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Sistema de Saúde em Angola: contextualização, princípios e desafios

Sistema de salud en Angola: contextualización, principios y desafíos

Health System in Angola: contextualization, principles and challenges

Aires Muecália Julião Caneca
Universidade Católica de Angola, Angola
Orlando Clementino Manunga Chaximbe
Universidade Católica de Angola, Angola
Fernanda de Oliveira Sarreta
Universidade Estadual Paulista, Brasil

Sistema de Saúde em Angola: contextualização, princípios e desafios

Revista angolana de ciências, vol. 3, núm. 2, pp. 350-370, 2021

Universidade Rainha Njinga a Mbande

Recepción: 15 Agosto 2021

Aprobación: 15 Noviembre 2021

Resumo: O artigo tem como objetivo apresentar o Sistema Nacional de Saúde em Angola, contextualizando os períodos que marcaram a história do país e da política de saúde, e refletir os princípios assegurados e os desafios contemporâneos. A saúde está assegurada como um direito universal e integral, mas enfrenta problemas estruturais próprios do sistema capitalisma para a sua garantia e acesso. O tema é atual e relevante e exige um debate para a garantia da saúde como um bem público, o que motivou a realização de pesquisas qualitativas, a partir de revisão bibliográfica e documental, numa perspectiva dialética e crítica para análise dessa realidade complexa e contraditória. Os resultados e discussões mostram que os desafios são expressivos e determinados pelas desigualdades das condições de vida e de trabalho em sua totalidade. Há um grande esforço nacional para a melhoria do Sistema de Saúde, com possibilidades construídas a partir das próprias contradições dessa realidade, em movimento e transformação.

Palavras-chave: Sistema Nacional de Saúde, Princípios, Desafios, Angola.

Resumen: El artículo tiene como objetivo presentar el Sistema Nacional de Salud en Angola, contextualizando los períodos que marcaron la historia y la política de salud del país, y reflejar los principios asegurados y los desafíos contemporáneos. La salud está garantizada como un derecho universal e integral, pero enfrenta problemas estructurales propios del sistema capitalista para su garantía y acceso. El tema es actual y relevante y requiere de un debate para garantizar la salud como bien público, lo que motivó la realización de una investigación cualitativa, a partir de una revisión bibliográfica y documental, en una perspectiva dialéctica y crítica para el análisis de esta compleja y contradictoria realidad. Los resultados y las discusiones muestran que los desafíos son importantes y están determinados por las desigualdades en las condiciones de vida y de trabajo en su conjunto. Hay un gran esfuerzo nacional por mejorar el Sistema de Salud, con posibilidades construidas a partir de las contradicciones de esta realidad, en movimiento y transformación

Palabras clave: Sistema Nacional de Salud, Principios, Desafíos, Angola.

Abstract: The article aims to present the National Health System in Angola, contextualizing the periods that marked the country's history and health policy, and to reflect the assured principles and contemporary challenges. Health is guaranteed as a universal and integral right, but it faces structural problems typical of the capitalism system for its guarantee and access. The theme is current and relevant and requires a debate to guarantee health as a public good, which motivated the carrying out of qualitative research, based on a bibliographic and documental review, in a dialectical and critical perspective for the analysis of this complex and contradictory reality. The results and discussions show that the challenges are significant and determined by the inequalities of living and working conditions as a whole. There is a great national effort to improve the Health System, with possibilities built from the contradictions of this reality, in movement and transformation.

Keywords: National Health System, Principles, Challenges, Angola.

INTRODUÇÃO

A saúde em Angola está assegurada como direito, através do Sistema Nacional de Saúde aprovado em 1992, com princípios de universalidade de acesso, integralidade da atenção e equidade, visando a gestão descentralizada e participativa. Entretanto, a própria legislação indica que pode ser tendencialmente gratuita, considerando as condições sociais e econômicas da população, regulando a participação do mercado privado. Bem como, na Constituição da República de Angola de 2010 que assegura a responsabilidade do Estado na garantia do direito à saúde.

O acesso da população à saúde está organizado a partir da descentralização política administrativa com a municipalização dos serviços e ações, e estruturado nos níveis de atenção primário, secundário e terciário, seguindo as orientações mundiais para os sistemas de saúde. Assim como no cenário mundial, enfrenta problemas nos três níveis de atenção, relacionados ao financiamento insuficiente, escassez de unidades e serviços, grandes demandas, insuficiência de recursos humanos e materiais, entre outros.

Portanto, a reflexão crítica sobre o contexto que levou à construção do SNS é fundamental, uma vez que foi planejado e organizado num cenário de grande instabilidade política, resultante do conflito interno que levou à guerra civil, processo de reconciliação e de paz em curso do país.

Para Monteiro (2016) são períodos reconhecidos pela população angolana por dois momentos fundamentais: o primeiro considerado como da pós- independência colonial, entre os anos de 1975 a 1991, e o segundo de independência e reorganização do país de 1992 até os dias atuais. De 1975 a 2002 o país mergulhou numa guerra civil armada, com períodos frágeis de paz e de conflitos violentos, que devastou a infraestrutura e comprometeu a administração pública, a economia e as instituições de maneira geral. Sobretudo, destruiu e desestabilizou o tecido social existente e impediu a circulação de pessoas, de bens e serviços, sendo que a partir da pacificação inicia um processo de reconstrução e desenvolvimento.

Esse processo foi caracterizado, também, pelo acentuado êxodo rural com o fluxo migratório da população para Luanda, a capital do país, onde os serviços estavam concentrados com a intenção de buscar segurança e proteção, oportunidades de trabalho e melhores condições de vida, conforme análise de Chaximbe (2021). Isto fez com que a cidade tivesse a maior concentração da população angolana, resultando nas assimetrias regionais abismais até a atualidade.

A contextualização sócio histórica desse cenário, ao pensar a política de saúde, mostra que esse processo refletiu de maneira significativa no setor e comprometeu o atendimento da população, em especial, durante a guerra. As lutas e movimentos da população e as forças políticas influenciaram diretamente a política de saúde, com avanços e retrocessos.

A característica central no período, após a independência do país e com o regime socialista instalado, é que a saúde é reconhecida como um direito universal e garantida de forma exclusiva pelo Estado; e, a partir do regime democrático e abertura do mercado em 1992 a saúde universal é garantida, mas passa a ser tendencialmente gratuita, onde o Estado regulamenta a coparticipação da população para acesso aos serviços e autoriza a participação do mercado privado no setor.

Em seu estudo Caneca (2021) mostra que a saúde enfrenta desafios expressivos e persiste o agravamento dos problemas relacionados às condições de vida e de pobreza, próprias do sistema capitalista e de suas contradições, os quais se manifestam em doenças infecto contagiosas, nas condições precárias de trabalho, baixa renda, desemprego, habitação inadequada, infraestrutura precária, baixo nível de educação, dentre outras.

O Relatório sobre Estratégias de Cooperação 2015-2019 (OMS, 2015), da Organização Mundial de Saúde e Ministério da Saúde de Angola traz, como exemplo, a malária doença que ocupa o lugar alarmante como a primeira causa de morte no país, a tuberculose e a SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) são prioridades para ações e focos de erradicação, ainda que com todos os investimentos alcançados nas últimas décadas. Outras situações prioritárias estão na agenda do governo, buscando a melhoria destas condições relacionadas ao saneamento básico, o acesso à água potável e energia elétrica, a formação de recursos humanos especializados, a ampliação da cobertura sanitária e situações relacionadas.

O Relatório evidencia que nas últimas décadas tem sido constatado o aumento significativo de recursos financeiros, materiais e de infraestrutura, a implantação de políticas e programas, o incentivo na formação de recursos humanos para a saúde, e o compromisso com o desenvolvimento social e humano da população. A busca pela estabilidade no país está associada ao intenso esforço de reconstrução nacional, o que tem beneficiado o SNS com o investimento do Estado para o setor, considerado como uma prioridade nacional.

No entanto, a partir dos anos 2000 o avanço e consolidação mundial do capital financeiro e mercado privado no setor de serviços, notadamente da saúde, contou com o apoio dos Estados nacionais, em diversos países do mundo como em Angola. O fortalecimento desse projeto de privatização dos bens públicos investiu na participação de empresas nesse setor, tais como, de equipamentos e tecnologias, produção de medicamentos, formação de recursos humanos, prestação de serviços, contribuindo para privatização e terceirização, portanto, a orientação de desconstrução dos sistemas universais.

Angola não ficou imune a esta influência e para dar conta de responder aos problemas que enfrenta, é fundamental o reconhecimento da saúde no contexto das desigualdades sociais do cenário contemporâneo. Essa perspectiva crítica reconhece a saúde como resultante das condições de vida e de trabalho da população, e aponta para a responsabilidade estatal na garantia da saúde como um direito universal, público e gratuito.

A população angolana tem no seu cotidiano as necessidades sociais e de saúde negligenciadas, pela imposição da burocracia excessiva, dificuldades institucionais, ausência de políticas sociais efetivas, ou seja, uma realidade que exige a construção de propostas, alternativas e respostas para a melhoria da saúde e da qualidade de vida, conforme evidenciam as pesquisas de Caneca (2021) e Chaximbe (2021). Portanto, esses desafios são nacionais e mundiais.

O Serviço Social é uma profissão tem a sua história marcada pela defesa dos direitos sociais da classe trabalhadora, com atuação nas políticas sociais. participando de sua implantação e desenvolvimento. A saúde é um setor que sempre contou com a presença da profissão, que contribui com o trabalhao interdisciplinar e respostas práticas e científicas para os problemas que envolvem a saúde da população da população.

Para Monteiro (2016) o Estudo da Associação dos Assistentes Sociais de Angola a saúde mostra que a saúde é o setor que mais absorve profissionais no país, e a categoria profissional vem contribuindo com o desenvolvimento do Sistema Nacional de Saúde de Saúde do paós e os serviços locais e regioais e está comprometida com a sua defesa dessa direito.

A partir das condições históricas, sociais, políticas e econômicas vivenciadas no país, a discussão sobre o setor da saúde evidencia que os desafios são expressivos e as conquistas significativas, ou seja, é uma realidade que apresenta em suas particularidades, desafios que são universais. Assim, o artigo tem como objetivo refletir os princípios que orientam o SNS em Angola e os desafios contemporâneos, contribuindo para fortalecer o debate e a defesa desse direito social e universal.

Nesse momento, em que escrevemos essas reflexões o mundo vivencia a maior crise sanitária com a pandemia da Covid-19, uma crise que envolve todas as profissões e setores para o seu enfrentamento, em especial, envolve reconhecer o protagonismo de todos os(as) trabalhadores(as) da saúde da linha de frente (Sarreta, 2020). Apesar de não ser o tema central nesse texto, é fundamental expressar que a luta pelos sistemas universais, públicos e gratuitos, como responsabilidade do Estado, exige o compromisso ético e político de toda a sociedade em sua defesa, uma luta que está presente em Angola.

MATERIAL E MÉTODOS

O interesse pelo tema foi motivado pelas inquietações dos pesquisadores vivenciados nessa realidade, ou seja, pela relevância teórica e prática, social e científica, conforme ensina Minayo (2012), da temática que envolve o Sistema Nacional de Saúde para a população angolana, visando a construção do conhecimento que possa contribuir com o seu desenvolvimento e defesa.

Trata-se de conteúdos e reflexões relacionados a duas pesquisas qualitativas realizadas em programa de pós-graduação em Serviço Social, curso de nível mestrado, no Brasil, no período de 03 de 2019 a 03 de 2021. A partir de estudo bibliográfico e documental, adota o método dialético para compreender os problemas que essa realidade apresenta e que envolve a saúde no cenário contemporâneo. A escolha desse método (Minayo, 2012) possibilita a compreensão e interpretação aproximada da realidade, através do entendimento que ela é dinâmica e em constante movimento, portanto, em transformação.

Essa perspectiva é compreendida como “a capacidade humana de apreensão do movimento contraditório da realidade social sob a perspectiva de totalidade” (Monteiro, 2016, p. 120), e expressa a interpretação da realidade onde os sujeitos constroem e reconstroem suas relações, vidas e Saúde.

O estudo foi realizado com análise de material bibliográfico – livros e artigos científicos, e de fonte documental – legislações e normativas relacionadas, tanto de Angola como do Brasil. É importante registrar que as publicações científicas angolanas são ainda escassas pela própria história do país, mas que está em processo de investimento e construção.

Do mesmo modo, essa opção permite reconhecer as experiências profissionais dos pesquisadores, que atuam como assistentes sociais na Área da Saúde de Angola, universo de estudo e, como estudantes da pós-graduação em Serviço Social, constroem reflexões e análises motivadas pela busca de respostas relacionadas a realidade de Angola. Esse caminho justifica a relevância do tema para o enfrentamento dos problemas acerca da política de saúde no país e no continente africano, e para o Serviço Social a pesquisa científica é uma ferramenta como fonte de conhecimento.

A dimensão investigativa é parte constitutiva do exercício profissional no Serviço Social e requisitos para o desenvolvimento da pesquisa científica, explica Guerra (2009, p. 71) “ela é a dimensão do novo – questiona, problematiza, testa as hipóteses, permite revê-las, mexe com os preconceitos, estereótipos, crenças [...]”.

Desse modo, o desenvolvimento de análises e pesquisas deve partir de situações concretas da realidade, abrangendo os condicionantes históricos, sociais, econômicos, culturais, as contradições e conflitos da realidade, desvendando o que é imediato e buscando o que não está aparente, a essência. Deve, ainda, abarcar a dimensão política, ética e valores para superação dos efeitos perversos dos determinantes sociais que o capitalismo impõe na saúde.

O compromisso é o fortalecimento e desenvolvimento do SNS de Angola, através da produção de informações e conhecimentos capazes de contribuir na elaboração de propostas alinhadas com as necessidades de saúde da população, bem como, de novos procedimentos, conceitos e atitudes na saúde.

Assim, a partir do objetivo estabelecido o estudo apresenta resultados significativos e está organizado na discussão das seguintes temáticas: 1) Contextualização sócio-histórica da política de saúde e 2) Sistema Nacional de Saúde, seus princípios e organização.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Angola é um país do continente africano, multiétnico e multicultural, caracterizado como um território rico em recursos minerais, florestais, hídricos, com fauna rica e diversificada, e uma economia essencialmente dependente do petróleo.

Segundo Instituto Nacional de Estatística (INE, 2016), através do Censo da População e Habitação, realizado em Angola em 2014 e publicado em 2016, mostra que a população residente em Angola era 25.789.024 habitantes. Segundo dados de 2019 a população é estimada em 32 milhões de habitantes, sendo que em Luanda concentra cerca de 8 milhões de pessoas, embora não sejam dados oficiais, mas apontam para o colapso das infraestruturas administrativas e instituições sociais. A estrutura administrativa do país é organizada em 18 províncias, 164 municípios e 532 comunas, com uma extensão geográfica significativa, mas que compromete o acesso da população aos serviços e recursos.

Por suas particularidades históricas, políticas, econômicas e sociais, o país encontra- se em um contraste típico da sociedade capitalista, com grande disparidade riqueza e pobreza, sendo a concentração de renda em uma pequena parcela de classes e a extrema pobreza na maioria das classes trabalhadoras da população angolana. Assim, verifica-se que um país não caminha, não se desenvolve por si só. Pelo contrário, para tornar-se sustentável e ir ao encontro dos anseios, expectativas e satisfação da população, visando o bem comum, precisa que crie condições para o atendimento das necessidades e interesses da população, por meio de políticas sociais e sistemas de acesso (Chaximbe, 2021).

O nível de pobreza da população se manifesta pelo deficiente acesso à alimentação, água potável, saúde, educação, energia elétrica, saneamento básico, outros problemas relacionados que determinam diretamente o processo de saúde e doença (INE, 2016). Essa realidade está historicamente determinada pela conjuntura política, econômica, social, cultural, desde a independência do país em 1975 e a influência mundial do capitalismo no setor de serviços, onde se situa a saúde, fortalecida a partir dos anos de 1990.

1) Contextualização sócio-histórica da política de saúde

A partir de uma reflexão crítica sobre os fundamentos e os contextos que marcaram a história de Angola e da política de saúde, identifica-se que está marcada por dois períodos fundamentais. Ou seja, por lutas e movimentos da população desde a independência do país, sendo o primeiro período de 1975- 1991 e o segundo período de 1992 até os dias atuais, com avanços e retrocessos.

Após a independência, analisa Quesa (2010) vigorava o sistema político monopartidário caracterizado por uma economia centralizada e de orientação socialista, onde a saúde era revolucionária e avançada, um direito universal com responsabilidade exclusiva do Estado em assegurar o atendimento e enfrentar os diversos problemas de saúde nesse contexto. Também, caracterizado pelo alargamento da rede sanitária, construção de infraestrutura, formação de quadros de recursos humanos voltada para o enfrentamento do quadro de doenças no país. Para o autor a escassez de recursos humanos em saúde foi um grande desafio, já que o país contava apenas com uma média de 20 médicos e o Estado teve que recorrer à contratação de profissionais recrutados através dos acordos de cooperação com outros países.

A partir do regime democrático estabelecido em 1992, a característica central no país é o multipartidarismo, a economia de base capitalista e a abertura do mercado na prestação de serviços e investimentos, explica Quesa (2010).

A aprovação da Lei de Base do Sistema Nacional de Saúde em 1992, conhecida como Lei 21-B/1992, altera a orientação da política nacional de saúde e o Estado deixa de ser o responsável exclusivo na prestação do atendimento de saúde (Angola, 1992). A LB regulamenta a participação do setor privado na prestação dos serviços e foi introduzida a noção de coparticipação da população nos custos de saúde, mantendo o sistema como tendencialmente gratuito. Esta alteração da LBSN e a multipartidarização, ou seja, a instalação do sistema democrático, marca uma transição política caracterizada por uma economia de mercado com bases no sistema capitalista.

Desde a independência, o país vivencia um processo de reconstrução e de fragilidade político partidária. Num contexto de profundas contradições políticas, onde cada partido buscava a sua hegemonia e sem nenhum entendimento possível, inicia-se uma guerra civil fraticida e que foi destruidora de 1975 a 2002. Segundo Quesa (2010) este período foi marcado pelo recrudescimento do conflito civil armado, reformas políticas, administrativas e econômicas, com um impacto negativo sobre o Sistema Nacional de Saúde (SNS), tais como, a destruição drástica da rede sanitária, da infraestrutura básica e hospitalar, a redução ou ausência da prestação do atendimento, entre outras consequências.

Outro aspecto relacionado, é o fluxo migratório populacional para os centros urbanos, principalmente a cidade de Luanda, refletiu diretamente no sistema de saúde (Angola, 1992) com as demandas acentuadas e complexas e repercutiu na estrutura dos serviços, envolvendo os recursos humanos e materiais (in)disponíveis. Foram 27 anos de conflitos que comprometeram a vida social em sua totalidade.

A partir de 2002, quando encerra o conflito armado, o país entra novamente num processo de reconstrução nacional, com a reposição paulatina das infraestruturas em todos os setores, envolvendo os aspectos político, econômico, social, educacional, saúde, moradia, trabalho, cultura etc.

O crescimento populacional, motivado pelo reflexo da população em larga escala ás cidades, levou à sobrecarga crescente e das estruturas de assistência médico sanitária. O desajustamento entre os recursos humanos e materiais disponíveis e a pressão desse crescimento populacional traduzido pela enorme procura dos serviços, levou á deterioração da rede sanitária periférica e consequentemente dos serviços de última linha, ficando estes praticamente como os únicos existentes. Por outro lado, paralelamente a esta situação, não existiu investimentos adequados, quer humanos quer materiais, para a melhoria do nível de assistência médico sanitária.

Portanto, é um cenário caracterizado pelo processo de pacificação e de reorganização interna que se passa pela garantia dos direitos sociais, implantação das políticas sociais e públicas, administração e gestão de serviços, sendo que a formação de recursos humanos em vários níveis e profissões tem recebido atenção especial no país. A busca pela estabilidade interna está associada ao intenso esforço nacional, do qual tem se beneficiado o setor da saúde como prioridade nacional.

Caneca (2021) analisa que o Estado tem realizado um investimento com aumento significativo de recursos financeiros para infraestrutura e materiais, concursos públicos de recursos humanos para a saúde, incentivando a formação de recursos humanos, dentro e fora do país, para responder às demandas de saúde da população.

Conforme os dados do Relatório sobre Estratégias de Cooperação da OMS (2015), o nível de pobreza da população é refletido pelo deficiente acesso à alimentação, água potável, saneamento básico deficiente, saúde, educação, energia eléctrica, entre outros problemas enfrentados. No Relatório os principais problemas do SNS envolvem os seguintes fatores: acesso limitado aos cuidados de qualidade; baixa cobertura sanitária, abrangendo menos de 52% da população; reduzida força de trabalho especializada; forte dependência da mão-de-obra expatriada; grande número de doenças crônicas transmissíveis e não transmissíveis; altas taxas de mortalidade materno infantil; fraca promoção da saúde; inoperacionalidade de um sistema de referência e contra referência; num contexto social, econômico e do meio ambiente favoráveis às endemias e epidemias.

Apenas a partir de 2017, o país iniciou de maneira mais efetiva o investimento nas políticas sociais e públicas, e começou “a respirar esperanças e energias mais positivas” e a implementar o desenvolvimento do setor da saúde. Assim, um grande desafio dos serviços de saúde é a capacidade de dar respostas às demandas apresentadas e, segundo a Organização Mundial de Saúde, mesmo com todos os investimentos alcançados nas últimas décadas, os problemas de saúde exigem que o Estado angolano e a sociedade civil busquem alternativas para a mitigação dos mesmos.

A análise mostra que essa conjuntura impõe limites para a ação dos sujeitos, bem como, possibilidades para proposição de alternativas criadoras, inventivas, resultantes da apropriação das contradições presentes na própria dinâmica da vida social. Essa compreensão é fundamental para se evitar uma atitude fatalista do processo histórico e das transformações nas condições de vida e de saúde da população angolana.

2) Sistema Nacional de Saúde: princípios e organização

A partir da análise do Sistema Nacional de Saúde (SNS) de Angola, garantido pela Lei de Base de 1992, a saúde tem como princípios ser universal, tendencialmente gratuita, prestar atendimento integral e garantir a equidade no acesso dos utentes, com gestão descentralizada e participativa.

Assim, a saúde universal e integral é um direito da população e compete ao Estado assegurar este direito. A descentralização é um grande desafio para a municipalização dos serviços e ações, visando favorecer o acesso da população à saúde independentemente de sexo, raça, opção religiosa, grupo étnico, ocupação, ou outras características sociais e pessoais.

Do mesmo modo, a descentralização e municipalização do SNS é um desafio que vem sendo enfrentado na atualidade, uma vez que para efetivar essa orientação deve garantir infraestrutura, recursos financeiros, materiais e humanos, bem como, para facilitar a mobilidade geográfica deve considerar programas específicos de grupos e comunidades, a partir das necessidades da realidade regional e local. Sobretudo, a participação social é um caminho para acompanhamento, fiscalização, identificação de necessidades e prioridades, entre outras ações fundamentais da comunidade que facilitem o acesso à saúde.

A partir do que está assegurado, o princípio integral considera as pessoas em sua totalidade, devendo desenvolver ações relacionadas à prevenção, promoção, tratamento e reabilitação, portanto, é um princípio que considera todas as necessidades de indivíduos, grupos e comunidades. Ainda, visa a articulação da saúde com as demais políticas públicas, para assegurar a atenção intersectorial entre os diferentes setores da sociedade para a melhoria da saúde e da qualidade de vida.

Em relação a ser tendencialmente gratuita, essa orientação prevê a inclusão de todo e qualquer cidadão no acesso ao SNS, independente da sua condição econômica. No entanto, pode comprometer o acesso a serviços e ações de saúde que não estejam disponíveis na rede pública, já que o Estado não subvenciona os serviços de forma exclusiva, tais como, consultas, especialidades, exames, procedimentos, cirurgias etc.

Um grande avanço a ser destacado é a garantia da equidade na legislação, como princípio relacionado à igualdade e justiça social. A equidade parte da ideia de respeito às necessidades do indivíduo ou grupo social, e considera as dimensões das condições de saúde e de acesso e utilização dos serviços de saúde. Ainda, tem relação com o reconhecendo de que as condições de vida, trabalho, renda, educação, etc, determinam diretamente a saúde.

No SNS a rede de atendimento hierarquizada, ou conhecida como evacuação dos pacientes por etapas (Angola, 1992), segue a seguinte organização:

Desse modo, o Sistema de Saúde apresenta dificuldades de implementar os princípios e a rede de atendimento hierarquizada, pois nos três níveis indicados as unidades de saúde apresentam um quadro precário, pelas análises já apresentadas (Angola, 2010). Em especial, a atenção primária não consegue dar respostas efetivas nas demandas, comprometendo os níveis subsequentes e fazendo com que a população recorra diretamente ao hospital.

A política nacional de saúde integra 3 setores, ou seja, o setor público, o setor privado e o setor da medicina tradicional, ou seja:

Assim, ao refletir a saúde como direito não se trata apenas da organização e funcionamento da política de saúde, mas da falta de investimento no setor público e “da ideia social sobre o direito universal e integral à saúde, que surge como conflituante ao modo de produção predominante na sociedade capitalista, excludente e desigual” (Bisco; Sarreta, 2019, p. 78). Portanto, a defesa do SNS e de seus princípios é fundamental para que seja reconhecido como uma conquista, nos contextos de lutas e resistências vivenciados pela população.

Em Luanda, capital do país, estão concentrados os maiores centros hospitalares de especialidades, mas a capacidade de resposta e resolução dos problemas não atende as demandas. Essa realidade demonstra que a saúde no modelo capitalista não atende aos interesses e necessidades da população e, apesar de ser um direito respaldado legalmente, coisifica o ser humano e o marginaliza, privilegiando quem tem condição econômica favorável, tornando a saúde um recurso do mercado.

A Organização Mundial de Saúde avalia que, pela própria história vivenciada no país, os investimentos nos últimos anos para fortalecimento do SNS são positivos e decorrentes da gratuidade tendencial dos cuidados, da existência crescente de uma massa crítica de recursos humanos, do progressivo aumento do orçamento financeiro no setor entre outros. Esse compromisso estatal com a saúde deve ser destacado como importante e fundamental para o desenvolvimento do país.

Perante esta situação, constam como prioridades nas decisões políticas, buscar as seguintes metas (OMS, 2015) a redução da mortalidade materna e infantil, ampliar os programas de vacinação, investir no controle e prevenção de endemias e doenças negligenciadas, reduzir a incidência da tuberculose, malária, tripanossomíase e da SIDA.

No Programa Nacional de Municipalização da Saúde de 2019, do Ministério da Saúde (Minsa, 2019), registra que a rede de saúde 2.234 unidades sanitárias no país, ou seja: 20 hospitais centrais, 25 hospitais gerais, 165 hospitais municipais, 374 centros de saúde e 1.650 postos de saúde. Em termos de prestação dos serviços e de problemáticas existentes para o atendimento, o número de unidades é insuficiente diante do contingente populacional.

Os problemas a serem enfrentados são complexos e envolvem os diversos setores da sociedade, e o Estado é responsável em assegurar o direito à saúde, conforme o Artigo Saúde e Protecção Social da Constituição (Angola, 1992), sendo que os principais desafios são: garantir as medidas necessárias para assegurar a todos o direito á assistência médica e sanitária; garantir o direito à assistência na infância e na maternidade; desenvolver a funcionalidade do serviço de saúde no território nacional.

Esses são apenas alguns desafios que se apresentam na agenda do governo, para a efetivação do acesso universal. Diversos outros são importantes e apresentados, como a produção e distribuição dos produtos e meios de tratamento e diagnóstico; formação de recursos humanos espacialzados, entre outros.

Assim, a defesa do direito à saúde faz parte do cotidiano de vida da população angolana, para o acesso, a participação, a não privatização, a qualidade. Esse exercício é democrático, participativo e contribui para que todos possam se apropriar da Saúde e do SNS, como um bem comum e conquista social.

Boschetti (2017) o cenário contemporâneo de crise e chama a atenção para a política de saúde, pois há uma tendência mundial em curso das contrarreformas do Estado para a restrição aos sistemas universais e a ampliação da mercantilização com a expansão dos planos privados, como uma alternativa de acumulação do capital. Em si, essa tendência mundial tem como projeto a manutenção de sistemas públicos básicos focalizados para população de baixa renda, reservando ao setor privado procedimentos especializados e de alto custo, com apoio do Estado.

As informações e conhecimentos produzidos devem servir para o desenvolvimento da saúde, reconhecendo a sua determinação social. A saúde para Minayo (2004) é uma problemática que envolve todos os seguimentos da sociedade, como moradia, transporte, educação, infra estrutura, agricultura, trabalho e renda, lazer, cultura, enfim, para se ter saúde esses direitos precisam estar assegurados.

Portanto, é importante ressaltar que a concepção de saúde sofreu alterações importantes nas últimas décadas, como resultante das condições de vida e de trabalho, não mais apenas a ausência da doença. Se a saúde é uma questão básica da humanidade, dela depende o desenvolvimento da sociedade – economia, política, educação, trabalho, cultura, segurança, etc. Essa concepção ampliada reconhece que em cada realidade e em conjunturas singulares, pode resultar em melhores condições de saúde e da vida.

CONCLUSÕES

A relevância de um sistema de saúde universal, público e de qualidade, ficou evidente para o mundo no ano 2020, com a pandemia da Covid-19. Ela pode servir de aprendizagem para que as sociedades valorizem o que é fundamental, a saúde e a vida.

A crise sanitária provocada pela pandemia desnudou as armadilhas do capitalismo, frente às desigualdades produzidas socialmente, com impactos nos grupos mais vulneráveis e nas classes empobrecidas. São diversas situações que expressam essas armadilhas, e comandam o mercado/economia, como o impedimento ou impossibilidade de cumprir as medidas básicas e universais de proteção – o isolamento social e a higiene pessoal, contaminação, acesso ao diagnóstico, número de mortes, e outras expressam que a pandemia tem raça, gênero e classe.

É um momento histórico que exige fazer a leitura atenta dessa realidade, que traz a marca de uma sociabilidade que se encontra no limite da barbárie. Sobretudo, pensar qual projeto de sociedade a ser defendido. Pensar em novos caminhos, que sejam coletivos, solidários, democráticos e participativos.

Nessas considerações, a análise de Netto (2020) sobre o mundo contemporâneo é interessante, quando reflete que essa conjuntura não irá se eternizar, existem movimentos de resistências que se opõem a esta trajetória regressiva, e esta realidade contraditória abriga possibilidades alternativas. Para o autor esse período é marcadamente de transição, com tendências que podem se agravar, onde a vida social pode ser ainda mais comprometida, mas no mundo, historicamente, as tendências que se opõem à barbaridade da vida social acabaram triunfando.

O desafio é fortalecer e participar de projetos coletivos, que permitam trazer para o centro do debate a construção de uma nova sociabilidade, articulando às forças sociais progressistas os esforços coletivos na defesa da esfera pública, onde os interesses da população poderão ser garantidos. Portanto, é uma luta cotidiana contra a corrupção, privilégios, violências, discriminações de gênero, etnia e raça, alargando o fosso das desigualdades nos cenários onde se manifestam. A organização de grupos, comunidades, profissionais, pode contribuir nos vínculos, nas relações e na democratização dos espaços.

Por fim, a contribuição da análise do Sistema Nacional de Saúde, determinado pelas condições impostas do capitalismo, tem na pesquisa o caminho para que os conhecimentos produzidos e veiculados possam dar respostas à complexidade dessa realidade.

O poeta Pessoa (1993) ensina, de maneira delicada, a aprendizagem de saber ver essa realidade, e a saúde como fundamental para a vida.

O que nós vemos das coisas são as coisas. Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra? Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos. Se ver e ouvir são ver e ouvir? O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê. E nem pensar quando se vê. Nem ver quando se pensa. Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!). Isso exige um estudo profundo. Uma aprendizagem de desaprender.

Agradecimentos

AGRADECEMOS A UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA (UCAN), LUANDA. EM ESPECIAL, A UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (UNESP), CAMPUS DE FRANCA, SP, BRASIL.

REFERENCIAS

Angola (2010). Constituição da República Angolana. Angola: Luanda. Disponível em: https://governo.gov.ao/ao/angola/a-constituicao/. Acesso: jan 2019.

Angola (1992). Lei de Base do Sistema Nacional de Saúde de n. 21 de 28 de agosto de 1992. Angola. Luanda, Disponível em: http://extwprlegs1.fao.org/docs/pdf/ang11736.pdf.

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