Tradução

Tom, o Naturalista1

Multinaturalismo, storytelling e o sublime metamórfico: comentários sobre a leitura e a tradução de “Tom, o Naturalista”

Michael Taussig
Columbia University, Estados Unidos
Carolina Parreiras
Universidade Estadual de Campinas, Brasil

Tom, o Naturalista1

Revista Sociedade e Cultura, vol. 24, e69293, 2021

Universidade Federal De Goias (UFG)

I

Nos anos 40, quando eu tinha 6 anos de idade e crescia em Sidney, em uma casa em uma foresta, com um riacho nos fundos cheio de lagostins e uma cobra verde brilhante próxima à caixa de correio, eu amava ouvir o programa de rádio semanal Tom, o Naturalista, durante a Hora das Crianças. De acordo com o que me lembro, não era somente sua voz calorosa e seu olhar de contador de histórias voltado para o peculiar que me prendiam, mas o fato de que ele abria um espaço encantado, não tanto biológico quanto aventureiro. Era proto-biopolítico, em um formato para crianças.

O fato de ser não visual era o ponto-chave. Isso era a Austrália antes da TV e das telas de telefones celulares e muito era deixado para a imaginação, especialmente para uma criança relaxando no tapete em frente ao alto-falante. Por quê! Era como se a criança se tornasse um animal, vamos dizer um tubarão, guiado pelas ondas de som e o casual peixe-piloto saindo, como uma fecha, dos botões brilhantes do rádio.

Naquele tempo, como agora, os animais eram a fonte de uma curiosidade sem fim; só que agora é diferente. Bem diferente. Antes, o que era reservado somente às crianças é hoje a parte mais importante para os adultos e o mundo não está apenas desaparecendo, mas se reencantando em um ritmo frenético. Investidores astutos estão colocando seu dinheiro em programas sobre a natureza, enquanto o tapete está sendo puxado de nossos pés na medida em que descobrimos cotidianamente muito mais sobre os animais que:

  1. Uma vez foram

  2. Que uma vez nós fomos

  3. Que uma vez fomos nós.

Isto levou a cosmologias alternativas a respeito dos mundos humano-animal até o ponto de prever a imensa plasticidade do humano no animal, não menos do que do animal no humano. Isso é muito para dar conta, então, para tornar mais simples, eu dei um nome: o sublime metamórfico. Este é um nome que enfatiza o fuxo e a instabilidade, bem como a transformação e a hibridez. Pense naquela criança na casa na foresta ouvindo Tom, o Naturalista, com o riacho ao fundo cheio de lagostins e uma cobra verde brilhante perto da caixa de correio. Agora, nós todos somos aquela criança. Pense nisso e depois multiplique por n+1.

O que aconteceu é que o mundo reconfigurou a imaginação do adulto a respeito da imaginação da criança não menos do que a imaginação da criança sobre os adultos. Agora tudo é cobras verdes perto da caixa de correio e lagostins encurralados. A virada ambiental que atinge o planeta tem desfeito as amarras do desencantamento que, por vários séculos e especialmente desde o Iluminismo e a Revolução Industrial, formaram o senso comum. Ao invés disso, uma mistura de ficção científica e algo como o Surrealismo tomaram seu lugar, um tipo de “surrealidade obscura” de Max Ernst, cheio de humor macabro e pressentimento.

Meus primeiros pensamentos nessa direção aconteceram há vários anos atrás ao ler com grande prazer as primeiras páginas do livro, de 1949, de Blaise Cendrars, chamado Le Lotissement du ciel (o título em inglês é Sky: Memoirs), em que ele descreve detalhadamente e com sagacidade e pressentimento alguns dos animais que ele está escoltando (ou eu deveria dizer, sequestrando) em um cargueiro do Brasil à França antes da 2ª Guerra Mundial. Foi lendo sua descrição do tamanduá que a ideia me veio – banal e perspicaz –, de que todos os animais são surreais, até mesmo meus gatos. (Especialmente meus gatos). A partir de seu próprio nome (comedor de formigas em inglês), sem falar de sua aparência e de seu comportamento, o tamanduá desloca a realidade, isso é uma certeza, e faz isso de maneiras surpreendentes. Um vivaz escritor, de algum modo um tamanduá, ele mesmo, Cendrars, é um surrealista de nascença, em vários aspectos uma criança crescida (e um roteirista de Hollywood). Mas realmente ele não tem que tentar muito para tornar este animal surrealista. O tamanduá faz tudo isso ele mesmo, enrolando e desenrolando sua longa língua 150 vezes por minuto para pegar 35 mil cupins ou formigas a cada dia. Você pode imaginar? Você consegue se imaginar esticando sua língua e a colocando em um formigueiro?

Uma loucura! E certamente este é o ponto – ou pelo menos um dos pontos –, significando o inevitável antropomorfsmo que nós humanos impomos aos animais, no que, eu suponho, é uma reciprocidade que vai e vem, com o animal fazendo sua parte também. No que se refere a crianças pequenas, é esse vai e volta, essa fascinação pela diferença, que eventualmente consolida os pequeninos no molde do homo sapiens e faz com que parem de comer cupins. Mas certamente boas lembranças da tromba do elefante e dos macacos correndo nas canções infantis e livros ilustrados perduram como formas alternativas de ser?

De qualquer forma, há aqui uma triangulação interessante entre o animal, a criança e o adulto. É algo como o jogo Papel, Tesoura, Pedra, mas mais dialético, poderíamos dizer, no sentido processual da dialética batailliana ou deleuziana, em que um espelho distorcido é formado a partir da imaginação do adulto sobre a imaginação da criança sobre os animais, agravado pela extinção de animais reais e sua substituição por animais virtuais.

Em seus primeiros escritos, Walter Benjamin opinou que crianças pequenas se dissolviam nas ilustrações coloridas de seus livros. Isso era parte da teoria das cores que ele estava desenvolvendo. A mesma ideia ressurgiu em suas proposições sobre o espectador no cinema, no famoso ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Neste ensaio, ele sugeriu um movimento bidirecional adentrando a imagem e também um movimento da imagem para o corpo do espectador, sendo que esta última ideia foi também desenvolvida por Aby Warburg, em relação à pintura.

Mas o que dizer de crianças ouvindo histórias pelo rádio em um mundo sem TV? Isso não seria equivalente àqueles livros ilustrados? Na realidade, não seria mais provável que o rádio permitisse que a criança entre na imagem (falada) do que as ilustrações coloridas? E aqui o corpo parece muito importante à medida que a criança rola no chão, virando nessa e naquela direção, como um tubarão, eu sugeri, a partir da sugestão visual do mostrador brilhante do rádio jorrando peixes. Ainda mais, esse espaço auditivo parece muito mais provável de encantar do que o visual. Ao ouvir uma história no rádio, a mente é menos fixa, é mais propensa ao fuxo e a metamorfoses, bem como a uma boa dose de estímulo à multitarefa, o que, no caso dos adultos, toma a forma de se ouvir enquanto dirige ou enquanto cozinha ou faz limpeza.

De fato, em seu ensaio sobre o narrador, Benjamin se apodera do estado mental de transe envolvido em tarefas semiautomáticas, entediantes, repetitivas como sendo as melhores situações para ouvir histórias. Este ensaio estava focado nas histórias do século XIX do russo Nikolai Leskov, bem como na narrativa oral de histórias. Mas Benjamin não menciona a contação de histórias pelo rádio, apesar do fato de que ele mesmo escreveu algo em torno de 80 histórias de rádio para crianças no final dos anos 20 e começo dos 30, histórias que frequentemente falavam sobre a arte de escrever e contar histórias como estas.

Foi apenas décadas depois da tradução em inglês do ensaio sobre o narrador que algumas dessas histórias de rádio foram conhecidas, sugerindo que agora é o momento para uma comparação que, em minha opinião, provavelmente reconhecesse e aprofundasse a compreensão da imaginação do adulto sobre a imaginação da criança do adulto.

II

O que estranhamente me leva a um momento de hesitação frente às garras mortais do tamanduá quando meu amigo Santiago Mutumbajoy, na região do Putumayo, situada na parte superior da Amazônia colombiana, me contou o quão assustador era caçar um tamanduá. Oso Hormiguero, como ele chamou o tamanduá, e que eu vou traduzir como ‘Ant Heap Bear’ (Urso de formiga). Ele estava ali, no seio da natureza, alegremente matando a exótica vida selvagem, tal como quando, em nossa viagem para Machu Picchu, no Peru, com um galão de yagé/ayahuasca, nós paramos no Oceano Pacífico peruano, já que ele nunca tinha visto um oceano.

Um morador local nos levou para o mar, em um bote furado, junto com dois turistas italianos, para ver as focas. O céu cambaleava enquanto o bote subia e descia nas ondas. Santiago, que tinha por volta de 70 anos e visão muito diminuída, de repente, se inclinou no lado do bote com suas mãos cerradas, como se segurasse uma lança, que ele lançou para as profundezas. Apesar de sua pouca visão, ele sentiu o que nenhum de nós viu. “Foca”, ele exclamou baixinho. “Foca”, ao mesmo tempo animado e irritado por não ter uma arma. Os italianos estavam mortificados. “Foca bonita, foca belíssima”, eles exclamaram, tentando envergonhá-lo. O Nobre Selvagem era mais selvagem do que eles tinham barganhado.

De volta à costa, eu estava satisfeito de apresentar a Santiago o camarão, que ele comeu sem comentários. Mais tarde, no fim de tarde, em nosso alojamento, ele olhava para os pássaros voando de árvore em árvore.

“Queria ter uma espingarda”, ele disse.

“Por que?”.

“Porque eu poderia matar alguns desses pássaros”.

“Mas isso é loucura. Eles são tão pequenos, não tem nada para comer”.

“Mais do que aqueles camarões que você serviu!”.

E isto vindo de um homem que estava há milhares de milhas de casa, onde eu tinha uma vez (e apenas uma vez) o visto se transformar em um jaguar. A metade superior pelo menos. A metade inferior era humana, balançando na rede com suas calças escuras enroladas e seus pés descalços com os dedos espalhados depois de décadas andando descalço, de modo que seus pés pareciam garras, como as do jaguar ou talvez do Oso Hormiguero. Ele também estava cantando, aquela canção noturna que é mais um murmúrio que uma música, o sussurro que vem dos espíritos do yagé (É o que dizem). Para mim, soa como um dueto, um vai e vem, entre o vento vindo do rio e o coaxar de inúmeros sapos, vibrando na lama milenar. Gado pisando forte no curral. Cachorros latindo.

Então aqui havia algo para pensar no que diz respeito ao multi-naturalismo, uma malha entrelaçada de espírito e música, animais e humanos em desacordo aventureiro não totalmente diferente, realmente, de se deitar no tapete em frente ao rádio, imaginando os animais conjurados por Tom, o Naturalista.

III

Anos se passaram. A criança cresce e perde essas imaginações proibidas pelo senso comum até que, um dia, como aluno de primeiro ano de Medicina, ele vai para um curso de zoologia cheio de alunos e encontra os mais maravilhosos desenhos de animais feitos com giz colorido indo de uma parede à outra. Sim! Era o mesmo Tom, o naturalista! E ele deve ter gastado horas desenhando estes animais (isso se você puder chamar o interior de um cação e afins de animais). Quando a aula acabou, os desenhos seriam apagados sem nenhuma cerimônia. Na próxima semana, outro desenho tomaria seu lugar e seria também apagado, não muito diferente das idas e vindas das imagens alucinatórias do yagé – só que nós, idiotas na plateia, não tínhamos a menor ideia das pérolas que estavam sendo lançadas aos porcos que nós éramos. Nós queríamos slides fotográficos.

O que me chama atenção nisso é o quão bonito era aquele momento frágil, agora banido pela brutalidade do Power Point e, em segundo lugar, o ritmo de encantamento para desencantamento, depois reencantamento mais uma vez; do tempo da criança deitada no chão escutando rádio para o adolescente se livrando de todos aqueles lagostins e da cobra verde perto da caixa de correio até se tornar um garoto sensato sem tolices, mas então sendo re-acordado pelos animais em giz colorido dançando durante a sua uma hora de liberdade pelo quadro negro, de parede a parede, em uma sala de universidade e fazendo ressurgir o mundo da criança de 6 anos de idade.

É frequentemente dito que não apreciamos algo até o perdermos e eu acredito que isso valha para o interesse renovado em animais e nas possibilidades para uma comunhão diferente com eles e deles conosco.

Temos, há tanto tempo, estado sujeitos ao tropo do desencantamento em um mundo material-materialista, que é difícil hoje lidar com o reencantamento sem soar como um sonhador fascinado. Em grande parte, isto é, porque o que está acontecendo agora é um encantamento pernicioso, em um mundo que caminha para a destruição e para o qual não temos uma linguagem ou recursos culturais.

Esse deve ter sido o dilema dos dinossauros quando desapareceram da face da Terra, buscando meios de expressão adequados para sua extinção. Enquanto isso, as palavras falham, à medida que em minha memória os animais coloridos de giz dançam no palco.

Fim

Referências

BENJAMIN, Walter. A Hora das Crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2020.

CLIFFORD, James. Routes. Travel and Translation in the late twentieth century. Cambridge/London: Harvard University Press, 1997.

PARREIRAS, Carolina. Entre a prática, a teoria, a escrita e a experimentação etnográficas. Entrevista com Michael Taussig. In: Revista de Antropologia, vol. 63, n. 3, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/177099. Acesso em: 31 maio 2021.

PARREIRAS, Carolina; VALENTE, Juliana. NYPD Blues: o desafio de traduzir e a atualidade de interpretar Taussig. In: Ponto Urbe. vol. 27, 2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/pontourbe/9917. Acesso em: 1 jun. 2021.

TAUSSIG, Michael. Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

TAUSSIG, Michael. Walter Benjamin’s Grave. Chicago/London: University of Chicago Press, 2006.

TAUSSIG, Michael. Mastery of Non-mastery in the Age of Meltdown. Chicago/London: University of Chicago Press, 2020.

TAUSSIG, Michael. Tom the Naturalist. In: Art+Australia. vol. 57 (I), University of Melbourne, 2021.

Notas

1 O texto original – “Tom the Naturalist” – foi publicado na revista Art+ Australia, vol. 57, de março de 2021. Uma versão anterior do ensaio foi apresentada na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA). A tradução ao português foi feita por Carolina Parreiras, sob autorização do autor. A tradutora agradece imensamente ao professor Michael Taussig pela autorização para traduzir este ensaio, bem como por tão prontamente ter aceito o convite para ser um dos conferencistas da 32ª RBA. Os agradecimentos se estendem a Tessa Laird, editora da revista Art+ Australia, pela gentileza de autorizar a tradução e por enviar de tão longe a belíssima cópia física da revista. Esta atividade de tradução se insere no âmbito do projeto Fapesp 2019/00897-7, que tornou possível a realização, pela tradutora, de intercâmbio intelectual, como visiting scholar e sob supervisão do professor Michael Taussig, na Columbia University in the City of New York. A revisão técnica da tradução foi realizada por Juliana Valente (Graduate Center – CUNY).
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