Artigo
TOLERÂNCIA E LIBERDADE RELIGIOSA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
TOLERÂNCIA E LIBERDADE RELIGIOSA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Campinas, vol. 24, pp. 1-8, 2022
Universidade Estadual de Campinas, Brazil
Recepção: 15 Setembro 2022
Aprovação: 15 Setembro 2022
Introdução
Neste painel, me proponho refletir sobre as contradições e limites inerentes ao princípio constitucional da liberdade religiosa quando ele é exercido em um contexto de pluralismo religioso.1
O princípio político da liberdade religiosa e sua proteção legal permanecem como um dos principais sustentáculos das definições contemporâneas das democracias seculares. No entanto, exemplos cada vez mais recorrentes no Brasil, tais como o de pastores evangélicos que criticam os “ídolos” católicos ou os “demônios” das religiões de matriz afro-brasileiras, indicam que a liberdade de fé tem se transformado, muitas vezes, em instrumento de narrativas políticas que circulam na mídia com o selo da “intolerância religiosa”. Como se sabe, no seu sentido histórico, a virtude da tolerância interpelava o Estado na sua responsabilidade de regular a coexistência entre as diferentes religiões no que dizia respeito aos seus confrontos em torno da verdade de suas doutrinas. Hoje, no entanto, a tolerância consiste não em um mandamento estatal, mas em um ethos voltado para a regulação das relações entre as religiões. Nesse deslocamento, ela acabou por se estender para o questionamento do convívio entre minorias étnicas e religiosas, fazendo emergir novas questões relativas à ideia de preconceito e discriminação. Ao passar da normatividade do Estado para as relações sociais, a tolerância passou a ser pensada enquanto uma virtude cívica que supõe a aceitação da dissidência como um princípio coletivo (Bobbio, 2004). Ainda assim, ao incluir o direito à crítica de outras doutrinas, a reivindicação de liberdade religiosa dá espaço para a emergência de um contradiscurso que contraria, em seu nome, as expectativas de tolerância.
Esse impasse diante do qual o direito à liberdade religiosa se encontra foi bem explicitado na fala de um pastor:
(...) não seria a alegação da intolerância religiosa um verdadeiro contrassenso ao direito da liberdade religiosa?? (...) Parece estarmos diante de um impasse. Podemos professar nossa fé, mas [não podemos] ser contrário a outro tipo de fé?
Vemos portanto que, paradoxalmente, se a liberdade religiosa foi tida pela historiografia como filha da tolerância, hoje, ela está sendo acionada por algumas lideranças religiosas evangélicas para desqualificar denúncias de intolerância religiosa. Esse antagonismo tem colocado o problema de como delimitar a liberdade religiosa e como definir os sentidos da tolerância em regimes democráticos. Para enfrentá-lo analiticamente, propomos deslocar nossa reflexão da crítica normativa dos atores religiosos, ou do exercício de qualificá-los como “intolerantes” ou “fanáticos,” para pensar os limites inerentes ao próprio enquadramento jurídico destinado à garantir o pluralismo como princípio da democracia. Tendo em vista essas proposições preliminares, gostaríamos de desenvolver aqui o seguinte argumento:
Embora o preceito da liberdade religiosa tenha se tornado o pilar sobre o qual se assentaram todos os outros direitos humanos, pelas razões que elencaremos a seguir, ele pode ser considerado um princípio jurídico-político limitado ou insuficiente para fazer frente às demandas de reconhecimento de uma sociedade pluralista. Isto porque:
a. Trata-se de um conceito profundamente marcado pelas suas raízes cristãs;
b. Em segundo lugar, a expressão remete concomitantemente à diferentes dimensões da vida social. Esta pluridimensionalidade do termo faculta sua associação com inúmeros outros elementos e circunstâncias, tais como: liberdade de culto, de opinião, de expressão, mas também de organização institucional.
c. Finalmente, trata-se de uma palavra que mobiliza uma ideia de religião espelhada especificamente no cristianismo.
Minha contribuição para este painel será, portanto, a de identificar a trajetória cristã desse conceito e descrever a constitucionalização da liberdade religiosa no Brasil à luz dessas características.
Raízes cristãs do conceito de Liberdade Religiosa
Nossa reflexão parte do pressuposto amplamente reconhecido pela literatura de que o conceito de liberdade religiosa é historicamente datado e delimitado pela sua origem moderna e cristã (Leite, 2014). Não é o caso, evidentemente, de retomar aqui essa longa história. Mas gostaríamos de circunscrever rapidamente seus usos mais recentes na cena internacional contemporânea.
Liberdade de consciência como liberdade de crença
Em uma retrospectiva que privilegia seus desdobramentos mais recentes, a literatura considera 1948, a data da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral da ONU, o marco de um inédito consenso mundial em torno do sentido do conceito de liberdade de consciência. É interessante ressaltar que, ao especificar esse direito, esse documento o relaciona à liberdade de religião. Liberdade de consciência e liberdade de crença são tratados nessa Declaração como figuras equivalentes em seu valor semântico.
É certo que as constituições dos Estados nacionais, que foram sendo idealizadas ao longo do século XX, consolidaram internacionalmente a liberdade de consciência como um direito individual juridicamente garantido pelo Estado e independente do controle de uma comunidade religiosa. Ainda assim, como veremos a seguir, essa expressão não perdeu seu fundamento cristão.
A agenda cristã do pós-Segunda Guerra teve impacto significativo na modelagem do conceito de liberdade tal como formulado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Lindkvist, 2013; Moyn, 2015) A liberdade religiosa, enquanto prerrogativas individuais de crença, foi o direito preferido dos protestantes e dos católicos, em razão dos interesses associados à causa missionária, por um lado, e à disputa pós-Segunda Guerra com o comunismo, de outro. Imantada pelos interesses da agenda cristã, a noção de liberdade de consciência ou de crença não esteve sempre, como se pensa hoje, a serviço da emergência de um espaço político secular, mas sim, consistentemente a serviço do esforço das igrejas cristãs de marginalizar o secularismo.
Dimensão pluridimensional do conceito de liberdade religiosa
Além de significar, ao mesmo tempo, liberdade de crença e de consciência, a liberdade religiosa remete ainda à ideia de “liberdade de religião ou de igreja” (Garnett, 2013). Essa noção foi recorrentemente usada nos momentos da separação entre Igreja e Estado introduzida pelos regimes republicanos emergentes. Ela servia de argumento para a proteção dos bens materiais das instituições católicas em risco nas disputas pela sua jurisdição. Tratava-se, neste caso, não apenas de proteger a opinião de um indivíduo, mas também de estender essa proteção para toda a infraestrutura institucional religiosa que facultava seu exercício, tais como jornais, blogs, partidos políticos, grupos de interesse, livrarias, escolas, etc.
Além disso, a Igreja católica queria ter o direito de se autogovernar e de limitar a interferência do poder secular em suas regras internas de funcionamento. Assim, podemos concluir que, embora sejam frequentemente tratados como sinônimos pela literatura acadêmica e pelos ativistas, liberdade de consciência e liberdade de crença são termos que se constituem a partir de diferentes trajetórias e encerram interesses e preocupações muito diferentes. Por esta razão, a noção de liberdade religiosa encerra múltiplas acepções que são ao mesmo tempo morais, políticas, religiosas e jurídicas, deixando, portanto, na prática, muito espaço para múltiplas interpretações.
A trajetória recente do conceito de liberdade religiosa em sua versão liberal, que a define como liberdade de escolha individual e de culto, tornou-se, nesse sentido, insuficiente para dar conta da diversidade religiosa no contexto atual das relações entre religião e vida pública. Isto porque o termo está atravessado por uma dupla tensão que opõe, por um lado, a dimensão religiosa versus a dimensão secular da liberdade; e, de outro, o estatuto coletivo da liberdade de crença ou de culto versus o estatuto individual da liberdade de opinião e de expressão.
Dimensão cristã da ideia de religião a ser protegida pela liberdade
Para que a liberdade religiosa pudesse ser imaginada como direito, foi preciso que a religião, ela mesma, fosse concebida na sua acepção cristã. A concepção cristã de religião pressupõe, como sabemos, pelo menos três componentes (Einaudi, 1984):
a) a postulação de uma nítida separação dos chamados “fatos religiosos” e “sagrados”, daqueles denominados “não religiosos”, “laicos” e “profanos”;
b) a organização de uma estrutura ideológica mítica e ritual coerente, concebida como regida por leis autônomas e que, embora inserida na realidade profana e laica, tem finalidades diversas da vida cotidiana e estabelece com ela uma relação de confito e suporte;
c) O suposto de que uma religião se organiza institucionalmente como uma comunidade que se reúne e se expressa regularmente em espaços próprios, tais como templos ou igrejas.
Essa matriz cristã na definição do religioso permanece atuante no imaginário social e, especialmente, no pensamento dos legisladores e das cortes quando tratam de litígios relativos a esse campo. O substrato cristão que molda, ao mesmo tempo, o conceito de liberdade religiosa e de religião, delimita o seu sentido e torna deficiente seu alcance como solução político-jurídica para os confitos religiosos que incluem religiões de matriz não-cristãs.
A Constitucionalização da Liberdade Religiosa no Brasil
Vejamos agora, rapidamente, como se deu a constitucionalização da liberdade religiosa no Brasil republicano.
O termo “liberdade religiosa” não aparece nem na redação dos textos constitucionais do império, nem nos textos republicanos. Além disso, aquilo que as normas visam proteger na religião se dispersa por diversos artigos relativos ao casamento, educação, cemitérios, voto, assistência militar, impostos, etc.
Também se percebem continuidades e descontinuidades no modo como cada constituição articula as diferentes acepções de proteção à religião.
Na Constituição de 1891, que abole o conceito de religião oficial presente na Constituição do Império, tratava-se menos de proteger a liberdade de crença dos protestantes do que limitar os poderes administrativos da Igreja para governar populações. Essa Constituição caracterizou-se por um rigoroso arcabouço separatista entre a Igreja católica e o Estado. Nesse período, o tema de defesa da liberdade religiosa passou a ser acionado cada vez mais frequentemente pelos católicos, que se viam injustiçados e perseguidos pela perda de seus bens e privilégios no campo político e, no campo moral, pela abolição do seu monopólio sobre o ensino e sobre os sacramentos, em particular com a introdução do ensino público e do casamento civil.
A versão constitucional do período varguista de 1934, embora efêmera, referenda uma associação entre liberdade de consciência, de crença e de culto. Em seu art. 113, nº 5, ela considera a liberdade de consciência e de crença invioláveis e garante o livre exercício dos cultos religiosos. Essa conexão foi suprimida no texto substitutivo de 1937 que acompanha a instauração do período ditatorial. A Constituição outorgada de 1937 foi bem sucinta quanto ao tema, não mencionando a liberdade de consciência e de crença, apenas reiterando a permissão para indivíduos e confssões religiosas de “exercer pública e livremente o seu culto [...]” (art. 12, nº 4).
Já na Constituição de 1946, com a reabertura democrática, a liberdade ganha o sentido de liberdade de culto como direito inviolável e a liberdade de crença passa a ser associada à liberdade de consciência que havia sido suprimida em 1937 (art. 141, nº 7). Essa Constituição também introduz a imunidade tributária dos templos como parte da proteção da liberdade religiosa.
As Constituições da década de 1960 não mencionam a liberdade de crença. Mas, nos debates parlamentares que as precederam nos anos 1960, pela primeira vez procurou-se fazer uma clara distinção entre liberdade religiosa (de crença) e liberdade política (de opinião ou consciência).
Finalmente, a Constituição de 1988, que marca o retorno do país ao regime democrático, conferiu especial atenção ao tema da liberdade. A restauração da liberdade de expressão era, então, prioritária como antídoto ao autoritarismo. Mas a expressiva presença de representantes religiosos no processo constituinte contribuiu para a convergência do sentido de liberdade de expressão com o de liberdade religiosa, facilitando a ampliação das pautas em defesa da religião. Em particular, fixou-se o entendimento segundo o qual a decisão sobre a organização religiosa passa a ser prerrogativa privativa das autoridades religiosas (artigo V.VI).
Considerações finais
Esses exemplos mostram que embora a literatura jurídica e das ciências sociais se refiram constantemente ao conceito como se ele estivesse nomeando um direito bem assentado nas Constituições quanto a seu alcance e sentido na realidade, vemos que os sentidos conferidos à liberdade religiosa são múltiplos e atravessados pela configuração das disputas/alianças entre o Estado e a Igreja católica em diferentes momentos da história republicana.
A novidade apresentada pela Carta de 1988, no entanto, foi a centralidade que ela concedeu aos direitos humanos e o modo como articulou a sua proteção à salvaguarda dos direitos da diversidade, tal como vinham sendo regulados pelo direito internacional. O reconhecimento de direitos culturais e a extensão da tutela do Estado em proteção a minorias étnicas, colocou no coração da Constituição a garantia de um tratamento igualitário para todas as religiões. Isso significou estender-lhes as mesmas proteções, privilégios e garantias já oferecidos à Igreja católica e, por consequência, estimular a competição e antagonismos entre credos. Nesse novo contexto, em que não há perseguição estatal (oficial) contra as minorias, a liberdade religiosa se torna uma ferramenta nas mãos de religiosos ativistas para manter ou reivindicar ao Estado sua proteção para privilégios de maioria.
Os constituintes católicos se ressentem do fim da primazia cristã no campo religioso em nome da igualdade e do reconhecimento das prerrogativas de manifestação pública das religiões não católicas, que, a seu ver, lhes outorga o “direito de uma religião criticar a outra”. Voltamos aqui ao impasse citado no início pelo pastor: “Podemos professar nossa fé, mas [não podemos] ser contrário a outro tipo de fé?”
Nesse novo espaço de incertezas aberto pelas condições igualitárias instituído pelo princípio constitucional do pluralismo, as disputas em torno da liberdade religiosa ganham perturbadora atualidade. A oposição entre a reivindicação clássica de liberdade religiosa enquanto liberdade de fé e, mais contemporaneamente, enquanto liberdade de expressão identitária, suscita a emergência de tensões não previstas no regime de proteção à liberdade. E mais ainda, indica porque é tão difícil atender às expectativas de sua multiculturalização.
Referência bibliográficas
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
EINAUDI, Enciclopédia, vol.2. Imprensa Nacional: Casa da Moeda, p. 209-211, 1984.
LEITE, Fabio. O Estado e a Religião: a liberdade religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Juruá, 2014.
LINDKVIST, Linde. The Politics of the Article 18: Religious Liberty in the Universal Declaration of Human Rights. In: Humanity: An International Journal of Human Rights, Humanitarianism, and Development, v.4, n.3, pp. 429-447, 2013.
MOYN, Samuel. Christian Human Rights. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2015.
Notas
Autor notes