Resenha

Movimentos sociais de afro-latinos: tensionamentos políticos entre ativistas negros e Estados na “Améfrica Ladina”

Afro-Latino social movements: political tension between black activists and states in “Améfrica Ladina”

Movimientos sociales afrolatinos: tensión política entre activistas negros y estados en “Améfrica Ladina”

Viviane Gonçalves Freitas
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Movimentos sociais de afro-latinos: tensionamentos políticos entre ativistas negros e Estados na “Améfrica Ladina”

Revista Sociedade e Cultura, vol. 24, e66407, 2021

Universidade Federal De Goias (UFG)

RODRIGUES Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia.. 2020. Curitiba. Appris

Recepção: 28 Outubro 2020

Aprovação: 18 Dezembro 2020

O ano de 2020 deixou a sensação de que vivemos bem mais do que doze meses. Além da pandemia da Covid-19, da necessidade de isolamento social, de alterações em nossas rotinas de trabalho e convivência, vimos as desigualdades socioeconômicas se aprofundarem mais, no Brasil e em vários outros países. Nesse contexto, as opressões de gênero e raciais ganharam contornos ainda mais complexos, principalmente quando consideramos quem os maiores contingentes de violência representam.

Segundo o Atlas da Violência 2020, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e divulgado em agosto de 2020, entre 2008 e 2018, o percentual de homicídios entre pessoas negras no Brasil cresceu 11,5%, enquanto que entre pessoas não negras caiu 12,9% (ADORNO, 2020). Como aponta outra pesquisa – o Monitor da Violência, levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e pelo FBSP –, houve um aumento nas estatísticas de feminicídio durante os seis primeiros meses de 2020, em comparação ao mesmo período de 2019, sendo que 73% das vítimas de homicídio foram mulheres negras (REDAÇÃO RBA, 2020). Somado a isso, o mundo presenciou uma onda de protestos sob o slogan Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), após o assassinato por estrangulamento do afro-americano George Floyd, por um policial branco, em 25 de maio deste ano, em Minneapolis, nos Estados Unidos.

É nesse contexto que Cristiano Rodrigues lança o livro Afrolatinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia (Appris, 2020), resultado de sua pesquisa de doutorado em Sociologia, realizado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Embora a defesa tenha ocorrido em 2014, um dos méritos do livro é a ampliação de escopo, uma vez que a análise da obra chega até o ano de 2019, permitindo, quanto ao contexto brasileiro, abordar as eleições de 2018 e o debate sobre mandatos coletivos. Quanto à Colômbia, o Processo de Paz, que se estendeu de 2012 a 20161, e suas consequências também são contemplados. Além – e principalmente – de o autor conseguir trazer um panorama sobre a insurgência conservadora, não apenas na região, mas também em vários outros países de democracia ocidental.

Cabe destacar que, segundo Rodrigues (2020), embora o combate às desigualdades raciais não tenha sido tratado de maneira específica na Constituição de 1988, sua promulgação é um importante marco para as mudanças que ocorreram a partir dos anos 1990. Um dos exemplos de valorização da cultura afro-brasileira e que, ao mesmo tempo, marca uma abertura do estado a demandas dos movimentos negros é a criação da Fundação Palmares, que o atual governo, diuturnamente, vem em contrapartida negando a importância e o papel de heroínas e heróis nacionais negras/os na construção da sociedade brasileira (G1, 2020).

A obra em tela é a utilização na prática do que Lélia Gonzalez (2018 [1988]) chamou de “Améfrica Ladina”, ou seja, entender a sociedade brasileira e outras da região a partir de si mesmas e, principalmente, pensar as relações raciais tendo por base o contexto latino-americano, ou, no entendimento da flósofa e ativista, pela perspectiva dos ladinoamefricanos. O debate racial comparativo entre Brasil e Colômbia traz, assim, diversos pontos convergentes: (a) a negação do passado escravista e a construção de uma identidade nacional mestiça; (b) o mito da democracia racial brasileiro, no sentido de uma ilusória “igualdade racial”, e a ideologia da mestiçagem colombiana, que pressupunha a integração de indígenas e europeus, mas excluía os negros, na propagada “diversidade étnico-cultural”; (c) o racismo e a exclusão social sempre presentes, de diversas maneiras; (d) o discurso oficial celebratório da miscigenação coexistente a formas sutis e persistentes de discriminação racial; (e) a pluralidade de reivindicações e a alteração de agenda ao longo do tempo, e (f) as relações fragilizadas entre estado e cidadãos devido à dimensão do racismo estrutural em ambos os países. Também é importante frisar que as teses e dissertações anteriores a esse trabalho, que abordaram paralelos entre os contextos do Brasil e da Colômbia em relação aos afrodescendentes (BEJARANO, 2010; SILVA; 2012; SANTOS, 2012; MENDES, 2014) foram devidamente creditadas pelo autor como seu ponto de partida e referencial para a pesquisa que intencionava desenvolver.

Assim, Afro-latinos em movimento debate como a experiência negra no mundo tem sido encarada como um “ato provocador ou mesmo opositor de insubordinação política” (GILROY apudRODRIGUES, 2020, p. 27). Mas vai além, ao apresentar o intercâmbio acadêmico-militante, o que nos faz remeter à obra O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação, de Nilma Lino Gomes (2017). Segundo a autora:

O corpo negro não se separa do sujeito. A discussão sobre regulação e emancipação do corpo negro diz respeito a processos, vivências e saberes produzidos coletivamente. Isso não significa que estamos descartando o negro enquanto identidade pessoal, subjetividade, desejo e individualidade. Há aqui o entendimento de que assim como “somos um corpo no mundo”, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo. A identidade se constrói de forma coletiva, por mais que se anuncie individual. [...] O corpo negro nos conta uma história de resistência constituída de denúncia, proposição, intervenção, revalorização. (GOMES, 2017, p. 94-95).

A permeabilidade ou não do Estado, no Brasil e na Colômbia, é fator primordial para se entender a lógica dos processos dos movimentos negros, a elaboração de políticas públicas e a construção do perceber-se negro/a ou afrodescendente. Isso tem a ver com o sentimento de ameaça quanto a mudanças profundas, e incomoda, acende o alerta acerca de privilégios e status que não se quer ver alterado. É importante ressaltar aqui o papel das agências internacionais para fomentar debates e políticas públicas, seja ainda nos anos 1950, por meio de pesquisas financiadas pelo Projeto Unesco sobre preconceito e discriminação, seja os incentivos e mobilizações que ocorreram após a Conferência de Durban, em 2001. Nos dias atuais, Flavia Rios, Ana Cláudia Pereira e Patrícia Rangel (2017) também nos lembram que o impacto dos movimentos negros como movimentos sociais não se refete em sua presença na política institucional. Quando estávamos às vésperas das eleições municipais de 2020, ainda nos questionávamos se o percentual do fundo de campanha e de tempo na TV a fim de contemplar candidaturas negras de fato traria alterações no perfil de eleitos/as (AMORIM, 2020). Passada a apuração dos votos, temos que mulheres negras e pessoas LGBTI, consideradas grupos sub-representados na política institucional, ampliaram sua participação nas câmaras municipais, mas a luta por equidade de direitos e pela implementação de políticas públicas está apenas começando (ROCHA, 2020).

Didaticamente, cabe destacar os quadros sobre ações afirmativas que Rodrigues (2020) apresenta nos capítulos 3 (Propostas legislativas e executivas sobre ações afirmativas 1983-2018 [Brasil]) e 4 (Propostas legislativas e executivas voltadas para a população afro-colombiana 1981-2011). Nesse resumo panorâmico, de como os processos para a ampliação dos direitos da população negra em ambos os países ocorreram, é possível também remontar aos conceitos de política de presença e política de ideias, de Anne Phillips (2001), em especial, ao que a autora estadunidense considera como o mais adequado, ou seja, a coexistência das duas perspectivas de atuação.

Em outra linha de abordagem, embora o livro apresente uma referência aos movimentos por moradia, em centros urbanos como São Paulo, a partir de pesquisas de Luciana Tatagiba, em sua maioria compostos por negros/as, o autor não chega a se aprofundar a respeito da ação de negros/as como produtores rurais com menores áreas (menos de 5 hectares) e de agricultura familiar (AGÊNCIA PÚBLICA, 2019), sendo importante parcela dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e afins. No entanto, cabe aqui questionar: O movimento negro brasileiro, diferentemente do colombiano, teria mesmo um perfil mais urbano, visto que grande parcela dos produtores rurais, de assentamentos e de agricultura familiar são negros/as? É possível fazer esse diálogo entre essas duas realidades e contextos distintos? E mais: violência no campo é também racista?

O livro termina com uma conclamação aos repertórios contestatórios, como marchas e protestos de rua, no sentido de entendê-los como o que propicia o tensionamento político entre organizações do movimento negro e o estado. Em meio à espera pela tão desejada vacina contra o novo coronavírus e vendo as políticas públicas sendo destruídas a passos largos, num quase ilusório resquício de democracia, resta-nos a pergunta: Como fazer isso? Rodrigues (2020) não nos dá a resposta em sua obra, mas abre janelas que nos permitem ver que outras perspectivas são possíveis ao voltar o olhar a nós mesmos. Obra essencial para compreender não apenas os afrodescendentes, mas a Améfrica Ladina de sua singular intérprete, Lélia Gonzalez.

Referências

ADORNO, Luís. Em 11 anos, homicídio de negros sobe 11,5%, em outros grupos, cai 12,9%. Uol, São Paulo, 27 ago. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-no-ticias/2020/08/27/em-dez-anos-homicidio-de-negros-sobe-12-de-brancos-cai-11-diz-atlas.htm. Acesso em: 28 out. 2020.

AGÊNCIA PÚBLICA. Produtores rurais negros são maioria, mas têm as menores propriedades. Carta Capital, São Paulo, 20 nov. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/produtores-rurais-negros-sao-maioria-mas-tem-as-menores-pro-priedades/. Acesso em: 21 out. 2020.

AMORIM, Felipe. STF tem 5 votos a 1 a favor de verba para negros já nas eleições 2020. Uol, Brasília, 25 set. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/09/25/stf-julga-de-ver-ba-proporcional-para-candidatos-negros-ja-nas-eleicoes-2020.htm. Acesso em: 28 out. 2020.

BEJARANO, Juan Pablo Estupiñan. Qual é a sua raça? Censos, classificações raciais e multiculturalismo na Colômbia e no Brasil. Salvador, 2010. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

G1. Presidente da Fundação Palmares exclui Marina Silva da lista de personalidades negras do órgão. G1, Brasília e São Paulo, 13 out. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/13/presidente-da-fundacao-palmares-exclui-marina-silva-de-lista-de-personalidades-negras-do-orgao.ghtml. Acesso em: 28 out. 2020.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da Amefricanidade. In: GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. Diáspora Africana: União dos Coletivos Pan-africanistas, 2018. p. 321-334.

MENDES, Pedro Vitor Gadelha. A agenda política dos movimentos afro-latinos: Brasil e Colômbia de 2001 a 2011. São Paulo, 2014. Dissertação (Mestrado em Integração da América Latina) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

PHILLIPS, Anne. De uma política de ideias a uma política de presença? Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 1, dez. 2001, p. 268-290.

REDAÇÃO RBA. Índice de feminicídio aumenta em 2020, e mulheres negras são as principais vítimas. Rede Brasil Atual, São Paulo, 17 set. 2020. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/09/feminicidio-2020-mulheres-negras/. Acesso em: 28 out. 2020.

RIOS, Flavia; PEREIRA, Ana Cláudia; RANGEL, Patrícia. Paradoxo da igualdade: gênero, raça e democracia. Ciência e Cultura, Campinas, v. 69, p. 39-44, 2017.

ROCHA, Camilo. A maior representatividade nas câmaras municipais sob análise. Nexo Jornal, São Paulo, 16 out. 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/11/16/A-maior-representatividade-nas-câmaras-municipais-sob-análise. Acesso em: 17 out. 2020.

RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba: Appris, 2020.

SANTOS, Márcio André de Oliveira dos. Políticas raciais comparadas: movimentos negros e estado no Brasil e na Colômbia (1996-2006). Rio de Janeiro, 2012. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

SILVA, Vera Regina Rodrigues da. Entre Quilombos e Palenques: um estudo antropológico sobre políticas públicas de reconhecimento no Brasil e na Colômbia. São Paulo, 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

VILELA, Pedro Barbabela de Mello. La paz sin las mujeres ¡No va!: um estudo sobre os ativismos interseccionais feministas nos processos de construção da paz na Colômbia. Belo Horizonte, 2020. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020.

Notas

1 Sobre o Processo de Paz da Colômbia, indico a dissertação “La paz sin las mujeres ¡No va!: um estudo sobre os ativismos interseccionais feministas nos processos de construção da paz na Colômbia”, de Pedro Barbabela de Mello Vilela, defendida em 2020, no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCP-UFMG), sob a orientação da Profª Drª Marlise Matos.
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