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Os saberes das águas: interculturalidade e sócio-hidrodiversidade no Cerrado brasileiro1
Water Knowledges: Interculturality and Socio-Hydrodiversity in the Brazilian Savanna
Conocimiento del agua: interculturalidad y sociohidrodiversidad en el Cerrado brasileño
Revista Sociedade e Cultura, vol. 24, e67334, 2021
Universidade Federal De Goias (UFG)

Artigo


Recepção: 26 Setembro 2020

Aprovação: 16 Agosto 2021

DOI: https://doi.org/10.5216/sec.v24.e67334

Resumo: Neste artigo, abordaremos a sócio-hidrodiversidade de povos indígenas e tradicionais da bacia Tocantins-Araguaia com o duplo objetivo de reconhecer seus saberes sobre as águas e contrapor estas percepções ao desenvolvimentismo do modelo agroexportador e mega-hidráulico dominante. Partindo de uma perspectiva pós-colonial, realizamos a escuta a partir de atores situados na região da Chapada dos Veadeiros, no Nordeste goiano, tendo entrevistas semiestruturadas, observação direta e participante como estratégias metodológicas. Exploramos os saberes de sujeitos provenientes dos quilombos do Moinho (Alto Paraíso de Goiás), Capela (Cavalcante) e do município de Colinas do Sul, bem como as cosmovisões dos avá-canoeiros. Como resultados, sublinhamos a importância do diálogo interepistêmico e intercultural para a ressignificação das águas do Cerrado brasileiro em favor de seu uso mais sustentável, o que pode trazer novas respostas aos dilemas civilizatórios que nos expõem a variadas crises.

Palavras-chave: Água, Cerrado, Saber Tradicional, Avá-Canoeiro, Sócio-hidrodiversidade, Chapada dos Veadeiros.

Abstract: In this article, we describe the socio-hydrodiversity of Indigenous and traditional peoples in the Tocantins-Araguaia basin with the dual objective of recognizing their knowledge of the waters and opposing these perceptions to the dominant models of agro-export and of the mega-hydraulic developmentalism. From a post-colonialist perspective, we listened to subjects located in the Chapada dos Veadeiros region, in the Northeast of Goiás, with semi-structured interviews, direct observation and participant observation as the main methodological strategies. We explored the knowledge of subjects from the quilombos of Moinho (Alto Paraíso de Goiás), Capela (Cavalcante) and the municipality of Colinas do Sul, as well as the worldviews of the avá-canoeiro. As a result, we emphasize the importance of inter-epistemic and intercultural dialogue to promote a new meaning for the waters of the Brazilian Cerrado in favor of its more sustainable use, which can bring new responses to the civilizing dilemmas that expose us to various crises.

Keywords: Water, Brazilian Savanna, Traditional Knowledge, Avá-Canoeiro, Socio-Hydrodiversity, Chapada dos Veadeiros.

Resumen: En este artículo abordaremos la sociohidrodiversidad de los pueblos indígenas y tradicionales de la cuenca Tocantins-Araguaia con el doble objetivo de reconocer su conocimiento de las aguas y oponer estas percepciones al desarrollismo del modelo agroexportador y megahidráulico dominante. Partiendo de una perspectiva poscolonial, escuchamos a actores ubicados en la región de Chapada dos Veadeiros, en el noreste de Goiás, utilizando entrevistas semiestructuradas, observación directa y participante como estrategias metodológicas. Exploramos los conocimientos de sujetos de los quilombos de Moinho (Alto Paraíso de Goiás), Capela (Cavalcante) y el municipio de Colinas do Sul, así como las cosmovisiones de avá-canoeiros. Como resultado, enfatizamos la importancia del diálogo interepistémico e intercultural para promover un nuevo significado para las aguas del Cerrado brasileño en favor de su uso más sustentable, lo que puede traer nuevas respuestas a los dilemas civilizatorios que nos exponen a diversas crisis.

Palabras clave: Agua, Cerrado, Conocimiento Tradicional, Avá-Canoeiro, Sociohidrodiversidad, Chapada dos Veadeiros.

Introdução: a crise hídrica e o reconhecimento da sócio-hidrodiversidade

O processo crítico de esgotamento dos recursos imprescindíveis à sobrevivência humana tem promovido o debate global sobre as mudanças climáticas e seus efeitos para os regimes hídricos regionais. Dados das Nações Unidas (2014) indicam que a cada ano cerca de 12 milhões de hectares de terras produtivas se convertem em baldias em razão do processo de desertificação, o que agrava o problema da fome – lembrando ainda que uma a cada oito pessoas sofreu fome crônica no mundo entre 2011 e 2013. É possível também inferir que esse quadro tende ser ainda mais agravado em decorrência dos efeitos socioeconômicos da pandemia de Covid-19. O relatório Human Development Report 2007/2008, citado por Lopes (2009), por sua vez, avisa que a pressão exercida pelas mudanças climáticas tende a intensificar conflitos associados à escassez de água, assim como exigir práticas de cooperação e solidariedade. Em todo o mundo é esperado que os impactos decorrentes dessa escassez em estruturas sociais desiguais e com má distribuição ecológica sejam catastróficos.

Pensar sobre a água requer, portanto, uma crítica à ideia de progresso infinito, assim como a elaboração de perspectivas de desenvolvimento alternativo e, no limite, alternativas ao desenvolvimento (ver ESCOBAR, 1998). A chamada crise da água pode ser considerada um exemplo extremo dos limites do paradigma capitalista hegemônico para lidar com a existência humana no planeta. Neste artigo, partimos do pressuposto de que culturas de povos e comunidades que têm se mantido resistentes ou externos ao capitalismo têm desenvolvido, no tempo e no espaço, entendimentos, sentimentos e relacionamentos próprios no que se refere à água. Nesse sentido, a busca de novas respostas aos problemas gerados pelo modelo hegemônico implica uma cuidadosa escuta e apreensão do que diferentes paradigmas civilizatórios têm a dizer (BONFIL BATALLA, 1981).

O Brasil conta com doze regiões hidrográficas, todas habitadas por povos indígenas e povos e comunidades tradicionais com vasto saber sobre a água em suas múltiplas formas e usos. Esses saberes tradicionais sobre a água, concebida por eles no plural, fazem dela (ou delas) um elemento essencial para a reprodução física e simbólica das culturas e identidades dessas coletividades que, por sua vez, cuidam para a manutenção e reposição das águas, constituindo uma “sócio-hidrodiversidade excepcional”. Por este termo e acompanhando outras abordagens colaborativas (SOMERVILLE, 2014), nos referimos ao conjunto de coletivos humanos em seu relacionamento culturalmente diferenciado com outros coletivos e seres, humanos e não-humanos, a exemplo das águas. A noção de sócio-hidrodiversidade também se refere às situações hídricas diversas em que se encontram esses coletivos a partir das grandes obras de desenvolvimento e geração de energia que entram em conflito com as formas relacionais de conhecimento sobre as águas, pressionando estas formas e ecossistemas aos termos técnicos, econômicos, jurídicos e burocráticos das represas e empreendimentos mega-hidráulicos (SHAH, BOELENS; BRUINS, 2019).

No Brasil, a variedade de formas simbolicamente elaboradas que povos indígenas e povos e comunidades tradicionais desenvolveram para assegurar o uso perene da água e para resistirem às investidas da sociedade nacional, majoritariamente capitalista e extrativista, representa um repositório excepcional de soluções sócio-hidrodiversas para a crise hídrica mundial. O reconhecimento desses modos de vida e situações socio-hídricas se mostra fundamental para a construção de alternativas ao modelo hegemônico de desenvolvimento, sobretudo pela experimentação de outras formas de conceber a relação natureza-cultura.

Descreveremos neste artigo uma representação da sócio-hidrodiversidade de povos indígenas e tradicionais da bacia Tocantins-Araguaia, em particular na microrregião da Chapada dos Veadeiros, estado de Goiás, junto às populações com as quais a autora e o autor possuem experiências de pesquisa, com o objetivo de reconhecer, primeiramente, seus saberes sobre as águas e, em seguida, contrapor essas cosmovisões ao desenvolvimentismo das propriedades monocultoras modernas e empreendimentos hidrelétricos que, atualmente, as circundam e atravessam territorialmente. Dito de outro modo, este artigo tem como objetivo apreender a diversidade étnica e cultural de uma região particular em termos de seus modos de vida tradicionais e a importância do cuidado com as águas para aprender, pelo diálogo interétnico e intercultural (ver CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000; MATO, 2008, respectivamente), como seus saberes podem promover uma ressignificação epistêmica das relações interculturais e interétnicas necessárias à proteção das águas no Cerrado brasileiro, em favor de seu uso mais sustentável pela sociedade como um todo.

Trata-se de um exercício necessário em favor de uma nova epistemologia das águas (LAHIRI-DUTT, 2020), uma vez que o entendimento sobre a água é tido como certo pelo senso comum; no entanto, novos avanços científicos começam a admitir que o conhecimento estabelecido sobre o tema ainda é superficial, sobretudo quando se considera a complexidade das relações que a composição molecular H2O estabelece com todo o mundo material e, podemos acrescentar, com todo o mundo simbólico e ritual. Essa perspectiva contrasta com a substância inerte, insípida e inodora frequentemente descrita (DAYENAS et al., 1988; MONTAGNIER et al., 2009, 2011; DEL GIUDICE et al., 2010)2.

Somado à reflexão científica sobre o que é a própria água, há o debate sobre a sua crescente escassez. Segundo Bates et al. (2008, p. vii), as discussões sobre mudanças climáticas, água potável, sistemas biofísicos e socioeconômicos estão interconectadas de maneira complexa. “Uma mudança em um desses aspectos pode induzir a mudanças em qualquer outro”,3 alertam. Sob a perspectiva dos estudos pós-coloniais, por sua vez, emerge a conexão entre água, mudanças climáticas e imperialismo: Linton (2006), por exemplo, considera que colocar a água sob controle epistêmico e material nos contextos coloniais foi o maior empreendimento imperial, desencadeando uma compreensão específica sobre a água na atualidade – a que o autor designa como “água moderna” (modern water). Observando que os ciclos hidrológicos sacralizados foram quase completamente banidos do discurso hidrológico no final do século XIX, ele enfatiza que as relações das populações indígenas e tradicionais com a água foram frequentemente liquidadas e substituídas pela narrativa desenvolvimentista elaborada no Ocidente.

Ao invés de insípida, a água também circula ao sabor dos seus significados, que, segundo Bruni (1993), podem ser divididos em três aspectos primordiais: água como fonte de vida, como meio de purificação e como centro de regeneração. A noção de águas primordiais, o oceano das origens, é quase universal. Transmitidos de geração em geração, muitos dos saberes não hegemônicos foram perpetuados e fazem parte do nosso presente, embora sejam frequentemente não reconhecidos.

A sócio-hidrodiversidade, como a designamos aqui, encontra-se no cerne da formação de múltiplas alteridades históricas (SEGATO, 1998) contrastantes com os sentidos da modernidade eurocolonial, configurando culturas da transmodernidade, como a designou Dussel (2016). No Brasil, ela é apreensível nas formas de vida de povos indígenas, pescadores artesanais, sertanejos, pantaneiros, ribeirinhos, quilombolas, dentre tantos outros grupos definidos como comunidades tradicionais (LAZZERINI; BONOTTO, 2014; BRANDÃO; BORGES, 2014).

Para Andréa Zhouri (2008, p. 104), pensar a sustentabilidade em uma sociedade tão diversa e desigual como a brasileira requer equacioná-la à diversidade cultural, à democratização do acesso aos recursos naturais e à distribuição dos riscos da produção industrial. Inspirada em Martinez-Alier, ela diz tratar-se de um princípio de justiça ambiental, “ou seja, da espacialização da justiça distributiva”. Da gestão da escassez à organização da vida em torno dos ciclos de inundação, muitos povos desenvolveram saberes cujos resultados desafiam o neocolonialismo mega-hidráulico e monocultural.

Em termos metodológicos, as discussões aqui apresentadas são fruto de pesquisas etnográficas realizadas desde 2001 com os sobreviventes indígenas avá-canoeiros no Alto rio Tocantins (TEÓFILO DA SILVA, 2010) e que têm contribuído para a crítica dos regimes tutelares de dominação estabelecidos aos povos indígenas cujos territórios são explorados por empreendimentos hidrelétricos e empresas mineradoras (BAINES, 1991, 1992, 1993; BAINES, TEÓFILO DA SILVA, 2018). Já as informações colhidas com as comunidades quilombolas e/ou afrodescendentes se inserem no âmbito de uma parceria entre o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Indígenas, Políticas Indigenistas e Indigenismo (LAEPI) e o Centro UnB Cerrado, através do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Alimentação Sustentável e Produção Agroecológica (NASPA). O trabalho de campo,4 realizado entre 2018 e 2019, priorizou entrevistas semiestruturadas, observação direta e observação participante como principais estratégias metodológicas.

Considerando que o Cerrado é chamado “berço das águas” do Brasil – que faz a ponte entre Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica e Pantanal – o que tem representado a sócio-hidrodiversidade dos seus povos como forma de resistência e resiliência ao processo colonizador ainda em curso e para a autopreservação das águas? É sobre essa pergunta que começamos a nos debruçar, visando apontar aspectos epistêmicos e culturais que emergem a partir de um espaço tão estratégico quanto tornado vulnerável pelas frentes coloniais e neocoloniais de expansão do agronegócio e de geração de energia, dentre outras formas predatórias de “desenvolvimento”.

Água e Cerrado: incursões no processo colonizador e a produção de novas alteridades e situações sócio-hidrodiversas

Para pensarmos a respeito das relações dos povos do Cerrado com a água, é importante traçarmos uma discussão mais abrangente, relacionada aos conflitos e disputas estabelecidos entre diferentes modelos de ocupação do território. Entender um pouco dessa história nos ajuda a perceber que diferentes movimentos foram reconfigurando e sobrepondo formas de relação com a terra e com a água. Trata-se, portando, de uma discussão de cunho epistêmico, mas também político e econômico, e que nos traz, na atualidade, um cenário de apropriação privada dos chamados “recursos hídricos” pelas monoculturas exportadoras, bem como de ocultação e exclusão da sócio-hidrodiversidade do Brasil Central.

Percorrer o Cerrado significa pisar sobre solos muito antigos. Bertran (2000) lembra que a região do Planalto Central foi coberta pelo mar, que foi sucedido por um grande deserto há 130 milhões de anos. Em seguida, a vida explodiu em exuberância – resultando no fato de que hoje o Cerrado é a savana com maior biodiversidade do planeta, sendo essa riqueza superada apenas por poucas formações forestais de regiões tropicais (MITTERMEIER; SCARANO, 2010). Com clima subtropical, divide-se em duas estações bem definidas, uma úmida e outra seca, o que exige grande poder de adaptação de toda a vida que abriga. Araticum, lobeira, barbatimão e tantas outras espécies vegetais, por exemplo, desenvolveram raízes profundas, capazes de atingir os lençóis freáticos. Por isso, essa vegetação é conhecida como “foresta invertida”, em que o que se vê à superfície é a menor parte da planta.

Esse bioma de cerca de dois milhões de quilômetros quadrados funciona como uma “esponja” que recebe as águas e as distribui para três grandes aquíferos e seis das oito grandes bacias hidrográficas brasileiras, a exemplo do grande São Francisco. As veredas, eternizadas pela vertiginosa descrição de Guimarães Rosa, são de extrema importância no conjunto de drenagem do Cerrado e de outras partes do país e constituem, segundo Chaveiro e Castilho (2007), as principais nascentes de muitas das nossas bacias.

“O que sabemos sobre o bioma é suficiente para colocá-lo entre as mais importantes regiões do planeta”, resumem Mittermeier e Scarano (2010, p. 10). Mas, a bem da verdade, o Cerrado segue sendo um ilustre desconhecido: “Estudos recentes têm demonstrado que nosso conhecimento científico ainda é bastante incipiente sobre a região, pois mal sabemos quais são as espécies presentes, quanto mais seus requerimentos ecológicos e história evolutiva”, alertam. Essa incipiência do conhecimento técnico-científico, entretanto, não é equiparável aos conhecimentos indígenas e tradicionais sobre o mesmo bioma. Mazzetto-Silva (2009), por exemplo, sublinha a riqueza do conhecimento dos Kayapó no manejo dos ecossistemas do sul do Pará, na transição entre a floresta e o Cerrado: foram encontradas na região roças com alto nível de agrobiodiversidade destinadas a variados fins, sendo que o modo como os indígenas alteram as suas estruturas ao longo do tempo baseia-se na sucessão natural dos tipos de vegetação – um modelo hoje conhecido como agroforestação.

Obviamente, esses e outros conhecimentos foram desconsiderados dentro de um contexto de apropriação e disputa de territórios que se arrasta desde o período colonial. “Desde o início do Setecentos a ocupação de Goiás se caracterizou pela frequente presença de graves e sanguinários conflitos entre as expedições colonizadoras e os ‘brabos’ naturais, com perdas numerosas de vidas”, assinala Deusa Boaventura (2007, p. 179). Em decorrência desse processo, centenas de povos indígenas existentes nos estados de Goiás e Tocantins foram reduzidos drasticamente em poucas décadas de genocídio e etnocídio a menos de uma dezena de povos, somando cerca de 22.000 pessoas (CENSO IBGE, 2010), sendo a etnia Avá-Canoeiro a que sofreu a mais drástica redução, resistindo ainda hoje às mais duras condições de dominação e esbulho (TEÓFILO DA SILVA, 2010; RODRIGUES, 2013). Obviamente, tais processos de extermínio também apagam da história o leque de saberes até então elaborados e transmitidos por esses povos, o que configura uma perda inimaginável no que se refere ao repertório de nossa sócio-hidrodiversidade.

O processo colonial também arrastou para a região populações africanas e afrodescendentes escravizadas a partir da corrida pelo ouro, incidindo de maneira decisiva na formação do homo cerratensis, usando aqui o termo cunhado por Bertran (2000, p. 20). Nesse contexto, emerge por exemplo o quilombo Kalunga, com aproximadamente 8.000 pessoas e situado no nordeste goiano, correspondendo à maior área quilombola brasileira e constituindo um Sítio Histórico e Patrimônio Cultural sobre vãos, serras e depressões – na maioria das vezes de dificílimo acesso (ALMEIDA, 2010).

Como se pode notar, o período colonial foi responsável pela implacável redução de uma imensa diversidade biológica e cultural, desenhando um quadro social no início do século XX enquanto “cenário composto de gado, roças, poeira e miséria” (BERTRAN, 1978, p. 96). A decadência da mineração e a dispersão populacional em Goiás trouxeram para os séculos vindouros a ocupação do território goiano pelo gado, sendo “o gado, por exigência, produção marginal de espaços marginais” (BERTRAN, 1978, p. 113). Esse cenário, entretanto, não deve ser considerado um processo de esvaziamento demográfico, tampouco como um impedimento para a formação de novas alteridades históricas, como prova a presença dos Kalungas ou dos Tapuios do Carretão na região da Serra Dourada.5

A região sul de Goiás tornou-se, já por volta da década de 1940, o centro progressista/desenvolvimentista do estado, quando a conquista do território goiano passou a ser guiada mais no sentido centro-sul e centro-norte do estado, mais pelas cidades do que pelos campos, resultando na expansão, nos anos 1950, de 77 municípios, para 179, nos anos 1960 (BERTRAN, 1978, p. 108-9). Diante dessa minifundização das terras, a economia de Goiás foi estatizada nos anos 1960. Cidades foram incorporadas à economia global através da chegada de fábricas transnacionais, a exemplo da flial da Nestlé em Rubiataba, a 27 km da terra dos Tapuios, e da implementação de cooperativas e colônias agrícolas, como a Cooperrubi em Rubiataba, destinada ao cultivo da cana-de-açúcar, e a Colônia Agrícola de Goiás – CANG. Esse contexto transformou os vilarejos, bairros rurais e pequenas cidades em reservas de mão-de-obra para as iniciativas desenvolvimentistas e de re-colonização da região.

A estatização da economia e do “progresso” implicou também incentivos migratórios que traziam colonos de outros estados para o Vale do rio São Patrício, resultando no acirramento da competição pelas terras dos sertões goianos. Com esse acirramento, os indígenas e as comunidades tradicionais passam a perceber o interesse expropriador que os “de fora” tinham sobre suas terras e águas, culminando em resistências à ocupação territorial.

A origem desses conflitos reside no fato de que espaços marginais eram representados como vazios, despovoados. Entretanto, ao contrário do que supunha a ideologia de ocupação vigente, vários aglomerados populacionais, compostos em larga medida por indígenas deslocados de sua vida social tradicional e negros “fugidos” ou que se libertaram do regime de escravidão, passaram a constituir sua própria “economia marginal”, instaurando, por conseguinte, formas distintas de ocupação territorial a partir da apropriação comum das terras e águas de onde viviam. Os Kalungas, Tapuios, sertanejos, beira-córregos e tantos outros vieram a constituir-se, assim, em comunidades tradicionais (OLIVEIRA JR., 1997) ao longo da história e das “etno-histórias” particulares vividas por seus antepassados que, se conhecidas, nos obrigariam a recontar o “contato” nas áreas de fronteira de formas outras que permitissem a inclusão dos indígenas e dos negros na história (LEONARDI, 1996), reconstruindo o valor de suas identidades no presente.6 Dentre as cosmovisões vinculadas a esses povos, um traço em comum é a visão não segmentada entre ser humano e natureza, que se desdobra em relações integradas e não predatórias com a terra e com a água – caracterizando a sócio-hidrodiversidade cerratense.

Nessa perspectiva, essas comunidades, enquanto:

[...] “pequenas parcelas da humanidade” não se encontram em decomposição após a região em que habitam ter permanecido à margem da corrente principal da economia colonial; encontram-se, isso sim, em processo de formação de uma comunidade tradicional (ou de perpetuação de comunidades já existentes), relativamente autônomas em seu processo produtivo e em sua dinâmica de relações sociais, isto é, em processo (ainda que intermitente) de produção e reprodução de significados socioculturais atualizados quotidianamente (OLIVEIRA JR., 1997, p. 11).

Dentre as infuências das populações negras para a história e cultura do Cerrado, está sua contribuição decisiva em manifestações da religiosidade popular. Folias e demais tradições revelam, nas entrelinhas, outras lógicas e formas de estar-no-mundo, conforme veremos adiante. Mazzetto-Silva (2009), inspirado em Bertran, destaca as matrizes de racionalidade dos povos do Cerrado, que contrastam com a lógica do capital. A seu ver, são modos de vida que distam do universo mercantil e são não somente compatíveis, mas demonstrativos do conceito de sustentabilidade. A substituição do Cerrado-hábitat (agri-cultura) para a afirmação do Cerrado-mercadoria (agro-negócio) descrita pelo autor significa, portanto, um enorme “desperdício de experiências”, usando aqui a expressão cunhada por Boaventura Santos (2006).

Apesar de todas as pressões, esse Cerrado-hábitat e, mais especificamente, aquele erguido no sertão goiano, continua se construindo através das festas, da gastronomia, da solidariedade camponesa, dos mutirões de colheita, da coleção de saberes sobre plantas medicinas e, inclusive, da coragem na luta pela terra, como sinalizou Borges (2017). Essa relação estreita entre os coletivos humanos e seu habitat no decorrer dos séculos gerou, igualmente, um relacionamento culturalmente diferenciado com as águas. Como veremos mais adiante, os rios e nascentes, e as vidas ali contidas, ganham significados que se diferenciam da ideia de água como elemento inerte. Esse Cerrado-sertão, recheado de mitos de tesouros escondidos, tenebrosas assombrações, promessas, cavalgadas, resistências e fé sem limites dista do mundo desencantado anunciado por Weber (1982) e materializado na atualidade pelas forças do/a capital.

Frentes neocoloniais de expropriação ecológica no Cerrado: pressões sobre a sócio-hidrodiversidade

Para discutirmos o cenário de disputas entre a sócio-hidrodiversidade do Cerrado a sua percepção como território a ser conquistado, controlado e privatizado, também é importante lançarmos um olhar sobre processos de expropriação que culminam no atual e agudo avanço sobre esse espaço, que deixa um rastro de destruição do bioma, dos seus povos e saberes. Se, por um lado, as ciências naturais ainda muito desconhecem o Cerrado, por outro, correm o risco de jamais conhecê-lo, uma vez que o bioma vem sendo progressivamente substituído pela monotonia do latifúndio monocultor. Marinho-Filho, Machado e Henriques (2010) alertam que, considerando-se que não existem programas sistemáticos de inventário biológico, muitas espécies podem ter desaparecido das regiões desmatadas bem antes de serem catalogadas pela ciência. Os autores acrescentam que o bioma foi considerado como uma das 27 “áreas críticas” de biodiversidade do planeta.

Convém fazer uma breve retrospectiva a fim de entendermos como se deu esse processo de avanço modernizador sobre o território, que culminou em tão duras consequências para o bioma.

Comecemos por recordar que até 1777, com o Tratado de Santo Idelfonso – que ratificava o de Madri – metade do Planalto Central era legalmente espanhol, segundo as regras impostas pelos colonizadores ibéricos (BERTRAN, 2000). De acordo com Deusa Boaventura (2007), as povoações setecentistas que surgiram em Goiás foram parte de uma nova e centralizadora política de ocupação e urbanização da metrópole portuguesa, iniciada por volta de meados do século XVII.

Essa nova estratégia vinculava-se à queda do preço do açúcar no mercado internacional e à perda de boa parte das colônias lusitanas no Oriente, fatos que levaram a metrópole a rever seus planos em relação ao Brasil. Foi assim que passou a incentivar a exploração de áreas até então não atingidas pela empresa colonizadora, levando Portugal para além do meridiano de Tordesilhas. Expressões dessa política, segundo a autora, começaram a emergir entre o final do século XVII e início do XVIII, com a efetiva descoberta de ouro em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.7 Os sonhos dos exploradores daqueles primeiros tempos eram embalados pelos mais fantásticos mitos de riquezas inimagináveis.

Com a decadência do ouro, gado e lavouras de subsistência passaram a dominar o cenário, mas foi nos anos 1930/40 que teve início a sequência de políticas destinadas a “desenvolver” o interior do Brasil. A primeira delas, conhecida como “Marcha para o Oeste”, foi a engrenagem usada pelo Estado Novo de Vargas para abastecer o mercado consumidor do Sudeste, estando diretamente ligada ao avanço industrial do país (ver PEDROSO; SILVA, 2005; MARIN; NEVES, 2013). A política estatal de interiorização levou a outras iniciativas, como a criação de Goiânia (1933), o incentivo à migração, a transferência da capital do país para Brasília em 1960 e a construção de grandes eixos rodoviários.

Mazzetto-Silva (2009, p. 62) nos lembra que na época da fundação de Brasília, ainda que a região de domínio do Cerrado tenha passado a ser mais densamente ocupada, já era morada de cerca de 11 milhões de pessoas, sendo 7 milhões habitantes das zonas rurais. Vale observar que o ideal de progresso alavancado a partir dos anos 1930/40 no Brasil foi posteriormente alimentado, já no início dos anos 1950, pela chamada “Revolução Verde”, que prometia um novo momento para a produção mundial de alimentos baseado em pacotes tecnológicos que, em última instância, teriam o poder de controlar a natureza, aumentando a produtividade e afastando todas as intempéries.

Depois do golpe de Estado que levou os militares ao poder em 1964, iniciou-se uma nova política que, mais uma vez, privilegiou o chamado “desenvolvimento” do interior do Brasil. O modelo agrícola exportador ganhou impulso no início da década de 1970, durante o governo do general Garrastazu Médici, cujo ministro da Fazenda, Delfim Neto, foi o principal artífice do chamado “milagre econômico”. Segundo Macarini (2005), a “visão de mundo delfiniana” adquiriu o estatuto de núcleo estratégico da política econômica brasileira, materializada no projeto Brasil Grande Potência. Defendendo uma meta de crescimento econômico de cerca de 10% ao ano, ele esperava concretizar seus planos através do apoio simultâneo à agricultura e à exportação – deixando de lado, segundo o autor, a incômoda proposta de reforma agrária.

A par dos incentivos, o agronegócio de vocação exportadora necessitava de espaço para se expandir. Foi por isso que a soja, entre outras commodities, avançou territorialmente no Cerrado, modificando o cenário do Centro-Oeste do Brasil. Projetos de desenvolvimento como o Polocentro (anos 1970) e o Prodecer (anos 1980), e a consolidação industrial a partir da década de 1990, com a instalação ou expansão das agroindústrias, foram molas propulsoras das grandes transformações (OLIVEIRA, 2008). Assim chegava o desenvolvimento no Cerrado, trazendo consigo suas enormes consequências.

Pelá e Castilho (2010, p. 12) observam que se antes o solo e o relevo eram componentes naturais importantes para se ajustar ao tipo de acumulação que se estendeu nos idos de 1950, 60 e 70, “agora a importância da água e de minérios são os novos componentes que assanham o interesse dos atores hegemônicos e recolocam os impactos ambientais e sociais no território cerradeiro”. Para Mazzetto-Silva (2009), essa nova ordem territorial implica um contínuo processo de abertura de fronteira, expresso na integração de um sistema espacial de troca de mercadorias, informação, crédito e mobilidade. Esse avanço é acompanhado por fenômenos tais como a expulsão de comunidades, empobrecimento das populações – o que contrasta com a pujança econômica alardeada – crescente urbanização,8 transformações culturais e identitárias.

Borges (2017) observa que, no campo do imaginário, o avanço do modelo desenvolvimentista sobre o Planalto Central operou a passagem da ideia de “sertão”9 para “Cerrado”. O mundo sertanejo era produto e produtor de uma sociabilidade própria, pautada na ruralidade e na capacidade de auto-sustentação – tendo sido então identificado com a ideia de “atraso”, a ser superado por uma nova visão sobre o mesmo espaço – enquanto o Cerrado trazia consigo, em termos semânticos, o sentido de modernidade, sobretudo por sua categorização ecológica.

Obviamente, essas transformações geraram grande impacto sobre as águas na região. Imaginemos, por exemplo, o que a proliferação de pivôs centrais tem significado para os rios, lagoas, brejos e pântanos, conforme alertava Porto-Gonçalves (2004) há mais de uma década. Essa também é uma preocupação de Campos Filho (2010), que ilustra o problema com o caso de Cristalina, município situado na microrregião do entorno de Brasília. Ostentando com orgulho o título de área com a maior quantidade de hectares irrigados da América, abriga 570 pivôs em uma área de 47 mil hectares. Em termos globais, o autor calcula a existência de mais de 2.500 pivôs centrais no estado de Goiás. Esses e outros dados colocam o Brasil como um dos maiores exportadores de água virtual10 do mundo. A esta questão, somam-se outros fatores, tais como as usinas hidrelétricas – tanto as de grande porte, como é o caso das usinas da Serra da Mesa e Cana Brava, no rio Tocantins, incidentes sobre a Terra Indígena Avá-Canoeiro, quanto as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) previstas em larga escala no mesmo rio e afuentes.

Somado ao avanço sobre suas terras e sobre suas águas, a chegada do “progresso” no centro territorial do Brasil também significou um duro processo de expulsão e invisibilização dos seus povos. Segundo Chaveiro e Barreira (2010, p. 26), a primeira ação geopolítica nesse sentido remonta ao final do século XIX até 1930, tendo sido protagonizada pelos viajantes naturalistas do chamado “velho mundo”. “Esse imaginário negativo efetivou-se como uma sentença de verdade de que havia dois Brasis – um do litoral e outro do sertão; um superior e outro inferior, um integrado ao progresso do mundo desenvolvido e outro desintegrado”. Em termos de discurso, aquele imenso espaço passou a ser progressivamente representado como vazio – amplo território a ser ocupado. Portanto, a ideia de Cerrado “vazio”, ao ocupar os imaginários, invisibiliza todo um leque de coletivos humanos que caracterizam sua sócio-hidrodiversidade.

Confluências interepistêmicas: saberes tradicionais para o reconhecimento da sócio-hidrodiversidade no Cerrado como alternativa às pressões do «desenvolvimento»

Era início de noite quando os foguetes ao longe anunciaram: a Folia do Divino estava chegando na casa de dona Francisca Dias, moradora da comunidade de Capela, município de Cavalcante, nordeste do estado de Goiás. Depois de um breve período, chegam à porta da casa os foliões, erguendo suas bandeiras, violas e pandeiros. “É o Divino e Nossa Senhora, é o Divino e Nossa Senhora, é a nossa Mãe eterna; é o criador da natureza, que criou céu, mar e terra...”, reverenciam em uníssono. Depois das cantorias iniciais, eles atravessam o arco de bambu que divide o quintal e a rua e, “com o pé direito” – conforme anunciado na canção –, entram na casa para prestar suas homenagens, que seguirão noite adentro e serão retomadas na manhã seguinte. É o pouso de Folia, um dos momentos mais ansiados pela população local.

Essa e muitas outras celebrações fazem parte da cultura da Chapada dos Veadeiros, microrregião situada no nordeste de Goiás. Com oito municípios, possui uma área de cerca de 21 mil quilômetros quadrados, onde vivem pouco mais de 60 mil habitantes. Parte do Planalto Central brasileiro, a Chapada é coberta predominantemente pelo Cerrado, sendo considerada um “santuário” natural. Dentro desse cenário, aqui destacamos os quilombos do Moinho, situado no município de Alto Paraíso de Goiás, e de Capela, situado em Cavalcante, já próximo à divisa com o município de Colinas do Sul.

A Folia do Divino e de Nossa Senhora do Rosário é uma das celebrações que compõem o concorrido calendário festivo de Capela. Além dela, a comunidade também promove a Folia de Reis, a Novena de São Sebastião (o padroeiro), a Caçada da Rainha, além de outros festejos, que se estendem no decorrer do ano. Cada um deles exige grande mobilização: para viabilizar os eventos, os festeiros e festeiras precisam reunir doações para garantirem a fartura na mesa – um aspecto imprescindível dos rituais, também pautados pela gratuidade. O sacro-ofício dos Foliões também envolve muitos esforços, considerando que o chamado “giro de Folia” estende-se no tempo: no caso do Divino e de Nossa Senhora do Rosário, são nove dias a cavalo, pousando de casa em casa na boca da noite, de maneira a levar as bandeiras sagradas para um amplo raio geográfico.

Considerando que no contexto das comunidades tradicionais a festa pode ser entendida como uma “sombra do cotidiano” (ÁGUAS, 2013), ou seja, que existem relações intrínsecas entre a experiência estética e a experiência diária das coletividades, é interessante notar o papel fundamental que a água possui no ritual da Folia do Divino. À frente da casa que receberá os foliões durante o Pouso, é instalado um cruzeiro de bambu sobre uma mesa coberta por um tecido branco, formando um altar. Velas são acesas no topo do cruzeiro e, sobre o altar, são dispostos uma garrafa de água, um prato com água e um galho de arruda, e uma vasilha que abriga pequenos peixes – lá chamados de “piabinhas” – que foram colhidos naquele mesmo dia no ribeirão que corta a comunidade.

Interessante notar que a coleta das piabinhas segue determinadas regras: horas antes da chegada dos foliões, cabe aos mais jovens irem até o curso d’água e recolherem os peixes a serem dispostos no cruzeiro, representando a vida das águas. Uma série de cuidados são tomados na tentativa de manter os animais vivos durante a celebração, como a constante troca de água e, ao final do pouso de Folia, os mesmos jovens deverão se encarregar de devolver as piabinhas vivas ao ribeirão. Vale observar também que, durante a chegada do grupo, um dos foliões segue à frente das duas bandeiras aspergindo a água com o galho de arruda, como quem abre um caminho de purificação para a passagem dos santos.

Esses elementos – a abertura do caminho com a água, a celebração da vida através das piabinhas, a relação entre o cruzeiro, as imagens e a água como elementos sagrados – nos dão pistas de uma outra percepção da comunidade acerca do que é a água ou, de forma mais ampla, de uma outra forma de conexão entre o ser humano e natureza, que em muito difere do paradigma hegemônico.

Tomemos então o exemplo de dona Alexandrina, parteira, benzedeira e raizeira da mesma região. Nascida no povoado de Rio Preto – situado às margens do curso d’água de mesmo nome, no município de Cavalcante e a poucos quilômetros de Capela – perdeu os pais ainda criança e enfrentou o trabalho desde muito cedo: “Eu era do campo, do machado, do curral, do tear”, descreve. Ainda nova, aprendeu a benzer com os mais velhos, os grandes benzedores da região. Hoje, a fé está nitidamente enlaçada com o seu cotidiano: “No mundo, não existe nada mais que Deus”, afirma.

Assim como na Folia do Divino de Capela, as ligações entre dona Alexandrina e a água são estreitas. Ela é uma das anciãs que lideram o costume local de pedir chuva quando esta é escassa, entoando canções enquanto os mais novos, dentro do ribeirão, lançam água sobre um barranco. O grupo formado por pessoas de várias idades inicia o ritual logo de manhãzinha, “dentro de buriti fechado”. “Aí a gente vê a chuva caindo em nós, em cima da companheirada”, garante ela.

Outro aspecto que nos revela um pouco da visão de mundo da benzedeira é o costume de alimentar as piabinhas. Várias vezes no decorrer do ano, dona Alexandrina vai até o ribeirão dos Padres, que corta Colinas do Sul, para alimentar os peixes. “Oh, minha piabinha, me ajuda a trazer chuva”, pede ela, estabelecendo uma troca: ao mesmo tempo em que espera ver seu pedido atendido, está fazendo um bom gesto para as vidas existentes na água, demonstrando empatia com as dificuldades de sobrevivência dos peixes em tempos de escassez. “É uma coisa que você faz e depois esquece, mas Deus está vendo que você está matando a fome do próximo”, explica.

“Sem água não tem cura”, afirma, por sua vez, Florentina dos Santos, a dona Flor, famosa raizeira e parteira da comunidade do Moinho, em Alto Paraíso de Goiás. Ela traça um paralelo entre a água e a vida desde a perspectiva de quem já realizou mais de três centenas de partos. Dona Flor diz: “O bebê nasce é nadando. Quando uma mãe fala que ele está mexendo, está é nadando. Fica de cabeça pra baixo e com o pezinho nadando. E se não tiver água pra essa mãe beber? A vida acaba. A vida pra mim é água”. Dessa maneira, água/nascimento/vida aparecem em seu discurso de uma maneira encadeada e indivisível.

Dona Flor também descreve um tempo em que a água era um bem comum e partilhado, e não um recurso ou um produto passível de ser comercializado. Ela viveu na sede do município de Alto Paraíso de Goiás quando criança, época em que muitos aspectos do cotidiano eram partilhados entre os moradores: “Todo mundo trabalhando, todo mundo capinando, todo mundo catando café, todo mundo quebrando coco pra fazer paçoca de coco. Era rico – tinha vaca, tinha dinheiro, tinha tudo”.

Esse senso de coletividade, segundo ela, também se aplicava quando o assunto era água, que era buscada nos rios, açudes e regos que cortavam a cidade. Dona Flor descreve, inclusive, um sistema solidário de revezamento nos períodos de seca do Cerrado, para garantir a rega em todos os quintais. “Todo mundo tinha quintal, tinha café, tinha tudo. Chegando o tempo de molhar o café, que ele ia aforar, aí controlava; numa semana botava no quintal de um, na outra semana botava no quintal do outro, compartilhado, pra molhar as plantas”, conta. Essa estratégia de organização e partilha, realizada no mês de setembro, contrasta com a ideia de apropriação privada de água, como sinaliza a parteira, que faz uma ponte com a dimensão do sagrado: “Quem é que tem o poder de fazer um rio? Eles [os seres humanos] fazem um açude, um poço, mas porque já têm a água que Deus fez”. Trata-se se mais um exemplo de relacionamento culturalmente diferenciado com as águas, a que consideramos como sócio-hidrodiversidade do Cerrado.

Não muito longe de Cavalcante, na Terra Indígena AváCanoeiro, contígua à Área de Proteção Ambiental (APA) do Pouso Alto, que abriga hoje o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, uma família indígena continua as tradições e práticas rituais de seus ancestrais. Não é tanto pelo adjetivo “canoeiro” atribuído pela sociedade invasora aos awa (gente), evidenciando a forte vinculação desse povo aos rios Maranhão/Tocantins e Araguaia, que reconheceremos a importância dos avá-canoeiros para significar o que chamamos de sócio-hidrodiversidade. Apresentamos esse caso ao lado das comunidades tradicionais da Chapada dos Veadeiros para assinalar quão contrastantes podem se revelar as situações de comunidades locais e próximas diante das pressões desenvolvimentistas. Ao mesmo tempo, buscamos demonstrar de que modo os modos diversos de vida podem nos ensinar formas eticamente mais viáveis de convivência com a diversidade social e cultural do Cerrado como condição imprescindível para a preservação de suas águas.

No caso dos avá-canoeiros, sua situação sócio-hídrica se define irreversivelmente após o fechamento das comportas da represa da Serra da Mesa em 1986, quando se produziu autoritariamente um confinamento tutelar a partir de convênio celebrado por Furnas Centrais Elétricas, responsável pelo aproveitamento hidrelétrico da represa, e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Esse confinamento somente tornou-se possível pela conclusão das obras da represa hidrelétrica que levou à remoção do local dos acampamentos de trabalhadores da grande obra coadunada à retirada da maioria dos posseiros da área, ao mesmo tempo que promoveu a transferência dos avá-canoeiros para a área do novo Posto Indígena.

Sob esses termos, a Terra Indígena Avá-Canoeiro, vista a partir do Posto Indígena, tanto poderia ser considerada uma ampla área de proteção ambiental na qual incidiria uma pequena população culturalmente distinta e digna de cuidados assistenciais contra a violência externa (uma zona de refúgio do mundo externo) quanto uma área de controle territorial assegurada pelo labirinto de morros pedregosos que a comporta, pelo esvaziamento demográfico da área a partir de medidas judiciais e trabalho policial e pelo trabalho de fiscalização exercido pelos funcionários do programa (uma zona de vigilância do mundo interno) (TEÓFILO DA SILVA, 2010).

Ainda assim, os avá-canoeiros reproduzem simbolicamente, tanto quanto lhes é possível, os valores tradicionais de sua sociedade. Observam, por exemplo, uma divisão do trabalho em termos de gênero; suas casas, quando não são aquelas construídas pelos funcionários da Funai, são erguidas de modo oval, com duas entradas e coberta por palha. A estrutura de finas toras de madeira amarradas com fibra vegetal garante proteção e um ambiente arejado. Para as noites frias, pequenas fogueiras são acesas e uma intensa fumigação com tabaco é feita no início da noite para manter os insetos longe da oka.

Ao construírem uma nova casa, os avá-canoeiros não abandonam totalmente a anterior. Esta continua servindo como local para temporadas breves de residência quando se abastecem das roças próximas, além de cultivos específicos de mandioca, batatas, frutíferas etc. que se encontram esparramados pelo território, verdadeiros depósitos de mantimentos. Animais como pacas e veados se aproveitam do relativo abandono das roças antigas para transitar e se alimentar e, por esse motivo, antigos locais de moradia também são apreciados como locais de caça. No entanto, o modo pelo qual os locais para as casas novas são definidos atende a critérios diversos que extrapolam a função econômica ou alimentar.

Os avá-canoeiros consideram a proximidade das roças antigas e a vista proporcionada pelo local atual como fatores importantes. A paisagem panorâmica, por exemplo, é levada em consideração para a definição de locais para futuras casas. O fator determinante para o estabelecimento de uma nova casa, porém, continua sendo a proximidade das áreas onde serão abertos novos roçados. Tratase de uma prática espacial semelhante àquela praticada pelos parakanãs, tal como descrita por Carlos Fausto:

Os parakanãs orientais [...] abriam novas roças a média distância e mudavam-se para elas quando as antigas estavam se exaurindo. Assim, em vez de permanecerem em um mesmo sítio, estabeleciam um polígono semidomesticado cujos vértices eram, minimamente, a aldeia anterior, a atual e aquela a ser construída.

Aldeias nova e velha eram, durante algum tempo, contemporâneas, com o grupo passando parte do tempo dividido entre uma e outra, até abandonar em definitivo a primeira [...]. Aldeias, roças e acampamentos semipermanentes formavam um sistema local diferenciado, uma área semidomesticada no meio da foresta, interligada por trilhas (FAUSTO, 2001, p. 117).

A descrição de Fausto se aplica ao sistema espacial avá-canoeiro, sobretudo se substituirmos a palavra “aldeia” por casa e se considerarmos que os avá-canoeiros, aparentemente, não mais erguem “acampamentos semipermanentes”. Casas e roças, entrelaçadas na mata do Cerrado, distante dos córregos por onde ainda caminham as onças, constitui para os avá-canoeiros um sistema fuido que os motiva a uma mobilidade constante, apesar dos esforços da tutela indigenista de os fixarem junto a postos indígenas e barreiras de fiscalização. À necessidade, no passado, de movimentação constante como tática de fuga e sobrevivência em um território cada vez mais ocupado e explorado, os avá-canoeiros, no presente, passaram a empregar a mobilidade como uma forma de manutenção não somente de sua subsistência, mas da sociabilidade em uma área esvaziada de ocupantes, mantida por um regime tutelar e com uma grande empresa hidrelétrica como sua principal exploradora econômica.

As caminhadas de coleta pelas trilhas da terra indígena e colheita em roçados abertos próximos a suas casas “espacializam” a história-próxima e “historicizam” o espaço-local através de associações simbólicas entre lugares, pessoas e produtos das roças e da natureza. Caminhar suscita lembranças sobre os múltiplos mundos do mato e dos homi como dizem, promovendo conexões entre esses mesmos mundos do mesmo modo como as trilhas entrecruzam e unem lugares, pessoas e bens espacialmente, tornando-os como nós de uma mesma rede de histórias compartilhadas.

Os avá-canoeiros resistem, desse modo, ao isolamento que lhes foi imposto pela construção da barragem da Serra da Mesa e pelo regime tutelar, que dificultam sua sociabilidade fuída entre seres humanos e não-humanos e coisas. Essa mesma sociabilidade se contrapõe à lógica mercantil dos homi/maíra11 que os cercam, pois está estabelecida no princípio das trocas recíprocas como forma de pacificação dos brancos e transformação destes em pessoas verdadeiramente belas (katutê). O modo como sua cultura educa os brancos se expressa justamente pela prática ritual dos pedidos e troca dos bens que obtém de suas coletas e colheitas com aquilo que os outros trazem consigo de outros lugares e relações.

Entretanto, não se deve pensar que os avá-canoeiros fazem pedidos de bens e serviços tendo em vista uma razão econômica ou utilitária. O princípio fundamental de sua economia, assim como o que rege outras sociedades indígenas, consiste na produção e obtenção do estritamente necessário para seu consumo imediato, onde a tutela passou a prover o que antes era obtido por meio de trocas ocasionais. Não é um excedente de bens que buscam “produzir” com seus pedidos, mas um excedente de sentido para as relações sociais com os brancos.

Existe toda uma etiqueta em torno da obtenção de bens por meio dessas trocas. Primeiro, os cumprimentos: os avá-canoeiros cumprimentam e perguntam pelo nome e pela origem do/a recém-chegado/a; em seguida perguntam pelos parentes e os bens do/a mesmo/a, reparando no que este ou esta carrega consigo; finalmente, perguntam se podem ter este ou aquele objeto ou se o/a recém-chegado/a pode trazer um igual para ele. Em certas ocasiões, passam a listar uma série de itens com os quais foram presenteados e quem deu cada um deles. É frequente que só venham a fazer pedidos quando estejam prestes a se despedir ou se separar da pessoa com quem estejam dialogando. Daí as principais ocasiões para pedirem e receberem bens sejam aquelas das chegadas e partidas.

Essa etiqueta guarda uma certa familiaridade com a prática tapirapé de envolver uns aos outros por laços de amizade formal (anchïwawa) com vistas a estabelecer um mecanismo de redistribuição de bens. Segundo Wagley, amparado nos dados de Shapiro, temos a seguinte descrição dessa instituição para os tapirapés:

Foi-me dito que os anchiwawa oferecem um ao outro seus mais valiosos bens: redes, araras, vasilhas de barro para cozinhar, espingardas, etc. Tais amigos também fornecem comida um ao outro e o relacionamento inicial envolve uma apresentação de kawi... Entretanto, a mais importante transação vinculada à amizade formal parece envolver itens de propriedade pessoal, além de comida. Soube que um índio deu, certa vez, a seu “amigo” seu melhor cachorro de caça; o “amigo”, por sua vez, deu-lhe uma faca. Todas as comunicações entre os dois foram feitas através das esposas, que deviam receber os presentes destinados aos respectivos maridos. Algumas vezes, os pais podem estabelecer um relacionamento de anchiwawa em nome dos filhos e em tais casos os pais cuidam das trocas até que as crianças alcancem idade suficiente para fazerem-no elas próprias. A relação anchiwawa não deve ser estabelecida entre parentes chegados, já que seu objetivo é criar laços entre indivíduos que, provavelmente, não teriam oportunidade de trocar bens no curso da interação normal do dia-a-dia. Desta forma, a amizade formal vem a ser um mecanismo que amplia a esfera de distribuição e redistribuição dos itens de propriedade pessoal, constituindo um par adicional de indivíduos com status, definido em termos de prestação mútua (SHAPIRO, 1968, p. 12-13 apudWAGLEY, 1988, p. 92-93).

Infelizmente, o empenho indígena em pedir coisas é interpretado por aqueles que não conhecem os avá-canoeiros como oportunismo, ao invés de ser percebido como uma intenção espontânea de estabelecer relações simétricas de troca. Não se percebe nesse suposto “oportunismo indígena” uma forma de manutenção das raras oportunidades que lhes são tornadas possíveis de convívio social. Escapa aos brancos a percepção de que no pensamento avá-canoeiro não só as coisas vêm de fora: dos deuses, dos mortos, dos visitantes, dos animais etc., como a percepção de que para os avá-canoeiros as coisas, pessoas, nomes, animais etc. que vêm de fora são essenciais para a constituição e preservação de um sentido de “eu” autônomo em relação ao mundo.

Isso nos deve fazer lembrar que um conjunto de bens individuais e relacionamentos mais ou menos exclusivos com determinadas pessoas é essencial para a manutenção de um certo sentido de autodeterminação e de identidade pessoal, no entanto, existe ainda um outro sentido para essa mesma prática, que adviria da própria experiência dos avá-canoeiros enquanto membros de uma cultura distinta.

Para compreender esse outro sentido, talvez tenhamos que nos servir mais uma vez da interpretação feita por Carlos Fausto para o xamanismo parakanã. Fausto o descreve como uma forma de “predação familiarizante” (2001, p. 336) cujo mecanismo básico consiste em domesticar os inimigos e colocá-los ao serviço do xamã por meio dos sonhos. Em suas palavras:

A estrutura dos sonhos parakanãs é, pois, esta: interação entre sonhador e inimigo domesticado, que está sob seu controle, mas lhe é superior em ciência xamânica. Cativo, esse inimigo não age como inimigo, pois tudo dá a seu senhor, sem nada exigir em troca. Fluxo unidirecional que não cede lugar à predação – tema recorrente em outros grupos amazônicos, em que as relações entre xamãs e seus auxiliares devem parecer equilibradas, sob pena de se converterem em contrapredação. O sonho é, enfim, o inverso simétrico da guerra e da caça, substituindo os mortoscorpos pelos cantos-nomes e a predação pela familiarização – o akwawa domesticado posto a serviço do grupo (FAUSTO, 2001, p. 349).

Essa relação entre xamã e inimigo cativado – tornado assim um xerimbabo (animal de criação ou estimação) do xamã, no qual o ser cativado dá o que se pede sem exigir nada em troca – guarda semelhança com a relação que os avá-canoeiros procuram estabelecer com os outros. O elemento central dessa forma de interação reside precisamente nessa necessidade de cativar, domesticar, docilizar incessantemente os brancos. Isso significa tornar nossa presença previsível através dos nossos presentes e promessas para eles. O modelo dessa sociabilidade pode ser inferido do fato que os avá-canoeiros resistem e enfrentam a invasão e destruição do seu mundo com seus xerimbabos (sejam eles animais de estimação ou brancos estimados) e também na identificação, reinterpretada à luz da vivência histórica (nomeadamente, guerra), dos homi como maíra, o demiurgo da cosmologia tupi-guarani.

Agem os avá-canoeiros assim como os waiwai que: “... procuravam exercer algum controle simbólico e material sobre os forasteiros vindos das zonas periféricas do seu universo social e assim reafirmar sua própria posição no centro desse universo” (HOWARD, 2002, p. 25). Isso indica que eles não desejam estabelecer relações pessoais para ter acesso a bens em uma atitude “oportunista”, mas instaurar uma periodicidade nas relações pessoais apoiada na circulação de bens. Trata-se de estabelecer um circuito centrífugo de trocas para se cativar/capturar pessoas (que por sua vez capturam bens para eles). Nas palavras de Howard: “Apesar de tanta ênfase posta nos bens de troca, eles são, em última instância, apenas pretexto para que relações sociais se atualizem” (2002, p. 50).

A questão central para o pensamento avá-canoeiro é, portanto, saber a quem cativar e por meio do quê ou de quais bens se pode manter a pessoa cativada. Nas palavras de Clastres: “Tal ‘estratégia’ implica evidentemente como que uma aposta no futuro, a saber: que ele será feito de repetição e não de diferença, que a terra, o céu, os deuses cuidarão de manter o eterno retorno do mesmo” (2004 [1980], p. 183). A recusa dos brancos em compactuar do mesmo senso de comunidade é vista pelos avá-canoeiros não só como uma recusa ao convívio social, mas como uma recusa a ser social, o que significa uma “anti-humanidade”. Esse é o cerne da questão. Essa é a lição a ser por nós aprendida com a diversidade cultural dos avá-canoeiros, submetidos que estão a uma situação sócio-hidrodiversa irreversível decorrente da construção das barragens de Serra da Mesa e, mais recentemente, Canabrava, para estabelecermos uma outra e mais esperançosa relação com eles e com a vida como um todo.

Os avá-canoeiros souberam reelaborar, no essencial, um sentido tradicional de sociabilidade, ou seja, as técnicas e o saber tradicional através dos quais podem vir a promover um relacionamento estável com os brancos, de quem obtêm mais que os artigos de que necessitam. Pedindo e recebendo, os avá-canoeiros cativam os brancos, trocando sua animosidade pela sua amistosidade. E assim sobrevivem, cativando maíra. Nosso futuro comum depende, em certa medida, de sermos capazes de reelaborar nossas tradições à luz dos saberes deles. A força criativa com a qual subvertem uma situação adversa e desigual é, metaforicamente, a mesma que necessitamos para domesticar a brutalidade dos empreendimentos mega-hidráulicos.

Conclusões: sócio-hidrodiversidade na Chapada dos Veadeiros e a escuta de outros paradigmas

A presente discussão propôs-se a explorar a sócio-hidrodiversidade brasileira a partir das culturas e saberes dos povos da Chapada dos Veadeiros, a fim de sublinhar a importância do diálogo com paradigmas não-hegemônicos para a emergência de novas relações entre coletivos humanos mediadas pela natureza e suas águas. Esta proposta teve como premissa a ideia de que a chamada crise da água consiste em uma das faces visíveis de um conjunto de crises que se entrelaçam – ambiental, ética, política etc. – acenando para uma crise civilizatória. Portanto, argumentamos que se torna cada vez mais relevante a ampliação da escuta dos povos cujas perspectivas, experiências, saberes e experiências históricas com o desenvolvimento diferem da lógica hegemônica.

Começamos por sublinhar a disputa de territórios no contexto do Cerrado, assinalando que a partir dos processos coloniais e neocoloniais, relações de dominação e expropriação sobrepuseram, invisibilizaram, silenciaram – e, em alguns casos, exterminaram – as visões de mundo dos povos do Cerrado. Nesse sentido, uma trajetória conflituosa de apropriação do espaço, movida por interesses econômicos e políticos, colocou (e coloca) em xeque a sobrevivência desses povos e sua resiliente sócio-hidrodiversidade. Compreender um pouco dessa história, o que inclui as ameaças e resistências, nos ajuda a refletir sobre o cenário mais amplo, em que as relações de poder, as opções econômicas e as perspectivas culturais e epistêmicas se veem emaranhadas.

Exploramos a sócio-hidrodiversidade de coletivos humanos que mantêm um relacionamento culturalmente diferenciado com outros coletivos, com a natureza e com as águas, concebidas no plural e entendidas como essenciais para a reprodução física e simbólica de todas as coletividades. Por um lado, exploramos de que maneira a catástrofe colonial e desenvolvimentista que se abateu sobre os avá-canoeiros não destruiu por completo o modo culturalmente próprio dos avá-canoeiros se relacionarem com outros modos de vida, mesmo em uma situação adversa, acenando para formas eticamente mais viáveis de convivência com a diversidade, com o Cerrado e, portanto, com as suas águas. Soma-se a este aspecto relacional o fato da Terra Indígena Avá-Canoeiro e do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros serem, atualmente, mais estratégicos para a preservação das nascentes, córregos, rios e lagos e, desse modo, para o próprio funcionamento das hidrelétricas e sustentabilidade das monoculturas do que o inverso. Por sua vez, saberes relacionados à religiosidade popular e às estratégias de conservação e distribuição solidária distam dos colapsos anunciados pela lógica predominante de apropriação dos recursos. Vejamos.

Estabelecendo um diálogo entre os grupos pesquisados, muitos elementos apontam para tais outros paradigmas. No que se refere aos saberes sobre a água, vimos estratégias de reaproveitamento, de previsão do tempo e de distribuição autônoma e solidária da água – tantas vezes invisibilizadas – que nos remetem ao “desperdício de experiências” descrito por Boaventura Santos (2006). São conhecimentos acumulados por povos que lidam ancestralmente com os desafios apresentados pelo Cerrado, um bioma que, com seu regime cíclico de cheias e secas, exigiu historicamente grandes esforços de gestão das águas.

Paralelamente a tais saberes, temos as conexões entre água/afetos/sacralidade, que nos remetem a outras relações possíveis entre ser humano e natureza, nos termos anunciados por Luiz Marques (2018) – que, partindo do campo flosófico, aponta as origens de diferentes visões de mundo, dentre elas a ideia ocidental de pleno controle da natureza e de soberania da espécie humana sobre as demais. Quando dona Alexandrina, por exemplo, alimenta suas “piabinhas” ao mesmo tempo que roga aos céus pela chuva, estabelece uma relação de respeito, de pertencimento e de afetuosidade para com todas as formas de vida – inclusive a sua, humana, igualmente dependente dos regimes hídricos.

No que se refere a tais rituais, conforme vimos, as “piabinhas” também têm lugar de destaque na Folia do Divino e Nossa Senhora do Rosário, uma das principais celebrações do quilombo de Capela. É interessante notar que a responsabilidade recai sobre os mais jovens – coleta, cuidado e devolução dos pequenos peixes após o pouso de Folia. Sem pretendermos esgotar os possíveis significados dessa relação entre jovens/peixes/águas, nos parece plausível pensar que o ritual sublinha a continuidade da vida em suas variadas formas: o ribeirão vivo e a comunidade viva e perpetuada através das novas gerações surgem entrelaçados.

Esses e outros elementos alinham-se com o estar-no-mundo dos avá-canoeiros que, ainda que desafados por diversas ameaças, optam pela amistosidade e não pela animosidade. Na presente discussão, focamos no senso de comunidade manifestado pelo grupo, que contrasta com a recusa – frequentemente fagrada na modernidade capitalista ocidental – de se perceber o ser humano como intrinsecamente social e interdependente. O contraste com esta espécie de “anti-humanidade” individualista foi tratada, neste artigo, como o cerne da questão: tanto os avá-canoeiros quanto as demais comunidades e atores da região aqui abordada manifestam outros paradigmas, que vêm sendo invisibilizados pelo pensamento hegemônico, mas que continuam trazendo à tona outras sociabilidades e outras formas de relação com a natureza, com as quais o Ocidente pode interagir e aprender, se quiser encontrar novas respostas às perguntas que o afigem enquanto caminho civilizatório.

Em suma, como principal traço em comum entre os povos da Chapada dos Veadeiros aqui apresentados, temos o senso de coletividade por oposição ao individualismo e os princípios da vida natural (aqui representados pelas águas) e cultural (sob a forma da reciprocidade). Conforme anunciado no princípio desta discussão, tivemos como objetivo reconhecer, por um lado, os saberes dos povos da Chapada dos Veadeiros sobre a água e, por outro, os contrapor à proposta desenvolvimentista, que atravessa de maneira crescente os territórios e imaginários no nosso país. Portanto, pela via do contraste, podemos apreender expressões desses outros paradigmas, abrindo a escuta a diferentes manifestações da sócio-hidrodiversidade. Propomos refletir sobre quatro aspectos fundamentais.

A primeira delas é a oposição entre água-território – caracterizada pelos laços afetivos, pela sua importância na produção e reprodução das identidades etc. – em contraste com a água desterritorializada, ou seja, entendida como um recurso a ser extraído, que chega sem memórias às nossas torneiras. A segunda se refere à ideia de água como bem comum, que não pertence a ninguém e que, desta maneira, deve ser utilizada solidariamente por uma coletividade, em contraste com a água-mercadoria, passível de ser convertida em um produto do mercado.12 A terceira se refere à noção de água sagrada – viva e responsável pela vida – e de água-recurso, ou seja, um elemento inerte e portanto passível de ser controlado.

Os três aspectos anteriores nos ajudam a pensar acerca de uma quarta e última reflexão mais abrangente, referente à relação interdependente entre ser humano e natureza, que contrasta com uma relação dicotômica que situa a última no lugar da exterioridade: “Como o que é exterior não pertence e o que não pertence não é reconhecido como igual, o lugar de exterioridade é também um lugar de inferioridade” (SANTOS; MENESES; NUNES, 2006, p. 19).

Porém, considerando que a modernidade eurocolonial pode ser enxergada à luz de múltiplas alteridades históricas que com ela contrastam (SEGATO, 1998), a atual crise do nosso modelo civilizatório pode encontrar rotas de fuga realmente inovadoras a partir do diálogo interepistêmico e interparadigmático. No caso da crise da água, o Brasil é um terreno fértil para o exercício de escuta da sócio-hidrodiversidade formatada a partir dos mais variados povos – indígenas, quilombolas, dentre tantos outros – sendo o Cerrado, o “berço das águas”, um espaço efervescente de seus saberes e culturas. Vozes como de dona Francisca, dona Flor, dona Alexandrina e dos avá-canoeiros podem nos ajudar a ressignificar o sentido mercantilizador da água e repensar nossas relações entre seres humanos ou entre ser humano/natureza. Conforme anunciado por Boaventura Santos (2006), é possível romper as grades da “indolência” do modelo epistêmico dominante, rumo às novas respostas que potencialmente surgem a partir do encontro intercultural. Enfim, os dilemas que nos atravessam nos exigem a escuta aberta e atenta às populações invisibilizadas pelo paradigma moderno ocidental, a fim de aprendermos com seus saberes, culturas e histórias de resistência.

Referências

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Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Desde a Teoria Quântica, por exemplo, o físico Emilio Del Giudice criou o termo Domínio de Coerência para descrever a habilidade da água de organizar-se em grupos de moléculas, o que aponta para as conexões entre tal capacidade e o desenvolvimento da vida.
3 Estas e outras traduções livres são de nossa autoria.
4 O trabalho de campo foi financiado pelo CNPq, através da Chamada MCTI/CNPQ 16/2016.
5 Após a “chegada” ou “descimento” de cerca de 2.200 Xavantes à Aldeia Pedro III do Carretão em 13 de janeiro de 1788, resultado de longas negociações com lideranças indígenas, entre outras tentativas mais pacíficas de “atração” dos indígenas para fora das áreas ambicionadas para exploração, ocupação ou simplesmente trânsito, necessárias para o escoamento da produção aurífera e das “drogas do sertão”, a população do Carretão cresceu e conformou uma comunidade multiétnica, em que seus descendentes passaram a ser designados como “tapuios” pela população regional não-indígena. Hoje, as designações “Tapuia” e “Tapuios” tornaram-se os termos de designação oficial desse povo para diferenciá-lo dos Xavantes, Xerentes e Karajás, também habitantes do Brasil Central e de quem possuem os mesmos antepassados.
6 Estudos recentes defendidos nos programas de pós-graduação da UnB e UFG, dentre outros, começam a suprir e superar essa lacuna, a exemplo de Rodrigues do Santos (2010) e Borges dos Santos (2019).
7 Bertran (2000) descreve que a primeira expedição “moderna” ao Planalto Central foi liderada por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera II, que significa “diabólico” na língua local. Ele adentrou em Goiás em 1722, tendo retornado a São Paulo em 1725, anunciando a descoberta de ouro na região.
8 Goiás foi o estado que apresentou o maior índice de urbanização na atualidade dentro do contexto brasileiro (BORGES, 2017).
9 Clerot (2009) informa que a palavra “sertão” no Brasil central é uma criação da língua portuguesa que, ao que tudo indica, deriva do termo “deserto” ou “desertão”, como era designado o interior do Brasil na época colonial.
10 Água virtual refere-se ao consumo hídrico por meio da irrigação.
11 Os avá-canoeiros se referem aos não-indígenas como homi, uma pronúncia própria para a palavra homem, ou maíra, demiurgo da cosmologia tupi-guarani responsável pela invenção e transformação do mundo e seus seres e coisas, dentre elas, os objetos que chamamos de mercadorias.
12 Observamos que já se lança contratos futuros vinculados à água, como já acontece com ouro, petróleo e outras commodities. Cf. em https://markets.businessinsider.com/news/stocks/water-futures-to-trade-on-wall-street-first-time-e-ver-2020-12-1029870836


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