Resenha
Raça, gênero e classe na perspectiva de bell hooks
Race, gender and class from the perspective of bell hooks
Raza, género y clase desde la perspectiva de bell hooks
HOOKS B.Libanio Bhuvi. “E eu não sou uma mulher?”: Mulheres negras e feminismo. 2020. Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos |
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Recepção: 12 Novembro 2020
Aprovação: 14 Abril 2021
Historicamente expostas à dinâmica de exploração alavancada pelo racismo e pelo sexismo, as mulheres negras deixaram de ser coadjuvantes e tornaram-se protagonistas na produção científica sobre a própria população e na organização política de resistência à violência sistêmica à qual estão expostas. O livro E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo, da ativista e professora do Berea College, bell hooks, é mais um exemplo de trabalhos cujo impulso fundamental localiza-se nas relações raciais e de gênero estabelecidas na vida em sociedade – em especial, no modo como tais relações moldam o pesquisador e o sujeito da pesquisa.
O livro, que teve sua segunda edição traduzida e publicada em 2020, resulta do encontro entre ativismo político e produção acadêmica. Em Eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo, bell hooks aposta na teoria feminista para a libertação não somente da opressão sexista, mas do racismo, da exploração de classe e outras violações operadas da vida social. Ao longo do texto, a autora discute a relação entre sujeitos brancos e negros nos Estados Unidos, tendo como objetivo a análise das opressões sofridas pelas mulheres negras, suas ações frente a essa violência e como a teoria política feminista pode e deve ser usada em nome da libertação de todas as mulheres.
No prefácio à segunda edição de 2015, bell hooks apresenta sua relação pessoal com o feminismo, enfatizando o momento em que escreveu o presente livro, ainda na graduação. Relembrando a dificuldade das acadêmicas feministas brancas em relacionar raça, gênero e classe para entender as opressões às quais a mulher negra encontra-se exposta, hooks justifica a necessidade da discussão ali realizada.
Já na introdução, a autora aponta como as mulheres negras, constantemente, são levadas a ignorar a opressão sexista que sofrem e considerar somente a violência racial. Hooks analisa as leis de sufrágio estadunidenses, frequentemente, para apontar as tensões raciais e sexistas que tangenciam sujeitos negros e brancos: quando à época, as discussões sobre o direito ao voto eram foco das feministas, tramitava no governo a possibilidade de o direito não ser estendido às mulheres, mas aos homens negros. A autora relata como prontamente as mulheres brancas reivindicaram a aliança da raça com os homens brancos para impedir isto. Em meio a essa tensão, localiza-se a mulher negra, cuja escolha é entre ser a favor do voto dos homens negros e apoiar o sexismo, ou colocar-se ao lado de feministas brancas e racistas. Para bell hooks, esse é um perfeito exemplo da impossibilidade de se separar os conflitos de gênero e raça nas mulheres negras, uma vez que ambos são faces imutáveis de um mesmo sujeito.
No primeiro capítulo, “Sexismo e a experiência da mulher negra escravizada”, a autora contextualiza historicamente as violações que a mulher negra sofreu na condição de escravizada, tendo seu corpo subjugado à violência racial, mas também à violência e objetificação sexual fundamentada na organização patriarcalista da sociedade, forçada a trabalhos domésticos e reprodutivos. Os estupros e assédios sofridos pelas mulheres negras expõem uma violência que era em si uma demonstração política de poder e dominação, que impôs às mulheres negras o lugar de subserviência, recorrendo aos estupros como método de terrorismo institucionalizado. Essa análise do período escravagista se apresenta como um importante ponto de partida ao relacionar os impactos da escravidão enquanto processo econômico nos corpos das mulheres negras: a mulher negra escravizada teve até mesmo seu útero a serviço do capital quando forçada à reprodução.
No capítulo seguinte, “A desvalorização contínua da mulher negra”, bell hooks aponta que a destruição da integridade sexual da mulher negra para fins econômicos não acabou com o fim do período escravagista: ela se perpetuou e atravessou a psique dos estadunidenses, moldando a imagem que se tem das mulheres negras na contemporaneidade. Para a autora, “(...) a exploração sexual das mulheres negras continuou por muito tempo depois do fim do período da escravidão e foi institucionalizada por outras práticas opressivas” (HOOKS, 2020, p. 103), como a ausência de leis que as protegessem da violência sexual ou a deslegitimação, em tribunais e delegacias, das acusações feitas por mulheres negras contra homens brancos. Para bell hooks, essa desvalorização não é pura causalidade ou consequência do ódio racial perpetuado previamente, mas um método de controle social.
É a partir dessas prerrogativas que bell hooks desenvolve sua discussão acerca de raça, gênero e classe, com ênfase na mulheridade negra. A autora relata que um dos principais meios de desvalorizar a mulher negra é pelo estigma, cuja construção estereotipou mulheres negras como “más” e incapazes de serem fiéis a seus parceiros. O objetivo era inibir homens brancos de se casarem com mulheres negras: em uma sociedade capitalista, racista e patriarcal, quando uma mulher branca e rica se casa com um homem negro, ela legalmente adota seus status, e, assim, uma mulher negra ao casar-se com um homem branco adota igualmente o status do marido, o que, para a autora, consolida uma ameaça à hegemonia construída pelos pequenos grupos de homens brancos formadores de opinião da sociedade estadunidense. O processo de elaboração do ódio, preconceito racial e sexismo especificamente voltado para as mulheres negras estaria assim fundamentado nas relações de poder e dominação existentes na vida social, perpetuando velhas castas.
No capítulo 3, “Imperialismo do patriarcado”, bell hooks considera que o patriarcado é uma norma cultural de identidade que concede poder, privilégio e prestígio a partir da masculinidade. O discurso do patriarca diz basear-se na biologia humana, mas é fundamentalmente político – um meio de conectar os homens. Para a autora, o racismo não permitiu que homens brancos e negros se conectassem de verdade, mas isso foi possível de certa forma quando os homens negros buscaram o reconhecimento da sua virilidade por meio da reprodução de valores sexistas. A autora demonstra que comportamentos violentos e sexistas, como a cafetinagem – que objetifica e vende o corpo feminino –, são um exemplo da capacidade dos homens negros de desvalorizar as mulheres negras e não negras como cúmplices do patriarcalismo.
No quarto capítulo, “Racismo e feminismo”, bell hooks afirma que a construção social dos EUA faz com que os sujeitos não compreendam a origem do mal que sofrem mesmo vivenciando a dor do ódio racial, pois não conseguem refletir crítica e historicamente sobre ele. Para ela, quando as instituições de ensino, em todas as instâncias, excluem ou desvalorizam o debate racial no seu currículo, sucede a produção de um conhecimento limitado acerca do racismo enquanto ideologia, impactando a vida de todos os sujeitos – com destaque para as mulheres negras e brancas no movimento feminista. Esse fato ficaria explícito na ausência de um recorte racial nos movimentos que defendem o fim do sexismo, uma das grandes problemáticas no que diz respeito à luta contra a opressão sexista nos Estados Unidos – a luta feminista estadunidense, aponta hooks, é marcada pela presença majoritária de mulheres brancas que não desejam repensar raça ou classe.
Enquanto alguns estudiosos vão caracterizar a baixa adesão das mulheres negras aos movimentos feministas como falta de interesse pela causa, bell hooks aponta essa baixa adesão como uma oposição ao uso da teoria feminista de maneira oportunista pelas mulheres brancas de classe média e alta. Em contraponto a esses círculos feministas brancos fechados, surgem círculos de feministas negras, algo que a autora afirma ser uma polarização extrema: as mulheres negras estariam assumindo o lugar de Outro1 excludente designado pela classe dominante. Para a autora, existe a necessidade desses dois círculos se encontrarem para que a discussão racial ocorra e o movimento feminista torne-se combatente dos conflitos raciais e de classe para além da opressão de gênero.
No capítulo 5, “Mulheres Negras e Feminismo”, bell hooks afirma que mulheres negras estadunidenses sempre lutaram pelos direitos de todas as mulheres, ultrapassando o recorte racial, mas que ainda assim eram estigmatizadas pelo movimento feminista branco como unicamente preocupadas com a raça, o que não é verdade. De certo modo, após as leis de apartheid, as mulheres negras voltaram sua atenção para a luta racial em função de sua urgência, mas, para a autora, a afirmação de que mulheres negras não se preocupavam com a libertação das mulheres é uma das maneiras de apagar a participação destas no movimento feminista. Bell hooks estabelece que os relacionamentos entre homens e mulheres, negros ou não, sofrem da tirania do imperialismo, que faz da violência sexista uma necessidade cultural. Assim, homens negros não estarão verdadeiramente livres até deixarem de compactuar com a subjugação das mulheres negras. A autora vai também lamentar a corrupção do movimento feminista pelo sistema patriarcal racista, demarcando que a teoria política feminista nasce como revolucionária, e a reivindica contra todos os níveis de opressão às quais as mulheres estão expostas, para além do sexismo. Nas conclusões do livro, hooks expõe a falha da luta feminista contemporânea ao tentar exterminar a violência sexista sem preocupar-se em alterar as estruturas que sustentam essa violência.
Ao enfatizar o papel da mulher negra na revolução sexista, racial e de classes, bell hooks retoma aquela velha pirâmide socioeconômica, que coloca homens brancos no topo e mulheres negras na base, sem esquecer de questionar o papel da mulher branca e do homem negro na manutenção ou destruição dessa pirâmide. Assim, ao pontuar os diversos níveis de opressão que impactam diretamente a mulher negra e a empurram para a base dessa pirâmide, e a contribuição de cada sujeito na efetivação desse processo hegemônico, hooks ultrapassa as dicotomias que analisam somente a disparidade entre o homem-branco-rico e a mulher-negra-pobre. Bell hooks deixa em evidência a intenção de enriquecer o debate que descentraliza a culpa da violência à qual as mulheres negras estão expostas, analisando os momentos em que outros sujeitos passeiam no limiar que define vítima e algoz. A autora assinala que é nítido o papel da branquitude patriarcal na manutenção de uma hegemonia sexista e racista, mas que é parte desse processo de manutenção a cooptação de sujeitos que são também alvo dessas violências.
O livro é em si uma revisão da literatura existente entre os anos 1970 e 1980, período em que a autora trabalha na obra, até publicá-la, pela primeira vez, em 1981. A pesquisa bibliográfica cujo levantamento buscou por trabalhos sobre mulheres negras para fundamentar sua discussão entre feminismo e mulheres demonstrou a ausência de pesquisas voltadas para esse segmento da população estadunidense: de fato, no próprio texto, bell hooks relata que sempre que os trabalhos acadêmicos mencionavam “negros”, em verdade, referiam-se aos homens negros, e, por outro lado, quando falava-se em “mulheres”, eram, em si, mulheres brancas. Poucas pesquisas, à época, objetivavam o estudo da vida das mulheres negras nos EUA. Essa invisibilização, para bell hooks, era um reflexo do lugar social ocupado por elas na sociedade estadunidense.
A autora, em outras obras, já apontou as falhas deste livro escrito em tenra idade. A ausência de um referencial teórico ao citar teoria política feminista, que nos oriente quando a autora aponta tal teoria como primordial para a libertação não somente do sexismo, mas de outras opressões, é uma das principais a meu ver. Entendo que, ao falar dos movimentos de mulheres negras estadunidense do século XIX, que voltavam suas ações para a comunidade como um todo – crianças, idosos, doentes, portadores de deficiências etc. –, bell hooks busca apresentar ao leitor este outro paradigma do feminismo, que inclui a vida comunitária em amplo aspecto, mas devo dizer que, embora o problema da representação social das mulheres negras na sociedade estadunidense seja apresentado de maneira excelente, isso não ocorre igualmente na solução proposta para o problema.
Tal fato não invalida esta obra riquíssima, de extrema relevância na atualidade dada a situação de vulnerabilidade social das mulheres negras nos Estados Unidos (CARBY, 2004) e no Brasil. Autoras como Lélia González (1984, 2008), Sueli Carneiro (2011) e outras pensadoras negras brasileiras já haviam apontado a urgência de se compreender a especificidade da mulher negra nas dinâmicas de opressão das hierarquias sociais que culminam em desvantagens de origem histórica socialmente atualizadas (CARNEIRO, 2011; MOUTINHO, 2014; BIROLI; MIGUEL, 2015). O diferencial do trabalho é apresentar a teoria política feminista para a resolução desse problema, o que reconheço como uma perspectiva que pode contribuir de forma positiva quando melhor explorada diante da crítica já desenvolvida pela teoria à atividade política liberal, apontando-a como causa da subcidadania de determinados sujeitos em relação a outros (RAMOS, 2016). Em outros trabalhos, bell hooks dá continuidade à crítica dessa teoria, desenvolvendo seu argumento em favor dela, caso o leitor considere adequado para a compreensão da perspectiva que a própria autora apresenta neste livro. De todo modo, recomendo este livro de fácil leitura e compreensão, e que oferece um excelente panorama da situação sócio-histórica das mulheres negras em um trabalho que certamente provocará o leitor na percepção do seu próprio lugar nas hierarquias sociais de gênero e raça.