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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE IMAGENS E RELIGIÃO
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Campinas, vol. 24, e022020, 2022
Universidade Estadual de Campinas, Brazil

Comentário


Recepção: 22 Outubro 2022

Aprovação: 22 Outubro 2022

DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v24i00.8671838

Instados a dialogar em painel a partir da pergunta “como as imagens fazem pensar a religião?”, Mattijs van de Port e Hugo José Suárez buscaram respondê-la selecionando trechos de seus trabalhos audiovisuais, intercalados a comentários sobre os respectivos processos de trabalho. Como debatedora do painel, coube-me ver e ouvir as intervenções dos colegas e, afetada por elas e por minhas próprias experiências de pesquisa, tecer algumas considerações. Para estimular a discussão, apostei que meu papel deveria ser menos o de sintetizar ou relatar o que havia sido apresentado, e mais o de provocar, no sentido etimológico da palavra, a participação do público através de desdobramentos do tema. Ao recuperar as considerações surgidas no calor do momento, manterei o tom coloquial da intervenção original.

Diferentemente de meus colegas de painel, não sou uma grande produtora de imagens, embora eventualmente arrisque uma fotografia aqui e ali. Porém, ao longo dos anos, tenho sabido me cercar de parceiros e parceiras com capacidade de produzi-las, o que me permite expressar ideias através da visualidade, em ensaios fotográficos ou em exposições, e/ou registrar imageticamente processos de pesquisa.

Quanto às situações de trabalho de campo, que se dão muitas vezes em torno do culto aos santos – do catolicismo ou da umbanda –, já que concentro esforços na área da antropologia da devoção, encontrar imagens é algo bastante frequente: estátuas, quadros, pequenas imagens impressas (os santinhos), fotografias de desenhos e estátuas de santos ou de rostos de devotos, pequenas medalhas, grandes monumentos, amuletos com efígies, souvenirs com figuras de santos e santas estampadas. As imagens são múltiplas, um conjunto virtualmente infinito, em diferentes escalas e suportes, compostas por materiais e técnicas de produção variados e referem-se a personagens diversos. Seus usos, as formas de interação com elas, as ontologias e cosmologias nas quais se inscrevem, sua biografia e vida social, todos esses são aspectos que podem e devem ser analisados em nossas pesquisas. É preciso considerar ainda que as imagens muitas vezes são inescapáveis, por ocuparem posições centrais em redes de relações, não apenas como objetos inanimados, mas como entidades plenas de agência, ou, para citar Bruno Latour, como actantes nos complexos enredamentos a partir dos quais a vida social vai sendo tecida e retecida.

Fica claro, então, que, mesmo no domínio do religioso, imagem significa muitas coisas. Noto, entretanto, que meus colegas optaram por falar não tanto das imagens que encontraram e encontram em campo, tendo privilegiado as imagens que produziram. Imagens como fotografias, filmes, desenhos, que podem ser consideradas instrumentos de pesquisa, recursos metodológicos para facilitar o registro da simultaneidade, da complexidade e da dinâmica. As imagens podem ser, ainda, o meio de realização da própria análise (na sociologia narrativa proposta por Suárez) ou de libertação das estruturas formais rígidas e demarcadas dos modelos de escrita acadêmica. Uma via de escape da lógica ordenadora, classificadora e redutora, que amplia a capacidade de lidar com a desordem caótica do mundo em desarranjo (como propõe van de Port). Seriam ainda uma forma de condensação de informações que escapariam ao controle do pesquisador/da pesquisadora que as produz, indo além das intencionalidades. As imagens, em alguma medida, facilitariam expressar – mais do que a escrita – o religioso e os seus mistérios.

Diante desses argumentos, permito-me algumas provocações. Talvez por ter feito meu doutorado após o literary turn e o reconhecimento da dimensão alegórica dos textos etnográficos, como proposto por James Clifford (1986), ou talvez por ser formada em uma escola de antropologia – o Museu Nacional do Rio de Janeiro – que valoriza mais a densidade e a criatividade que o formalismo, a escrita não me soe tão asfixiante. Desobrigada de considerar a linguagem antropológica como exclusivamente referencial, atenta às diferentes possibilidades poéticas e evocativas, tendo incorporado a noção de parcialidade do conhecimento, para mim o texto escrito segue sendo um espaço de jogo e teste de novas formas de expressão. Se concordo que é preciso escapar ao logocentrismo acadêmico, também considero que é preciso problematizar os regimes escópicos da modernidade e recusar a ilusão da transparência e da completude (Lissovsky, 2014). Lembro-me de quando produzi, juntamente com Edmundo Pereira, o CD Lutando e Cantando, de canções políticas do movimento sindical pernambucano, na Coleção Documentos Sonoros do Museu Nacional, e as pessoas perguntavam insistentemente “quando lançaríamos o vídeo”, como se o áudio, enquanto forma narrativa específica, não bastasse por si só... A meu ver, as imagens, fotográficas ou em movimento, bem como os registros sonoros, não seriam mais completos ou menos mediados que o texto escrito; antes, seriam suportes específicos para modalidades narrativas diferenciadas. Isso não significa dizer que não precisemos diversificar as técnicas usadas em nossos trabalhos, bem como desenvolver estratégias para lidar com o caos e a efemeridade. As imagens e seu ritmo de produção e exibição podem, efetivamente, ser uma alternativa de grande valia. Louvemos fotos, filmes, desenhos e consideremos quando eles se revelam mais adequados aos contextos que estamos analisando, ou ao emprego de uma poética específica para a melhor montagem de argumentos.

Por outro lado, lembro-me que as imagens “de campo”, isto é, as imagens religiosas propriamente ditas, muitas vezes existem não apenas para serem vistas, mas para serem tocadas, beijadas, acariciadas, vestidas, levadas em andores. Ou, em casos limites, para permanecerem ocultas. A visualidade dessas imagens se combina à sua fsicalidade, envolve múltiplas dimensões sensoriais e etiquetas de tratamento. São, muitas vezes, imagens-objeto, como propõe Jérôme Baschet (1996), com funcionalidade ritual e com papel no funcionamento da religião. Ou, como nos lembra Jean-Pierre Vernant (1992), podem ser meios de presentificação, antes de serem elementos de representação ou imitação da aparência. Considerando essas questões, talvez seja possível refrasear e inverter a pergunta que deu origem ao painel e indagar como a religião pode nos fazer repensar as imagens, ao tensionar seu estatuto e trazer-lhes outras implicações.

Um último ponto é que, se há uma dimensão de rebeldia nas imagens, algo que escapa ao enquadramento de seu produtor ou editor, chamou-me a atenção que os diversos trechos selecionados nos documentários eram narrados. Isto é, as vozes de meus colegas de alguma forma conduziam o olhar dos espectadores ou dialogavam com as imagens apresentadas, estabelecendo espécies de molduras para sua interpretação. Creio que uma reflexão sobre o papel do narrador, ou sobre as opções de câmera, de roteiro e edição de som e imagem, articulada ao tema do controle / liberdade das imagens, poderia render uma boa discussão.

Associo esse tema a uma sequência de observações que, em meu bloco de notas, encerrava minhas anotações sobre o painel, cuja articulação completa não consigo recompor, mas que talvez possa fazer sentido para os leitores. Deixo-as aqui: “lembrar de Eduardo Coutinho no documentário Santo Forte: há espaços vazios para o diretor / espectador, mas que, como dizem os interlocutores, estão cheios de entidades. O olhar de quem vê os sinais. O mundo invisível. Vazios cheios. Não importa se eu, pesquisadora, os vejo ou não. Importa o que as pessoas veem. Basta ouvir o elas dizem a respeito e ir com elas. A religião está nos olhos de quem vê?”.

Referências bibliográficas

BASCHET, Jérôme. Introduction: l´Image-objet. In: SCHMITT, Jean-Claude; BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris: Le Léopard d’Or, 1996, pp. 7-26.

CLIFFORD, James. On Ethnographic Allegory. In CLIFFORD, James; MARCUS, George (orgs). Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986, pp. 98-120.

LISSOVSKY, Mauricio. A vida póstuma de Aby Warburg: por que seu pensamento seduz os pesquisadores contemporâneos da imagem? In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, v.9, n.2, pp. 305-322, 2014.

SANTO FORTE. Direção: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: RioFilme, 1999, DVD (80´).

VERNANT, Jean-Pierre. Figuração e Imagem. In: Revista de Antropologia, v.35, pp. 113-128, 1992.

Autor notes

* Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ). E-mail: renata.menezes@mn.ufrj.br. ORCID iD: <https://orcid.org/0000-0002-8821-2694>.


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