Artigos

Recepção: 20 Julho 2018
Aprovação: 05 Dezembro 2018
Resumo: Abordamos a figura de A. S. Faria de Vasconcelos, insígne representante do movimento da Escola Nova em Portugal, cujos princípios pedagógicos, por ele aplicados na escola de Bierges, na Bélgica, representaram a constituição do seu sistema psicopedagógico e ganharam expressão em suas obras, intervenções e realizações, com difusão na Europa e América Latina, em especial no período 1915-21. A partir de uma reflexão de caráter hermenêutico e do recurso a fontes primárias e secundárias, o texto propõe uma análise histórico-descritiva norteada pelos seguintes objetivos: i. analisar os fundamentos teório-práticos do sistema psicopedagógico, proposto por esse autor, e seus contributos à História da Educação – pedagogia contemporânea, educação popular, Movimento da Escola Nova; ii. compreender as bases pedagógicas da sua experiência em Bierges, particularmente quanto a sua inserção nos princípios do Movimento da Escola Nova e Ativa. Assim, realçamos os elementos fundamentadores da educação integral dos alunos e a ligação dos princípios pedagógicos do autor ao movimento de renovação pedagógico e à história da educação portuguesa. Concluimos com a observação de que Faria de Vasconcelos deve figurar com destaque entre os pedagogistas de primeira plana nacional e mundial.
Palavras-chave: Educação Integral, Escola Nova, Faria de Vasconcelos, Pedologia, Psicopedagogia.
Abstract: We approach the figure of A. S. Faria de Vasconcelos, outstanding representative of the New School movement in Portugal, whose pedagogical principles, for he applied at Bierges, in Belgium. This experience represented of the constitution of your psycho pedagogical system, expressed in his works interventions and experimentalachievements, were diffusion in Europe and Latin America, in particular in theperiod 1915-21. From a reflection of character interpretation and the use of primaryand secondary sources, the text offers a historical and descriptive analysis guided bythe following objectives: to analyze the practical-theory fundamentals the psychopedagogical system, proposed by this author, and their contributions to the Historyof Education (Contemporary Pedagogy ), popular education, Movement of the NewSchool; understand the pedagogical bases of your experience in Bierges, inserted inthe application of the principles of Active and New School Movement .Thus, we haveenhance the fundamentation elements of the integral education of students and theconnection of the pedagogical principles of the author to the movement the of renovationpedagogy and the History of Education. We conclude with the observation that wouldmake Faria de Vasconcelos must appear prominently among the pedagogy from firstnational and world flat.
Keywords: Integral Education, New School, Faria de Vasconcelos, Pedology, Psychopedagogy.
Introdução
A 1.a República portuguesa (1910 a 1926) foi um manancial de medidas e iniciativas progressistas de extensão cultural, assistencial, jurídico-social e de modelos pedagógicos. Estão nesse universo educativo as universidades populares, a Universidade Livre, a criação de instituições assistenciais e educativas, a renovação da instrução, a legislação em prol da proteção à criança, as medidas de política social, as atividades comunitárias etc., que merecem ser rastreadas em estudos científicos. Pois foi nesse cenário de novas tendências em educação que foram divulgados vários métodos e estratégias de ensino (Montessori, Decroly, Plano Dalton, método de projetos, trabalho em grupos…), o sistema de self-government e os ideais da Escola Nova que se espraiam no pensamento, experiência e ação de António de Sena Faria de Vasconcelos (1880-1939), como um dos pioneiros da Educação Nova.
Esse escolanovista emerge num ambiente de início do período republicanono qual a ideia de educação popular se expande, em que o experimentalismodá um contributo científico à abordagem do ato educativoe aos problemas pedagógicos escolares, tendo-se constituído, por direitopróprio e reconhecimento internacional (europeu e latino-americano, emespecial), numa figura de divulgação de ideias, experiências e ações no campo da pedagogia moderna (FIGUEIRA, 2001). Por essa razão, tratase de um dos maiores vultos da História da Educação e da Pedagogia Contemporânea, em particular na área da Psicopedagogia, continuan- do indiscutivelmente atual nos dias de hoje. Notabilizou-se na área da Psicologia Experimental e da Pedologia portuguesa, este um movimento médico-pedagógico no qual se destacaram figuras como as de Aurélio da Costa Ferreira, na Casa Pia de Lisboa; Alves dos Santos, na Universidade de Coimbra; Adolfo Lima, na Escola-Oficina n.º 1 de Lisboa; Álvaro Viana de Lemos, António Sérgio e outros. Esse pedagogo português apresenta uma biografia vital, rica e diversa tal como sua obra e pensamento, que emergem no espaço temporal da época entre um Portugal de finais da Monarquia Constitucional de 1880-1902); uma Europa cheia de ideias e experiências pedagógicas – com destaque para Bélgica e Suíça (1902-15); uma América Latina – foco em Cuba e Bolívia (de 1915-20) – preocupada com a formação dos professores e a introdução dos ideais da Escola Nova; e, por último, no seu País, a partir de 1920, contribuindo com propostas de reforma do sistema educativo, alterações psicopedagógicas e educativas necessárias e no papel de orientação escolar e profissional na formação dos alunos (VASCONCELOS, 1921).
É assim que A.S. Faria de Vasconcelos foi um autêntico “pioneiro da educação do futuro”, designação atribuída por Ferrière, no prefácio de sua obra Une École Nouvelle en Bélgique (VASCONCELOS, 1915, p. 14). Embrenha-se ativamente no Movimento da Escola Nova, estabelece amizade com grandes vultos da época e experimenta/aplica os princípios dessa educação inovadora na Escola de Bierges, perto de Bruxelas, entre 1912 a 1914. Depois, divulga essas ideias renovadoras como conferencista, pedagogo, professor e reformador educativo, quer na Suíça, Cuba e Bolívia quer, posteriormente, em Portugal, onde criou o Instituto de Orientação Profissional M.a Luísa Barbosa de Carvalho, tendo sido seu diretor entre 1925 a 1939, e o Instituto de Reeducação Mental e Pedagógica (1929-31), para além de ter elaborado, em 1923, a proposta de reforma do sistema educativo português, conhecida por Reforma do Ensino de João Camoesas, e, ainda, ter sido um grande articulista de periódicos e revistas especia- lizadas, por exemplo, Seara Nova, Revista Escolar, Brotéria e Revista da Educação (DIAS, 1969).
Formou-se em direito na Universidade de Coimbra em 1900, seguindo a tradição familiar de pai e avô juristas, mas sentiu uma especial vocação pelas pedagogias modernas. Doutorou-se em Ciências Sociais na Université Nouvelle de Bruxelles, em 1904, exercendo nesse país belga (até 1914) e na Suíça (1915) funções docentes no âmbito das ciências da educa-ção, sendo encarregado de cursos de Psicologia Experimental no Instituto
J.J. Rousseau de Genebra, sob direção de Claparède e com uma forte amizade a A. Ferrière.
Em seu livro Problemas Escolares, Faria de Vasconcelos (1929, p. 13) explica o que entende por pedagogia [contemporânea], “[…] considerando-a com um caráter e um espírito nitidamente científico.” Por outro lado, utiliza uma série de ciências como a biologia, a antropologia, a psicologia, a sociologia, a moral e a arte, cujas aquisições e métodos servem para melhor estudar, compreender, interpretar os factos e os problemas educativos e sociopedagógicos. Esses factos e problemas devem possuir um critério próprio, como factos naturais e positivos, por isso a pedagogia é uma ciência autónoma, com um corpo definido, normativa, méto- dos de descrição e explicação próprios, embora recorra às outras ciências que a auxiliam na sua missão. A pedagogia constituía o meio eficiente para elevar os educandos a esferas individualizadas e, ao mesmo tempo, socializadas (BRASIL, 1969). A educação era, para o nosso pedagogo, um todo integral que se desenvolve harmonicamente para a formação do homem integral. E nesse sentido a educação mental, que o preocupou em larga escala, constituía a base firme sobre a qual se alicerçavam todos os outros tipos de educação (ALVES, 1967).
O propósito da nossa reflexão hermenêutica e histórico-descritiva centra-se na figura e pensamento de Faria de Vasconcelos, tendo como norte (fontes primárias e secundárias) os seguintes objetivos: analisar os fundamentos do sistema psicopedagógico, proposto por esse autor, e seus contributos à História da Educação – Pedagogia Contemporânea, educação popular e Movimento da Escola Nova, que foi um movimento reno- vador pedagógico europeu; ii. compreender as bases pedagógicas da sua experiência em Bierges, particularmente quanto a sua inserção nos prin- cípios do Movimento da Escola Nova e Ativa, dando realce aos elementos fundamentadores da educação integral dos alunos e alguns dos aspetos de organização escolar propostos na mencionada experiência. Utilizaremos uma metodologia hermenêutica de análise tendo como fontes os volumes I(1986), II (2000), III (2006), IV (2009) e V (2010) das Obras Completas doautor, reunidas e analisadas por J. Ferreira Marques na Fundação CalousteGulbenkian em sete volumes, para além de artigos publicados em revistascientíficas, em especial na Revista Estudos de Castelo Branco (1969), tesese dissertações académicas e outros documentos em arquivos (BibliotecaNacional, Torre do Tombo, bibliotecas municipais de Castelo Branco eCascais e Biblioteca do Museu do Teatro).
Nossas análises buscam destacar os contributos do educador portu- guês à educação nova, à escola única, à utilização de métodos ativos, bem como seu papel de orientação na formação de alunos e na organização escolar, atividades que impulsionaram a pedagogia de princípios do séc. XX, com impacto em vários sistemas educativos. Faria de Vasconcelos apostava numa sorte de educação integral, no valor espiritual do homem, na sua capacidade como ser atuante, fruto de uma educação integral, pois como dizia: “[…] vale a pena ser Homem.” (VASCONCELOS, 1923, p. 223), desenvolvido no seu único poema inédito ‘Sois un homme!’ de 1921.
1 O sistema psicopedagógico fundado na pedologia
O estudo científico da criança é o princípio dos imperativos preferidos por Faria de Vasconcelos (1909), como caraterísticas da pedagogia de índole científica. De facto, a “[…] pedagogia como ciência da educação liberta-se do empirismo e envereda pelo método científico” (VASCONCELOS, 1921, p. 13), pelo experimentalismo científico que marca a pedagogia contemporânea. Desse princípio, surge o imperativo da “[…] educação psicológica e pedológica do professor.” (VASCONCELOS, 1909, p. 12).
Esse insigne escolanovista segue o ideário da escola nova, preconizando a subordinação dos conteúdos programáticos do currículo, da pro- cessologia didascálica às necessidades e potencialidades individuais psi- cofísicas da criança e da adequação das didáticas específicas na formação escolar. É sabido que o fundamento da educação nova foi a ciência da criança (pedologia), concebida como ciência natural. De facto, a pedolo- gia daquela época integra uma metodologia experimental de observação, indução e experimentação, de tal forma que se multiplicam as mensurações(exames psíquicos e antropométricos, testes e despistagens escolares)e criam-se laboratórios de psicologia experimental. Faria de Vasconcelosintroduziu a necessidade de se realizar diagnósticos pedométricos nasescolas (antropometria de Quetelet) examinando-se estatura, peso, perímetrotorácico, diâmetro biocromial, cefalometria, força muscular etc.(CUNHA, 1997). Dessas observações e medições (influência da pedotecniade Decroly) estabelece um quadro de caraterísticas dos fenómenosevolutivos do desenvolvimento físico e mental (VASCONCELOS, 1928).
O respeito pela natureza da criança e pelo seu crescimento físicoconstituía a base da lei pedológica (pedologia geral e diferencial), impondo-se, nesse âmbito, o dever de conhecê-la e preveni-la, de modo que oeducador converte-se num orientador e higienista que “[…] vigia e favoreceo desenvolvimento normal da criança.” (VASCONCELOS, 1909, p.20). Por isso, exigia-se como condicionante um ambiente envolvente físiconaturalpropício ao crescimento da criança, em que o educador/professorpropunha atividades estimulantes: às suas energias físicas, por meio de ginástica/desporto e jogos; às capacidades intelectuais, propondo exercíciosescolares, a lição das coisas, os trabalhos manuais, o ensino experimentaldas ciências naturais, a resolução de problemas no ensino das matemáticasetc. Ou seja, o educador/professor vai gradualmente ensinando a criança/aluno a aprender a aprender fazendo. Por conseguinte, o nosso pedagogoapresenta, na sua obra e pensamento, um sistema de princípios caraterizadoresdo seu sistema psicopedagógico, destacando, por exemplo:
Princípio regenerador e edificante da educação. A educação tem uma capacidade regeneradora no ser humano: evolução do seu interesse sociológico para o biológico, psicológico e pedagógico (VASCONCELOS, 1909), mesmo com as crianças ‘anormais escolares’ e delinquentes, convertendose num poder ‘emancipador’ do desenvolvimento do ser humano (VASCONCELOS, 1936).
Princípio do desenvolvimento (lei pedológica). O estudo científico dacriança constitui o primeiro imperativo da pedagogia ou ciênciada educação. A base da educação e da escola nova era a ciência dacriança (ciência natural), tendo como auxiliar a pedologia pela observaçãoe experimentação. A criação do meio propício ao normal desenvolvimento afigurava-se essencial, pois a partir daqui o educadorincumbia-se de “[…] cuidar dos fatores que estimulassem asenergias físicas e intelectuais da criança.” (VASCONCELOS, 1909,p. 33). Mas o educador deve, nessa ciência nova (pedologia), ser investigador,orientador e conhecedor das leis da pedologia geral, dasdiferenças e variedades reveladas pela pedologia diferencial quantoà sensibilidade, imaginação, atenção, memória, juízo e reatividadeda criança.
Princípio da autonomia da criança. Esta lei representa uma ruturacom a teoria antropológica do ‘homúnculo’ (criança= adulto em miniatura)e da infância como fase de ascensão para o estado adulto.Para Faria de Vasconcelos (1909, p. 330), a criança é uma unidadee totalidade em si mesma significativa e, por esse princípio, superava-se esse “[…] pré-juízo do adulto” e incidiam as “[…] leis dodesenvolvimento” aos interesses no ato educativo. Assim, destacatrês fatores nucleares no crescimento mental da criança: o jogo –parte lúdica que segue as teorias de Froëbel, Claparéde, Groos, Carr,Lange; a imitação pedagógica, relacionada com as condições do atohumano – seguindo a teoria de Tarde, consciente e voluntário coma palavra e expressão, com a distinção entre educação e sugestão;os interesses, bem difundidos na pedagogia de Herbart, W. James,Decroly, Claparède e Luquet, sobretudo na relação com o crescimento,a organização escolar e curricular (GOMES, 1984).
Princípios antropológicos da continuidade e solidariedade psicofísica. Estes princípios decorrem do “[…] dinamismo psíquico do ser humano,em que a continuidade psicofísica, a diferença entre fenómenosfísicos e psíquicos dependia do grau de desenvolvimento, daintensidade e complexidade, das expressões diferenciadoras de umúnico processo evolutivo.” (VASCONCELOS, 1909, p. 114) A baseda atividade dos sentidos constituía a base da atividade psíquica,com destaque para a educação sensorial e os trabalhos manuais. Naverdade, a cultura integral do ser humano radica no princípio decontinuidade e solidariedade das funções psíquicas e da atividadeorgânica, obrigando à reflexão e correção da orientação intelectualistada educação. De facto, esses princípios implicavam a prioridadeda educação física e sensorial em relação à intelectual, seguindo a linha psicogenética de Piaget, pois “[…] os sentidos são os primeirosinstrumentos do conhecimento.” (VASCONCELOS, 1909, p.137). Contudo, no sentido de uma cultura sensorial global, haviaa necessidade de cultivar a complexidade da memória que era “[…]a cúpula de todo o edifício intelectual” (VASCONCELOS, 1909,p. 139), onde decorrem os imperativos pedagógicos e a ação dosprofessores. Assim, privilegiava a atividade psíquica da associação deideias, baseada na atração psicológica, da multiplicidade dos fatoresda atenção, que é o fator primordial das operações psíquicas. Isto é,tudo em função dos interesses e da natureza da criança.
Princípio do humanismo pedológico e antropológico no seu sistema. Adimensão humanista decorre da cultura integral, numa multidimensionalidade,integralidade e abertura a fatores essenciais à educação(currículo, métodos) e formação (orientação), numa apologiadas virtudes pedagógicas e antropológicas: “O homem não é apenasum tesouro de conhecimentos, o seu valor não se mede unicamentepelo vigor da sua inteligência, pela soma do seu saber.”(VASCONCELOS, 1926, p. 126).
Todos esses princípios expressam uma matriz epistemológica e fi- losófico-pedagógica no âmbito teórico-concetual e da práxis pedagógica de Faria de Vasconcelos, impregnados do naturalismo pedagógico de J.J. Rousseau, Pestalozzi e Fröebel, pelo qual a criança é um elemento original da natureza, pautada na lei do crescimento físico, intelectual, social, moral, estético, sexual etc., enfim, para o seu desenvolvimento integral, daí o destaque do nosso escolanovista para as funções psíquicas (atenção, hábito, memória, associação, consciência, inconsciente, inteligência…) (VASCONCELOS, 1921).
2 Inovações pedagógicas na educação integral da Escola de Bierges, na Bélgica
A escola de Bierges-lez-Wavre (1912-14), perto de Bruxelas, consideradaa Escola Nova modelo por A. Ferrière no Prefácio ao livro Une ÉcoleNouvelle en Belgique (VASCONCELOS, 1915), expressa o envolvimento social, escolar e comunitário dos alunos no aprender para e na vida prática(campo) e nos sentimentos de pertença ‘à sua escola’ eram caraterísticas deuma educação integral, pois aquela escola “[…] era um simples laboratóriopara investigações pacientes e continuas […] uma obra de experimentaçãoe de análise permanentes.” (MEIRELES-COELHO, 2012, p. 239).António Nóvoa (2005, p. 83) comenta que “[…] Depois de um século deteorias pedagógicas, importava, agora, explicar concretamente o que sefazia, esperando que esta ilustração fosse inspiradora e contribuísse paralançar a semente da escola nova”, ou seja, no dizer desse historiador e atualembaixador de Portugal na UNESCO, a passagem das ideias inovadoras àprática implicariam a modificação dessas mesmas práticas num laboratóriode experimentação e observação dos alunos. Para ser ‘Nova’ essa escoladevia satisfazer, no mínimo 15 dos 30 requisitos propostos pelo BureauInternacional des Écoles Nouvelles, mas Faria de Vasconcelos cumpriu 28deles, excepto a coedução por estar proibida na Bélgica e a reorganizaçãoem grupos de 15. Há uma série de premissas educativas que caraterizamas ações e experiências pedagógicas de Faria de Vasconcelos em Bierges,constituindo uma sinfonia de cultivo geral da personalidade individual,personalizada, social e coletiva dos alunos, destacandose os seguintes andamentosformativos:
Primeira premissa pedagógica: laboratório de pedagogia prática e ativa. A Escola desempenhava um papel inovador no âmbito da psicologia/pedagogia moderna, nos meios que punha em ação e das necessidades moderna da vida, praticando a fórmula: “[…] a escola às crianças.” (VASCONCELOS, 1915, p. 14) Assemelhava-se a um internato situado no campo, agrupando os alunos em casas separadas (ambiente comunitário, lar familiar e regime de autogoverno), sob a influência do meio natural (natureza), o qual “[…] servia de auxiliar à sua vida escolar: cultura física, educação moral, cultura intelectual e artística.” (VASCONCELOS, 1915, p. 17).
Segunda premissa: envolvimento dos alunos. Estes escolares envolviamseem tudo o que realizavam e aprendiam na escola, considerandoa‘é a nossa escola, fomos nós que a fizemos’, daí desenvolveremum sentido de pertença, um sentimento e emoções no aprender atempo inteiro, no qual as atividades curriculares e não curriculares contribuíam para a sua formação e cultura geral a partir da observação,indução, indagação e experimentação (sentido de J. Dewey),movidos pelos interesses, incrustados numa vida ativa comunitária(autogoverno) e familiar. Cada aluno partilhava ativamente na definiçãodos objetivos, programação, estratégias de implementação e(auto) avaliação (FERNANDES, 1978) e tinha poder de decisão. Aaprendizagem tornava-se mais eficaz se os alunos soubessem gerireles próprios o que aprendiam com interesse e gosto, resolver problemase sistematizar ideias, implementando-as na prática diária.Encontramos nessa Escola Nova os processos de ensino-aprendizagemda literacia em ciências, matemáticas, línguas, trabalhos manuais,indagação e pesquisa de saberes práticos, cultura financeira(autogoverno escolar) e demais aspectos favorecedores da inclusão,numa perspetiva dual de educação e formação (MEIRELESCOELHO,2005).
Terceira premissa pedagógica: sentimento de uma escola ativa perto danatureza e com atividades intelectuais, sociais e artísticas. Os alunosconstruíam, de acordo com suas necessidades, motivações e interessesa sua (auto) aprendizagem, ao seu ritmo. Era um sentimento depertença unido à escolha e organização livre e consciente, partindoda observação, ação e experiência da realidade concreta das coisase dos factos (MEIRELES-COELHO, 2012), em que os trabalhosmanuais e as tarefas integravam-se com outras atividades lúdicas,desportivas, sociais e intelectuais.
O trabalho educativo estava estribado nos princípios da escola para a criança, o que implicava uma cultura corporal e higiénica assente num sistema de vida comunitária, destacando-se o desenvolvimento de uma cultura geral, física, lúdica, desportiva e sociocultural na educação infanto-juvenil. De facto, incentiva-se a criança brincar, jogar e praticar atividades físicas e desportos como boxe, esgrima, luta greco-romana, corrida e saltos, exercícios de ginástica ao ar livre, visitas a pé ou de bicicleta, excursões, campismo, o escutismo e atividades socioculturais. Todo esse conjunto de atividades desempenhava uma função de educação social escolar. Tudo era exercitado articulando-se com a lição das coisas (observação), com os trabalhos agrícolas e manuais complementando essa panóplia de exercícios, tarefas e ocupações. A variedade dos trabalhos realizados, sua adaptaçãoà idade das crianças, a alternância com a dimensão intelectuale moral imprimiamlhes um valor educativo único para elevar oespírito.
Quarta premissa: educação integral versus cultura geral. Em Bierges,o ensino baseava-se em princípios pedagógicos adequados aos objetivosde uma educação integral e multilateral para a vida e na vida.Os meios educativos de efetivação dessa educação consistiam: nalimitação do número de alunos em cada classe (turmas inferiores a20); na adoção de um ensino comunitário ou coletivo compatibilizadocom ‘classes móveis’, segundo os graus de desenvolvimentodos alunos nas diferentes matérias curriculares (previsto horário individualna organização escolar para certas matérias); distribuiçãoorganizativa dos alunos e matérias em 4 seções – preparatória, dos2 aos 10 anos; geral, dos 11 aos 14; superior, dos 15 aos 17; especial,para os de 18-19 anos; instrução geral, igual para todos entre os 7-14anos e, a partir dessa idade, segundo as tendências vocacionais comorientação profissional; avaliação dos trabalhos dos alunos com observaçõespsicopedagógicas e um relatório dirigido às famílias, comindicações referentes à sua parte moral e social.
Quinta premissa: a escola nova organiza trabalhos manuais e livrespara todos com objetivo educativo e utilidade individual e coletiva(VASCONCELOS, 1915). Nessa perspetiva, os trabalhos manuaisrepresentavam em Bierges uma valiosa iniciação à observação,à indução, ao experimentalismo e à prática do fazer que exigia,previamente, várias operações (trabalho de projeto, programação,gestão e cálculo dos custos), para além do conhecimento das ferramentase matérias-primas. Nesse ambiente oficinal respirava-secooperação e desenvolvia-se o poder de iniciativa, a participaçãodos alunos na criação de uma escola, de modo a sentiremnacomo sua. Os trabalhos manuais, como a cestaria, cerâmica,cartonagem, modelagem, encadernação, trabalhos em madeirae ferro, completavam o elenco dos exercícios físicos e contribuíampara o desenvolvimento físico, moral e intelectual do aluno.Os trabalhos livres iam ao encontro dos interesses e gostos dascrianças, “[…] despertandolhes o poder de iniciativa e o espirito inventivo e de engenho, destacando-se a lição das coisas e umasérie de esforços individuais, tarefas comunitárias e ocupações”(VASCONCELOS, 1915, p. 53) (agrícolas, criação de animaisetc.) como fatores de educação social. O self-government, o desempenhode cargos sociocomunitários, os contributos individuais, aprogramação e organização do trabalho e das tarefas da comunidade,o funcionamento da assembleia de alunos e tudo o maisconstituíam elementos primordiais de educação social para todos,independentemente da idade (MEIRELES-COELHO, 2005).
É estranho que um pedagogo de renome como António Sérgio, que esteve em viagem pedagógica no Instituto J.J. Rousseau de Genéve com a mulher Luísa Sérgio, tendo sido ministro da instrução em Portugal, defensor do autogoverno escolar e dos ideais da Escola Nova não incluísse a Escola de Bierges de Faria de Vasconcelos entre as escolas-modelo a criar em Portugal (GOMES, 1984). Lembramos que Faria de Vasconcelos publicou na Revista Escolar (ano 5, nº 9, novembro de 1925) um artigo: O selfgovernment na escola, no qual expôs todas as caraterísticas desse modelo de interação e governação pelos alunos
Quinta premissa pedagógica: a cultura do corpo, a higiene, a ginástica, jogos e a música auxiliares do ensino. Na Escola, a ginástica pedagógica e os exercícios físicos, os jogos e o desporto, as visitas (a fábricas, museus, monumentos), passeios/excursões e acampamentos integravam-se em atividades não curriculares semanais que iam ao encontro das ideias médico-pedagógicas e de higiene escolar e social vigentes na época.
Sexta premissa pedagógica: ensino das ciências, matemáticas, da literacia, das línguas e artes. O ensino das ciências naturais era a charneira da educação intelectual dos alunos, principalmente dos 7 aos 10 anos, e ia além das físico-químicas, sociais e humanas, da zoologia, da geografia e da história etc. já que permitiam a aquisição de hábitos de trabalho, sentido crítico, pesquisa, entre outras capacidades. A partir das observações regulares, da indução e das comparações chegavam a generalizações, a classificações, a grupos sintéticos de saberes, a associações de trabalhos manuais (desenho, cartonagem), ou seja, os alunos colocavam-se perante os fatos e osproblemas concretos. Desse modo, as “[…] matemáticas promoviama aplicação de métodos de observação e experimentação à aquisiçãode noções essenciais”, utilizando dados numéricos em muitas ocasiões(MEIRELES-COELHO, 2012, p. 108). Faria de Vasconcelos(1915, p. 90) tinha em conta os estádios de desenvolvimento dacriança, considerando a “[…] abstração matemática como um tempoessencial ao desenvolvimento da criança, sendo uma coordenadade toda a realidade”, pois tudo era medido e calculado em todas ascircunstâncias.
Na verdade, a didática apresentada nessa ‘Escola Nova’ tinha como núcleo de ensino as ciências naturais, para além das matemáticas, lín- guas, geografia, história, atividades interdisciplinares e demais ciências (VASCONCELOS, 1923). Relativamente ao estudo das línguas aplicavam-se os mesmos métodos de observação, experimentação, trabalho individual e em grupo (exercícios), incidindo no gosto de falar, de se expressar (comunicação oral, escrita), na linguagem e na dição. A leitura do mundo precedia a leitura da palavra, como ensinado por Paulo Freire tempos de- pois, daí que linguagem e realidade uniam-se dinamicamente. O conceito de literacia era aplicado seguindo uma “[…] série de meios, classes móveis, horários, concentração do trabalho, interdisciplinaridade das matérias, cultura geral e especialização profissional”, ou seja, aquisição de saberes básicos (MEIRELES-COELHO, 2012. p. 73), levando os alunos a servirse dos conhecimentos, a saber utilizá-los e aplica-los: “[…] ensinar o mínimo possível, fazendo com que descubra o máximo possível, num esforço pessoal, pesquisa e descoberta.” (VASCONCELOS, 1915, p. 102).
Por outro lado, fazia-se despertar o gosto estético da criança, de maneiraque o seu espírito respirasse beleza, como quem respira o ar puro. Osalunos organizavam exposições, trabalhos artísticos e atividades musicaise de canto. Em relação às “[…] modalidades de educação artística praticadas,educação sexual e à coeducação” (MEIRELES-COELHO, 2012,p. 231) (não incluída, uma vez que eram rapazes) eram tratadas com tato,franqueza e abertura. Em relação à educação moral, social e artística, Fariade Vasconcelos (1915) destacava a importância do ambiente envolvente, sua organização no processo estruturante da personalidade do aluno e nacooperação em todas as matérias, atividades e tarefas comunitárias, nosentido de uma educação integral.
h. Sétima premissa pedagógica: cultura geral e especialização profissional.O profissional deveria ter uma cultura geral, desde do ponto de vistatécnico (habilidades e competências) como “[…] capacidade de atençãoe reflexão, facultades criativas e meios de trabalho” (VASCONCELOS,1915, p. 82). Na parte de aprendizagem profissional havia uma variedadede oficinas, confiadas à responsabilidade de um aluno eleito democraticamenteentre os mais capacitados, que cooperava nessa governação deaprendizagem dos colegas (CUNHA, 1997). Exaltava-se o valor moraldessa prática, não sem que houvesse alguns escolhos que eram resolvidosno sistema de autogoverno e de consciencialização do próprio aluno:aprender para uma profissão, sob orientação, para ser um profissional ecidadão responsável e produtivo.Faria de Vasconcelos (1915, p)
Faria de Vasconcelos (1915, p. 71) reduz a três princípios fundamentais a educação: estudo das “[…] relações da criança e do homem com o campo, base do ensino, sendo os trabalhos manuais o meio pedagógico indutor para (res) estabelecer a relação da criança com a vida, a natureza e o trabalho”; adaptação do ensino e da educação à evolução natural da criança, seguindo as suas necessidades, interesses, carências, curiosidades etc.; adaptação do ensino à evolução histórica das ciências, na base da evolução natural da espécie.
É no princípio da instrução educativa, superando a distinção entre educação e instrução, que se formava o espírito da criança, ensinandolhe o menos possível e fazendo encontrar o mais possível, pela pesquisa, indagação, esforço e descoberta. Entre os princípios da Escola Nova, com meios necessários e envolventes à educação integral, destacamos os seguintes: número restrito de alunos por turma; classes móveis e horários individuais; tempo de duração das aulas; concentração de um pequeno número de matérias e estudo num tempo fixado; interdisciplinaridade dos saberes na organização curricular; cultura geral e a especialização profissional; metodologia de investigação e ensino; conferências (men- sais) de alunos e professores; atividades extracurriculares, como excursões, visitas e acampamentos; mecanismos de (auto) avaliação (CUNHA, 1997). Por conseguinte, a Escola de Bierges apresentava uma perspetivo dual de educação e formação, pondo em prática, não só os princípiosessenciais, como preconizava ideias inovadoras que iam ao encontro dosinteresses dos alunos, numa dinâmica de sucesso, empreendorismo, literaciaprodutiva e inclusão.
3 A organização escolar nas instituições educativas
Ao nível da organização escolar nas instituições educativas, Faria de Vasconcelos dedicoulhe uma atenção especial, já que para ele a orga- nização interna de uma escola envolvia um conjunto de atividades subjacentes ao desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem, de forma harmoniosa. Entre essas atividades mencionava, por exemplo: a divisão dos alunos por turmas, a elaboração de horários, o estabelecimento de nor- mas relacionadas com a duração das aulas e dos recreios, a definição das metodologias de ensino a serem utilizadas pelos professores, as atividades extracurriculares propostas, a definição dos programas de estudo para as várias disciplinas, a definição das regras e instrumentos de avaliação e classificação dos alunos e a relação da escola com a família ou pais dos alunos.
Toda essa função de organização pedagógica revelava-se cada vez mais complexa, à medida que existia um número mais elevado de alunos por turma, com ritmos de aprendizagem diferentes. Cabia à escola a re- gulamentação das atitudes do pessoal educativo e auxiliar, assumindo-se como modelos reguladores dos comportamentos, atitudes e condutas dos alunos nos espaços escolares.
No que diz respeito à elaboração e aplicação prática dos horários escolares, essa organização relacionava-se com a seleção de cada área de conhecimento, ajustada a um tempo necessário para que o professor e os alunos realizassem as diferentes etapas de uma lição, que segundo Faria de Vasconcelos, citado no Vol. II de J. Ferreira Marques (2000, p. 189) consi tia na seguinte metodologia: “[…] 1.º revisão da lição anterior; 2º correção dos exercícios efetuados, incluindo os trabalhos de casa; 3º explicação e desenvolvimento da lição nova; 4º realização dos exercícios de aplicação, destacando-se a investigação e experiências, trabalhos manuais, gráficos, etc.”. Um dos fatores a ter em conta quanto aos horários era o de destinar a manhã a disciplinas e áreas de estudo que fossem mais cansativas para os alunos, para além de se contemplar uma duração limitada para cada aulae pausas letivas e recreios. Essa duração das aulas apresentava um grandeinteresse pedagógico, já que a sua “[…] amplitude implicava o sentido deuma aula como fenómeno quantitativo e qualitativo” (MARQUES, 2000,p. 190) e, por isso, propunham-se estratégias e metodologias de ensinoque evitassem o cansaço dos alunos e a perda de interesse pelos conteúdoslecionados. Naquela época, nosso pedagogo era apologista de que a aulativesse uma duração variada em função da idade e do ano de escolaridadedos alunos, aconselhando que fosse de curta duração e concentradas,evitando os ruídos dos recreios, podendo ser: “[…] 1º ano com aula de 25min.; 2.º ano de 30 min.; 3º ano de 35 min.; 4.º ano de 40 min.; e parao 5º e 6º anos de 45 min. O intervalo das aulas devia ser facultado aosalunos um recreio com uma duração de cerca de 10 min.” (MARQUES,2000, p. 191).
Faria de Vasconcelos (1934) expôs a conceção de vários psicopedagogos da época, relativamente à duração dos tempos letivos, por exem- plo, menciona: Flak, que não admitia uma aula com duração superior a 40 min.; Kuborn, que defendia uma relação entre duração da aula e grupo etário, sendo de 30 minutos para os de 8 anos; Carini, qua advogava que para alunos de 9 anos a aula devia ter mais ou menos 20 minutos; Chawick, que propunha uma aula em função da idade dos alunos, indo de 15 minutos para os alunos de 5 a 7 anos a 30 minutos para alunos entre 12 a 16 anos. Assim, para um bom desenvolvimento do processo ensino- aprendizagem era conveniente uma homogeneidade na seleção do grupo de alunos que constituíam uma turma, para que todos tivessem o máximo de proveito no aprender. Reconhecia Faria de Vasconcelos (ANO) que era difícil haver essa homogeneidade total dos alunos, pois era mais normal haver uma desigualdade de aptidões intelectuais e ativas, uma “[…] desigualdade nas condições de trabalho escolar na aula e em casa, falta de colaboração da família nas tarefas escolares” e/ou com as atividades na escola (MARQUES, 2000, 195). Havia, pois, procedimentos divergentes ou até contraditórios e, no caso da homogeneidade da turma, competia aos professores promoverem estratégias de adequação do ensino ao nível intelectual dos alunos, propondo-lhes tarefas adequadas ao seu nível de conhecimento e de aprendizagem (VASCONCELOS, 1921). Na verdade, além da natureza dos conteúdos programáticos do currículo e consagrado no programa escolar, existia a aplicação desses mesmos programas aos alunos,recorrendo-se a estratégias que conduzissem a uma adequada gestãoe economia de tempo e que não levasse os alunos a um esforço excessivo(MARQUES, 2006). Daí que se tornava necessário consagrar a cada umadas unidades de aprendizagem ou temas do programa um número de aulasem harmonia com o seu valor educativo e com a utilidade que poderiamter para o percurso escolar dos alunos (MARQUES, 2009).
O ensino e a pedagogia da época revelavam um desconhecimento dessas questões e, por isso, Faria de Vasconcelos (1909, p. 85) exigia a sua adaptação à fisiologia e à psicologia da criança, de modo a que a organização escolar e curricular se inspirassem nessas “[…] necessidades do corpo e do espírito infantil.” Daí que nas escolas deveriam institucionalizar medidas de higiene escolar e médico-pedagógicas, de uso da caderneta escolar e relatórios de diagnóstico (observacional, pedotécnico etc.), para que a orientação do professor promovesse a evolução higiénica e físico-psíquica da criança (intuição sensível de Pestalozzi, exercício genético, funcional e de adaptação às necessidades de Claparéde, a biogenética, lei de Stern, Binet, entre outros) (NÓVOA, 2005).
4 Algumas considerações e contributos
A extensa obra de Faria de Vasconcelos tem merecido alguns estudos académicos e eventos científicos esporádicos, mas precisa, ainda pelas ideias inovadoras e experiências psicopedagógicas desse pedagogo, de investigações atentas e aprofundadas, quer pelo valor científico-pedagógico e psicológico para a História da Educação, quer pela sua atualidade em termos de ideias renovadoras para a escola (FIGUEIRA, 2001). O pen- samento e o ideário desse escolanovista integra pesquisas experimentais, doutrinas e ações de intervenção sobre questões de pedagogia, psicologia, didática e educação social, e em muitas línguas estrangeiras. Para Faria de Vasconcelos, os conteúdos programáticos, plasmados nos programas escolares, deviam ser aplicados nos programas aos alunos, utilizando estratégias que conduzissem a uma boa gestão de tempo e pouco esforço. Nesse sentido, era necessário consagrar a cada um dos temas contemplados no programa escolar “[…] um número de aulas em harmonia com o seu valor educativo e com a utilidade que poderiam ter para a continuidade do percursoescolar dos alunos.” (MARQUES, 2000, p. 197)
É óbvio que os temas psicopedagógicos mais importantes abordados por Faria de Vasconcelos (1990, 1921) estão recolhidos na obra Problemas Escolares; unindo-se às questões de orientação escolar e profissional e de psicotecnia o converteram num pioneiro da educação e orientação profissional (VASCONCELOS, 1928). A sua capacidade de divulgação e in- tervenção, ao nível da política educativa (Reforma de João Camoesas, em 1923), materializada nas Bases para a solução dos problemas de Educação Nacional (MARQUES, 2000); de educação social e comunitária (escola municipalista) expressa no folheto Campos de jogos, Jardins-deinfância e escolas primárias tipo municipal (proposta à Câmara Municipal de Lisboa pelo vereador Alexandre Ferreira), a criação de bibliotecas escolares nas escolas e jardins públicos, as colaborações em várias revistas, a ação inovadora no Instituto de Orientação Profissional de Lisboa (1925-36) e, ainda, a introdução de novos modelos de ensino e metodologias têm ainda hoje um grande alcance pedagógico na educação atual. (FERNANDES, 1978)
A dedicação de Faria de Vasconcelos (1931) à vertente da orientação profissional está inserida numa pedo-antropologia, relacionada comas questões vigentes na época, por exemplo: de acidentes no trabalho, desegurança laboral e de carreiras fracassadas; do taylorismo, com a sua organização e métodos de trabalho e fatores vinculados às aptidões psicofisiológicas;com a psicologia experimental (testes mentais, de aptidão e vocação);e as crises económicas e a guerra. Analisou estudos e estatísticas, muitasdelas provenientes de EUA (Münsterberg), da Alemanha (Van Brabant),da França (Marcelo Frois) e nacionais que mostravam a má adaptação técnica,fisiológica e mental do trabalhador à profissão e ao mercado de trabalho,sendo muitas vezes as causas de acidentes, mas com a aplicação demétodos científicos de orientação, seleção vocacional e conhecimentos deaptidões se podia diminuir tais riscos em 80% (VASCONCELOS, 1928).Esse facto e a instabilidade profissional motivada pelo aborrecimento oupor não estarem na profissão adequada, por exemplo, a fadiga, a falta deaptidão, física ou mental, as circunstâncias de orientação profissional, apósI Guerra Mundial (encontrar para os mutilados, inválidos, estropiados einadaptados uma profissão compatível com as suas capacidades), entre ou tros aspectos, exigiam uma formação e qualificação profissional em proldo progresso das nações.
Em definitivo, uma das preocupações de Faria de Vasconcelos foi a orientação escolar e vocacional dos alunos, de modo a que eles conhe- cessem suas aptidões, habilidades e/ou capacidades para a sua formação vocacional e para a aprendizagem de uma profissão (MARQUES, 2010).
Diga-se o que se disser do autor, das suas ideias, das suas realizações, ou das suas mensagens pedagógicas, a verdade é que da sua rica personalidade foram deixados traços marcantes na sua extensa obra (MARQUES, 2009). Conhecedor invulgar do que a nível internacional se passava no campo da educação, desenvolveu entre nós uma intensa obra de divulgação dos novos ideais educativos e dos novos planos de ação didática, foi um apóstolo da Educação Nova, desempenhou um papel de relevo na renovação dos estudos pedagógicos em Portugal, teve um trabalho colos- sal na montagem do Instituto de Orientação Profissional e no progressivo aperfeiçoamento dos métodos de trabalho aí realizados.
Por conseguinte, apesar do esquecimento a que têm sido votados seus escritos, sua obra foi organizada por J. Ferreira Marques (1986, 2000, 2006, 2009 e 2010) ou pela tradução atualizada de Une École Nouvelle en Bélgique por Meireles-Coelho (2012), promovendo o aparecimento de alguns estudos académicos. Contudo, seus escritos, principalmente a parte referente à etapa em Cuba e Bolívia, sua correspondência, suas preocupaçõesdidáticas com o trabalho dos professores são, entre outros, aindahoje, ensinamentos por explorar. Assim, em Portugal, em que as ciênciasda educação, em especial a História da Educação [Social] e da EducaçãoEspecial, ocupam um lugar de relevo, o nome de Faria de Vasconcelos devefigurar com destaque entre os pedagogistas e psicopedagogos de primeiraplana nacional, europeia e mundial.
Referências
ALVES, M. A ação pedagógica de Faria de Vasconcelos. Tese de Licenciatura Ciências Históricas e Filosóficas- Faculdade de Letras/Univ. de Coimbra). Coimbra: UC/FL, 1967.
BRASIL, R. Faria de Vasconcelos e a evolução da pedagogia portuguesa. Estudos de Castelo Branco, Revista de História e Cultura, nº 30 (1 de julho), 1969, p. 38-46.
CUNHA, A. Faria de Vasconcelos: Pensamento e Ação Pedagógica. Tese de Mestrado em Filosofia da Educação no Instituto de Educação da Univ. Minho. Braga: Universidade do Minho/IE, 1997.
DIAS, J. L. ‘Itinerário Biobibliográfico de Faria de Vasconcelos’. Estudos de Castelo Branco –Revista de História e Cultura, nº 30 (1 de julho), 1969, p. 83-109.
FERNANDES, R. O Pensamento Pedagógico em Portugal. Lisboa: ICALP/Coleção Biblioteca Breve, 1978.
FIGUEIRA, M. Um roteiro da Educação Nova em Portugal. Lisboa: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, 2001.
GOMES, J. F. Estudos de História e Pedagogia. Coimbra. Livraria Almedina, 1984.
MARQUES, J.F. Faria de Vasconcelos – Obras Completas, Vol. I. (1900-1915.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.
MARQUES, J.F. Faria de Vasconcelos – Obras Completas, Vol. II (1915-1920). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.
MARQUES, J.F. Faria de Vasconcelos – Obras Completas, Vol. III (1921-1925). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.
MARQUES, J.F. Faria de Vasconcelos – Obras Completas, Vol. IV (1925-1933). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.
MARQUES, J.F. Faria de Vasconcelos – Obras Completas, Vol. V (1933-1939). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
MEIRELES-COELHO, C. Educação contemporânea. Aveiro: Univ. de Aveiro, 2005
MEIRELES-COELHO, C. Faria de Vasconcelos – ‘Uma escola nova em Bélgica – Prefácio de A. Ferrière. Aveiro: Glocal – Associação Científica Internacional, 2012 (ISBN: 978-989-96173-5-3).
NÓVOA, A. S. Evidentemente. Histórias da Educação. Porto: ASA, 2005.
VASCONCELOS, A. S.F. Lições de pedologia e pedagogia experimental. Lisboa: Antiga Casa Bertrand, 1909.
VASCONCELOS, A. S.F. Une école nouvelle en Belgique. Paris e Neuchâtel: Delachaux & Niestlé e Librairie Fischabacher, 1915.
VASCONCELOS, A. S.F. Problemas Escolares. Lisboa: Seara Nova, 1921.
VASCONCELOS, A. S.F. Por Terras de Além-Mar. Viagens na América. Lisboa: Seara Nova, 1922.
VASCONCELOS, A. S.F. Didáctica das Ciências Naturais. Paris/Lisboa: Livraria Ailaud e Bertrand, 1923.
VASCONCELOS, A. S.F. O Instituto de Orientação Profissional ‘Mara Luísa Barbosa de Carvalho. Lisboa: Tipografia Torres, 1926.
VASCONCELOS, A. S.F. O exame psicológico. Boletim do Instituto de Orientação Profissional (Lisboa) (1.a série), nº 1, p. 51-65, 1928.
VASCONCELOS, A. S.F. Problemas Escolares. 2a ed. Lisboa: Seara Nova, 1929.
VASCONCELOS, A. S.F. Lições de pedologia e pedagogia experimental. 2a ed. Lisboa: Antiga Casa Bertrand, 1934.
VASCONCELOS, A. S.F. Delinquência e Inteligência nos adolescentes. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1936.
Informação adicional
Para referenciar este texto:: MARTINS, E. C. O ideário científico-pedagógico de Faria de Vasconcelos (1880- 1939) em prol duma escola nova e atual. EccoS – Revista Científica, São Paulo, n. 48, p. 363-383. jan./mar. 2019. Disponível em: .