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A educação sociocomunitária: reflexões sobre o educar para a autonomia
Socio-communitarian education: reflections about an education for autonomy
A educação sociocomunitária: reflexões sobre o educar para a autonomia
EccoS Revista Científica, núm. 41, pp. 157-172, 2016
Universidade Nove de Julho

Recepção: 03 Abril 2016
Aprovação: 16 Setembro 2016
Resumo: O artigo discute as possibilidades de uma educação para a autonomia, centrada nos princípios da educação sociocomunitária. Busca-se definir uma compreensão da educação sociocomunitária como a escuta da diversidade de concepções ideológicas e práticas educacionais que, dispersas no cotidiano social, constituem a subjetividade dos sujeitos. Metodologicamente é uma elaboração conceitual, cujos referenciais teóricos estão fundados na perspectiva freireana e na abordagem das capacidades humanas, como defendida por Sen e Nussbaum. Como resultados se espera fomentar novas perspectivas de enfocar a educação para a autonomia e a educação emancipatória, baseadas no afloramento de espaços de contato social, nos quais seja possível fazer a recolha dialógica de sentidos quanto ao que significa educar.
Palavras-chave: Autonomia, Emancipação, Educação sociocomunitária.
Abstract: The article discusses the possibilities of an education for autonomy, centered on the principles of socio-communitarian education. The aim is to define an understanding of socio-communitarian education as listening from the diversity of ideological conceptions and educational practices, which dispersed in everyday social life, constitute the subjectivity of the subject. Methodologically is a conceptual elaboration, whose theoretical frameworks are grounded in Freirean perspective and Human Capabilities Approach, as advocated by Sen and Nussbaum. The results are expected to foster new perspectives to focus on education for autonomy and emancipatory education, based on flowering areas of social interaction, in which it is possible to retrace dialogical sense as to what it means to educate.
Keywords: Autonomy, Emancipation, Socio-communitarian education.
Introdução
O propósito de articular a concepção de educação emancipatória com a educação sociocomunitária é aquele de buscar formas alternativas de compreensão dos processos educacionais, vigentes numa comunidade, com vistas ao desenvolvimento da consciência crítica e da autonomia dos sujeitos. No cenário de um viver marcado pela lógica mercantil neoliberal, como se apresenta a contemporaneidade, urge recolocar-se proposições para uma práxis educacional que objetiva encontrar caminhos para organizar e mobilizar sujeitos e comunidades, de maneira a problematizar situações de exclusão e de alienação social.
Metodologicamente, é uma discussão conceitual, cujos referenciais teóricos basearam-se na concepção de autonomia presentes na pedagogia freireana e nos estudos feitos por Amartya Sen e Martha Nussbaum. Esboça-se também uma compreensão sobre como a educação sociocomunitária pode ser teorizada, de forma a favorecer um pensar educacional voltado para a transformação social.
De acordo com Freire (2011), a práxis educacional tem lugar por meio do diálogo dialético, favorecendo a emersão de uma consciência crítica quanto às condições de existência dos sujeitos; negando a perspectiva de um devir histórico “determinado e necessário”, promovendo, contrariamente, a concepção de que todo devir humano é constituído no cotidiano mesmo dos sujeitos, estando aí contidas as condições para a sua transformação. Ensinar se torna, então, uma transformação imbricada de ambos, educador, educando e sociedade, num contexto em que o diálogo passa a ser compreendido como “[...] um desafio a ser desvelado, e nunca um canal para a transferência de conhecimentos” (FREIRE, 2011, p. 74). A pedagogia freireana exige uma concepção do fenômeno educativo epistemologicamente processual e complexa, pois está fundada numa compreensão da realidade como histórica, social e politicamente construída.
A abordagem das capacidades humanas, como defendida por Nussbaum e Sen (1993), pode ser definida como uma perspectiva teórica envolvida com a questão de definir e avaliar o que seriam condições de bem-estar de indivíduos, grupos e populações, discutida e teorizada a partir de concepções de justiça social. Há uma crítica a posições que consideram o estado de bem-estar como commodities e padrões preconcebidos de vida e quanto ao papel assumido pela justiça na defesa dessas posições. Capacidades, como definido por Sen (1993, p. 30), refere-se “[...] à habilidade da pessoa para fazer ações relevantes ou alcançar estados relevantes de ser; representa combinações alternativas de coisas que uma pessoa é capaz de ser ou fazer”. Isso implica, fundamentalmente, que as capacidades nos revelam o que os sujeitos consideram relevantes, para si e para sua vida em comum, sendo, assim, elementos fecundos para que sejam tomadas como base para o diálogo dialético, como proposto por Freire. A proposição de refletir e discutir questões envolvidas na concepção de bem-estar, a partir do que os sujeitos seletivamente consideram relevantes para suas vidas, mostra-se em contraste com concepções correntes, particularmente encontradas em políticas públicas e vieses macroeconômicos de cunho funcionalista (bem-estar social atrelado à produtividade dos sujeitos) (STOESZ; GUZZETTA; LUSK, 1998); neoconservadores/neoliberais (bem-estar social vinculado a atender as necessidades individuais por meio da economia de mercado) (DOLGOFF; FELDSTEIN, 1984); e/ou institucionais (criação de um estado de bem-estar é função legítima da sociedade moderna) (KARGER; STOESZ, 2006), que concebem o “bem-estar” como um estado universal e socioculturalmente predefinido de modos de ser.
Tal distinção é importante: enfocar a questão do bem-estar como um modelo predeterminado de “estilo de vida”, a ser alcançado por certa sociedade por meio de suas políticas públicas e de outras ações governamentais ou oriundas da sociedade civil, significa definir como esse “bem-estar” será buscado. O que, geralmente, também é feito à revelia dos interessados, numa série de medidas que direcionarão os rumos da organização dessa sociedade, como a filosofia do seu sistema de ensino (educar quem e para o quê? O que será prioritário ensinar, quais conteúdos serão privilegiados, como a aprendizagem será avaliada, como esse sistema será gerido, ou seja, de quem serão as responsabilidades..., etc.), formas de preparar as novas gerações para o mercado de trabalho, a remuneração básica, a gestão dos sistemas de saúde e de assistência social, e assim por diante.
A abordagem das capacidades humanas está estruturada sobre duas capacidades primárias: aquela da liberdade humana para escolher e tomar decisões sobre o próprio bem-estar e na concepção ética sobre o que significa bem-estar. Subjacente a ambas as ideias está aquela de oportunidade: as pessoas devem ter possibilidades e oportunidades para discutir, escolher e tomar decisões sobre como desenvolver e utilizar-se de suas próprias capacidades para significar e alcançar o que seriam situações de bem-estar.
A educação para a autonomia: as concepções de Freire e da abordagem das capacidades humanas
Ambas as vertentes teóricas, já sumariamente descritas acima, têm fundamentos importantes para o se pensar em uma educação para a autonomia. A definição de autonomia aqui empregada entende essa como a consciência de um sentido de agência – de que sou o centro do qual emergem minhas ações – e a compreensão de que, embora as ações humanas ocorram a partir de um ente individual, são social e culturalmente mediadas. Essa definição está em sintonia com concepções defendidas tanto nos trabalhos de Freire como naqueles de Sen.
O pensamento freireano trata da educação como “prática da liberdade”. Nesse sentido, a autonomia pode ser compreendida como uma produção histórica e social, a liberdade de o indivíduo agir e tomar decisões com consciência e capacidade crítica, mediante o respeito à vontade pessoal e ao grupo ao qual pertence, e assumir as responsabilidades delas decorrentes. A plenitude do ser humano somente pode ser alcançada quanto esse é livre, pode criar e, importantemente, agir conforme seus objetivos no mundo: estabelecer planos para a própria vida. O que não pode ser conseguido nem por aqueles que são oprimidos por outros indivíduos, nem por aqueles que agem de forma a oprimir a outrem; pois se alienam de si mesmos. Freire baseia-se numa compreensão ontológica do ser humano como caracterizado pela qualidade de poder ser agente de sua própria vida.
A concepção de opressão, posta por este pensador, está então vinculada à privação dessa qualidade, que impediria os seres humanos de exercerem o domínio sobre suas condições de existência, buscando melhorá-las. Toda opressão se torna, assim, desumanizadora, pois retira do ser humano sua capacidade decisória de poder ser. Nesse âmbito, entende-se a “perda de voz” dos oprimidos, o impedimento de expressar-se em termos de desejos, do querer ser. É pelo resgate – pelo trazer de volta aquilo que é de direito – então, da voz, que se começa aquele da liberdade. E para o qual é essencial a educação, entendida não enquanto acúmulo passivo de conteúdos escolares (concepção bancária de educação), mas principalmente como “operação dialógica dialética”, que objetiva emancipar os sujeitos: empoderá-los como seres políticos – aqueles que, nas suas práticas cotidianas, socialmente compartilhadas, podem nomear o mundo, questioná-lo, discuti-lo, retraçá-lo, expondo-se como autores dos seus caminhos.
Entende-se que o silenciamento dos sujeitos da educação está atrelado a práticas educativas “domesticadoras”, das instituições escolares prioritariamente, mas não só destas. Na escola, por todo o contexto disciplinador, através da pouca voz, que é conferida aos sujeitos, tanto alunos como a outros integrantes da comunidade escolar, como os próprios professores, que pouco podem opinar sobre os direcionamentos das políticas públicas ou dos mecanismos de gestão; do controle da posição e da movimentação corporal, o modo de organizar a vida escolar, com o controle do tempo, dos espaços, do currículo, das atividades, as percepções negativas quanto às crenças pessoais de autoeficácia daqueles que se diferenciam – ou rompem – com esta lógica do controle (PARO, 2000). Fora dos espaços escolares, contudo, o silenciamento dos sujeitos vem se dando, importantemente, não tanto por mecanismos disciplinadores, mas por aqueles de negação: as relações sociais, mesmo aquelas mais íntimas, como as familiares, vem se caracterizando por uma fragmentação da convivialidade. A ausência de interlocutores – ou, ao menos, de interlocutores dispostos a refletir e a posicionarem-se em relação ao como estamos tramando a tessitura do viver, enquanto sociedade, grupos e indivíduos que integram esta – obstaculiza qualquer possibilidade para uma educação emancipatória.
Perspectivas que contrariam concepções ontológicas e epistemológicas presentes nas teorizações elaboradas por Freire e por Sen: a natureza do ser é aquela de ser livre, sabendo-se capaz de determinar-se a ser mais; e isso significa, inerentemente, a facticidade humana de ser incompletude, de realizar-se no sempre-se-fazer. Realização que só é possível pelo embate da consciência com as contradições historicamente postas, pelo viver social, às condições de vida dos sujeitos. Quando o conhecer se torna práxis: a complexa atividade de se pôr no mundo “acertadamente” – compondo a tessitura da realidade social, como sujeitos criticamente conscientes de si e da sua coletividade (FREIRE, 2011). Processo que não é possível ao ser humano isolado, constituindo-se, opostamente, como um que-fazer coletivo, comunicativo, dialógico. Esse processo dialógico, nas palavras de Freire (2011, p. 61), se constrói:
Como situação gnoseológica, na qual o objeto cognoscível, em vez de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes – educador, por um lado, educandos por outro –, a educação problematizadora antepõe, desde logo, a exigência da superação, da contradição educador-educandos. Sem essa não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível.
E que não pode existir sem estar claramente fundado numa ética de preocupação, de cuidado e de responsabilidade para com o outro:
A fé nos homens é um dado a priori do diálogo. Por isso, existe antes que esse se instaure. O homem dialógico tem fé nos homens antes de encontrar-se frente a frente com eles. Essa, sem dúvida, não é uma fé ingênua. O homem dialógico que é crítico sabe que o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens e sabe também que eles podem, alienados em uma situação concreta, ter esse poder diminuído. Essa possibilidade, sem dúvida, em vez de matar no homem dialógico sua fé nos homens, se apresenta ante ele, pelo contrário, como um desafio ao qual deve responder. Está convencido de que este poder de fazer e transformar, ainda que negado em situações concretas, pode renascer. Pode constituir-se. Não gratuitamente, se não mediante a luta pela sua libertação. Com a instauração do trabalho livre e não escravo, que outorgue a alegria do viver. (FREIRE, 2011, p. 72).
É somente no âmago desses pressupostos que se pode conceber o diálogo como prática da liberdade: práxis humanizadora. Que tem na educação seu principal instrumento de efetivação. O ser humano educado pelos princípios do apropriar-se da sua realidade, numa perspectiva dialógica – que pressupõe relações horizontalizadas de poder, fundadas no respeito mútuo entre aquele que ensina e aquele que aprende – e dialética – que pode criticamente distinguir as amarras interpostas ao seu ser mais, bem como àquele da sua coletividade, entendendo-as como construídas e internalizadas ao longo de processos sócio-históricos de dominação e, assim, não necessárias, mas passíveis de transformação – se autodetermina. Seu devir não é resultado de coerção, mas de intenção, é criativo, antes do que repetidor do “tem que ser assim”, é racional, não determinado pelo acaso ou pela reação aos fatos.
A educação libertadora, crítica, visa à autonomia do indivíduo e que ele, nesse processo educacional, internalize um sentido de autoeficácia, de que poderá fazer parte de um movimento de transformação individual-social, de que é possível alterar os rumos da história. Não pode haver espaço para projetos políticos que não apostam na capacidade crítica dos sujeitos, em uma educação para a autonomia e para a capacidade de se autodirigir, uma educação que forma cidadãos plenos ou, como defendia Gramsci, uma educação para a “contra hegemonia dos subalternos” (SCOCUGLIA, 1999, p. 342).
A qualidade da educação é sempre uma questão política, em que se prioriza o ato de conhecimento em busca da consciência crítica, crendo que os indivíduos serão capazes de reinventar o mundo, de colocar-se e agir conforme uma postura de “sujeitos-objetos” da História, de modo a reconhecer a natureza política desta luta, de uma “Natureza política que descarta práticas puramente assistencialistas de quem pensa comprar um ingresso no céu com o que colhe na terra de sua falsa generosidade.” (FREIRE, 2011, p. 19). É por isso que o educador consciente deve estar atento, observando com olhar crítico e lúcido as práticas educacionais, e é por isso que não há pedagogia neutra, conforme nos alerta Freire. Toda ação pedagógica é, inexoravelmente, uma ação política, no sentido de que se trata de transformar – ou de fazer calar – vidas.
Estamos habituados ao “conhecimento” periférico e memorizado e não ao diálogo ético, diálogo da investigação, da pesquisa, do “desocultamento”. Diálogos estes que estão intimamente ligados à criticidade, sem o que não há emancipação e não há verdadeira democracia, verdadeira educação democrática que, por sua vez, deve ser fundamentada na crença no ser humano. A crença de que o excluído deve discutir seus problemas e debatê-los, analisar sua realidade juntamente com outros, formar uma discussão criadora, trocar ideias, trabalharem-se mutuamente, a fim de chegar aos meios para o pensar autêntico, aquele que abre perspectivas e novos horizontes de possibilidades. Que confere autonomia.
A concepção de liberdade, tão cara a Freire, também é central no pensamento de Amartya Sen. Em sua obra seminal, Development as Freedom, Sen (1999) define liberdade como o processo de expansão dos atos de autonomia cotidianos, rompendo e afastando as amarras sócio-historicamente postas a esses: a tirania, a pobreza, a privação social, a negligência por parte do Estado, em relação à coisa pública, a intolerância, os Estados repressores de direitos, dentre outros. A pobreza, a vulnerabilidade econômica, entendida não como “culpa” dos pobres, mas como um mecanismo importante de coerção, manipulação e exclusão social, constitui-se numa preocupação central para sem – como o era para Freire: promotora da interdição dos sujeitos ao ser mais.
No entender de Sen (1999), o ser humano requer que algumas necessidades sejam contempladas, sob pena de constituir-se o “semi-humano”. A ideia de liberdade, ou melhor, de liberdades, pode ser entendida, no âmbito do seu pensamento, como a mais fundamental dessas necessidades. Logo nas páginas iniciais da obra acima citada, Sen (1999, p. 17) define desenvolvimento como “[...] expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”, ou seja, o desenvolvimento humano – ou das sociedades humanas –somente é possível quando as origens/causas das privações das liberdades deixam de existir. No entender do autor,
O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas, de destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. A despeito de aumentos sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de pessoas – talvez até mesmo à maioria. (SEN, 1999, p. 18).
Na continuidade de sua argumentação, Sen afirma que a questão da liberdade é central para o desenvolvimento humano por duas razões principais: a razão avaliatória, através da qual se verifica se houve crescimento das liberdades dos sujeitos, de forma a favorecer o desenvolvimento, e a razão da eficácia, que se refere à ideia de que o desenvolvimento depende “[...] inteiramente da livre condição de agente das pessoas” (SEN, 1999, p. 18, grifo nosso).
O autor propõe cinco tipos diversos de liberdades, consideradas em termos instrumentais: liberdades políticas, de facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora. Essas liberdades, que agem sinergicamente, podem promover a capacidade geral dos sujeitos, isto é, favorecer as ações e tomadas de decisão que lhes permitam alcançar estados relevantes de ser, como definidos por eles próprios. Qualquer política pública que pretenda efetivar o desenvolvimento humano deveria, então, fundamentar-se nesse conjunto essencial de liberdades. Da mesma forma, acrescenta-se aqui quaisquer teorias ou práticas educacionais que pretendam, de fato, impulsionar o desenvolvimento humano.
A concepção de liberdade(s) como a qualidade do sujeito assumir-se como agente nas diversas esferas de sua vida social, relacionando o funcionamento humano (ser-agir em direção ao que o sujeito considera desejável) com as capacidades humanas (condições e oportunidades que tornam possível aos sujeitos alcançar aquilo que, refletidamente, valoram como estados de bem-estar) coaduna-se com o conceito de autonomia, como proposto aqui, enquanto forma de se efetivar uma educação para tal fim.
A educação sociocomunitária e a educação para a autonomia
A educação sociocomunitária é aqui compreendida por uma abordagem ecológica, considerando-se que iniciativas de mobilização dos sujeitos e de suas comunidades, em direção a uma práxis educativa emancipatória, necessitam encompassar as múltiplas esferas educacionais, que compõem o contexto de vida destes sujeitos/comunidades. Em se pensando numa educação emancipatória como aquela que deve voltar-se para a problematização das circunstancialidades de vida dos sujeitos, pela discussão das definições do estado de bem-estar, e da iniciativas organizacionais, em nível individual e coletivo, para conquistá-las, pondera-se aqui que é preciso pôr-se à escuta das diversas vozes que compõem a educação dos sujeitos, constituindo quem somos. Quer aquelas referentes à esfera familiar, quer as escolares, religiosas, esportivas, intra e intergeracionais, dentre outras. Interdependentes, estas várias esferas educativas interpõem-se, contrapõem-se, modificando-se e mutuamente retroagindo sobre os sujeitos, da mesma forma que também são transformadas por estes.
Para compreender as variáveis e os fatores que obstaculizam a tomada de consciência dos sujeitos, em relação às suas condições de existência, como entendido por Freire, e aquelas que interpõem-se ao afloramento da liberdade, na concepção de Sen, é preciso considerar o conjunto destas vozes, que são aquelas que nos configuram enquanto humanidade. É pela educação, compreendida de forma lata, em seus espaços formais ou naqueles de nossa convivência diária, das ações cotidianas, todas elas mediadas por ações sociais, que nossa humanização é tecida e sustentada.
As várias vozes sociais, que representam estas esferas educacionais, estão relacionadas a expectativas, interesses e experiências diversas, concepções diferenciadas de valores e de qual formação o ser humano necessita, para o bem-viver em sociedade. Como, nesta polifonia de anseios e crenças educativas, podemos aprender a sermos pensadores críticos de nossos contextos de vida, a resistir aos mecanismos de alienação postos pelas instituições sociais, que têm funcionado como dispositivos (AGAMBEN, 2006) marcados pela lógica neoliberal?
Ao se propor uma compreensão da educação sociocomunitária no sentido de uma educação para a autonomia, defende-se uma ação educacional que se constitua como um processo de re-colha – ou seja, de coleta dos vários sentidos dispersos no viver, referentes ao modo de conceber a realidade (HEIDEGGER, 1998) – dos diversos discursos educacionais, para analisá-los, colocando-os enquanto objeto de estudo, percebendo como se conflitam, em que pontos se reforçam ou se desafiam. Como empoderam – ou não – os sujeitos. Trazer à tona as diferentes perspectivas de concepção e de formação do humano, que vigoram no cotidiano social, na malha de relações que constitui o viver, é essencial para a promoção da autonomia. Esta não pode ser exclusivamente individual: não há sujeitos autônomos se a coletividade não se constituir, imbricadamente, como tal.
A partir de uma compreensão ampliada das circunstancialidades educacionais dos sujeitos, considera-se que podem ser planejadas ações educativas que, por exemplo, se dirijam a experienciar a vitalidade que pode haver numa análise coletiva, multigeracional, por diferentes enfoques, sobre as formas que o poder e a exclusão social assumem, historicamente, numa dada sociedade. Isto significa também adotar a perspectiva freireana de que para se transformar a realidade é preciso refletir sobre ela, tomá-la como objeto cognoscível, reconhecendo suas qualidades contingentes. Refletir sobre os diversos contextos formativos dos sujeitos, fazendo emergir suas contingências, afigura-se como fundamental para promover a conscientização de que o processo educacional, em qualquer das suas esferas, não é nem transcendental, nem determinado, mas passível de transformação, tendo os próprios sujeitos como agentes de mudança.
Corngold (2012) discute algumas categorias que seriam fundamentais para uma educação emancipatória, que se coadunam com as perspectivas aqui discutidas. São pontos sobre os quais uma educação sociocomunitária, como aqui entendida, que pretende ser emancipatória, deve refletir, inquisitivamente. A primeira destas categorias se refere ao conhecimento, ou, antes, ao modo como o conhecer é concebido pelas diversas esferas formativas dos sujeitos, numa dada comunidade. Começando-se pelo contexto sociocultural mais amplo, quais as concepções epistemológicas que se percebem como mais influentes? Entende-se que o cerne da educação – e, assim, do que conhecer – é preparar para o trabalho? Para o enriquecimento e o sucesso individual? Ou para a organização da coletividade e para a convivialidade? Qual o valor atribuído por esta comunidade ao acesso ao conhecimento – e a que conhecimento? Quanto e como esta comunidade investe neste acesso, em termos de recursos humanos e materiais? E como se entende que os conhecimentos “servirão” para a vida dos sujeitos? Este valor é considerado o mesmo para todos os sujeitos, ou se espera que alguns tenham acesso privilegiado a determinados tipos de saber, como aqueles acadêmicos, ou técnicos, em detrimento de outros? As concepções e os valores em relação ao conhecer, predominantemente presentes numa comunidade, influenciam aqueles que se efetivam nos microcontextos de vida dos sujeitos: família, escola, grupos de lazer, etc. Ao mesmo tempo, contudo, que estes microcontextos influenciam contextos comunitários mais amplos, reforçando, negando ou provocando modificações nestes.
Não há como compreender as práticas discursivas dos microcontextos sem, conjuntamente, refletir sobre como estes incorporam este discurso mais amplo, mais difuso. Ou vice-versa. Esta reflexão, porém, não deve ser reducionista: estabelecer relações entre o macrocontexto de uma comunidade e seus microcontextos requer uma abordagem ecológica; de forma a que não se percam vinculações importantes entre tais contextos, que dificultariam a compreensão da complexidade dos mesmos. O que se coaduna com o proposto por Bronfenbrenner (1996), em sua teorização Biopsicoecológica do Desenvolvimento Humano, sob a argumentação de que o viver humano transcorre em diversos microcontextos de convivência “face a face”, nos quais as influências educativas, que exercemos uns sobre os outros, se mostram mais diretas. Estes microcontextos constituem, por sua vez, outras esferas de influência, que se aninham, até compor um macrocontexto, cujo alcance reverbera, mais difusamente, sobre os microcontextos. As relações entre os microcontextos/macrocontextos são complexas, ou seja, compostas por variáveis múltiplas, interconectadas de maneira não linear, não sendo possível compreendê-las claramente em termos de suas causas-efeitos, contínuas e retroalimentadoras, compondo, assim, uma ecologia. Marcações importantes nesta ecologia são os processos pessoais de interacionamento e o tempo, pois todos os sujeitos que compõem as esferas de convivência humana, bem como todas as instituições sociais, individuadas nestas esferas, transformam-se através de sua historicidade.
A segunda categoria proposta por Corngold (2012) se refere às habilidades necessárias para empregar o conhecimento, de forma a construir a consciência crítica, essencial à educação emancipatória. Um sujeito que pensa criticamente deve ser capaz de avaliar razões e argumentos, determinando quão bem estes sustentam crenças, afirmações e ações. Deve ser capaz de vincular relações de causa-efeito sob múltiplos enfoques, compreendendo que determinado conhecimento pode ser “confiável” ou não, dependendo de quem justifica – ou “recorta” – tais relações. Como tais habilidades são construídas nos contextos formativos dos sujeitos? Quais são os critérios que os sujeitos aprendem a valorar e selecionar como relevantes para questionar os discursos correntes nas práticas sociais, inclusive aqueles mais pertinentes às suas esferas educativas? Com quem discutem esta valoração? Quais espaços há, nestas esferas, para discutir esta valoração? Como os sujeitos se posicionam em relação a perspectivas conflituosas presentes nos diversos contextos educativos? Sem o desenvolvimento destas habilidades nós nos tornamos presas fáceis de manipulações, abdicando de quaisquer aspirações emancipatórias.
A terceira categoria diz respeito à disposição para pensar criticamente, o que exige uma atitude de contínuo escrutínio frente à realidade e, assim, dos diversos espaços sociais que a compõem. Esta talvez seja a categoria mais difícil de abordar, pois cada um destes espaços corresponde também a espaços formativos, que tendem a “proteger-se” de uma atitude crítica, como modo de continuar a manter seus mecanismos de controle e poder. Como, então, estes espaços fomentam tal disposição? Contrapondo-se binariamente uns aos outros? As instituições escolares e diversos discursos midiáticos, para fazer um exemplo, urgem as pessoas a pensar criticamente a família enquanto importante instância formadora. Mas, contudo, raramente direcionam esta urgência à disposição para olhar de forma crítica seus próprios discursos formadores. E o sujeito, como pode aprender a posicionar-se frente a tais discursos? Esta é uma das principais funções do se educar para a autonomia: fomentar a reflexão dos sujeitos sobre os seus próprios caminhos de formação, favorecendo que compreendam as diferentes “formatações” educacionais, que interagem para nos constituírem como membros de uma comunidade. E, no processo desta compreensão, discutir dialógica e dialeticamente, como estamos sendo formados e em que medida transformamos, ou reproduzimos, nós também, tal formação.
A proposição de educação sociocomunitária, como aqui exposta, compreende que uma educação emancipatória, baseada na autonomia dos sujeitos, somente será possível de ser conquistada no campo conflituoso das diversas esferas formativas vigentes numa comunidade. Acredita-se que, pelo entrelaçamento das questões levantadas nas categorias acima referidas, dentre outras, pode ser possível compreender mais holisticamente as muitas contradições que cercam a educação cotidiana, abrindo perspectivas de análise e favorecendo espaços de diálogo e conscientização. Pretende-se afirmar a ideia de que a “nutrição” de perspectivas mais equânimes para o viver social passa pela educação para a autonomia e a emancipação, e estas pela escuta recíproca – e respeitosa, pois não se trata de estabelecer concepções preconceituosas – da diversidade de vozes formadoras de nossa humanidade, presentes numa comunidade. O que não acontecerá “naturalmente”, dadas as disputas de poder presentes no viver social, mas que podem ser promovidas por um processo educacional planejado para tanto.
Considerações finais
Procurou-se, neste artigo, discutir uma perspectiva de educação para a autonomia centrada na educação sociocomunitária. Pautada nos estudos de Freire, Sen e Nussbaum, a proposta é a de que a educação sociocomunitária pode ser compreendida como um processo de escuta da polifonia de concepções, desejos, disputas ideológicas e tradições culturais, que caracterizam as práticas educativas dos sujeitos, nas diversas esferas formativas existentes numa comunidade. O propósito desta escuta é recolher os sentidos, dispersos no viver social, sobre os modelos de ser humano, que se pretende formar, e, concomitantemente, os rumos da constituição do real, que podem ser apreendidos através desta recolha. E, desta maneira, propor iniciativas de compreendê-los em seu conjunto, descortinando sinergias, controvérsias, fragmentações.
Considera-se que tal compreensão recoloca continuamente e sob enquadramentos diversos a questão sobre em qual mundo se quer viver – e os esforços que seriam necessários para tanto. O que se coliga, indissociavelmente, com questões educacionais, formais ou não, que devem ser planejadas para favorecer o repensar das formas de tramar o viver social.
A concepção de que a educação dos sujeitos é resultante de uma multiplicidade de influências, que pouco ou raramente são estudadas, de maneira a apreender-se suas relações ecológicas, e a proposição de proceder-se à escuta destas influências polifônicas, traz imbricadamente o cuidado de não adotar-se, nos discursos de uma educação para a autonomia e para a emancipação, uma visão homogeneizante das especificidades formativas dos indivíduos e grupos que tradicionalmente se mostram alvo de marginalização e exclusão social.
Toda prática educacional é ideológica. A tentativa de buscar compreender a complexidade de como as diferentes ideologias formativas vigoram no cotidiano vivido pode ampliar as perspectivas de análise das contradições presentes em tais ideologias. E isto é significativo para nutrir estratégias educacionais e espaços de “contato social”, em que possamos discuti-las.
Referências
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