Dossiês
A BNCC no contexto de ameaças ao estado democrático de direito
The BNCC in the context of threats to democratic state
A BNCC no contexto de ameaças ao estado democrático de direito
EccoS Revista Científica, núm. 41, pp. 61-75, 2016
Universidade Nove de Julho

Recepção: 28 Agosto 2016
Aprovação: 01 Dezembro 2016
Resumo: O artigo analisa o processo de elaboração da BNCC em referência ao contexto político mais amplo no qual esse processo vem sendo gestado, as diversas vozes que nele se manifestaram e os desafios de orquestrar essas vozes na redação da segunda versão preliminar do documento da base. Para tal, realiza uma incursão a documentos oficiais nos quais a BNCC é referida e ao Portal da Base, espaço virtual, criado pelo MEC para coletar e congregar as contribuições sobre os textos preliminares da base. São abordados, ainda, alguns avanços e limites dessa segunda versão do documento e apontadas as ameaças ao processo democrático de sua elaboração no contexto de crise política atual, no qual o estado democrático de direito se encontra em risco. A abordagem do ciclo de políticas de Richard Bowe e Stephen Ball é o principal instrumento conceitual utilizado nas análises empreendidas.
Palavras-chave: Ciclo de política, Política curricular, Estado democrático, Base Nacional Comum Curricular.
Abstract: The article analyzes the process of drafting the BNCC in reference to the wider political context in which this process is being gestated, the various voices that it is expressed and the challenges of orchestrating these voices in writing the second draft of the base document. It shall carry out a raid to official documents in which BNCC is referred to and the Base Portal, virtual space, created by the MEC to collect and gather contributions on the draft texts of the base. They are addressed also some progress and limits of this second version of the document and pointed out the threats to the democratic process of their development in the context of the current political crisis in which the democratic rule of law is at risk. The approach of Richard Bowe and Stephen Ball policy cycle is the main conceptual tool used in the current analysis.
Keywords: Policy cycle, Curriculum policy, Democratic state, Curricular common national basis.
Introdução
O objetivo do presente artigo é analisar aspectosdo processo de elaboração da política pública educacional da Base Nacional Comum Curricular, considerando tal processo como ainda em construção, inclusive do texto que materializa essa política. Dada essa característica, um desafio que se impõe ao empreendimento de análise que aqui se realiza é o de cotejar os diferentes fatores que nele estão intervindo, no momento mesmo em que se produz tal análise, desafio amplificado pela crise política na qual o Brasil se encontra e pela profusão de acontecimentos que dão, diariamente, novos contornos a essa crise.
A análise apresentada neste artigo focalizará o processo de produção da segunda versão da BNCC, os diferentes atores quedele participaram e o contexto mais amplo – cenário político nacional – no qual ele se dá.Incidirá, ainda, sobre alguns aspectos da segunda versão preliminar da BNCC e sobre as perspectivas que, no momento atual, podem ser aventadas para a continuidade do processo de construção dessa política . Para tal discute-se, inicialmente, a pertinência de uma base comum para os currículos nacionais e o sentido que ela assume no Plano Nacional de Educação.
Em seguida é realizada uma análise do processo de elaboração da segunda versãopreliminar do textoda BNCC, do contexto em que esse processo se realizou e suas possíveis implicações para a configuração de uma versão final do texto dessa política.
Finalmente se apresentam considerações sobre o texto da segunda versão da BNCC, sobre o debate em torno dessa segunda versão nos 27 estados da federação e sobre os riscos e desafios que se colocam à continuidade do processo de construção dessa política nacional num contexto de ameaças ao estado democrático de direito.
Os sentidos de uma base comum para os currículos
A necessidade de uma base comum para os currículos nacionais é apontada pelo ordenamento legal da educação básica. Está prevista na Constituição de 1988, em termos de “conteúdos mínimos”, na Lei de Diretrizes e Base da Educação n.º 9.394/96, nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino fundamental de 9 anos, Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. O que se observa nesses textos legais, produzidos ao longo dos últimos 22 anos, com a participação da sociedade organizada, é que a natureza dessa base comum para os currículos não está claramente definida. Todos elesse referem, entretanto, ao necessário respeito às especificidades locais, que não podem ficar obscurecidas pela existência de uma base comum.
A ausência de uma maior especificação quanto à natureza da BNCC nos textos legais parece refletir a dificuldade de enfrentamento da tensão entre o que deve ser comum aos currículos e que, portanto, aponta para a dimensão de universalidade da educação básica, e o que deve ser específico, apontando para a valorização de uma cultura local e para o necessário acolhimento à diversidade que caracteriza o país. Essa tensão pode ser compreendida, ainda, face à estrutura federativa de distribuição das responsabilidades pelas diferentes etapas da educação básicae a autonomia de estados e municípios para deliberar sobre a organização das etapas sob sua responsabilidade.
O Plano Nacional de Educação 2014-2024 avança, em certo sentido, tanto no delineamento de uma perspectiva para o tratamento do que deva ser comum aos currículos nacionais quanto nadefinição do processo dessa elaboração e do papel dos entes federados nesse processo. As estratégias 2.1, 2.2 e 3.2, 3.3, que se referem, respectivamente,a metas de qualidade do ensino fundamental e do ensino médio, estabelecem, em linhas gerais, que a Base Nacional Comum Curricular deve ser elaborada a partir da definição de direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, com base em ampla consulta à sociedade e num processo de pactuação com estados e municípios.
Ao estabelecer que a BNCC seja estruturada a partir da definição de direitos e objetivos de aprendizagem, o PNE delimita um nível de especificação que esse documento deva apresentar em relação a documentos curriculares anteriores, como as Diretrizes Curriculares Nacionais e, ao estabelecer que tal definição se faça com a participação da sociedade e em articulação com estados e municípios, assegura que tais direitos e objetivos de aprendizagem sejam definidos com base em entendimentos construídos em amplo debate sobre sua pertinência e relevância. O Plano Nacional de Educação – Lei n.º 13.005, de 25 de junho de 2014 –, sancionado sem vetos é, ele próprio, fruto de amplo processo de discussão, envolvendo: atores governamentais1; conselhos e fóruns de educação institucionais2; movimentos sociais3; sociedade civil (gestores)4; sociedade civil vinculada ao setor privado na área educacional5 e organizações da sociedade civil e thinkthanks6 voltadas à formulação de políticas públicas7 (BRASIL, 2014). Já na definição das metas do PNE, há um amplo processo de negociação em torno da BNCC, sua pertinência, relevância e formato, em curso. Tal processo, entretanto, não implicou que os dissensos em torno da pertinência da base tenham se resolvido nas definições do PNE, mas nele, se mostram os entendimentos possíveis sobre o tema naquele momento, frutos da correlação de forças entre os atores que participaram do debate. Esses dissensos, que permearam todo o debate em torno do documento, decorrem, principalmente, em função da concepção de autonomia das escolas e dos professores na definição do que e como ensinar e do necessário respeito às diferenças, tanto aquelas que se referem a características regionais das redes de ensino, quanto aquelas que dizem respeito aos professores, professoras e estudantes. Os argumentos contrários à existência de uma base comum para os currículos se constroem, em geral, em torno da afirmação dessas diferenças como constitutivas do próprio cenário educacional e da compreensão do currículo como acontecimento, como permanente processo de construção, que se faz pelo protagonismo dos atores do contexto escolar. Em contraposição a essa perspectiva, os argumentos em favor da existência de uma base comum para os currículos se ancoram na concepção de que sua definição seria um meio importante para a efetivação do direito à educação como direito de acesso aos conhecimentos básicos aos quais todos os brasileiros e todas as brasileiras devam ter acesso, como condição para o exercício pleno da cidadania. Em face dessa perspectiva, as diferenças podem ser interpretadas, também, como diferentes possibilidades de acesso aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio comum de nossa sociedade e, nesse sentido, podem ser compreendidas como reflexos, e também causas, de profundas desigualdades que, historicamente, marcam a sociedade brasileira.
É elucidativo, para este debate, o fato de a base nacional comum curricular estar referida, no PNE, a metas de qualidade da educação e de se estruturar em termos de direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Tal estrutura indica uma concepção de qualidade da educação que não se reduz ao desenvolvimento de habilidades e competências, mas que se refere à qualidade social da educação, aponta para um projeto de formação mais amplo, de uma educação integral, para a qual o acesso aos saberes e conhecimentos produzidos pela sociedade tem papel importante, aliado a outros fatores, internos e externos à escola.
No presente artigo, pretendemos refletir sobre o sentido de uma base nacional comum para os currículos especificamente à luz de um entendimento sobre seu papel, como política pública de Estado, na garantia de uma qualidade social da educação pública, no contexto de uma sociedade democrática de direitos.
Nas sociedades democráticas, a escola, entendida como instituição responsável pela educação formal, pode ser compreendida, também, como elemento de coesão social, ao fornecer parâmetros comuns para a educação dos sujeitos (CRAHAY, 2002). Esses parâmetros comuns precisam ser fruto de entendimentos tecidos entre os diferentes atores da sociedade, que têm expectativas com relação à escola e às suas funções muitas vezes diversas, frutos de interesses contraditórios, que se colocam em disputa nos debates sobre o currículo. A garantia da qualidade social da educação escolar requer, portanto, que a escola contribua para que as desigualdades de origem social não sejam impeditivas de um igual acesso dos sujeitos aos conhecimentos e saberes produzidos pela sociedade. Nesse sentido, Crahay (2002, p. 16) afirma que a escola fundamental se encontra em busca de um novo contrato ético, firmado com base “[...] nos conceitos de justiça corretiva e de igualdade de conhecimentos adquiridos no que diz respeito às competências fundamentais”. Seria necessário, portanto, definir os conhecimentos fundamentais a que todos devam ter acesso e criar situações de ensino promotoras de uma justiça corretiva, que se realiza à medida que as diferenças de ritmos e de condições de aprendizagem dos estudantes sejam reconhecidas e consideradas pelas práticas pedagógicas. Dito de outro modo, há que se garantir que todos e todas tenham, igualmente, acesso aos saberes e conhecimentos básicos, reconhecendo e acolhendo as diferenças e a diversidade de ritmos e condições desse acesso que crianças, jovens e adultos apresentam. Nesse sentido, o reconhecimentos das diferenças não se traduz em perpetuação das desigualdades mas, ao contrário, são uma condição para sua superação. A definição de uma base comum para os currículos é, nessa perspectiva, o momento para a construção de consensos sobre os direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento fundamentais, que podem contribuir para a construção de uma escola mais justa. Construída em conformidade com as metas do PNE anteriormente referidas, a BNCC é um instrumento para a efetivação do princípio de igualdade de conhecimentos adquiridos a que se refere Crahay (2002) e, consequentemente, para a reversão do quadro de desigualdade que marca, historicamente, a escola brasileira. Tal igualdade de conhecimentos não pode ser compreendida, entretanto, como uniformidade, uma vez que a BNCC não se caracteriza como um currículo, mas como a base a partir da qual os currículos deverão ser produzidos. Expressa, portanto, os direitos e objetivos que, a despeito das diferenças que se observam entre os contextos nos quais a educação acontece, são reconhecidos como basilares à construção de novos saberes e à aquisição de novos conhecimentos. No caso da BNCC, a observação de seu processo de elaboração revela que esse reconhecimento não é fácil e envolve o confronto de posicionamentos diversos e, muitas vezes, divergentes, quando se consideram as etapas da educação básica e, no interior delas, as áreas de conhecimento e componentes curriculares. É sobre esse aspecto que gostaríamos de avançar no tópico a seguir.
Algumas reflexões sobre o contexto e o processo de elaboração da segunda versão da BNCC
Dados os limites desse texto, ele tratará de alguns aspectos do processo que conduziu da primeira à segunda versão da BNCC, dos atores e discursos que se fizeram presentes nesse processo e de seus desdobramentos, ainda em curso.
Os debates em torno da primeira versão da BNCC se realizaram entre os meses de setembro de 2015 e março de 2016, período de acirramento da crise política vivida pelo Brasil e que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff. Esse cenário teve amplas repercussões nesses debates, que se deram num quadro geral de ações e discursos de diferentes setores que buscavam deslegitimar o governo eleito, desqualificar suas iniciativas, criando um cenário favorável ao golpe contra a democracia impetrado em agosto de 2016. A grande mídia teve papel preponderante nesse cenário e, no que se refere especificamente à base, sua atuação se deu no sentido de privilegiar algumas vozes, em geral sem ligação direta com a educação, em detrimento de outras. As fundações privadas, por exemplo, foram vozes privilegiadas pela mídia, chamadas com frequência a se manifestarem sobre o documento, apresentadas como portadoras de um discurso legitimado por argumentos “científicos”.
Embora não seja objetivo deste artigo empreender uma análise do contexto político atual, é impossível tratar do texto de uma política pública sem uma referência ao contexto no qual ela vem sendo gestada. Mesmo porque, sendo o currículo um território em disputa (ARROYO, 2011), é preciso compreender a natureza dessas disputas, os valores que nelas se encontram e confrontam, para ler o texto de forma menos ingênua. A abordagem do ciclo de políticas de Stephen Ball e Richard Bowepode ser um instrumento útil a essa leitura.
De acordo com Mainardes (2006), a abordagem do ciclo de políticas formulada por Ball e colaboradores é um instrumento útil à análise crítica de políticas educacionais, desde a formulação inicial dessas políticas até sua efetivação e repercussões. Uma ideia central à abordagem de Ball e Bowe (1992, 1994 apud MAINARDES, 2006) é a de que as políticas são eivadas por intenções e disputas, o que implica em que não possam ser analisadas em momentos estanques, de formulação e implementação, mas que devam ser compreendidas em relação à dinâmica na qual são produzidas e apropriadas. As políticas devem ser analisadas como um ciclo contínuo, constituído por três contextos principais:
[...]o contexto de influência, o contexto de produção e o contexto da prática. Esses contextos são inter-relacionados, não têm uma dimensão temporal ou seqüencial e não são etapas lineares. Cada um desses contextos apresenta arenas ou lugares e grupos de interesse e cada um deles envolve disputas e embates. (BOWE et al., 1992 apud MAINARDES, 2006, p.50).
Tomando essa dinâmica como referência para nossa análise, o cenário político do processo de elaboração da BNCC configura-se como parte do contexto de influência no qual a política educacional da Base Nacional Comum Curricular é gestada. De acordo com Mainardes (2006, p. 51), “É nesse contexto que grupos de interesse disputam para influenciar a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado”. No caso da BNCC, é possível identificar pelo menos três grandes grupos de interesses que se manifestaram em seu processo de elaboração: os atores diretamente ligados à escola de educação básica (professores, escolas, gestores, estudantes), os atores do espaço acadêmico, ligados à produção de conhecimentos nas diferentes áreas (pesquisadores, professores universitários, associações científicas) e os atores do segmento privado empresarial, com interesses na educação pública e de influenciar a política nacional (fundações privadas em geral). Não se pretende afirmar que esses sejam grupos coesos quanto a seus interesses. Pelo contrário, no interior de cada um deles há posições conflitantes, divergências, tensões. Por exemplo, as perspectivas de professores e estudantes podem ser divergentes quando se trata de definir os conhecimentos básicos a serem abordados por cada componente curricular. Do mesmo modo, a perspectiva dos historiadores sobre esse tema pode ser bem diversa daquela dos envolvidos no ensino de história. Quando se trata de um debate sobre currículo, essas perspectivas, que também são representativas de interesses específicos, se colocam em disputa. Entretanto as condições dessa disputa podem ser desiguais para os diferentes atores, ganhando maior poder de negociação aqueles atores com maior poder de influenciar o debate público em torno da política, especialmente no caso de uma política pública educacional, que tem repercussões na vida de toda a população, e conduzida num momento político no qual a (des)aprovação popular das ações do governo eleito foi frequentemente usada como argumento para questionar sua legitimidade.
É exemplar dessa disputa de interesses o fato de que os discursos veiculados pela grande mídia apresentavam claramente uma perspectiva sobre os conhecimentos básicos que deveriam integrar o texto da BNCC e sobre o sentido desse documento para a educação nacional, como se pode observar nas críticas aos documentos da área de ciências humanas, em especial a história, e da área de linguagens, em especial o documento de língua portuguesa. No primeiro caso, as críticas se concentram na ênfase da primeira versão do documento ao protagonismo dos povos africanos e indígenas na formação de uma identidade brasileira; no segundo, no papel do ensino da gramática ao longo da formação básica. Em contrapartida a esse discurso, a leitura dos pareceres produzidos pelos pesquisadores acadêmicos sobre esses dois componentes curriculares destacam como avanços o que a mídia apresenta como problema, embora não deixem de apontar, também, os vários problemas e limitações apresentadas pela primeira versão do documento. Com relação a esses temas, em especial, mas também com relação a outros – por exemplo, o papel da educação infantil com relação à apropriação da leitura e da escrita –, o que se manifesta é um embate entre forças que, de um lado, buscam a manutenção dos cânones a partir dos quais, historicamente, as propostas curriculares para a escola de educação básica foram construídas e, de outro, forças mais progressistas, que reivindicam um protagonismo na definição dessa base curricular. Compõe ainda a correlação de forças do contexto de influência da política um conjunto amplo de contribuições de outros atores que ocupam diferentes lugares na cena educacional. A consulta ao Portal da Base8 espaço criado para coletar as contribuições da sociedade, oferece farto material para uma compreensão dos posicionamentos e perspectivas desses atores sobre a primeira versão do documento, e que levaram à segunda versão. Numa breve incursão ao Portal, foi possível inventariar alguns números representativos da amplitude do debate que levou à construção da segunda versão do documento: 12.226.510 contribuições (compõem esse universo, as escolas, redes de ensino e indivíduos); 92 leitores críticos dos documentos (professores pesquisadores das universidades, convidados pelo MEC a produzir pareceres sobre a primeira versão dos documentos preliminares, alguns deles amplamente reconhecidos em suas áreas de atuação). Na maioria dos casos, os pareceres emitidos por esses professores estão disponível à leitura. Há, ainda, 45 relatórios sobre o processamento dos dados da consulta pública e dois relatórios que apresentam os encaminhamentos do MEC para a elaboração da segunda versão do documento.
Além das contribuições disponíveis no Portal da Base, criado pelo MEC, há um conjunto de relatórios advindos de consultorias internacionais, contratadas por fundações privadas9, que também são parte da correlação de forças em torno do documento da BNCC.
Uma observação, ainda que assistemática, desse amplo conjunto de discursos permite identificar a heterogeneidade, tanto das condições de sua produção quanto de seu conteúdo. As contribuições das escolas, gestores, professores e estudantes foram produzidas e analisadas nos limites das funcionalidades do sistema de contribuições do Portal. Os critérios “clareza e relevância” foram aqueles a partir dos quais os participantes realizavam sua avaliação dos documentos e as possibilidades de intervenção neles se davam em relação a sugestões de alterações, tanto nos textos mais gerais – chamados “textos introdutórios” – quanto nos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para cada componente curricular. O que caracteriza esse grupo de contribuições é um diálogo direto com o cotidiano das escolas, para referendar o conteúdo do documento ou para a ele se opor.
Quanto aos pesquisadores das universidades e associações científicas, a possibilidade de emitirem pareceres mais extensos configura uma condição outra de participação no processo de consulta. As vozes desses atores tiveram, portanto, outra amplitude, especialmente no que se refere à possibilidade de direcionar mais livremente a natureza de suas contribuições, por não estarem limitadas às funcionalidades do sistema de consulta. Embora numericamente inferiores àquelas coletadas pelo sistema, as contribuições na forma de pareceres puderam ser mais articuladas do que aquelas postadas no Portal da Base. A leitura dos pareceres de uma mesma área ou componente curricular permite identificar convergências, divergências e tensões sobre os conhecimentos escolares basilares a cada uma dessas áreas e componentes, e também sobre a própria pertinência e natureza de uma base curricular. Nesse sentido, pode-se afirmar que o processo de construção da BNCC foi indutor de reflexões sobre as relações entre o conhecimento que se produz nas diferentes áreas e sua transposição para as práticas escolares, colocando em confronto posicionamentos sobre esse tema na busca de entendimentos que levassem à definição do que é básico à educação básica.
No caso dos relatórios analíticos dos documentos,elaborados por iniciativa dos grupos empresariais privados, mais especificamente da Fundação Lemann, os mesmos não compõem o conjunto dos documentos do Portal da Base, mas estão disponíveis no Portal do Movimento pela Base Nacional Comum10, mantido pela Fundação Lemann. Em linhas gerais,nesses relatórios, que tratam da educação infantil e das áreas de linguagens, matemática e ciências da natureza – importante observar que a área de ciências humanas não é objeto de análise em nenhuma das duas versões preliminares –a ênfase recai sobre a dimensão cognitiva do currículo, reivindicando “um currículo de qualidade”, com base na experiência de países como Estados Unidos e Austrália, principal origem dos consultores que assinam as análises da BNCC. Esses discursos desconsideram as especificidades do contexto brasileiro e, principalmente, as características do documento em processo de elaboração: uma base para a produção de currículos, e não um currículo nacional.
Esse breve inventário comentado da documentação disponível para subsidiar a produção da segunda versão da base permite algumas conclusões. A primeira delas é a de que o processo que levou à elaboração da segunda versão do documento parece corresponder ao previsto no PNE, no que se refere à ampla consulta à sociedade. Nesse conjunto se fazem ouvir muitas vozes, embora isso não signifique que todas tenham sido efetivamente incorporadas ao texto da política, nesse caso, a segunda versão do documento. Ainda assim, a possibilidade de consultá-las e ou retomá-las permite avaliar o quanto elas se fazem, ou não, presentes no documento, o que dá transparência ao processo. Embora isso demande tempo e método, qualquer análise da BNCC precisa considerar seu contexto de produção e dialogar com os discursos sobre ela.
Uma segunda conclusão importante, ancorada na análise do ciclo de políticas de Bowe e Ball, é a de que, ao mesmo tempo em que o texto da política da BNCC é gestado, vão sendo urdidas as condições de sua apropriação e, portanto, de sua implementação, pelos diferentes atores do processo, na movimentação que se dá nessa “arena” na qual ocorrem disputas e confrontos de posições e interesses. As negociações em torno dessas posições e interesses, entretanto, não se fazem com iguais condições de influência para todos os participantes, especialmente em contextos de crise, como aquele em que nos encontramos, o que nos leva a uma terceira conclusão: a tarefa de traduzir essas diferentes vozes no texto da política é, no mínimo, complexa.Há que se considerar vozes, em muitos casos dissonantes, e tomar decisões sobre aquelas que serão incorporadas ao texto da política.
Se comparada à primeira versão, que tinha pouco mais de 300 páginas, e já era considerada demasiado extensa, a segunda versão da BNCC, com mais de 600 páginas, parece extrapolar os limites do que seria razoável a uma base para a elaboração de currículos. A extensão do documento parece ser reveladora de um esforço de orquestrar muitas vozes e, ainda, de contemplar aspectos que talvez estivessem melhor colocados em documentos decorrentes da BNCC, visando a sua implementação.
A tentativa de dialogar com os muitos interlocutores do documento parece encontrar maior êxito ao explicitar as relações entre a BNCC e as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica e demais diretrizes (para a Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio). Nesse aspecto, há avanços importantes, principalmente no sentido de explicitar a natureza das áreas de conhecimento, que são definidas pelas Diretrizes, mas que não foram efetivamente incorporadas às formas de organização das propostas curriculares de estados e municípios, elaboradas após a publicação daquele documento, ou pelos projetos político-pedagógicos das escolas. A explicitação da natureza dessas áreas e a definição de “eixos de formação” e de “objetivos gerais de formação”, relacionados a esses eixos, para cada área de conhecimento, é um esforço importante no sentido de buscar uma maior integração entre os componentes curriculares e entre as etapas de escolarização. Entretanto, essa definição tem, ainda, um fraco rebatimento na estrutura dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento propostos pelos diferentes componentes curriculares. Esse fato pode ser consequência de um debate ainda incipiente nas próprias áreas de conhecimento. Há, inclusive, pareceres de leitores críticos que apontam a artificialidade da composição de algumas áreas – em especial, a área de linguagens – que reúnem componentes curriculares cuja articulação é ainda pouco clara, o que parece indicar que o debate precisaria ser aprofundado.
Outro aspecto que fragiliza a segunda versão do documento é a heterogeneidade de formas de organização dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento entre os componentes curriculares. Há componentes curriculares organizados por ciclos de formação – como educação física, arte, língua estrangeira – e outros por ano. Em ambos os grupos, a abrangência do tratamento dado aos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento também é bastante diversa. Esse fato parece ser fruto dos diálogos travados no âmbito de cada componente curricular, dos percursos de reflexão e consensos no interior desses campos disciplinares sobre a sua natureza e papel na formação básica dos estudantes, sobre quais os conhecimentos a que todos devem ter acesso para que seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento sejam assegurados e, ainda, de compreensões diversas sobre a natureza da BNCC. São, ainda, reflexos das tensões entre o diálogo com a realidade, muitas vezes adversas, das redes de ensino e das escolas e a necessidade de superação dessa realidade, no que a definição de uma base comum para os currículos pode vir a contribuir.
Considerações finais
Os limites percebidos na segunda versão do documento da BNCC não desqualificam o processo de sua elaboração, pelo contrário, evidenciam a necessidade e importância do debate democrático como meio de se construírem entendimentos sobre o texto da política, explicitando e tornando públicas as forças em disputa no debate.O sentido de uma base comum para os currículos deve ser buscado nas possibilidades que ela pode vir a oferecer às redes de ensino, aos gestores, às escolas, aos professores e estudantes de construírem uma escola mais justa, na qual o acesso aos saberes e conhecimentos fundamentais seja assegurado a todos e todas. Esse sentido só pode ser buscado coletivamente.
Em agosto e setembro de 2016 foram realizados 27 seminários estaduais, que congregaram mais de 9.000 professores e gestores de todo país para discussão e revisão da segunda versão da BNCC. Como fruto desses seminários, o Consed e a Undime entregaram ao Ministério da Educação um relatório, consolidando as principais contribuições para a elaboração do texto final da base, a ser encaminhado ao CNE. Entretanto, em meio a esse movimento de mobilização, assistimos à implementação de medidas antidemocráticas, que atuam no sentido de se sobrepor às vozes do debate em curso e que nos colocam em situação de incerteza quanto aos próximos encaminhamentos do processo de elaboração da base.
Em 30 de agosto de 2016, em meio à realização dos referidos seminários estaduais, foi aprovado na Comissão de Educação o projeto de Lei n.º 4.486, em tramitação desde fevereiro de 2016, que altera o Plano Nacional de Educação, deslocando a instância de deliberação sobre a BNCC do CNE e do MEC para a Câmara dos Deputados. O argumento do deputado Átila Lira, relator do parecer que aprova o projeto, é o de que, pelo fato de a BNCC tratar de direitos de aprendizagem e desenvolvimento, o Congresso seria a instância legítima para deliberar sobre ela. Esse argumento, construído com base no legalismo que vem pautando a política nacional, é uma ameaça de silenciamento das vozes que atuaram até este momento no processo de elaboração da base para que outras vozes se sobreponham, especialmente aquelas que reivindicam um estatuto de neutralidade para a educação.
Em 23 de setembro de 2016, foi publicada no Diário Oficial da União a Medida Provisória n.º 746/2016, que modifica a estrutura do ensino médio. Para além do caráter antidemocrático de se realizar uma reforma educacional por meio de Medida Provisória, o que representa uma clara ameaça ao estado democrático de direito e cujas repercussões os limites deste texto não nos permitem aprofundar, a referida medida atribui à BNCC a definição do currículo para o EM nessa nova estrutura, na qual há uma redução das disciplinas obrigatórias. Entretanto a BNCC que vinha sendo discutida até aqui trata o EM na perspectiva de uma educação integral. Foi organizada com base numa outra perspectiva do EM e dessa forma foi discutida com os estados. Como será elaborada a base curricular que sustentará essa reforma, sobre a qual a população brasileira, de modo geral, e os meios ligados à educação, em especial, vêm se manifestando contrariamente, de forma veemente? Num cenário marcado por tantas ameaças e incertezas, é difícil fazer projeções. Essa dificuldade deve, entretanto, nos manter em estado de alerta.
Referências
ARROYO, M. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011.
BRASIL. Plano Nacional de Educação 2014-2024: Lei n.º 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014.
CRAHAY, M. Poderá a escola ser justa e eficaz? Da igualdade de oportunidades à igualdade de conhecimentos. Tradução de Vasco Farinha. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
MAINARDES, J. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p.47-69, jan./abr. 2006. Disponível em:http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 15 ago. 2016.
Notas
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