Tradução
Aspectos políticos da “nova normalidade” na América Latina1
A política na América Latina conta com traços muito heterogêneos, assentados nas últimas décadas, que têm contribuído a definir com bastante nitidez suas principais linhas mestras fixadas de maneira dinâmica. O resultado são países onde prima o presidencialismo e certas tensões nos processos descentralizadores com profundas diferenças no atinente ao grau de qualidade das suas democracias (ALCÁNTARA, 2020). No entanto, em 2020 se dá um contexto de grande homogeneidade gerado pela pandemia da Covid-19 que chegou à região de maneira generalizada nos últimos dias de fevereiro e primeiros de março e que em agosto não chegava a produzir seu maior impacto, dando passo a um cenário denominado de “nova normalidade”. Esta situação, por sua vez, se sobrepõe a outra de maior densidade configurada paulatinamente ao longo do último quarto de século e definida pela era exponencial2, que tem suposto a irrupção irrestrita das novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs).
O presente texto se divide em duas partes, às quais se acrescentam algumas considerações finais.3 Na primeira, se aborda o cenário político existente no início de 2020 destacando os legados do passado recente, enquanto na segunda parte se enunciam seis aspectos que vão ter uma relevância notável nos tempos vindouros. Seu caráter geral é ensaístico, e sua finalidade principal reside em abrir debates que são necessários no âmbito público e que não deveriam ficar restritos à arena acadêmica. Alguns dos pontos abordados requerem uma validação empírica tanto de seu conteúdo como de seu impacto.
Durante o segundo semestre de 2019, a vida política latino-americana confirmava a inércia que vinha se configurando na região ao longo das três décadas anteriores, integradas às peculiaridades da conjuntura do momento. As eleições serviam para brindar a alternância no governo (Argentina e Uruguai), mas também para mostrar que às vezes o conflito não se canaliza por meio delas, já que são manipuladas, de maneira que acabam sendo parte do conflito, chegando inclusive a incrementar a polarização (Bolívia). Na economia, os dados não haviam sido satisfatórios, com um crescimento anual de 0,2%, ainda que se vaticinasse que em 2020 seria de 1,8%. No dia a dia, explosões sociais de diferentes naturezas estavam presentes em uma parte notável das cidades da região. As cidades de San Juan de Puerto Rico, Santiago de Chile, Bogotá, Lima, Quito e La Paz eram testemunhas de mobilizações que punham em relevo um profundo mal-estar cidadão. O fo condutor não era único, mas passava pela crispação existente contra o poder pela arrogância na sua condução, pela corrupção generalizada, pelas promessas não cumpridas e pela incerteza ante um futuro problemático.
O anterior acontecia em um meio dominado pela manutenção de pautas históricas de profunda desigualdade, precariedade e inseguridade, em que as narrativas, não necessariamente políticas, desenhavam um panorama de polarização extrema. Do lado institucional, o panorama se delineava sobre pautas assentadas com certo enraizamento histórico: o presidencialismo, a regularidade dos processos eleitorais, a tibieza nos processos descentralizadores, o eterno e onipresente papel da corporação militar, agora menos exposta em público, a presença de partidos políticos de naturezas muito diferentes e a inevitável referência à presença dos Estados Unidos que, paulatinamente, desde o início do novo século, e ao menos no âmbito da economia, vinha sendo disputada pelo crescente ativismo da China. Paralelamente, a região se encontrava concluindo um período de esgotamento da maré integracionista que havia vivido no último quarto de século com a quitação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), a grave crise do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), o atrofamento da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a tibieza da Aliança do Pacífico.
Ao fim de 2019, os países latino-americanos, sem evitar as enormes diferenças que justificam análises individuais, como já defendi em um texto recente que reúne análises das eleições ocorridas entre 2017 e 2019, viviam em um cenário de democracia fatigada (ALCÁNTARA, 2020). Este se projetava no já citado malestar imperante em sociedades líquidas, segundo a concepção de Bauman (2002), onde o império cultural do neoliberalismo havia exacerbado o individualismo e o egoísmo. A população, descontente com o público, incrementava seus níveis de desconfança nas instituições e sublinhava sua insatisfação com o funcionamento da democracia. As formas tradicionais de ação coletiva e as lógicas de solidariedade se encontravam profundamente debilitadas pela pressão da competição irrestrita assumida como um padrão cultural de comportamento fortemente assentado, e só havia expressões consistentes mediante a ocupação das ruas, que davam um alto sentido de pertencimento às multidões congregadas.
Por sua vez, a democracia estava fatigada pela falência da função tradicional dos partidos políticos, que enfrentavam um severo desgaste na hora de articular identidades, já que era cada vez menor a identificação cidadã com eles, como para manter a estabilidade nos laços de pertencimento da militância ou de apego dos simpatizantes. Por outro lado, os partidos, que continuaram tendo uma presença vívida no panorama político, como evidencia o fato de que as presidências estiveram ocupadas por pessoas com vínculo - e passado - partidário, foram capturados em sistemas presidencialistas por indivíduos com aspirações particulares. Ademais, os sistemas partidários mostravam, de uma eleição a outra, que o número de partidos crescia, assim como a volatilidade eleitoral. Este cenário supunha uma manifesta banalização da democracia nos termos expressados por Mair (2015).
Outro aspecto peculiar muito generalizável a um bom número de países era a relevância do Poder Judiciário como ator político, ao se converter no executor da responsabilidade política com clara capacidade sancionadora. A evidência dessa afirmação se sustenta no alto número de primeiros mandatários que têm sido julgados (e condenados) na última década como consequência de denúncias de corrupção.4 Este fator constituía uma prática nova na vida política da região.
Um último elemento dessas democracias fatigadas advinha de Estados com capacidades mínimas em sociedades com altos índices de informalidade. Após duas longas décadas de receitas neoliberais, o encolhimento estatal havia chegado a um nível em que sua possibilidade de intervenção mediante políticas públicas era extremamente minguada. A isso se juntavam dois fatores que acabaram sendo traços característicos da política latino-americana: a incapacidade para estabelecer uma função pública meritocrática, profissional e independente do poder político, já que as pautas de recrutamento eram claramente discricionais e incertas, e a negligência na hora de levar a cabo uma política fiscal minimamente progressiva, permanecendo a pressão fiscal em valores médios inferiores a 10 pontos percentuais da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Agora bem, nada do que se assinala a seguir é alheio ao cenário econômico mundial assentado já desde ao menos três lustros e cuja configuração se tem visto fortemente consolidada com a pandemia.5 Trata-se de uma arena dominada por conglomerados empresariais6 de insólito vigor, inseridos na nova economia da matéria escura, do intangível e do simbólico,7 que tem potencializado uma nova forma de capitalismo denominada “capitalismo de vigilância”, com efeitos profundos no jogo da política.8 Sua atuação se ergue sob amparo da mudança transcendental que tem sucedido ao longo do último quarto de século no âmbito das TICs, em que foi uma realidade determinante a capacidade de armazenar os dados gerados e, posteriormente, convertê-los em padrões suscetíveis de serem comercializados,9 adquirindo uma natureza de ativos financeiros.
A presente revolução tecnológica se insere na história da humanidade como uma das grandes transformações havidas em todos os tempos. Seu caráter complexo parece não ter fim; o fato de estar no limiar da denominada “supremacia quântica” e seu imediato impacto no mundo da computação são uma das últimas evidências.10
Desde a perspectiva da política, os novos suportes nas TICs têm um impacto enorme, continuando a pegada que deixou na nossa civilização a expansão da imprensa e saber ler, potencializando a ênfase na fé individual (Lutero), que tanto contribuiu a que a verdade fosse paulatinamente algo de raiz subjetiva até chegar ao momento atual caracterizado por sua grande plasticidade. Ademais, o que vem a revalidá-la é a aceitação social, já que na atualidade “la verdad, en lugar de ser el resultado de testimonios contrastados, se convierte en el veredicto de un referendo constante de audiencia” (BLATT, 2018, p. 105).
As TICs têm sete características que configuram sua frescura e sua transcendência.11 Em primeiro lugar, são universais.12 Em segundo termo, são imediatas, isto é, permitem a conectividade instantânea, em tempo real. Em terceiro lugar, são portáteis e facilitam que a referida conectividade seja permanente e que os usuários se conectem desde não importa onde se esteja, em virtude do acesso praticamente irrestrito. Em quarto lugar, são refexivas e possibilitam a resposta e a interconexão. Em quinto termo, facilitam a hiperconectividade, pela qual se pode estar ao mesmo tempo em diferentes cenários, e são multifuncionais13. Em sexto lugar, permitem agregar e armazenar tecnicamente uma infinidade (milhões) de preferências. Finalmente, sua propagação tem sido vertiginosa, pois o cenário recém-descrito se alçou em um quarto de século.14
Esse panorama se viu alterado radicalmente quando se inicia o segundo semestre de 2020, por causa da pandemia da Covid-19. Se bem esta tenha impactado a América Latina com um pequeno atraso em relação à Europa, o furor da sua presença tem sido sobressalente, tendo um alcance em termos nacionais também muito diferente. Enquanto Costa Rica, Paraguai e Uruguai têm sofrido um nível de infeções e mortes muito limitado, o Brasil ocupa o segundo lugar no mundo em afetados e mortes. México, Peru, Chile e Colômbia têm também altas taxas em relação ao número de habitantes, se situando em meados de agosto entre os 10 países mais afetados pela pandemia. Quanto à Nicarágua e Venezuela, se ignora realmente o nível de extensão e impacto do vírus.
Porém, e sem deixar de reconhecer a importância da reflexão sobre a tragédia humana que advém da pandemia, o objeto deste texto transcende esta última para se centrar nos seus efeitos desde uma perspectiva estritamente política. Ainda que tampouco seja seu objetivo, não há que deixar de lado duas questões primordiais, como a severa crise econômica, que já afeta profundamente os países latino-americanos e cuja saída é muito incerta, e o impacto em nível individual da experiência pessoal vivida durante meses de confinamento, congelamento das relações humanas e incremento de marginalidade, precarização e incerteza generalizada. Os dados do incremento do número de suicídios e das doenças mentais esboçam um panorama social e de sanidade pública preocupante. Isolar o político deste cenário é um exercício banal, mas intelectualmente o mesmo se pode executar, com a convicção de se tratar de um mero processo retórico que, não obstante, pode dar luz às discussões teórica e, quiçá, normativa no atinente à, provável, “nova normalidade”.
Dentro da ampla gama de temas que abarca a Ciência Política e que, em torno do poder, vem referido a âmbitos perfeitamente entrelaçados, como as instituições, os processos, os atores e o comportamento, quero abordar meia dúzia de assuntos concernentes ao âmbito latino-americano, que considero como chave para avançar na discussão. Constituem uma agenda intelectual de indubitável urgência para sua consideração em um momento em que a globalização alcançada ao longo das últimas três décadas tem se evidenciado, como assinalado mais acima, com a expansão a uma velocidade vertiginosa, afetando potencialmente a mais da metade da humanidade em um tempo inverossímil. Trata-se da autoridade, do Estado, da nação, da liderança, da virtualidade institucionalizada e da cidadania líquida.
Um dos assuntos que têm sido considerados em toda parte é o papel da autoridade, nos mecanismos que legitimam seu exercício, no necessário acatamento das suas decisões - o que é mais relevante em um âmbito excepcional como o presente - e no exercício dos meios de controle desta. A pulsão em direção ao autoritarismo para satisfazer às vezes ambições pessoais sob o pretexto de querer obter resultados positivos, a perda de credibilidade dos decisores e o papel desempenhado pelos técnicos têm minado as bases da sempre frágil legitimidade. Isto contribui a incrementar o cenário de fadiga descrito anteriormente.
A legitimidade democrática injeta ao exercício da autoridade doses de aceitabilidade por parte da cidadania que, ademais, confa nela. O respeito às formulações constitucionais e a validação das instâncias de poder de maneira periódica mediante processos eleitorais livres, iguais, competitivos e periódicos têm configurado na região pautas rotineiras de um comportamento que gera hábitos diante dos quais a volta atrás parecia cada vez mais custosa. A própria rotina das eleições, dando a possibilidade da chegada da oposição ao poder, é um mecanismo de consolidação desse estado de coisas. Ao contrário, nos casos com vocação hegemônica em que o poder se perpetua encurralando ou, no pior dos casos, aniquilando a oposição, a autoridade fica deslegitimada. Nicarágua e Venezuela se movem nesse cenário, e Honduras, Paraguai, El Salvador e Bolívia se aproximam.
De maneira similar, cenários de deslegitimação se dão nos casos de conflito radical entre os poderes do Estado. Peru seria um bom exemplo por conta da confrontação entre o ex-presidente Vizcarra e o Congresso, a quem dissolveu e voltou a constituir sem melhorar o cenário, tanto é que ele próprio acabou sendo destituído da Presidência pelo novo Congresso. Paralelamente, o descumprimento das promessas eleitorais ou a ineficiência persistente em solucionar problemas que a população avalia como de primeira necessidade se constitui em elementos tributários do desafeto, antessala das crises políticas mais sérias que podem ter lugar. O apoio raquítico que a cidadania confere a Piñera em termos de avaliação da sua gestão é da mesma maneira um exemplo desta situação.
A pandemia tem exacerbado três aspectos da autoridade na América Latina. Não se trata de assuntos novos, mas seu legado deve ser tido em consideração. Trata-se, em primeiro lugar, da percepção por parte de uma grande maioria de que a autoridade tem atuado sem eficácia por sua improvisação, falta de experiência ou conhecimento e pela manutenção de padrões de favorecimento roçando a corrupção. Em segundo lugar, pela comunicação equívoca na hora de fazer chegar à população as decisões tomadas, com ausência, em muitas ocasiões, de uma linguagem clara e de uma estratégia comunicacional pedagógica. Finalmente, pela deriva na direção de atitudes pouco dialogantes com traços quase autoritários, em que as decisões se impunham “porque sim”, ausente de todo tipo de deliberação ou de consenso.
Sem deixar de estar presente uma forma vicária do Estadorede, segundo o termo cunhado por Castells (1998), o Estado na América Latina, em um cenário prévio de histórica debilidade incrementada pela onda neoliberal que irrompeu ao fim da década de 1980, tem recomposto urgentemente velhas funções. Algumas derivadas de tarefas tradicionais como o controle do território, tanto no relativo às fronteiras como no âmbito interno em relação à limitação da mobilidade das pessoas. A dimensão da segurança tem se apossado da gestão da crise de maneira que as Forças Armadas, assim como as diferentes policias, adquiriram imediatamente um protagonismo enorme que pode chegar a hipotecar o futuro. De fato, já é notável o número de militares que ocupam altos cargos em diferentes governos da região (Brasil, México e Peru, fundamentalmente).
Do mesmo modo, têm cobrado vigência outras funções vinculadas a velhas e fundamentais políticas públicas, como a de saúde. Impedir que não se produzisse o colapso sanitário foi a primeira delas. Logo, se investiram recursos na compra de material sanitário e na construção de unidades hospitalares. Na sequência, ganharam espaço algumas novas, como a proposta do ingresso básico universal ou a possibilidade de recuperar certa porcentagem do investido por parte dos assalariados nos fundos de pensão, como aconteceu no Chile. No entanto, a crônica fragilidade orçamentária desse Estado abriu uma discussão inadiável vinculada ao seu financiamento.
Em muitos países em que sempre esteve presente algum tipo de tensão territorial, têm se dado diferenças entre o poder central e os dos grandes municípios, estados, províncias e departamentos. Em alguns casos, isto vinha derivado de confrontações de origem estritamente política ao se tratar de entidades governadas por partidos opositores. A necessidade de alguns mandatários regionais de criar um contrapeso à força política do presidente tem muito a ver com a busca de melhorar suas opções eleitorais próximas, assim como a dos partidos políticos em que militam. A disputa entre o presidente colombiano e a prefeita de Bogotá é um exemplo disso, assim como o enfrentamento entre o presidente brasileiro e o governador de São Paulo, ou a atitude do presidente salvadorenho sem apoio no Legislativo do seu país, mas pendente de eleições legislativas em 2021. No fim de maio de 2020, sete governadores mexicanos chegaram a um acordo para aplicar sua própria estratégia para sair da emergência sanitária, à margem das medidas ordenadas pelo governo federal; o enfrentamento entre o presidente mexicano e o governador de Jalisco foi notório.
Não obstante, em outros casos o peso da delinquência organizada na gestão da economia local foi o elemento decisivo da disputa. A isto se deve somar a incapacidade do Estado para controlar certos territórios dominados por distintos atores informais que atuam no âmbito da mineração ilegal, do narcotráfico ou da insurgência. É o que explica as razões de que certo tipo de violência, como a exercida contra líderes sociais na Colômbia, não se tenha reduzido durante o confinamento, ao contrário do que ocorreu com o crime comum.
A débil configuração destas comunidades imaginadas que são as nações, e que havia sido questionada nos últimos tempos por razões identitárias baseadas no étnico, fundamentalmente, mas também no religioso e no gênero, cobrou de pronto um insólito vigor. Se nos primeiros momentos do presente século se popularizou o termo “plurinacional”, agora, envoltos na bandeira nacional, se tratava de cerrar fleiras frente a um desconhecido inimigo que vinha de fora e que transcendia as divisões identitárias configuradas. A retórica patriótica recheou as locuções públicas com palavras como “defesa” e “solidariedade nacional”. Igualmente, se promoveram programas baseados nas proclamas de “juntos sairemos” e de “saímos mais fortes”. Do mesmo modo, e em conjunção com o ponto anterior, a lógica da centralização se impôs sob a ideia de uma só nação como estratégia racionalizadora e de maximização planificada de recursos.
É interessante ressaltar em que medida o tamanho populacional teve uma relevância notável neste assunto. O Departamento de Antioquia na Colômbia, cuja capital é Medellín, conta com uma população em torno de 6,4 milhões de habitantes. Até o início de junho de 2020 os dados de infecções e mortes por Covid-19 eram cifras menores às registradas no Uruguai, com 3,4 milhões de habitantes. Enquanto o Uruguai reforçava sua imagem nacional pelo êxito alcançado frente à pandemia, Antioquia passava despercebida, e só certos setores com um maior sentido de pertencimento exibiam uma sorte de orgulho pré-nacional. Algo similar ocorreu em países com confrontações regionais tradicionais, como foi inicialmente o caso de Guayaquil frente à Serra em Equador ou do Oriente boliviano frente à conurbação de La Paz.
Em países em que o presidencialismo é o sistema de governo imperante, a liderança vem condicionada ao próprio processo de eleição presidencial, assim como as faculdades e a experiência de quem chega à Presidência. O afastamento do mundo partidário, a disputa com os outros poderes do Estado e, consequentemente, o domínio da cena política são traços habituais do presidencialismo na vida política latino-americana. Uma crise como a da Covid-19 projeta uma gama diversa de respostas presidenciais em função dos diferentes contextos e, por sua vez, uma utilização política distinta da pandemia.
A crise tem permitido o exercício de formas de comunicação verticais, alheias ao debate ou ao questionamento com interlocutores. A eliminação de conferências de imprensa com perguntas sem roteiro prévio, o uso de exposições presidenciais diretas à nação sem margem para seu questionamento e a busca da construção de uma imagem presidencial sólida e eficaz foram instrumentos de uso permanente. Paralelamente, se construiu um discurso apoiado por técnicos para endossar as decisões. Tratavase de pessoal não independente, e sim próximo ao governismo, fazendo com que as dúvidas surgidas em relação aos diagnósticos e às propostas a seguir se incrementassem.
Hoje, há dados suficientes para saber que a opinião pública abalizou, sobretudo, as atuações nos primeiros meses de Alberto Fernández, Nayib Bukele, Carlos Alvarado, Martín Vizcarra, Iván Duque e, inclusive, Sebastián Piñera, cujos índices de aprovação se incrementaram. A partir de junho de 2020, não obstante, essas cifras de apoio descenderam em todos os casos, chegando Piñera a ter uma aceitação próxima a 10 pontos percentuais, ou seja, similar à que tinha em plena crise das mobilizações populares no Chile durante o último trimestre de 2019. Por outro lado, a opinião pública avalia negativamente as atuações de Jair Bolsonaro, Lenin Moreno e Nicolás Maduro. Daniel Ortega permanece em um cenário intermediário. De qualquer maneira, nenhum presidente latino-americano tem sido capaz de se alçar sobre seus pares para exercer uma liderança regional, em consonância com o que ocorre em nível global.15
A pandemia tem evidenciado em que medida as transformações na direção do virtual se apossaram do cotidiano de algo mais do que a metade da sociedade por meio das comunicações interpessoais, do trabalho em casa e do entretenimento nos lares. Isto é particularmente significativo em países com índices de informalidade que em média se situam em torno de 50%. Porém, no âmbito do jogo político se registra uma preguiça notável em dar o salto digital. Três são os níveis em que esta situação se tem feito patente. Em primeiro lugar, a pandemia obrigou a adiar os comícios presidenciais e legislativos na República Dominicana (celebrados finalmente em 5 de julho) e na Bolívia (realizados em 18 de outubro), assim como o plebiscito constitucional chileno até 25 de outubro de 2020. As instituições eleitorais não têm sido capazes de articular o exercício do voto seguro com mecanismos que reduzam a presença simultânea do eleitorado no único dia marcado para a eleição. Nem o voto por correio, nem o voto virtual, nem a ampliação da jornada eleitoral a várias datas parecem ser contempladas como vias de atuação.
O segundo nível se refere à operabilidade das instituições. Ao longo dos últimos meses, a menor atividade do Poder Legislativo e a quase total inatividade do Poder Judiciário têm sido a nota dominante para a maioria dos países latino-americanos. Dominados por uma lógica de funcionamento, baseada na presença física dos atores e atados por regulamentos muito rígidos, os Congressos decaíram nas suas funções, reforçando o papel dos governos livres de todo tipo de controle ou de uma contraparte que pudesse oferecer alternativas às políticas postas em marcha.
Em terceiro lugar, se encontra a participação dos indivíduos. O ativismo de boa parte da sociedade nas redes sociais tem pouco correlato em instâncias públicas, em que a participação cidadã não está regulada. O primeiro Índice GovTech de Ibero América16 estabelece uma classificação dos países latino-americanos encabeçada por Chile (5,3), Brasil (5,2), México (5,2), Uruguai (5,1) e Colômbia (5), que lideram ao menos um indicador. Os seguintes na lista são Argentina (4,1), Costa Rica (4), Peru (4), Panamá (3,9), República Dominicana (3,7), Bolívia (3,6), Equador (3,6), Paraguai (3,4) e Venezuela (2,3). Espanha tem uma pontuação de 6,6 em 10, seguida de Portugal (6,2).
Estes âmbitos, que se vinculam ao das capacidades estatais, também se conectam com a precariedade generalizada na obtenção de estatísticas públicas. A pandemia pôs em evidência severos déficits no funcionamento de registros civis, a inexistência de dados de censo atualizados, assim como registros vinculados com práticas existenciais e de convivência. As novas TICs são grandes instrumentos de ajuda, mas o fato de que estão em mãos de empresas privadas, que, ademais e como já se mencionou ao início, dominam hoje a economia mundial, condiciona seu uso por parte dos poderes públicos.
Por último, parece evidente que os efeitos do confinamento na população vão se agregar a algum dos traços que se vêm configurando nos últimos tempos, vinculados fundamentalmente aos hábitos de vida criados na era exponencial. As novas TICs impactaram severamente uma sociedade líquida, de acordo com o termo cunhado por Bauman (2002), surgida após o êxito do neoliberalismo, ao menos no terreno cultural. Os valores do individualismo e da competição se encontravam assentados em amplos setores da população latino-americana. O resultado, em termos da nova cultura política esboçada, impactou sobretudo em dois âmbitos fundamentais da política, como são a confança e a identidade que, por sua vez, se estão vendo afetados durante a pandemia.
A construção e a perda da confança estão em tensão permanente, algo que se acrescenta nos últimos tempos pela ameaça que supõe o anonimato dos meios digitais e pela agregação também anônima das preferências por mecanismos populares nas redes sociais, de aprovação ou desaprovação. O cenário de confinamento e o império do medo provavelmente têm minado nos últimos meses o exercício político. Se se falava continuamente da falta de confança nas instituições ou na classe política em termos das consequências que isto acarreta para a legitimidade da política, é possível que agora este cenário se tenha potencializado. Ademais, o trabalho de implementá-la se vincula ao triunfo de um determinado projeto político.
Por outro lado, se encontra o assunto da densidade do capital social, considerando a proposta de definição de Putnam (2000), segundo a qual a confança não é produto de uma ação individualista, e sim um ativo social que os indivíduos constroem de maneira coletiva no marco das comunidades. Mas, complementarmente e voltando às novas TICs, cada vez pareceria mais factível usar mecanismos de blockchain para restabelecer a confança perdida, graças ao estabelecimento de dispositivos que asseguram a integridade e a veracidade da informação. No entanto, este é um passo que ainda não foi dado no âmbito público.
Na geração de Facebook há um crescente apreço ao ego e ao narcisismo, os quais se estendem à sociedade. Paralelamente, o diálogo na sua expressão clássica, entendido como deliberação, aparece como relíquia e, inclusive, fica criminalizado, na medida em que, nas redes nas quais as pessoas se movem por inumeráveis estímulos, se potencializa o ressentimento identitário e se anula o pensamento complexo. Constroem-se identidades sobre a definição do eu que têm dificuldades de se expressar politicamente porque, ademais, a política não desperta simpatia. São identidades que se baseiam em emoções que exigem não só respeito como garantia de que os sentimentos não sejam ofendidos. Ou, como assinala Lilla (2018), quando se apresenta um assunto exclusivamente em termos de identidade, se convida a que o adversário faça o mesmo. Isto é, se produz a potencialização do eu mediante mecanismos de autoprojeção baseados nas novas tecnologias. O confinamento ao longo de tanto tempo pode estar contribuindo a incrementar esta situação.
Há dois aspectos mais sobressalentes que, desde a perspectiva das ideias, a pandemia trouxe consigo. O primeiro tem a ver com o fato de haver refrescado o pensamento de Foucault para recordar que o corpo vivo é o objeto central de toda política. Os dados que se colhem sobre o impacto da Covid-19 a 10 de agosto de 2020 mostravam que o número de casos de contágio superava os 20 milhões e o de mortos os 750.00017, tudo isto em um lapso de sete meses. Todos estes seres humanos são o centro de atenção da política e, na sua condição de “casos”, podem explicar as políticas levadas a cabo, mas também podem ser considerados como efeito das políticas empreendidas. O imenso laboratório em que se constituiu o mundo permite especular sobre o amanhã impreciso e a construção do político sobre a base de dor, medo, frustração e incompetência, mas também sobre as novas oportunidades para a reconstrução da ordem política com o amparo do desenvolvimento das TICs, posteriormente a uma tomada de consciência do destino em direção ao qual se querem dar os passos.
Preciado (2020), relendo a Foucault, afirma que “la tarea misma de la acción política es fabricar un cuerpo, ponerlo a trabajar, definir sus modos de reproducción, prefigurar las modalidades del discurso a través de las que ese cuerpo se ficcionaliza hasta ser capaz de decir “yo” [...]. [De esta manera] es posible elaborar una hipótesis que podría tomar la forma de una ecuación: dime cómo tu comunidad construye su soberanía política y te diré qué formas tomarán tus epidemias y cómo las afrontarás”.
O segundo aspecto está relacionado com a questão da vigilância. Um assunto que está também muito presente na obra de Foucault, mas que tem adquirido uma relevância notável com as TICs. Há duas obras recentes de natureza muito diferente que enfocam isto. Trata-se dos trabalhos de Snowden (2019) e Zubof (2019), já abordados anteriormente. Enquanto Snowden (2019, p. 277) insere sua reflexão (autobiográfica) no poder concreto das instâncias de segurança estadunidenses que acabam sendo “menos potente contra el terrorismo que contra la libertad misma”, Zubof (2020) sublinha como, no novo capitalismo, “las experiencias de las personas son reclamadas de modo unilateral por empresas privadas y convertidas en fujos de datos patentados”. Há uma grande coincidência em torno da ideia de que “la tecnología digital nos ha llevado a una era en la que, por primera vez en la historia desde que se tienen registros, los denunciantes más effectivos llevarán de abajo arriba” (SNOWDEN, 2019, p. 322), juntamente com o fato de que “la gente sencillamente no se daba cuenta de qué estaba pasando y cómo funcionaba en realidad la nueva lógica económica” (ZUBOFF, 2019). Este cenário se vê potencializado com a Covid-19 em dois níveis que se complementam: o medo que invade a muitos setores da sociedade e a aceitação das políticas de vigilância para “evitar males maiores” que viriam da aceitação de aplicativos que permitem rastrear o vírus.
Uma reflexão dessa natureza, com base nos dois aspectos citados, serve para repensar a forma em que se expressa a política da “nova normalidade”. Se cada sociedade vai poder se definir pela pandemia que a ameaça e pelo modo de se organizar frente a ela construindo muros para proteger as fronteiras, reforçando sua identidade nacional, inoculando na sua cidadania o vírus do medo e caindo na tentação de seguir um líder, como confrontar o alheio quando toma uma forma infecciosa?
Por outro lado, qual vem a ser a nova configuração do poder? A velha necessidade do controle social que sente uma parte da cidadania imbuída pelo medo e por uma exacerbação da autorresponsabilidade frente ao resto mais relaxado desempenha uma função primordial de sanção em complemento do exercício do poder. Paralelamente, graças às TICs, a soberania é, sobretudo, “transparencia digital y gestión de big data” (PRECIADO, 2020, grifo do autor), instâncias sobre as quais os Estados têm capacidades muito limitadas. É soberano quem tem os dados (HAN, 2020). Só nos Estados Unidos ou na China o poder político se pode permitir decidir quais empresas são sócias do empório governamental e definir as condições de colaboração; o resto dos países é um observador silencioso do que, possivelmente, será uma nova guerra fria entre duas potências.
Finalmente, a Covid-19 tem potencializado os níveis de individualismo que se avistavam nos últimos lustros. O vírus nos isola e individualiza (HAN, 2020), sendo a máscara ou a epiderme a nova fronteira (PRECIADO, 2020). Para outras instâncias, restam as clássicas funções de vigiar e castigar. Desarticuladas paulatinamente as velhas formas de intermediação política, pareceria que a ansiada democracia direta pudesse estar próxima, mas esta possivelmente não seja senão uma isca, pois as decisões já estarão tomadas.