Apresentação
Ciências Sociais e Covid-19: contribuições epistemológicas e desafios metodológicos
Ciências Sociais e Covid-19: contribuições epistemológicas e desafios metodológicos
Revista Sociedade e Cultura, vol. 24, e70079, 2021
Universidade Federal De Goias (UFG)
A revista Sociedade e Cultura apresenta nesta edição o dossiê “Ciências Sociais e Covid-19: contribuições epistemológicas e desafios metodológicos”. Ele reúne trabalhos das ciências sociais que, a partir de distintas abordagens, objetos e contextos, fazem discussões inovadoras sobre a pandemia do novo coronavírus, por meio de contribuições teóricas e empíricas que mostram a relevância das nossas áreas para a análise dos processos culturais, políticos e sociais relacionados à crise de saúde.
No artigo que inaugura o dossiê, “Covid-19 na perspectiva de vulnerabilidade e direitos humanos: reflexões desde Argentina”, Mario Pecheny traz reflexões sobre os temas saúde e direitos humanos, apresentando uma perspectiva latino-americana em torno da noção de vulnerabilidade. Em seguida, o autor analisa criticamente os modelos de pesquisa e intervenção em saúde, reconstruídos a partir das políticas em relação ao hiv e à aids, para pensar o direito à saúde e as políticas de saúde em tempos de Covid-19. Traz, ainda, resultados de uma investigação sobre as preocupações e demandas de profissionais de saúde em face da pandemia na Argentina. Por fim, discute o tema da morte e recapitula desafios essenciais para considerar o direito à saúde ou, mais amplamente, o vínculo entre saúde e direitos humanos em relação à pandemia e o que está por vir.
Na sequencia, o texto de Pablo Pérez Navarro, intitulado “Risco e biopolítica: Requiem por uma pandemia”, traz reflexões em torno das noções de risco e de contágio na construção do Outro como ameaça, com base na experiência social do espaço público durante a pandemia de Covid-19. O autor lança mão de elementos da psicologia social do risco, aproximando a vida midiática de tais fatores a coordenadas biopolíticas semelhantes às do cenário pós-11 de setembro, discutindo a proliferação de sobreposições, híbridos e alternâncias entre o laissez faire neoliberal e as respostas punitivas e de hiper-securitárias à pandemia. Como alternativa, Navarro defende a necessidade de avaliar criticamente as políticas de resposta à pandemia em um quadro transnacional interpandêmico.
No trabalho “Necropolítica, poder e significados da pandemia do coronavírus: uma abordagem antropológica”, Jaqueline Ferreira, por meio de análise bibliográfica, de reportagens midiáticas e de postagens em redes sociais, refete desde uma perspectiva antropológica sobre o contexto brasileiro face à pandemia de Covid-19, a partir de dois impactos: o provocado por respostas governamentais relacionadas com o que a autora nomeia como questões ideológicas e o causado pelo isolamento e pela quarentena no que tange a mudanças de rotinas. Desse modo, analisa significados simbólicos que a doença produz em relação às transformações de hábitos e comportamentos, sobretudo no que se refere ao uso de máscaras e práticas de desinfecção de ambientes e de objetos.
Em “As mediações no desenvolvimento de um tratamento para a Covid-19: pescando actantes”, Bruno Rossi Lorenzi, Tarcísio de Sá Cardoso e Julio Cesar Cetrulo Lorenzi recorrem à obra de Bruno Latour para analisar a busca da comunidade científica por um tratamento. O artigo conta com relatos de campo de um cientista envolvido no trabalho de pesquisa do Laboratório de Imunologia Molecular (MIL) da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos. Relacionando o caso com os conceitos de Latour, os autores verificaram a mediação que envolve os artifícios utilizados para identificar, capturar e replicar as células B capazes de combater o vírus, a ação dos não-humanos necessários para tal, como o uso de uma isca proteica para “pescar” as células B, e o encadeamento em rede desses elementos para o desenvolvimento do tratamento.
No artigo “Distanciamento social ou distanciamento do social? Uma abordagem não-antropocêntrica em Antropologia”, Cristian Terry apresenta os Estudos da Ciência e da Tecnologia, a Teoria Ator-Rede e a Antropologia “além do humano” como abordagens não-antropocêntricas nas ciências sociais, que consideram tanto entidades humanas quanto não-humanas como parte do chamado mundo social. Nessas chaves, nos traz um artigo crítico da noção de “distanciamento social”, indagando sobre os modos como “social” apresenta-se, a partir dela, associado apenas a seres humanos. O autor indaga se distanciamento físico ou corporal humano não seriam noções mais instigantes para a reflexão acerca da transmissão de Covid-19 entre humanos. Nesse sentido, questiona se a noção de distanciamento social não “distancia o social”, estreitando sua complexidade.
Pensando as relações de trabalho de uma ocupação considerada essencial em momentos de isolamento social da pandemia, Sidnei Machado e Alexandre Pilan Zanoni centram sua análise nos entregadores por aplicativos em “O trabalho em plataformas digitais: direitos, Covid-19 e problemas emergentes”. Os autores buscam compreender as configurações do trabalho uberizado, as formas de organização e resistências frente aos impactos da pandemia na atividade. A partir da análise de questionários com entregadores/as de cidades de todo o Brasil e de um grupo focal realizado em Curitiba, observam a formação de um consenso sobre uma regulamentação mínima da ocupação com reivindicação de direitos diante do alargamento dos tempos de trabalho e queda da remuneração de entregadores/as no período.
Outro setor que sofreu consequências consideráveis em razão da necessidade de distanciamento para evitar a contaminação foi a cultura. Em “A pandemia da Covid-19 e seus impactos no setor cultural brasileiro”, Mariana de Araujo Aguiar e Luciana de Araujo Aguiar analisam as consequências da pandemia entre artistas no Brasil, identificando a virtualização do setor cultural, com a multiplicação de transmissões ao vivo de áudios e vídeos pela internet como efeito da interrupção de atividades e eventos artísticos e culturais. Segundo a percepção de artistas entrevistados/as, a escassez e ineficiência de políticas públicas para a cultura nos últimos anos foi exacerbada na pandemia, com ausência de gestão democrática da política cultural brasileira.
No trabalho “Nós sobrevivemos a tudo! Cuidado e trabalho colaborativo entre os povos Kukama Kukamiria da Amazônia peruana em relação à Covid-19”, María Eugenia Ulfe e Roxana Vergara apresentam uma discussão antropológica sobre como povos indígenas das terras baixas do rio Marañón, na chamada Amazônia peruana, responderam à atual pandemia. A análise se situa nas margens do Estado e em ambientes contaminados por petróleo, onde as comunidades Kukama Kukamiria têm realizado ações de cuidado como atos políticos de sobrevivência. As autoras apresentam elementos etnográficos importantes para situar como, nesse contexto, formas de trabalho colaborativo não assalariado, que não são reconhecidas no sistema capitalista, se configuram em ações políticas de sobrevivência contra ele próprio. No artigo, descrevem densamente tais cuidados nesse cenário de ausência de reconhecimento e de exploração, pelo Estado, dos povos indígenas amazônicos. Analisam, além disso, como a noção de cuidado traz desafios metodológicos, políticos e éticos que precisam ser considerados quando se trata da produção de uma etnografia remota, à distância, virtual, sugerindo assim como saída uma proposta metodológica de trabalho colaborativo.
Com foco em outro país sul-americano severamente afetado pelo novo coronavírus, Philipp Altmann, Rafael Polo, Katiuska King e María Rosario Maldonado argumentam que a pandemia significou uma crise grave para o Equador, ao provocar rupturas nos conhecimentos prático, científico e emocional da população equatoriana. O artigo “Verdades e mentiras sobre a Covid-19 no Equador: ruptura de conhecimentos e seus efeitos sociais” se baseia em uma pesquisa de abrangência nacional em cerca de 2.000 domicílios, realizada entre maio e julho de 2020.
No trabalho “Aqui sabemos se as pessoas estão isoladas: (anti-) anonimato, cuidado e poder em localidades pequenas e médias em tempos de Covid-19”, Johana Kunin e Yanina Faccio indagam sobre os modos como a pandemia tem sido gerida em pequenas e médias cidades localizadas na província de Buenos Aires, na Argentina. Partem de material etnográfico produzido a partir de trabalho de campo e de entrevistas em profundidade, bem como de artigos de jornais locais, áudios e memes que circulam em redes sociais e serviços de mensagens instantâneas. A partir daí, tanto relacionam as formas cotidianas de gestão da pandemia a mecanismos sociais pré-existentes, tais como a fofoca, quanto refetem sobre mudanças provocadas pela pandemia em tais mecanismos. Além disso, discutem as noções de “autocuidado” ou de “cuidados comunitários” num cenário de mobilização pela exigência da circulação de informações pessoais de doentes, reais ou potenciais.
Nessa mesma direção, em “Crônica de uma pandemia: confinamento em Castelló de la Plana, Espanha”, Reis Lloría Adanero apresenta resultados de uma investigação iniciada imediatamente após a defagração do estado de emergência na Espanha, em março de 2020. A partir de um interesse sobre a aceitação do estado de alerta e suas consequências, a autora realizou entrevistas junto a quatro grupos de pessoas residentes, em sua maioria, em Castelló de la Plana, na Espanha. E discute os modos como teve impactos significativos em mudanças tanto nas rotinas diárias, quanto na paisagem urbana.
Em “Estado e PCC na pandemia: convergências e divergências na proposição de medidas de saúde e segurança pública nas prisões”, Thais Lemos Duarte, Natália Martino e Ana Beraldo analisam como os atores envolvidos com o sistema carcerário no Brasil interagiram a partir da emergência da Covid-19 e da sua difusão no ambiente prisional. As autoras apontam que o discurso da facção Primeiro Comando da Capital (PCC) e as diretrizes internacionais e nacionais convergiram em relação à necessidade de redução da superlotação carcerária, ao mesmo tempo em que houve resistência de agentes públicos quanto à liberação de custodiados. Em consequência, o PCC pôde se colocar no papel de defensor dos direitos da população carcerária, com o potencial de intensificar sua legitimidade nas cadeias e periferias.
Os impactos da crise sanitária no sistema penitenciário são também objeto do artigo “Agora a cadeia pesou: aportes sobre os movimentos da Covid-19 no sistema prisional brasileiro” de Simone da Silva Ribeiro Gomes e Eduardo Pinheiro Urrutia. As dinâmicas entre decisões do Executivo e Judiciário a respeito da pandemia, por um lado, e das facções prisionais e das próprias pessoas encarceradas, por outro, são exploradas a partir de pesquisa qualitativa em presídio na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Diante do debate sobre as condições insalubres e de aglomeração dos presídios, a resposta estatal de suspensão de visitas tem como efeito exacerbar as condições de vida em confinamento e possíveis rebeliões em lugar de colocar em questão alternativas como políticas de desencarceramento.
Finalmente, Bruno Ferreira Freire Andrade Lira refete sobre como o pensamento decolonial pode contribuir para a análise do enfrentamento da pandemia no Brasil, diante da intersecção de desigualdades de classe, raciais e de gênero. Com esses referenciais, o artigo “Estado, pandemia e reprodução de desigualdades interseccionais no Brasil: uma reflexão a partir da tensão colonialidade/decolonialidade” identifica que coexistem, por um lado, uma racionalidade neoliberal que coloniza o Estado e a sociedade no país e, por outro, resistências e epistemologias que tratam de visibilizar as experiências e as práticas das lutas sociais.
Como tradução, o dossiê inclui um artigo em que Manuel Alcántara identifica e problematiza os aspectos políticos da “nova normalidade” na América Latina em um cenário afetado por desenvolvimentos prévios e por consequências da pandemia de Covid-19 na região. O autor, professor catedrático da Universidad de Salamanca, na Espanha, e especialista em temas de representação política na América Latina, centra sua análise em seis aspectos, que são o exercício da autoridade e suas limitações, a reafirmação do papel do Estado, a revalorização da nação, a liderança, as capacidades institucionais afetadas pela virtualidade e a cidadania líquida.
Esperamos, com esse dossiê, apresentar um panorama da relevância das ciências sociais para a análise de fenômenos relacionados aos impactos da pandemia de Covid-19. Os artigos reunidos trazem contribuições metodológicas e epistemológicas importantes de diversos países, tendo como foco diferentes recortes de pesquisa, tais como políticas públicas de saúde e respostas governamentais em cenários nacionais e locais variados, bem como seus impactos no cotidiano de distintos grupos sociais; transformações nas relações de trabalho e nas concepções de tempo e espaço; efeitos da pandemia sobre processos de (re) produção de desigualdades baseadas em marcadores sociais de diferença e eixos de subordinação; transformações estimuladas pela Covid-19 nos significados em relação ao corpo e à saúde para distintos grupos sociais; efeitos da pandemia nas micropolíticas das relações humanas em contextos variados; atitudes políticas da população em um marco de incertezas e disputas de narrativa; relações de poder no cenário internacional em meio a buscas por insumos médicos e soluções para a crise de saúde; significados da eclosão de uma pandemia como a do novo coronavírus para a convivência humana com o meio ambiente, a globalização e/ou o estado do capitalismo. Por fim, tocam em importantes questões relativas aos impactos metodológicos da pandemia para o campo das ciências sociais e para o fazer antropológico, sociológico e no campo da ciência política, focando assim nos desafios, estratégias e potencialidades para a pesquisa em ciências sociais nos cenários gerados pela Covid-19 e por seus desdobramentos.