de saúde pode, por definição e regularmente, impactar os direitos das pessoas, e é por isso que todas as políticas de saúde afetam os direitos humanos de uma forma ou de outra. Assim, as políticas de saúde sempre têm uma dimensão ética em jogo. A pandemia torna isso trágico, dramático, exagerado e diário. Mas isso não é exclusivo das pandemias.
No cumprimento dos objetivos da Saúde Pública, podem ocorrer violações dos direitos humanos e práticas discriminatórias, às vezes com más intenções, mas também com a melhor das intenções. Violações de direitos podem ocorrer na avaliação de uma determinada situação: muitas vezes há questões relacionadas à confidencialidade dos dados, à estigmatização de comportamentos, à visibilidade ou invisibilidade de certas condições ou populações, e a priorização ou não de certos problemas de saúde ou sociais.
Conforme alerta a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2020) e suas diretrizes sobre a proteção do direito à confdencialidade, privacidade e uso de dados pessoais de pessoas com COVID-19, reapareceram as tensões do coronavírus relacionadas a todos esses aspectos: como implementar uma política de detecção de contatos infectados, curados, sem invadir a privacidade e sem estigmatizar, e ao mesmo tempo fazê-lo de forma rápida e exaustiva? Como tornar visíveis os contextos de surto (casas, bairros, cidades, países) sem despertar comportamentos discriminatórios e até violentos? Vimos isso em bairros populares, em instituições fechadas (algumas já estigmatizadas, como prisões ou estabelecimentos de saúde mental), ou em certos estados e cidades fronteiriços (com outros países, com outros estados). Como avaliar e atuar nos contextos de contágio em lares de idosos ou instituições de saúde e ao mesmo tempo preservar a confdencialidade dos dados pessoais e a privacidade? A confdencialidade é fundamental: temos visto isso em situações de violência até mesmo com relação àqueles que voltam para suas casas após a alta da internação por COVID-19.
Assim como no levantamento ou diagnóstico de uma situação epidemiológica ou de risco à saúde, as violações de direitos e a discriminação também podem ocorrer no desenvolvimento de políticas, programas e serviços: em termos de implementação, cobertura, grau de adequação dos programas para alcançar objetivos de saúde. O caráter historicamente fragmentário, desigual (em termos de classe, cobertura geográfica etc.) e desarticulado do sistema de saúde na Argentina se traduz em desigualdades sistemáticas de acesso a insumos de todos os tipos: equipamentos de proteção individual, exames, tratamentos, protocolos de pesquisa, leitos, informação. A resposta à COVID-19 na Argentina tem sido – ao que parece – um caso sem precedentes de uma tentativa de articulação inter-jurisdicional e inter-setorial (sistema público, obras sociais, privado4), que – esperançosamente – resulta em menos discriminação e desigualdade no momento mais crucial, ou seja, quando a saturação da cobertura de terapia intensiva atinge seu ponto máximo.
Com o coronavírus, os diferenciais de acessibilidade conhecidos (vinculados ao emprego e nível socioeconômico, local de residência, tipo de cobertura) são atualizados e se cruzam com outros marcadores de diferença que podem se tornar marcadores de desigualdade: em particular, a idade. Por se tratar de uma doença que afeta mais os idosos, a variável geracional é aqui introduzida como uma dimensão da discriminação a ser considerada na perspectiva dos direitos humanos. Além disso, no caso desta pandemia, os trabalhadores da saúde são duplamente afetados: como atores da resposta e como uma das categorias particularmente vulneráve is à infecção, doença e morte. As desigualdades entre os subsistemas de saúde refetem-se não apenas nas experiências dos usuários, mas também daqueles que atuam na área da saúde: a percepção de falta de equipamentos de proteção individual ou o grau de multiemprego é maior no setor público do que privado (ORTIZ et al., 2020).
Efeitos discriminatórios ou de violação de direitos também podem ocorrer nas etapas de monitoramento e avaliação das políticas de saúde: o que é medido, como é medido, quais indicadores são utilizados e considerados válidos? As discussões permanentes sobre registro e sub-registro, notificações, acessibilidade de dados, sobre a “curva” de infecções e óbitos, números absolutos e taxas de testagem, contágio, mortalidade e letalidade referem-se ao monitoramento da pandemia e avaliação da quarentena. Alguém cinicamente disse que o achatamento da curva achatou a economia: em ambos os casos (“saúde”, “economia”) estamos falando de humanos e direitos humanos. Em ambos os casos podem ser apresentados dados, com aspecto científico, que visam a ocultar as mortes evitáveis com medidas de saúde e o empobrecimento com medidas sociais, apresentando-as como frios indicadores de cálculos econômicos de custo-eficácia, em benefício exclusivo do “capital” ou sabe-se lá de quem.
Por fim, as questões sobre políticas e direitos de saúde referem-se aos cidadãos para os quais essas políticas apontam: de quais “sujeitos” estamos falando? De quais “projetos de felicidade” (AYRES, 2002)? Diz-se que as políticas de saúde visam à promoção da saúde de sujeitos que não são meros objetos, simples alvos de políticas, mas sujeitos de sua saúde, de sua própria vida e dos seres queridos, numa relação de cuidado e autocuidado. Nesse sentido: como compatibilizar, tornar inteligível, adequar, uma política de saúde, em relação às circunstâncias e projetos de vida de cada uma das pessoas e sujeitos sociais? Como inscrever as mensagens de prevenção, promoção da saúde e cuidado nas narrativas que os sujeitos constroem sobre suas próprias vidas? Como compatibilizar medidas como a quarentena com o cotidiano das pessoas, em contextos heterogêneos e desiguais? Essa pergunta pode ser traduzida, banalmente, em como conciliar, por exemplo, a prevenção do contágio em espaços públicos compartilhados e o desejo ou necessidade de sair para correr como prática física e como “projeto subjetivo de felicidade”? Na Argentina, a discussão sobre os corredores (GENDLER; HIJÓS, 2020) tem se dado com bastante má fé e cruzada por outras discussões, mas permite ilustrar o dilema das políticas de saúde: como fazer que uma mensagem de saúde (não fazer sexo sem camisinha, não comer açúcar processado, não sair para correr ou brincar com as crianças no parque) seja compatível ou até possa contribuir para os projetos de felicidade das pessoas (“estou apaixonada e não quero usar camisinha”, “o bolo foi feito pela minha mãe e comi sempre assim”, “para mim correr é vital”, “as crianças precisam sair de casa”)?
Como criaturas diante de uma picada de vacina, devemos saber explicar (nós) e entender que a dor é temporária e o benefício individual e coletivo é duradouro. Aí vem outro ponto das políticas de saúde e de toda política pública: para ter sucesso em termos éticos e efetivos, toda política democrática deve envolver os sujeitos, os grupos sociais, a comunidade, em todas as etapas (no desenho, na implementação, na avaliação). Isso já é difícil em tempos normais; na urgência da pandemia fica ainda mais complicado.
2. As violações dos direitos humanos têm efeitos na saúde (Direitos Humanos → Saúde).
Este ponto, o do impacto das violações dos direitos na saúde, é óbvio quando falamos de violações graves dos direitos humanos. A tortura obviamente tem consequências para a saúde física e mental das vítimas. A privação ilegal de liberdade, as condições superlotadas das prisões ou a falta de respostas à violência de gênero trazem consequências físicas e traumáticas para quem as sofre que podem deixar um impacto persistente e duradouro.
O impacto das desigualdades nos direitos econômicos, sociais e culturais sobre a saúde também é evidente e documentado: indicadores sócio-demográficos de acesso a direitos muitas vezes se traduzem em indicadores de morbidade e mortalidade. Os indicadores educacionais são traduzidos naqueles de mortalidade infantil, indicadores de pobreza nos de prevalência de tuberculose e outras doenças transmissíveis etc. Da mesma forma, o acesso desigual à informação afeta a saúde individual e de certos grupos sociais. A criminalização de algumas práticas (como o aborto) produz efeitos negativos na saúde individual e coletiva que não são distribuídos aleatoriamente, mas são determinados por diferenças de classe, sexo, idade e status de imigração, entre outros.
Por fim, a discriminação histórica e sistemática, ou a falta/menor reconhecimento de direitos a determinadas categorias da população, que poderiam ser conceituadas como violações da dignidade, têm efeitos na saúde, que ainda precisam ser documentados. Em outras palavras, o estigma social frequentemente se traduz em doença psicofísica e morte.
Em relação ao coronavírus, gostaria de comentar a seguinte história: durante as primeiras semanas da COVID-19 na Argentina um jornalista me perguntou sobre o paradoxo que se viu na cidade de Buenos Aires, segundo o qual a epidemia de dengue afetou os bairros mais pobres, enquanto o coronavírus afetou os mais ricos. Isso se deveu, na época, à alta proporção de casos de COVID-19 vinculados a viagens, ou seja, pessoas que haviam retornado de férias na Europa, Estados Unidos, Brasil ou Ásia. Eu disse ao jornalista: “Dá tempo ao coronavírus, você vai ver como o mapa vai ser revertido”. Não sou epidemiologista e menos ainda tinha informações precisas sobre a nova pandemia naquela época, mas quem conhece um pouco das condições de vida da nossa população podia prever o que aconteceu: se para evitar o contágio há que ficar em casa, quando não há casa – ou não há água em casa, ou não há esgoto em casa – isso é difícil ou impossível. E assim acontecia nos bairros e vilas da região metropolitana de Buenos Aires. Quando o vírus entra em uma favela, as condições de moradia e a superlotação tornam muito difícil o controle da transmissão viral. O que aconteceu em muitos bairros são casos típicos: a violação do direito à moradia digna, do direito ao acesso à água, transporte e alimentação etc. se traduz quase mecanicamente em uma probabilidade maior de contrair a infecção.
3. A promoção e proteção da saúde e a promoção e proteção dos direitos humanos estão fundamentalmente ligadas (Saúde ↔ Direitos Humanos)
Saúde e direitos, direitos e saúde mantêm uma relação sinérgica: maior e melhor saúde implica maior respeito pelos direitos, maior e melhor respeito pelos direitos implica melhor saúde individual e coletiva. A ideia de que há sinergia entre saúde e direitos é o ponto central que me interessa destacar aqui neste ensaio.
O direito à saúde não é apenas uma questão de acessibilidade a serviços de saúde (seja de titularidade legal de um direito ou das condições materiais ou simbólicas para exercê-la), recursos disponíveis, instituições de maior ou menor qualidade, mas faz parte do cerne do direito ter direitos, nas palavras de Hannah Arendt. A garantia do direito à saúde é, portanto, condição para a titularidade e exercício de todos os direitos humanos.
A pandemia e a quarentena de COVID-19 levam essa constatação ao extremo: nos desafam a pensar a sinergia entre saúde e direitos de forma trágica, como nas tragédias gregas ou de Shakespeare. Obriga-nos a escolher, decidir, pesar, falar, como cidadãos e como sociedade. Mostra-nos as desigualdades, interesses e problemas que não são de ontem nem de hoje, mas resultam de estruturas sociais e processos históricos de longa data. Refetiremos sobre isso na seção a seguir.
Nesta seção, introduzo uma abordagem da vulnerabilidade e dos direitos humanos, e uma categoria, a da vulnerabilidade programática. Essa abordagem e essa categoria nos permitirão examinar o direito à saúde em tempos de COVID-19 a partir de uma perspectiva crítica quanto ao papel do Estado e dos cidadãos em relação à saúde.
Existem diferentes maneiras de conceituar e medir as chances que indivíduos e grupos têm de sofrer de doenças, danos ou morrer prematuramente. Pode-se falar em risco – que se refere a probabilidades e razões estatísticas – e pode-se falar em vulnerabilidade, que se refere a condições estruturais e históricas que tornam determinados indivíduos e grupos mais expostos a certas doenças ou eventos negativos. A abordagem do risco, de origem epidemiológica, dá ênfase ao indivíduo e adquiriu uma carga social de estigma (a que se refere à noção de “grupo de risco”). A abordagem da vulnerabilidade coloca mais ênfase no caráter relacional e no caráter potencialmente político que permitem transformar as condições que tornam indivíduos e grupos vulneráveis. Como vimos, existem grupos e indivíduos que são mais vulneráveis que outros à COVID-19: a idade avançada e certas predisposições ou co-morbidades definem categorias da população e indivíduos com maior probabilidade de sofrer consequências negativas da infecção. Mas a probabilidade de se infectar, adoecer e morrer não é apenas uma questão biológica individual. É social e política.
A abordagem da vulnerabilidade e dos direitos humanos (PAIVA et al., 2018) sustenta que os fenômenos de saúde, morbidade e mortalidade devem ser enfrentados em contextos estruturais e históricos que produzem condições diferenciadas diante de determinados aspectos, como neste caso o surgimento de um vírus que se torna uma pandemia. Dentro dessa abordagem, há uma categoria, a da vulnerabilidade programática, que nos interessa especialmente. Vulnerabilidade programática é aquela que deriva do tipo e grau de intervenção do Estado (em sentido amplo: do conjunto das políticas do Estado e da sociedade civil em matéria de saúde, sociais e de direitos humanos).
O conceito de vulnerabilidade designa um conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados a uma maior suscetibilidade de indivíduos e comunidades ao sofrimento ou dano e, inseparavelmente, menor disponibilidade de recursos para sua proteção (PAIVA et al., 2018). As análises da dimensão individual da vulnerabilidade, próximas ao paradigma do risco, partem da concepção do indivíduo como estando em relação. A vulnerabilidade individual refere-se a várias dimensões dos indivíduos que os tornam mais ou menos suscetíveis a determinado dano ou doença: sexo, idade, co-morbidades atuais e anteriores, predisposições, conhecimentos, atitudes, práticas, crenças, biografias (sedentarismo, tabagismo...). Esta dimensão da vulnerabilidade é bem conhecida, e para a COVID-19 já existem evidências de fatores (por exemplo, a idade) que tornam as pessoas e grupos bastante ou muito mais vulneráve is ao desenvolvimento de formas graves da doença. Não são apenas dimensões biológicas (sexo, idade), mas também sociais (informações que o indivíduo possui, seus medos, por exemplo). Voltaremos a esse ponto na próxima seção.
A dimensão social da análise da vulnerabilidade busca enfocar os aspectos contextuais que compõem as vulnerabilidades individuais. Nesta dimensão, há vários aspectos a considerar, tais como relações econômicas, relações de gênero, relações raciais, relações entre gerações, crenças religiosas e religiosidade, pobreza, exclusão social ou os modos de inclusão/exclusão que mantêm a desigualdade. A dimensão social da vulnerabilidade, com a COVID-19, é decisiva e se refete nas estatísticas de morbimortalidade em cada um dos países do mundo. A dimensão social surge quando se consideram as relações sociais de trabalho: o setor de saúde e outros empregos “essenciais” são categorias particularmente expostas, não por sua “natureza”, mas pela natureza de seus empregos, organizados de forma a controlar a transmissão do coronavírus com grau variável de sucesso. A dimensão social também aparece quando se leva em conta as relações de gênero (e fenômenos sistematicamente determinados por elas, como violência, cuidado de crianças, idosos, pessoas com deficiência), relações inter-geracionais (de acordo com os contextos culturais e socioeconômicos, que colocam em maior ou menor risco diferentes gerações), habitat, distâncias dos serviços básicos e disponibilidade de transportes públicos, situação laboral (trabalho no setor público ou privado, formal e informal, trabalho autônomo, desemprego), a presença de crianças em casa, até mesmo a presença de animais de estimação.
As dimensões individual e social da vulnerabilidade em saúde são bem conhecidas e evidenciadas. Talvez a novidade da abordagem, para cientistas sociais da Argentina, seja a proposta de vulnerabilidade programática que desenvolveram Jose Ricardo Ayres, Vera Paiva e outros colegas brasileiros, adotada por várias e vários latino-americanos (PAIVA et al., 2018). Os serviços de saúde estão atentos às relações entre os diversos contextos sociais locais e a dinâmica do processo saúde-doença observada em seu território? Estão fomentando a construção de respostas capazes de problematizar e superar essas relações? Essas são as questões que a dimensão programática da análise da vulnerabilidade busca responder. É necessário saber como as políticas e instituições, especialmente as de saúde, educação, assistência social, justiça e cultura, atuam como elementos que reduzem, reproduzem ou aumentam as condições de vulnerabilidade dos indivíduos em seus contextos. A vulnerabilidade programática refere-se a um Estado (no sentido amplo) que “não vem depois” para dar respostas – melhores ou piores, mais amplas ou mais restritas – ao sofrimento e aos danos, mas está desde o início produzindo aquelas condições que se voltam a indivíduos e grupos diferencialmente e particularmente vulneráveis.
A pandemia de COVID-19 evidenciou esse aspecto em um caso bastante óbvio para quem faz ciências sociais ou trabalha no território (KESSLER et al., 2020): déficits estruturais em termos de acesso à água potável e esgoto, acesso a refeitórios e alimentos não são um problema para a resposta do Estado acerca da pandemia, mas, em vez disso, produzem vulnerabilidade e risco diante dela. Algo semelhante pode ser dito a respeito do subfinanciamento histórico do sistema de saúde argentino: não é o simples enfraquecimento da resposta do Estado (bem como sindical e privada) a um coronavírus até então desconhecido, mas antes a produção da vulnerabilidade a esse novo fenômeno. A falta de equipamentos de proteção individual, a precariedade do emprego, os baixos salários, a falta de leitos e instrumentos, a precariedade da rede laboratorial não são apenas elementos que dificultam a resposta; a precariedade do sistema de saúde produz vulnerabilidade: como aquela expressa grosseiramente pelos elevados dados de morbimortalidade por coronavírus entre os profissionais de saúde, bem como o esgotamento, o estresse e o desconforto registrados entre eles.
Em suma, a vulnerabilidade programática torna-se visível em momentos de urgência e emergência. Não vem de agora, não é um elemento ad hoc de vulnerabilidade, não se refere apenas à resposta, mas à produção do fenômeno. Veremos na pós-pandemia se a sociedade aprende com a experiência e leva a sério a vulnerabilidade que o Estado e a sociedade civil contribuem para (re)produzir por meio de políticas inadequadas, insuficientes e/ou insustentáveis.
Nesta seção retornarei a um esboço de modelos de pesquisa e intervenção em saúde, com o único propósito de mostrar que as respostas à pandemia COVID-19 só podem ser efetivas se forem levados em consideração os direitos, inclusive o direito à saúde, e as condições estruturais (político-econômicas) que possibilitam os comportamentos de autocuidado e de cuidado com os outros.
Podemos definir três modelos para abordar a prevenção da transmissão do HIV (PARKER 2000; MANZELLI; PECHENY, 2003), aos quais retornamos aqui para ilustrar esquematicamente como abordar a pesquisa e a intervenção no que tange à COVID-19.
Modelo 1: O modelo epidemiológico-comportamental, com foco nos comportamentos de risco individuais, visa a modificá-los por meio da intervenção cognitiva na informação, percepção do risco, percepção do controle do próprio comportamento, autoconfança e atitudes dos diferentes grupos da população diante da doença. O modelo parte do pressuposto de que as pessoas são sujeitos racionais, capazes de considerar os custos e benefícios das alternativas e de fazer uso das informações à sua disposição. As pessoas comparam os custos com os benefícios ou danos esperados e tomam as decisões presumidas que melhor contribuem para seu interesse próprio e bem-estar pessoal. A ênfase é colocada nas crenças e expectativas das pessoas sobre os custos e consequências da realização de comportamentos preventivos, ou seja, sobre os processos mentais subjacentes à tomada de decisão. As intervenções serão orientadas então para a mensuração dessas atitudes, comportamentos e crenças e as propostas de ações de prevenção serão orientadas para as mudanças individuais. No “modelo de crenças em saúde”, por exemplo, a ênfase é colocada na percepção (ou não percepção) do risco que os indivíduos possuem, o que atuará como um gatilho para uma mudança para comportamentos saudáveis. No caso do coronavírus, trata-se de divulgar os riscos associados ao contágio, as formas de se infectar, as formas de prevenir ou reduzir o risco de contágio. Em suma, para que ocorra a modificação do comportamento, é necessário “medo” e informação. Mas isso não é suficiente.
Modelo 2: O modelo antropológico-cultural, centrado nos sentidos que os sujeitos atribuem às suas práticas em determinados contextos, tenta modificar as normas e valores que potenciam os riscos e os comportamentos preventivos e incentiva a promoção daquelas normas e valores que viabilizam comportamentos saudáveis. O modelo enfatiza os significados que os sujeitos atribuem às práticas preventivas e de risco, a partir do seu pertencimento a contextos culturais específicos. Este modelo surge como resposta à insuficiência do modelo cognitivo-epidemiológico para aplicar com sucesso a mudança de um comportamento de risco para um saudável. Normas e valores sociais são levados em consideração e sua configuração específica em diferentes culturas ou subculturas é analisada. As teorias incorporam questões sociais e culturais mais amplas, que funcionam como condicionadores importantes de mudanças comportamentais seriam incluídas aqui.
Por exemplo, em relação à COVID-19, é necessário mostrar como a transgressão das regras, que em alguns setores argentinos é paradoxalmente percebida como um valor positivo, pode se traduzir em riscos não só para o indivíduo, mas para outros mais vulneráveis e para os profissionais de saúde. Autores como Guillermo O’Donnell (2004) ou Carlos Nino (2005) assinalaram uma característica particular da cultura argentina, a saber, uma resistência espontânea a qualquer hierarquia ou a qualquer regra, como se a exigência de reconhecimento da autoridade ou de respeito às leis fosse sempre e por princípio autoritária e arbitrária; de sorte que a rebeldia é também por princípio de alguma maneira legítima. O não compartilhamento do mate, ou mais amplamente, a questão da distância física como proximidade social, por exemplo, também são aspectos relacionados a valores compartilhados sobre os quais é necessário intervir para possibilitar comportamentos de autocuidado e de cuidado.
Modelo 3: O modelo político-econômico ou político-social, baseado na mobilização comunitária, visa a reduzir a vulnerabilidade social mais do que a individual, considerando que a desigualdade estrutural, de acordo com clivagens de classe, gênero, subcultura, estilos de vida etc., está na base da progressão da pandemia. O modelo parte da ideia de que as desigualdades econômicas e sociais estão na base de qualquer epidemia e argumenta que estas constituem obstáculos estruturais às mudanças de comportamento em direção àqueles saudáveis. Este modelo substitui a ideia de risco individual pelo conceito de vulnerabilidade social e individual, conforme avançamos na seção sobre vulnerabilidade e abordagem dos direitos humanos.
As intervenções preventivas serão direcionadas para o ativismo comunitário, no território, mobilizado para defender os direitos das pessoas afetadas e grupos sociais vulneráveis. Paramos de analisar o risco percebido em termos de comportamento individual, para nos concentrarmos na vulnerabilidade estruturada e socialmente condicionada. Esta conceituação implica mudanças nas respostas à pandemia, daquelas mais tecnocráticas às mais participativas e políticas. Só intervindo nas condições estruturais (mesmo fsicamente, na organização espacial dos ambientes de trabalho), nos direitos (incluindo o de acesso a medicamentos, testes e infraestrutura de saúde de acordo com a gravidade e os riscos decorrentes da infecção) e com um Estado envolvido, será possível intervir de forma efetiva e sustentável. Isso pode, por sua vez, se dar no nível de uma jurisdição, um país ou mais globalmente.
Os três modelos delineados não são exclusivos, mas respondem a diferentes eixos de prevenção e intervenção. Eles foram desenvolvidos em relação à epidemia de HIV/AIDS, cujos tempos (não agudos ou “urgentes”) e modos (doenças sexualmente transmissíveis, não contagiosas por via respiratória ou por contato) não são os desta pandemia de coronavírus.
Enquanto o primeiro modelo aponta para a modificação ou consolidação dos conhecimentos, crenças e atitudes que influenciam os comportamentos individuais, o segundo modelo reconhece que os sujeitos são guiados por diretrizes, códigos e normas, por “jogos de linguagem”, que estão socialmente estabelecidos. A partir desse segundo modelo, resgata-se a análise cultural e situada de símbolos e significados construídos intersubjetivamente em torno do risco, do cuidado, da sociabilidade, das prioridades pessoais. O terceiro modelo é baseado na evidência de que os sujeitos se comportam não apenas com base em suas atitudes individuais e orientações sociais, mas também com base nos recursos estruturais de que dispõem. Tais recursos – materiais e simbólicos – são desigualmente distribuídos, segundo diferentes clivagens sociais.
Uma política abrangente que respeite os direitos deve levar em conta as intervenções nesses três níveis. Das ciências sociais, não podemos deixar de questionar o “deveria ser” biomédico, que supõe “bons” e “maus” pacientes, “bons” e “maus” cidadãos, resgatando as complexas vivências dos sujeitos, indo além dos indicadores epidemiológicos e das atitudes racionais ou irracionais dos indivíduos e incluindo aspectos de economia política e desigualdade estrutural. O sucesso técnico das medidas sanitárias deve ser enquadrado na realização prática e subjetiva de garantir os vários projetos (muitas vezes contraditórios) de bem viver e de felicidade.
Em junho de 2020, juntamente com um grupo de colegas (ORTIZ et al., 2020), publicamos um artigo na revista Medicina sobre “Preocupações e demandas em relação ao COVID-19. Inquérito ao pessoal de saúde”. O objetivo do trabalho, cujo campo foi realizado no início de abril passado, era indagar sobre as condições que determinam o clima organizacional segundo a percepção dos profissionais de saúde dos três subsetores do sistema de saúde na Argentina (subsistemas público, sindical e privado), cerca de um mês após o registro do primeiro caso de coronavírus no país.
As dimensões investigadas foram: liderança, comunicação, recursos institucionais, coesão/gestão de conflitos e formação. O projeto teve uma componente quantitativa, através de 5.670 inquéritos aos trabalhadores e uma componente qualitativa, através de 50 entrevistas com informantes-chave.
A dimensão mais frequentemente percebida como inadequada foram os recursos institucionais, sendo a disponibilidade de equipamentos de proteção individual apontada como uma das principais preocupações. Resumindo os principais achados, posso apontar que, à época do estudo, os profissionais de saúde percebiam graves déficits em suas organizações quanto às condições necessárias para o enfrentamento da pandemia, com diferenças entre subsetores do sistema. Com exceção da vacinação contra influenza, foram registrados melhores índices na percepção de todas as variáveis da dimensão “recursos institucionais” no subsetor privado/sindical do que no setor público. As principais e mais difundidas preocupações naquela época eram o medo de contágio e de colocar em risco a família e, em segundo lugar, a falta de disponibilidade de equipamentos de proteção individual. Trabalhar em condições adversas e com poucos insumos não é algo novo ou incomum, mas na situação da COVID-19 a falta de equipamentos de proteção foi considerada inaceitável. Além disso, houve demandas por estratégias de contenção do pessoal de saúde, bem como por uma comunicação institucional clara e uniforme.
Trago os resultados desta pesquisa como exemplo para mostrar que o direito à saúde não é um fenômeno que só pode ser abordado pelo lado da demanda, ou seja, pelo lado dos usuários, dos pacientes, dos cidadãos, mas também do grupo de trabalhadores e profissionais de saúde, cujos direitos são parte integrante de uma visão integral do direito à saúde: por um lado, como trabalhadores e profissionais, com direitos trabalhistas (salários, condições e meio ambiente de trabalho, biossegurança e higiene, reconhecimento social) que impactam não só na sua qualidade de vida, mas também – o que a COVID-19 coloca na ordem do dia como questão central – ao nível da sua vulnerabilidade. O multiemprego, a transferência entre instituições e mesmo entre jurisdições, de pessoal hospitalar e de saúde (médicos, enfermeiros, bem como pessoal de segurança, limpeza e administrativo), não só indica insegurança no trabalho ou baixa remuneração, mas também, no contexto de uma pandemia, produz riscos para si e para terceiros. As infecções em instituições para idosos/as e serviços de saúde têm a ver com a exposição ao vírus, é claro, mas também com a movimentação constante entre os espaços por onde as infecções podem estar circulando. Da mesma forma, a falta de insumos e infraestrutura, e mesmo a mera percepção ou medo de um possível déficit nesses quesitos, contribuem para o estresse, o desgaste e ameaçam a qualidade do atendimento e, portanto, o direito à saúde da população. Nos termos que propomos acima, a falta de insumos e infraestrutura faz parte da dimensão programática da vulnerabilidade. Não se trata de uma resposta melhor ou pior do nosso sistema de saúde, mas da produção de vulnerabilidade – para profissionais e pessoal de saúde, para a população como um todo – por anos e décadas de políticas de subfinanciamento e deterioração do sistema.
A CIDH (2020) propõe diretrizes para a proteção dos direitos dos trabalhadores de saúde e atenção que cuidam de pessoas com COVID-19, aspecto incontornável, uma vez que essas pessoas são atores centrais na resposta à pandemia e também uma das categorias mais afetadas. Os meses de pandemia e isolamento social preventivo e obrigatório expuseram essas situações e envolveram esforços sem precedentes para fortalecer a infraestrutura, suprimentos e recursos humanos. Não descreverei ou detalharei esses esforços aqui, mas a capacidade das unidades de terapia intensiva, centros de isolamento, fornecimento de equipamentos e desenvolvimento de novas tecnologias teve um ritmo que provavelmente não foi registrado em outros períodos da nossa história. Da mesma forma, podem ser destacadas as tentativas de articulação intersetorial e interjurisdicional.
No entanto, a pandemia COVID-19 está mostrando tanto os déficits históricos do nosso sistema de saúde quanto as vantagens de ter um sistema de saúde público (e sindical e privado) que, no entanto, considera e reconhece a saúde como um direito universal e cidadão. Agora, para que esse direito seja efetivo, é necessário ter políticas de saúde integrais, que não se limitem às políticas de saúde, mas incluam as políticas sociais e cidadãs em relação ao conjunto dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem discriminação.
Por fim, gostaria de levantar uma questão que a COVID-19 colocou no centro da agenda do direito à saúde e que se refere ao fim da vida. Ele, bem como seu processamento pelo sistema de saúde, está em crise, não só pelos óbitos causados pela COVID-19, mas em geral. Restrições de acompanhamento e comunicação nas fases finais, solidão, cuidados paliativos, o próprio processo de morrer, bem como as práticas de luto, são aspectos que a pandemia suscitou na sua urgência e tragédia.
A partir do CONICET, formou-se uma Rede para pensar essas questões e foi produzido um Documento (RED, 2020) sobre o assunto:
As instituições e equipes de saúde hoje enfrentam um dilema em relação aos pacientes em final de vida. Por um lado, respeitar as medidas de isolamento e distanciamento obrigatórias. Por outro lado, dar ao paciente e ao seu meio afetivo o direito de se despedir pessoalmente e após a morte. São impostas recomendações para humanizar, facilitar e garantir processos éticos centrados nas pessoas [...]. Numa situação de pandemia, o sofrimento se aprofunda, por isso a assistência médica deve levar em conta muito especialmente a integralidade do cuidado. A morte isolada, e na solidão, impõe uma condição de sofrimento insuspeito e agrava, para o paciente, para sua família e/ou ambiente afetivo e para a sociedade como um todo, as consequências emocionais no processo de despedida e luto.
Em outubro de 2020, o governo federal adotou esses princípios para regular a questão na Argentina. Em algumas instituições de saúde foram estabelecidos protocolos, mas o tema merece um debate social que em tempos de urgência da pandemia são difíceis. Dito isso, o processo de fim da vida faz parte do direito à saúde e é um aspecto pendente do debate na Argentina e na América Latina em geral.
Por outro lado, têm surgido documentos de especialistas e comitês de ética para a eventual triagem de pacientes em contextos trágicos produzidos pela saturação do sistema de saúde, em decorrência do crescimento de infecções que requerem hospitalização (fenômeno que nos propomos examinar não como um processo de “história natural da doença” ou pandemia, mas sim como um processo co-determinado pelas políticas de saúde atuais e políticas de saúde de longo prazo). Dentre os documentos, vale citar o texto produzido por Rivera López et al. (2020) e todo o volume da referida publicação.
Neste ensaio procurei contribuir para a reflexão sociológica sobre o direito à saúde em relação à COVID-19 na Argentina. Em primeiro lugar, afirmei que o direito à saúde não é um algo particular e separável do conjunto de direitos, mas um elemento central da construção dos direitos humanos, condição necessária do direito a ter direitos. Parece-me que a sinergia dos direitos à saúde é responsável por esse feedback e, no contexto do coronavírus, isso aparece em cada um dos tempos e espaços de nossas vidas. Em segundo lugar, a abordagem de vulnerabilidade e direitos humanos fornece o conceito de vulnerabilidade programática. Essa concepção mostra como o Estado e a sociedade não aparecem “depois” da eclosão da pandemia para tentar dar respostas, mas sim contribuem estrutural e historicamente para a produção de vulnerabilidades diferenciais segundo parâmetros de desigualdade social, que se traduzem em condições desiguais de exercício do direito à saúde. Em terceiro lugar, uma revisão de diferentes modelos de pesquisa e intervenção em saúde ilustra até que ponto não há política efetiva ou pesquisa sólida se as condições estruturais em que ocorre o processo saúde-doença-cuidado não são levadas em consideração, condições que são construídas por meio da linguagem dos direitos – incluindo o direito à saúde. Em quarto lugar, queria destacar a importância do pessoal de saúde como ator da resposta e como categoria vulnerável, que é preciso considerar para pensar o direito à saúde de forma integral. Por fim, fiz uma breve menção ao processo de fim da vida, que a COVID-19 coloca no centro das atenções, mas que faz parte das dívidas pendentes de reflexão e legislação sobre o direito à saúde.