Resumo: Este artigo tem como objetivo observar certas intersecções e compatibilizações envolvendo o catolicismo e aquilo que o Vaticano chamou em 1989 de “métodos orientais”, técnicas psicossomáticas “inspiradas no Hinduísmo e no Budismo”, tais como “o Zen, a Meditação Transcendental, ou o Yoga”, tendo em vista um caso empírico investigado etnograficamente no Brasil: a modalidade de Yoga Cristã criada pelo padre jesuíta Haroldo J. Rahm. Diante disso, uma questão que se impõe é compreender de que maneira se dão as compatibilizações implícitas no caso. Concluindo que ele pode ser interpretado como tradição inventada, capaz de criar continuidades entre tal método dito oriental e o cristianismo, especialmente de base católica. E, de responder ao exclusivismo cristão que condena e demoniza demais tradições religiosas e espirituais e ao cenário religioso contemporâneo marcado pela desregulação identitária e pela individualização religiosa.
Palavras-chave: Yoga Cristã, meditação Cristã, catolicismo, oriental.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo observar ciertas intersecciones y compatibilidades entre el catolicismo y lo que el Vaticano llamó en 1989 “métodos orientales”, técnicas psicosomáticas “inspiradas en el hinduismo y el budismo”, como el “Zen, la Meditación Trascendental o el Yoga”, considerando un enfoque empírico. caso investigado etnográficamente en Brasil: la modalidad de Yoga Cristiano creada por el sacerdote jesuita Haroldo J. Rahm. Ante esto, una pregunta que surge es entender cómo se produce la compatibilidad implícita en el caso. Concluyendo que puede interpretarse como una tradición inventada, capaz de crear continuidades entre tal método llamado oriental y el cristianismo, especialmente de base católica. Y, para responder al exclusivismo cristiano que condena y demoniza otras tradiciones religiosas y espirituales y el panorama religioso contemporáneo marcado por la desregulación identitaria y la individualización religiosa.
Palabras clave: Yoga cristiano, meditación Cristiana, catolicismo, oriental.
Abstract: This article aims to observe the intersections and compatibility with Catholicism and what the Vatican called in 1989 “eastern methods”, psychosomatic techniques “inspired by Hindu and Buddhism”, such as “the Zen, Transcendental Meditation, or Yoga”, considering two empirical cases investigated ethnographically in Brazil: the modality of Christian Yoga created by the Jesuit priest Haroldo J. Rahm and the Christian Meditation created by the Canadian Benedictine John Main. In view of this, a question that is imposed is to understand how such compatibilizations are made. Making the treatment of traditions of such methods, they can plan the execution of cases between the two cases and Catholicism.
Keywords: Christian Yoga, christian Meditation, catholicism, eastern.
Artigo Original
INTERSECÇÕES ENTRE MÉTODOS ORIENTAIS E O CATOLICISMO: O CASO ETNOGRÁFICO DA YOGA CRISTÃ
INTERSECCIONES ENTRE LOS MÉTODOS ORIENTALES Y EL CATOLICISMO: EL CASO ETNOGRÁFICO DEL YOGA CRISTIANO
INTERSECTIONS BETWEEN EASTERN METHODS AND CATHOLICISM: THE ETHNOGRAPHIC CASE OF CHRISTIAN YOGA
Recepção: 31 Julho 2022
Aprovação: 17 Novembro 2022
É visível no campo social e religioso contemporâneo o surgimento de fenômenos empíricos que em seu conteúdo são formados por intersecções, interfaces e entrelaçamentos entre o catolicismo e tradições religiosas, filosóficas e espirituais orientais, tais como o budismo, taoísmo, hinduísmo, yoga, meditação transcendental e zen. Este tipo de fenômeno ressoa em diferentes casos, a maior parte deles isolados, ao redor do globo (Argentina, Estados Unidos, Colômbia, Equador, Índia, China, Japão). O presente trabalho traz como objeto de estudo etnográfico e antropológico um caso empírico similar desenvolvido no Brasil: o da modalidade de “Yoga Cristã” criada pelo sacerdote jesuíta Haroldo J. Rahm.
Observa-se neste caso a combinação de práticas rituais, técnicas corporais e elementos simbólicos tanto orientais asiáticos quanto católicos. No entrelaçamento das tradições, observamos procedimentos de incorporação, mediação, paralelismo e tradução de significados, assim como distinção e demarcação de fronteiras. Tendo em vista este contexto, o presente artigo se divide basicamente em dois tópicos: o primeiro, mais descritivo e etnográfico, é resultado de observações participantes em retiros, palestras e práticas de yoga cristã, além de entrevistas semi-estruturadas ou conversas informais, realizadas desde 2016, com pessoas e grupos ligados à yoga cristã criada por padre Haroldo.
O segundo, já mais teórico e interpretativo, busca refletir sobre a mobilização da yoga cristã enquanto uma “tradição inventada”, que responde a questões contemporâneas apelando para uma continuidade com o passado. Mais especificamente, com a tradição mística católica de Santo Inácio de Loyola e seus Exercício Espirituais, destacando sua valorização do corpo e sua experiência não conceitual de oração e meditação. Esta invenção da yoga cristã, em parte legitimada pela tradição da espiritualidade inaciana – assim como por documentos ecumênicos e pluralistas produzidos pelo Concílio Vaticano II –, como veremos, responde ao desafio encarado pelo seu criador e pelos continuadores de desmistificar e, de alguma forma, traduzir a prática e os conceitos da yoga para a realidade cristã/católica.
Antes de seguir, gostaria de justificar um pouco melhor o título do artigo, uma vez que ele anuncia intersecções entre a religião católica e yoga, mas a partir de um caso que nominalmente vai além do catolicismo, já que se trata de uma “yoga cristã” e não de uma “yoga católica”. O motivo de destacar a interseccionalidade com o catolicismo se refere à base empírica deste estudo, pois o caso investigado se enraíza institucionalmente perante o catolicismo. Veremos que as negociações culturais realizadas para sua invenção apelam para referências institucionalizadas da Igreja Católica, a saber, a espiritualidade de Santo Inácio de Loyola e documentos oficiais da Igreja Católica. Inclusive o título do texto faz referência direta ao enquadramento institucional feito pela igreja quanto ao que ela denominou de “métodos orientais”. Faço isso, não com o intuito de reiterar tais definições, mas simplesmente para seguir e ser fiel ao discurso analisado.
Yoga cristã é uma modalidade de prática, criada pelo jesuíta Haroldo J. Rahm, na qual se articula conceitos iogues hindus como os chakras (centros de energia segundo a anatomia sutil da tradição tântrica), prana (força vital que permeia o cosmos), os membros do Astanga yoga1 e a prática dos asanas (posturas físicas do hatha yoga, yoga físico de origem também tântrica) com a espiritualidade de Santo Inácio de Loyola e o repertório doutrinal católico: Santíssima Trindade, Credo, Pai-Nosso, Nossa Senhora, anjos, santos, etc.
Padre Haroldo nasceu em 1919 na cidade de Tyler, no estado doTexas, (Estados Unidos). Por volta dos 18 anos, entrou para o exército e, durante uma operação militar, teve seu primeiro “despertar espiritual”, ao se confrontar de forma surpresa com o símbolo da cruz deixado por sua mãe em seu bolso, sem que ele soubesse. Ainda jovem, abandonou o exército e acabou entrando para a Companhia de Jesus. Se formou como padre jesuíta em 1950, e 24 anos depois foi enviado em missão ao Brasil,2 para um trabalho “sociológico”, como ele caracteriza, que consistiria em analisar e compor um relatório das possibilidades da Companhia no Brasil. Após realizá-lo, o padre se dispôs a permanecer no país e acabou se instalando na cidade de Campinas (SP). Ali se envolveu com movimentos leigos e de juventude – como os movimentos Cursilhos de Cristandade e o Treinamento de Liderança Cristã (TLC). Este último, um movimento criado por ele e difundido por todo o Brasil e na Itália, e que, segundo a socióloga Brenda Carranza (2000), foi uma das raízes para promoção pioneira do padre dos primeiros Encontros de Oração no Espírito Santo. Essas experiências seriam fundadoras da Renovação Carismática Católica (RCC) brasileira.
Durante a primeira fase do movimento carismático brasileiro, o trabalho de padre Haroldo foi essencial para sua organização e seu reconhecimento institucional perante o clero brasileiro, em especial perante a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Padre Haroldo desponta como um dos primeiros ideólogos deste movimento no Brasil ao escrever o primeiro livro católico brasileiro a dar conta das práticas e conceitos teológicos tipicamente pentecostais, como o “batismo no Espírito”, a “imposição de mãos”, a “glossolalia”, os “dons do Espírito”, etc. Trata-se do livro Sereis Batizado no Espírito, publicado em 1972.
Entretanto, após mais ou menos cinco anos atuando pela Renovação Carismática, divergências ideológicas levaram o padre a tornar-se um dissidente do movimento e cindir com o mesmo ao final dos anos 1970. Desde então, padre Haroldo passou a dedicar boa parte de seu apostolado ao cuidado da dependência química, através do movimento das Comunidades Terapêuticas e dos programas de auxílio às famílias dos dependentes químicos, como o Amor Exigente (DANTAS, 2019). Dentre as divergências que se instituíram entre padre Haroldo e a RCC, podemos perceber uma certa crítica à domesticação do carisma e a perda de um espírito ecumênico almejado inicialmente para a identidade do movimento. Em entrevista sobre sua saída ao sociólogo Flávio Sofiati, Haroldo disse que não era muito favorável às orações em línguas e sessões de cura, e criticou os colegas de movimento por não se envolverem em obras sociais. Neste sentido, ele dá o seguinte depoimento:
Então foi a filosofia diferente e eles não queriam saber sobre Teologia da Libertação e eles não gostam de yoga e eu gosto muito e pratico diariamente e estou escrevendo um livro Yoga Cristã para católicos e cristãos que praticam, mas acham que é pecado, mas é outra filosofia, mas de todo jeito eu voltei para o meu tipo de vida porque de cinco anos tinha bastante padre, freiras e leigos na Renovação. Devagar eu saí porque tinha reuniões demais. (Sofiati, 2009: 220. Entrevistas, Pe. Haroldo Rahm, Campinas, 2006)
Como o depoimento revela, líderes mais conservadores da RCC brasileira posicionavam-se publicamente contra a prática de yoga, o considerando como “obra de Satanás” (Abib, 2003), geralmente ligada – ao lado de outras técnicas e filosofias orientais – ao movimento espiritual da Nova Era, o “demônio moderno” da Igreja Católica, segundo Carranza (2000). Nesse mesmo período, inspirado no espírito ecumênico e de diálogo do Concílio, padre Haroldo recorria ao yoga, e a outros métodos orientais, visando inclusive enriquecer seu desenvolvimento pessoal e espiritual como sacerdote católico. Como ele diz em um texto autobiográfico:
Por isso, fiz contatos com as tradicionais vias psicoespirituais orientais. Vou fazer uma descrição de minha vida contemplativa cristã, baseada nas tradições e na Escritura Católica, com as práticas do Oriente, particularmente com o Hinduísmo e o Zen-Budismo. As diretrizes do Concilio Vaticano II (1962-1965) deram-me coragem e apoio neste projeto denominado: “Como a vida religiosa cristã pode ser capaz de assimilar tradições ascéticas e contemplativas, cujas sementes foram algumas vezes já plantadas por Deus em várias culturas anteriores à pregação do Evangelho”. (Decreto Ad gentes sobre Atividade Missionária da Igreja, 18) (Rahm, 2003: 153)
Padre Rahm diz ter começado a prática de yoga, curiosamente, com um “padre diocesano” chamado Adão, com quem já não tinha contato a algum tempo (Rahm, 2011: 138). Mas que se tornou rotina a partir do convite de sua secretária, chamada Maria Lamego – com quem ele escreveu vários de seus livros, embora tratasse de uma “católica conservadora”, em seu entender – para participar de uma aula de yoga. Segundo ele:
Ela falou: eu vou na aula de yoga, quer ir comigo? E eu disse: eu vou, e gostei demais. E fui continuando com ela cada semana, e praticando sozinho, ia aos cursos e estudei muito nos livros de yoga. E tinha problema porque muitos cristãos e outras pessoas acham que yoga é uma religião, não é nada de religião, é uma filosofia. Porém muitas pessoas que praticam yoga tem problemas porque pessoas falam, ah você não deve. E por isso escrevi o livro Yoga Cristã, que é uma explanação que yoga não é uma religião e qualquer pessoa pode praticar, e daí como vocês sabem eu pratico uma hora diariamente (Entrevista, Pe. Haroldo, Campinas-SP, 07/07/2016)
Como pode-se observar no relato, padre Haroldo afirma que teve problemas ao começar a praticar yoga, com muitas pessoas que a confundiam com religião. E esta é uma questão incontornável. O yoga visto a partir do fundo histórico hinduísta é considerado por grupos cristãos (católicos e protestantes) como uma prática hindu, portanto, panteísta e reencarnacionista. Na visão destes grupos e pessoas, trata-se de uma prática satânica, inadequada e maligna para o cristão. De tal forma, a ideia de criar uma yoga cristã responde a estes questionamentos. E o padre – assim como muitos yogues, inclusive – afirma o yoga não como religião, mas antes, como uma prática, uma filosofia, uma espiritualidade e uma “ciência ascética”. Composta por elementos “bons”, passíveis de serem assimilados à vida cotidiana de um cristão/católico, inclusive para enriquecê-la, como ele mesmo o fez.
O marco inicial desta iniciativa é o livro publicado em 2007: Yoga Cristã e Espiritualidade de Santo Inácio de Loyola. Escrito em parceria com a professora de yoga, Maria Xavier, e com a professora de cursos de relaxamento e controle da mente, Núbia Maciel França. Em seu prefácio, padre Haroldo traz uma justificação de sua obra:
Com a Dra. Núbia e a iogue Maria Xavier, escrevemos este livro, pois muitos fiéis de tradição cristã praticam yoga. Alguns com receio, porque ouvem dizer que um sistema oriental tem uma filosofia diferente das ideias cristãs. Escrevemos sobre as práticas de Hatha Yoga, Raja Yoga e Laya Yoga dentro da doutrina cristã. Assim, o cristianismo pode praticá-las à vontade. (Rahm, 2007: 15)
Na introdução, com uma preocupação em produzir uma justificativa, o livro comenta e reproduz alguns trechos selecionados do documento Alguns Aspectos da Meditação Cristã,3 publicado em 1989 pela Congregação para Doutrina da Fé, na época sob a direção de Joseph Ratzinger, futuro papa Bento XVI. O texto é antes de tudo uma orientação que responde à difusão cada vez mais ampliada dos “métodos orientais”, inspirados pelo budismo, hinduísmo, o “zen”, a “meditação transcendental” e o “yoga”. Ele atesta a possibilidade, já observada em documentos conciliares, de se incorporar ao cristianismo e sua meditação tradições alheias consideras “Sementes do Verbo”. Entretanto, com a ressalva de que seus conteúdos e técnicas sejam sempre sujeitadas a um exame atento, para que não se caia em um “sincretismo pernicioso”.
Padre Haroldo descreve sua yoga cristã como “uma arte e uma ciência ascética para conhecer a Divina Majestade” (Rahm, 2007: 21), associando-a, assim, a um método que induz o praticante à experiência mística, de unir-se subjetivamente com Deus e consigo mesmo. A experiência de “unio mystica”, nos termos de Weber (2016), na qual o indivíduo se torna “receptáculo do divino”. Do lado do yoga, padre Rahm resgata, por exemplo, os pranayamas, técnicas respiratórias de controle da “força vital”, chamada de prana, que por “extensão analógica” (Wagner, 2010) ele associa ao “sopro do Espírito (cf. Gn 1,2)” (Rahm, 2007: 109). Os chakras, sete centros de energia dispostos ao longo da coluna, afirmando que “o chakra do coração na meditação e na contemplação do amor Divino é para iogues cristãos que procuram o casamento místico. Procuram receber o selo do Espírito Santo” (Rahm, 2007: 71). Em outras palavras, padre Rahm aproxima experiências, tecnologias e cosmologias distintas: cristãs e indianas yogues.
No entanto, tal “bricolagem” é realizada, não sem que distinções fossem feitas. Se algumas vezes o padre opera em uma lógica de extensão e paralelismo, em outras demarca fronteiras, quando, por exemplo, diz que:
no Oriente os iogues buscam Bhrama por meio de sua força individual, em silêncio, solidão, meditação e jejum. Eles julgam que tudo isso ocorre pela sua força pessoal. No cristianismo ocorre o contrário: os leigos, os monges e os sacerdotes praticam o mesmo asceticismo, porém, atribuem seu progresso completamente à graça do Espírito Santo. (Rahm, 2007: 38)
Na prática, a yoga cristã desenvolvida por Pe. Haroldo – praticada por ele todos os dias às cinco horas da manhã, e que também é oferecida aos adictos em tratamento em sua comunidade terapêutica – consiste basicamente em executar corporalmente os asanas (posturas físicas) típicos da hatha yoga – yoga “do sol e da lua”, tradicionalmente ligadas a concepções tântricas sobre a correspondência entre o corpo e o cosmos –, meditando mentalmente orações e fraseados cristãos/católicos, como o Credo, o Pai-nosso, a Santíssima Trindade, etc. Algumas palavras são “mantralizadas”, ou seja, sua pronuncia é esticada de maneira a gerar uma vibração na linguagem. Segundo o padre, cada movimento realizado deve carregar um “pensamento espiritual”. De tal forma que, as palavras e as frases entoadas, servem tanto para marcar o ritmo dos movimentos, quanto para “para meditar e pensar”. Algumas delas, registrada no caderno de campo, foram: “São José”, “Jesus”, “Maria”, “Amor”, “Paz”, “Cosmos”, “Gravidade”, “Jahvé está em mim”, “caindo no centro do universo”, etc.
O contato direto com padre Haroldo se deu através de um retiro de yoga cristã e a partir dos Retiros de Yoga Cristã, eventos impulsionados pela publicação do livro em 2007, e que já passam da 29ª edição. Estes retiros inicialmente eram chamados de cursos. Segundo um interlocutor voluntário na organização dos retiros, que trabalha com o padre já há muitos anos, “a ideia do curso (de yoga cristã) era que as pessoas dessem aula de yoga, pranayamas (exercícios de respiração) em suas paróquias. Você se capacitando um pouquinho pode dar aula, porque ajuda muita gente, né, com a respiração e tudo mais”.
Nas observações participantes realizadas nestes eventos, observei uma experiência plural na área da terapêutica alternativa e da espiritualidade, abrangendo além das aulas de yoga cristã, outras práticas: missas, aulas de hatha yoga, kundalini yoga, SwáSthya Yôga, dança indiana, meditação, palestras sobre relaxamento psicossomático, depressão, etc. Sendo frequentados geralmente por indivíduos de classe média, de diversas faixas-etárias, mas sobretudo na meia e terceira idade. Normalmente se iniciavam na sexta-feira à noite, com um jantar e uma palestra do padre comentando aspectos gerais de seu envolvimento com yoga e explicando conceitos relacionados à prática (como samádhi e kundalini). Nessas apresentações iniciais, padre Haroldo geralmente abordava o fato de ter causado problemas para aqueles que não entendem o que é yoga. Seu objetivo era o de defender que yoga não deve ser confundida como religião, mas sim entendida como uma filosofia de vida. Esta é basicamente a razão de ser de sua yoga cristã. Depois da palestra, os participantes eram convidados à prática conduzida por ele.
Padre Haroldo, até por volta de seus 99 anos de idade, esbanjava disposição e vigor. Considerei a aula de seu retiro, que fiz em 2016, como fisicamente exigente. E não fui o único, pois no outro dia, durante o café, uma professora de yoga que participava do retiro me disse que havia acordado mais de uma vez durante a noite, atribuindo isso à aula “estimulante” do padre. Nos últimos anos de sua prática rotineira de yoga, o padre começou a adaptá-la com suportes, como elásticos, bolas e bastões. Assim, suas aulas tornavam-se dinâmicas e diferentes posturas eram adaptadas aos níveis de flexibilidade física de cada praticante.
A rotina do próximo dia se iniciava também com outra prática de yoga cristã, as 6 horas da manhã – uma hora depois da prática pessoal do padre –, antes do café da manhã. Daí se seguiam as outras práticas, conduzidas por professores de outros “estilos”, alguns de outros estados brasileiros, como Rio de Janeiro e Mato Grosso. Uma missa era celebrada ao cair da tarde. No último dia, padre Haroldo voltava a conduzir uma pratica pela manhã e concluía o retiro com mais uma missa, por volta do horário de almoço. Em uma delas, falando a respeito da yoga e do fato de ter sido considerado um dos “padres do ano” segundo a diocese de Campinas, em 2016, padre Haroldo disse:
eu vou falar este milagre porque vocês defendem yoga. E podem citar se quiser. Primeiro João Paulo II, com Bento XVI, escreveram em favor de yoga. Nosso bispo e meu provincial, que eu sou jesuíta, aprovam yoga. Escrevi o livro Yoga Cristão aprovando yoga. Mas aqui tem outra prova, o milagre. Eu fui nesta missa de todos padres, mais ou menos 200, e estava sentado como devo sentar e a um ponto eles chamaram um padre: “você é sacerdote do ano”, todos bateram palma. Aí chamaram outro: você é o padre do ano. Chamaram o número três, deram um presente a ele, uma caixa: você é padre do ano. Eu fiquei tão contente de ver os meus amigos honrados, então eles falaram: “padre Haroldo!”. Eu olho, porque deve ter um padre Haroldo em algum lugar. Eles dizem: “você!”. Eu digo: “quem ,eu?”. Eu também fui escolhido padre do ano. Eles fizeram um bla bla bla, mas eu não ouvi [padre Haroldo tem deficiência auditiva]. E se vocês têm que defender yoga, digam que um dos padres do ano pratica yoga. (Caderno de campo; 26/03/2016)
Dentre os momentos vivenciados nos retiros, destacamos alguns. Durante uma palestra com o tema depressão e yoga, uma professora de yoga do Mato Grosso dava seu testemunho, sobre como teria se curado da doença através do yoga. Bastante interessante, porém, é sua trajetória até chegar ao yoga. Devido ao fato de ser uma “católica ritualística”, como ela mesma se classificava, ela diz que “jamais iria procurar a yoga se não fosse a depressão”, já que, por preconceito, associava a prática ao esoterismo. Eis que, em um dado momento, ela se depara com o livro Autoperfeição com Hatha Yoga4 – de autoria do professor Hermógenes, um dos pioneiros e mais populares professores de yoga do Brasil –, que faz ela trocar os remédios anti-depressivos pela prática cotidiana do yoga.
A partir de então, ela não parou mais de praticar, até que se matriculou em um curso ministrado pelo próprio professor Hermógenes e tornou-se ela mesma professora. Sobre seu início como professora de yoga, ela relata ter encontrado muitas dificuldades para dar aulas em sua cidade devido ao preconceito religioso das pessoas, principalmente dos católicos. Preconceito que ela mesmo tinha antes de ter de fato conhecido a prática. Deste ponto é que ela se conecta com padre Haroldo. Quando o conheceu, ela logo estabeleceu contato e o levou até sua cidade para um evento “justamente para ‘desmistificar’ a yoga para os cristãos”. Atualmente, ela diz atender, de maneira voluntária, cerca de sessenta alunos em uma igreja católica.
Outra professora do Rio de Janeiro, uma senhora que também foi aluna direta de Hermógenes, contou uma história semelhante a anterior. Tal como a professora matogrossense, sua ligação com yoga teria se dado através de uma depressão, além de também ter sofrido preconceito de cristãos que achavam que yoga era “macumba”. Segundo contou, ela também já conduziu práticas em igrejas.
Outro conteúdo dos retiros são as práticas de relaxamento psicossomático conduzidas pela doutora Núbia, colaboradora do padre na escrita e ação de diferentes livros e trabalhos. O relaxamento foi estruturado no livro Relaxe e Viva Feliz, escrito pelos dois. No passado, ambos coordenavam retiros (também chamados de curso) de Relaxamento Psicossomático e Autoconhecimento. Assim como o livro, eles tinham o intuito de:
ensinar os superatarefados a orar e relaxar, por meio de uma série de exercícios práticos extraídos das tradições da Igreja, dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, das técnicas orientais e da Psicologia Moderna. (Rahm, 2003: 5)
Uma das técnicas ensinadas durante um dos retiros que participei, pedia que enxergássemos todos os dias como o “primeiro dia de nossa nova vida”. Núbia discursou sobre as condições necessárias para se relaxar, afirmando a necessidade de apreendermos a relaxar não importando o lugar: “não precisa apagar a luz, colocar roupa mais solta”. Segundo ela, temos que controlar a mente, esse “macaquinho que não para”, segundo os indianos. Transitando pelas referências indicadas no trecho reproduzido a cima, ela também citou Teresa D’Ávila, doutora mística da Igreja que também tinha dificuldades para encontrar quietude. Disse haver uma ligação entre a mente que controla o cérebro e o cérebro que relaxa o corpo. Portanto, é necessário diminuir a “ciclagem cerebral” para relaxar. Segundo ela disse, considera-se “gênio” a pessoa que “usa os dois hemisférios cerebrais sem ninguém ensinar, eles são intuitivos”. Para os “não gênios”, é necessário, como um computador, se “programar” para alcançar uma ciclagem cerebral mais baixa.
Para tanto, durante o relaxamento, por autossugestão, se busca criar um espaço tranquilo “por meio da imaginação, que fica mais fértil com o uso dos cinco sentidos” (algo próximo do que é proposto pelos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola). Após essas explicações mais teóricas, Núbia nos instruiu a sentarmos com a coluna ereta, desencostada da cadeira, para então relaxarmos durante 15 minutos, sob sua condução verbal.
Em relação ao público consumidor destes eventos, pudemos observar certa variedade de categorias de pessoas: professores e praticantes de diferentes estilos de yoga – o que nos intui a pensar em um “circuito da yoga”, assim como o “circuito alternativo” (Carozzi, 2000) –, católicos, espíritas e pessoas ligadas a outros movimentos desenvolvidos pelo padre Haroldo (TLC, Amor Exigente, etc). Destaco um diálogo com uma senhora católica da cidade de Itatiba (SP), que disse praticar yoga desde 1983, e que frequentava as práticas oferecidas no Instituo Padre Haroldo já há alguns anos. De forma espontânea, ela comentou sobre o fato de algumas pessoas criticarem a junção feita pelo padre da yoga indiana com o cristianismo. Porém, segundo concluiu: o “padre adaptou de um jeito que a Igreja aprovou, então está ok”. Pois também, “Deus sempre existiu, aqui ou na Índia”.
Para além do trabalho pessoal de padre Haroldo, observa-se uma certa difusão de sua modalidade por meio da ação de outras pessoas. Neste sentido, é interessante pontuar que o primeiro contato que tive com yoga cristã não se deu através de padre Haroldo diretamente. Por volta de janeiro de 2016, eu caminhava despretensiosamente pelas ruas do centro da cidade de Ribeirão Preto (SP), quando um estabelecimento espremido entre um prédio residencial verticalizado e um salão de cabeleireiro me chamou a atenção. Do lado de fora, através de sua vitrine de vidro transparente, vi expostos à venda uma composição de objetos que me soou curiosa e inusitada. Dentre eles, eu via algumas imagens de Buda, de Nossa Senhora de Fátima, de gatos e bustos egípcios como os do faraó Tutankamón, assim como bolsas e camisetas com estampas indianas. Logo percebi, através de seu letreiro, que o lugar se tratava de um “espaço de yoga”, onde eram promovidas uma série de práticas, cursos e serviços terapêuticos alternativos e integrativos, e que poderia muito bem ser classificado como um “centro integrado” (Magnani, 2000).5
O site do espaço descreve a prática oferecida como inspirada no “método padre Haroldo”.6 Nesse local, eram realizadas duas aulas de yoga cristã por semana, conduzidas por David, o atual dono da escola, um português residente no Brasil há cerca de dez anos, quando veio ao país para dar cursos de massoterapia. Além de massoterapeuta e instrutor de yoga, David é também reikiano (aplicando inclusive o “reiki cristão”) e um católico praticante, a ponto de ser acólito na paróquia Cristo Rei. Ele faz questão de, ao lado dos cursos de massagem ayurvédica, reiki tradicional e de hatha yoga, destacar em seu currículo o “curso de 1º nível de catequista”.
Conversando pessoalmente com ele, pude saber mais sobre sua trajetória. Em Portugal, foi batizado e “criado” na Igreja Católica. Por volta dos 12 anos, tornou-se um Testemunha de Jeová por influência de sua mãe. Mas o catolicismo voltaria anos mais tarde por escolha própria. Quando lhe perguntei sobre sua identidade religiosa, ele respondeu que é “católico apostólico romano”, mas que sua religiosidade abraça outras vertentes (principalmente as orientais), já que de acordo com sua opinião, “religiões dizem a mesma coisa, uma fala em Dharma outra em missão. Gênesis 1 fala a mesma coisa que o Bhagavad Gita”. Ele também citou Alan Kardec como um iluminado, “como Buda. Não como Cristo, mas alguém muito iluminado que pegou os evangelhos e simplificou conforme a sua época”. E disse crer na reencarnação, o que em um dado momento de reflexão o fez exclamar: “por isso, talvez, eu seja 98% católico”.
Durante nossas conversas, o questionei se em algum momento suas orientações cristãs e orientais chegaram a entrar em conflito. Em sua resposta, David relatou um diálogo estabelecido entre ele e uma amiga hindu, para quem perguntou se “teria que abandonar sua religião para continuar com as coisas que gostava” (massagem ayurvédica e yoga). Em resposta, a amiga teria dito: “nem pense nisso. Sua religião é uma religião honesta”. David concluiu que “tudo é uma questão de cultura”, e que a Igreja Católica é o lugar onde o seu “ser” se sente bem, já que, para ele, “estar próximo ao altar é um mistério de fé inexplicável”.
David compartilhou comigo o caso de Joseph Marie Verlinde, padre belga que, antes de vir a ser padre, se iniciou nas técnicas do yoga e da meditação transcendental com Maharishi Mahesh Yogi. Ao transitar até o catolicismo, este padre passou a condenar seu passado. Para David, ele “se perdeu”, já que “o correto é alinharmos a mente e o coração para a fala. Ele (o padre) ficou só na razão, esqueceu o coração”. Aliás, essa união entre razão e emoção é algo que David procura trabalhar em suas aulas de yoga cristã ao sugerir que mentalmente visualizemos a “união entre o chakra cardíaco e o chakra frontal”, localizado na testa entre as sobrancelhas.
Em relação a sua aula de yoga cristã, vê-se que ela é bem diferente da conduzida por padre Haroldo. Diria que é menos movimentada, mais meditativa e silenciosa. Sua sequência exigia uma grande, suave e lenta permanência nos asanas (posturas), sendo que em algumas delas era instruído que se repetisse mentalmente a palavra maranatha,7 soltando as sílabas em consonância ao ritmo da respiração. Ele introduz e finaliza suas aulas com a leitura de alguma mensagem do Evangelho ou de algum livro de espiritualidade cristã, como: O Peregrino Russo, Pequena Filocalia (ambas obras tradicionais do misticismo da igreja oriental), As Moradas do Castelo Interior de Santa Teresa D´Avila, etc. Outras frases católicas também eram entoadas, como: “Senhor Jesus tenha piedade de mim” e “Kyrie Eleison”.
Para além destas fontes, ele também utiliza o livro Ioga para Cristãos, do monge beneditino belga J. M. Dechanét. Sem contar, claro, o livro de padre Haroldo, que sustenta seu trabalho enquanto “método padre Haroldo”. David só lamentou ainda não o conhecer pessoalmente, mas demonstrou muita vontade de ir a um de seus retiros e de também trazê-lo para um evento na escola, o que não teria se realizado ainda devido a estar comprometido nos finais de semana ao oferecimento de cursos de massoterapia e ayurveda.
Ao contar sobre como teria iniciado a dar práticas de yoga cristã, David me contou que as tinha assumido recentemente, mas que antes dele quem ministrava as aulas era uma mulher que não trabalhava mais no espaço. Ela teria começado a oferecer as aulas por volta de 2012, sendo que ela já dava aulas de kundalini yoga há algum tempo na escola.
No espaço de David é oferecido um curso de formação de instrutores em hatha yoga. Falando sobre o curso e os diferentes estilos de yoga estudados, ele disse que havia o interesse de, ao lado de outros estilos “modernos”, oferecer yoga cristã como uma matéria específica. Porém, ainda não tinha segurança para tanto, já que julgava não ter alcançado ainda a vivência e experiência neste estilo como padre Haroldo, por exemplo, para daí então oferecê-lo em um curso de formação.
Seu espaço é associado à Associação Internacional dos Professores de Yoga (IYTA) e recebe com frequência a visita do padre jesuíta indiano Joe Pereira, professor de yoga, discípulo do grande mestre indiano BKS Iyengar e também de Madre Teresa de Calcutá. Com Madre Teresa, padre Joe trabalhou num período em que sofreu um acidente de motocicleta que o colocou na cadeira de rodas. Foi aí que se deu seu envolvimento com BKS Iyengar, que o ofereceu um tratamento através de seu yoga adaptado.8 Em dúvida, padre Joe foi até Madre Teresa pedir permissão para ser tratado com Iyengar. Madre Teresa lhe disse que se fosse pela saúde, deveria ir. A revista Vida Simples, por ocasião de sua vinda ao Brasil, em fevereiro de 2017, lhe dedicou uma matéria intitulada O padre iogue, que traz um interessante relato sobre sua relação com madre Teresa:
As primeiras alunas de padre Joe foram as noviças de Madre Teresa, que, intrigada, perguntou: “Que ioga é essa que você anda ensinando às minhas freiras?”. Ele explicou que a ioga ajudava a despertar, já que elas andavam cochilando durante as orações. Madre Teresa se convenceu dos poderes terapêuticos da ioga e foi uma figura chave na trajetória de padre Joe. Anos antes, em 1971, ele a havia procurado pensando em deixar a batina. Entre os amigos de seminário, quatro haviam se casado e dois se suicidado. “Madre Teresa me disse: ‘Jesus precisa de você. Tenha paciência, vai demorar um longo tempo, mais ou menos dez anos’. Exatamente dez anos depois, fundei a Kripa”, conta ele. Na inauguração, Madre Teresa estava lá. “Ela dedicou a vida aos mais pobres dos pobres. Eu dedico a minha aos mais pobres em saúde”, diz ele. (Disponível em: <http://vidasimples.uol.com.br/noticias/experiencia/o-padre-iogue.phtml#.Wv3dPogvzIU>. (Acessado em 22/12/2022).
A Kripa World Foundation é uma fundação que cuida de dependentes químicos e portadores de HIV, com mais de 70 centros na Índia, sendo a maior ONG voltada para esta causa no país (país que, curiosamente, é a casa do maior número de jesuítas do mundo, seguido dos Estados Unidos).
Após o contato com David, fui atrás da professora que havia iniciado as aulas de yoga cristã naquele espaço. A encontrei pela primeira vez com em um dos parques municipais de Ribeirão Preto. Na cidade, três parques municipais recebem aos sábados e aos domingos aulas de yoga gratuitas, oferecidas por um conjunto de instrutores da cidade que se revezam voluntariamente. Por um acaso, em uma dessas aulas, a encontrei com o livro de padre Haroldo sobre yoga cristã de baixo do braço. Falei para ela sobre minha pesquisa e ela me disse que ultimamente só dava aulas de yoga cristã.
Ela teria se deparado a primeira vez com yoga cristã no ano de 2008, quando os instrutores de yoga da cidade organizaram um encontro em que tanto padre Haroldo quanto padre Joe estavam presentes. De acordo com ela, este encontro transformou sua vida. Depois dele, ela fez “três cursos” de yoga cristã em Campinas e um no estado de Goiás, onde ela foi “só por causa do padre Haroldo”, pois se “apaixonou” por ele.
Ela me disse que suas aulas têm ajudado e transformado muitas pessoas, que estão necessitadas de espiritualidade nos dias de hoje. Me convidou a ir a uma de suas aulas de “yoga e meditação cristã maranatha” no Centro Social Maria Morieri Palumbo, onde também encontraria o dirigente do centro, seu Mario Palumbo, um “padre casado”, italiano de 83 anos, e que também praticava yoga a algum tempo. Lá, conheci o centro e seu Mario Palumbo, que já trabalhou com padre Quevedo9 dando cursos de parapsicologia – área na qual inclusive tem um livro publicado – e, atualmente, dá cursos e conduz práticas de meditação cristã. Sobre sua atuação, há a seguinte descrição de seu trabalho em seu site:
a procura do nosso eu mais verdadeiro, livre do egoísmo, onde haverá o encontro com o Ser Maior: Deus! A procura do nosso eu (self), através da oração, especialmente, na forma de meditação cristã. Esta, se for bem praticada, deverá necessariamente nos levar ao despojamento do egoísmo, à abertura para com o outro e nos fazer abraçar a todos os seres vivos com compaixão. Aqui focaremos atividades de religiosos e padres casados, meditação, como também um trabalho com nossa Obra Social Maria Morieri Palumbo. (Disponível em: <http://www.oraetlabora.com.br/quem_somos/>. Acessado em 14/01/2018)
Em fevereiro de 2017, o espaço recebeu padre Haroldo para um “curso de yoga cristã”, organizado por Marina e seu Mario. Por ocasião deste evento, uma revista da cidade entrevistou Marina, que disse ter levado o padre à Ribeirão Preto com o objetivo de quebrar os preconceitos de pessoas que, “por medo do desconhecido”, ou por acharem que o método não combina com o segmento cristão, não procuram saber sobre o assunto. Em outras palavras:
Para que todos tivessem acesso e pudessem conhecer quem iniciou o Yoga Cristã no Brasil, resolvi trazer o padre Haroldo para ministrar o curso na cidade. Hoje ele está com 97 anos, e acredito que seja uma oportunidade única para que todos vejam o padre praticando Yoga. (Revista Revide, 07/02/2017)10
Outra professora de yoga cristã que cheguei a contatar foi Maria Xavier, a coautora do livro Yoga Cristã e Espiritualidade de Santo Inácio de Loyola, ao lado de padre Haroldo e doutora Núbia. Durante um dos retiros em que participei, ela conduziu uma prática de yoga cristã. Ela contou aos participantes um pouco da concepção deste trabalho, como o iniciou ao lado do padre e alguns poucos voluntários, sendo que, segundo suas palavras, hoje o movimento teria prosperado, vide o número maior de pessoas trabalhando nele como voluntárias. Ela, que é católica, mas “com crenças mais universais”, já que busca observar as outras religiões como forma de acrescentar mais conhecimento para si mesma, conheceu o padre a partir do curso “Relaxe e Viva Feliz”, que assistiu na escola jesuíta Colégio São Luís em São Paulo, cidade onde reside. A partir de então, começou a trabalhar neles como voluntária.
Anos mais tarde, ela receberia um telefonema dele, dizendo que sabia que Xavier era professora de yoga e que gostaria de convidá-la para analisar o livro que estava escrevendo sobre yoga cristã. Ela conta que ambos se encontraram por cerca de um ano, discutindo sobre o conteúdo do livro. De acordo com Xavier, na época ela própria estava escrevendo um livro sobre “yoga meditativo”, ideia que acabou somando ao que o padre estava produzindo. Ela também conta que a possibilidade de “casamento” entre yoga e cristianismo já teria lhe ocorrido quando, durante uma aula conduzida por ela, uma de suas alunas revelou que por sentir medo ao fazer uma postura invertida, rezava o pai-nosso enquanto estava naquela posição. Isso teria marcado Xavier de tal forma que ela passou a estudar os efeitos psicológicos e físicos das posturas, buscando também nos textos bíblicos – como os Salmos – e em cânticos religiosos católicos, algumas possíveis correlações. Segundo suas palavras, ela “tentou dar uma cara ecumênica à yoga”. No processo de produção do livro, ela ficou responsável pela parte prática, sendo que escolheu pessoas comuns, sem muita flexibilidade, para as imagens, pois como o padre dizia, “o livro é pra qualquer pessoa”. Sua aula teve exercícios em dupla, leitura de textos bíblicos e música católica. Sua concepção é a de que cada postura tem uma história, efeitos psíquicos e espirituais que nela se envolvem, elencando uma frase cristã para mentalização ao final de cada postura.
Outro foco da difusão da yoga cristã pode ser visto nas palestras e cursos sobre yoga cristã que padre Haroldo já fez em outras cidades, assim como nos eventos em que participou levando a bandeira da yoga cristã. Identificamos a participação do padre em um retiro, em 2014, com o tema “A Yoga de São Francisco de Assis”, organizado pelo autor do livro Francisco, o grande yogue de Assis, um teólogo e praticante Kriya Yoga que aproxima as práticas do santo católico à filosofia do yoga. Sobre um retiro de yoga cristã no Rio de Janeiro, por volta de 2015, a editora da revista de yoga, O Atma, escreveu o seguinte relato:
Com muita energia boa, disposição e vitalidade, o Padre Haroldo, 96 anos, encantou a todos os participantes do Retiro de Yoga Cristã no Rio de Janeiro, não só pelo trabalho intensivo de asanas, pranayamas, meditação e uso dos cinco sentidos, como também pelos ensinamentos cristãos dados com muito amor e alegria. Era um retiro “Esticando para Jesus”. (Rahm, 2015: 243)
Para além de padre Haroldo e do Brasil, minha pesquisa mapeou diferentes casos de padres e católicos que procuraram construir versões cristãs do yoga, ou pelo menos aproximar as duas coisas em uma prática especifica. Uma das primeiras aproximações que se tem notícia entre experiências católicas e yoga ocorreu em 1960, com o monge beneditino francês Jean Marie Dechanet, que escreveu um livro intitulado Ioga para Cristãos. Posteriormente, na Argentina, outro jesuíta, Ismael Quiles, estudou yoga a fundo e publicou em 1987 o livro Qué es él yoga, em que desenvolveu reflexões para um “yoga cristiano”, além de fundar na Universidade Católica Del Salvador o curso de Tecnitura Universitaria en Yoga. No Equador, o padre Cesar Augusto Davila Gavilanes também falou em “yoga cristiano” e fundou a Asociación Escuela de Autorrealización, com centros no Panamá, Colômbia e Itália. Padre Joe Pereira, já citado anteriormente, classifica Jesus como um “iogue” (DANTAS, 2018). A partir de 2013, outro caso interessante envolvendo jesuítas e yoga surgiu nos Estados Unidos, onde o padre Bobby Karly passou a oferecer sessões de yoga inspiradas nos princípios jesuítas na Fordham University, criando uma “yoga inaciana”.
A partir da descrição etnográfica feita acima, destaco o desafio enfrentado por Padre Haroldo de “desmistificar o yoga” para católicos e cristãos que são interpelados e confrontados por “preconceitos” sobre a compatibilidade da yoga com a fé cristã/católica.
Argumento que podemos compreender a yoga cristã como uma tradição inventada que responde justamente a interpelações exclusivistas, vinda de sujeitos e segmentos conservadores tanto do cristianismo, de forma mais ampla, quanto do catolicismo, em particular. Segundo o historiador Eric Hobsbawm (1984), uma tradição inventada seria uma tradição com aparência ou considerada antiga, mas que pode, de fato, ser historicamente recente. Sua natureza simbólica visaria inculcar certos valores e normas comportamentais através da repetição, implicando, de maneira automática, uma continuidade estabelecida em relação ao passado. Aliás, este ponto seria crucial: “sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado” (Hobsbawm, 1984: 9).
Essa tentativa de estabelecer uma continuidade com tradições do passado, esquecidas ou relegadas, é um ponto-chave que nos leva a este argumento. Pois no caso de padre Haroldo, sua invenção recorre à espiritualidade contida nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Segundo padre Haroldo, este santo, fundador da Companhia de Jesus, teria sido o primeiro místico cristão a unir ideias orientais com ideias ocidentais. Portanto, é reinventando a espiritualidade inaciana e seu método espiritual que este sacerdote compatibiliza elementos do yoga (como os asanas, pranayamas e chakras) com o repertório simbólico do catolicismo (o Espírito Santo, os anjos, os santos, a “criação”, Cristo, etc), resultando em uma mesma prática. Padre Haroldo justifica parte de seu empenho em criar e escrever sobre yoga cristã dizendo que “há mais de 500 anos, Santo Inácio tem influenciado o mundo espiritual. Pretendemos imitá-lo sendo um dos primeiros a escrever um livro em português sobre yoga cristã” (Rahm, 2007: 44). Em seu título expresso na anotação de número 21, os Exercícios Espirituais são definidos como exercícios para “vencer a nós mesmos e ordenar a própria vida, sem nos determinar por nenhuma afeição desordenada”. Padre Haroldo parafraseia este título dizendo que a yoga cristã também seria uma série de exercícios espirituais com o mesmo objetivo (Ibid.: 43).
Este movimento de “ir ao velho” legitima e estabiliza uma modalidade nova chamada de yoga cristã e que ensina que “somos um templo que abriga centelhas cósmicas” (Ibid.: 49), e, assim como outros métodos de oração, é um meio prático para que a pessoa possa experimentar a ação do Espírito Santo, a “consolação sem causa”, também conhecida como “casamento místico”. Trata-se do “estado sobre o qual Santo Inácio escreveu dizendo que a qualquer momento, sem esforço pessoal, podia perceber a presença de Deus” (Ibdem).
Esta compreensão simbólica do casamento místico é estendida à meditação do quarto chakra, conceito metafisico oriundo dos sistemas de yoga, dentre eles o hatha yoga. Enquanto exercício espiritual, a meditação e contemplação dos “chakras de amor”, como o padre denomina, consistiria em pensar no “Espírito de Deus levando o seu amor e pausando algum tempo em cada chakra” (Ibid.: 71). Definição que em seu livro é acompanhada de uma citação da carta 2 do apóstolo Paulo aos Coríntios (2 Cor 3, 3), na qual o apóstolo se refere aos membros daquela comunidade como a “carta de Cristo”, escrito não com tinta, mas com o “Espírito do Deus vivo” e não em tábuas, mas na “carne do coração”. Se estabelece assim uma continuidade entre a meditação dos chakras e a consolação sem causa descrita por Santo Inácio e justificada biblicamente. Esta continuidade, portanto, fundamenta o empréstimo dos chakras que são traduzidos para uma lógica cristã, ressignificados em um novo contexto.
Em seus Exercícios Espirituais, padre Haroldo ressalta também que Santo Inácio “rezava movimentando o corpo”. E esta valorização do corpo, como meio para acessar o divino, é um ponto-chave de seu apelo às “práticas psicoespirituais do Oriente”, assim como para a invenção de sua yoga cristã. Ele diz que, apesar de haver motivos para se esperar que os cristãos ocidentais valorizassem o corpo físico como deveriam – uma vez que o materialismo impera no Ocidente (o que é observado na exaltação da saúde, da beleza e do conforto do corpo) e a “Encarnação” seria um mistério fundamental para a igreja católica –, a seu ver, “na prática psicoespiritual oriental a atenção dada ao corpo é muito maior do que a existência entre os cristãos ocidentais” (Rahm, 2011: 160).
Essa atenção adequada ao corpo se daria através de uma concepção de meditação, que se distingue epistemologicamente de forma antagônica àquela desenvolvida no Ocidente, de modo que poderíamos falar sobre a existência de uma “meditação oriental” e uma “meditação ocidental”. Segundo ele, as vias orientais da meditação o fizeram perceber que “não precisamos começar com palavras ou ideias”. Tomar consciência do próprio corpo por meio da respiração, da sensibilidade e dos exercícios de Hatha Yoga seria um caminho para que o praticante pudesse se aproximar de uma experiência não conceitual com o divino, prescindindo da visualização e da “imaginação ativa” – em seu sentido junguiano, como ele pontua (Ibid.: 157).
Ao falar sobre este tipo de experiência em seu livro sobre a yoga cristã, padre Haroldo também cita Santa Teresa D’Ávila e São João da Cruz, dois outros grandes nomes da mística católica do século XVI, ao lado de Santo Inácio de Loyola. Pontua que de acordo com a doutrina teológica católica, a união mística pode ser vivenciada por alguns cristãos através da força do Espírito Santo. Esta experiência espiritual que seria chamada por Inácio de consolação sem causa, condiz com o que Teresa D’Ávila denomina de “sétimo castelo” e João da Cruz de “música silenciosa” (Rahm, 2007: 38). Em outro texto, no qual justifica sua virada rumo às práticas orientais, Haroldo coloca São João da Cruz como outro santo católico que, ao lado de Santo Inácio, teria unido “a espiritualidade do Ocidente com a do Oriente” (Rahm, 2011: 157). Ele destaca esse aspecto como sendo algo que o teria inspirado a construir um pensamento ecumênico.
O sociólogo norte-americano Mermis-Cava (2009) chegou à conclusão semelhante de que grupos de meditação cristã fazem uso dessa prática como uma tradição inventada. A meditação cristã é uma técnica de meditação contemplativa, criada pelo monge beneditino inglês John Main (1926-1982), na qual se usa a palavra de origem aramaica “mahanata”, que significa “vem Senhor”, como um mantra. Main teria se iniciado na meditação, muito antes de se tornar sacerdote católico, por um swami11 indiano (Swami Satyananda), “um santo homem de Deus”, segundo suas palavras, que lhe ensinou a se utilizar de um mantra para meditar. Anos mais tarde, já dentro da Ordem de São Bento, Main foi advertido e censurado por seus superiores por meditar daquela forma tipicamente “oriental”. Como resposta, o monge pesquisou e encontrou nas Conferências de João Cassiano (séc. IV), um dos “Padres do Deserto”, a saída para exercitar sua forma preferencial de oração. Em sua 4ª conferência, Cassiano apregoava “a prática de usar uma frase curta para chegar a tranqüilidade necessária à oração” (Main, 1987: 18), tal como um mantra. Segundo a página da Comunidade Mundial para Meditação Cristã, “a compreensão de John Main era a da unidade essencial que havia por trás do ‘mantra’ do Oriente, da ‘fórmula’ de Cassiano e da ‘oração monológica’ dos primeiros Cristãos”.12 Percebe-se que sua criação também estabelece uma continuidade com o passado, remontando aos “padres do deserto”, personagens importantes do cristianismo primitivo.
Na análise de Jonathan Mermis-Cava (2009), a estrutura multidimensional de significado que os praticantes atribuem ao ritual da meditação cristã permite que ele funcione como âncora e como vela na construção de uma identidade religiosa pluralista. Como ele destaca, a crença de que o silêncio – e podemos estender também para o “vazio” enquanto conceito epistemológico da espiritualidade – da meditação é uma prática religiosa universal permite aos meditadores cristãos que ultrapassem as fronteiras institucionais religiosas. Ao mesmo tempo, a noção de que a meditação cristã é uma tradição cristã antiga, uma forma pura de oração cristã e um meio de renovar o cristianismo para o mundo moderno, ancora os indivíduos em suas próprias denominações, mantendo, aprimorando e promovendo o compromisso e a atividade denominacional dos mesmos.
Nisso consistiria a metáfora da “âncora e da vela” operada pelo sociólogo norte-americano, segundo a qual seus rituais funcionariam simultaneamente como uma âncora, mantendo e promovendo a atividade denominacional tipicamente católica, da mesma forma que funcionaria como uma vela, permitindo que fronteiras institucionais exclusivamente católicas sejam cruzadas com outras denominações. Para ele, ao manterem sua afiliação denominacional católica, os meditadores cristãos empregam o “limite simbólico do pluralismo religioso” (Mermis-Cava, 2009: 440). E, assim, devem equilibrar seu censo de abertura ao pluralismo com o compromisso denominacional.
O antropólogo argentino Rodolfo Puglisi (2016) estudou os grupos de meditação zen Zendo Betania, fundado por agentes e grupos católicos, e os comparou aos grupos de meditação cristã, estudados pelo também antropólogo argentino Gustavo Ludueña. Segundo ele, ambas denominações promovem o diálogo entre cosmologias e tecnologias rituais orientais e católicas, e poderiam ser classificados como expressões católicas “alternativas” e “heterodoxas”, à medida em que incluem práticas religiosas de outras tradições e fazem da meditação um ponto de convergência entre as religiosidades.13
Observa-se que ao lado dos grupos Zendo Betania e da meditação cristã, a yoga cristã, enquanto tradição inventada, estabelece intersecções idiossincráticas. Estes movimentos respondem a situações contemporâneas. E este seria outro ponto fundamental da definição conceitual de tradição inventada, proposta por Hobsbawm (1984: 13), que pode ser lida como um conjunto de reações a situações contemporâneas que ou assumem uma forma pautada em contextos simbólicos anteriores, ou estabelecem seu próprio passado tendo em vista uma repetição quase que obrigatória.
Quais seriam, portanto, as situações contemporâneas interpeladoras da yoga cristã? Em outras palavras, a quais contextos a yoga cristã responde? Fenômenos culturais são multicausais, mas interpretando os discursos dos fatos etnográficos descritos na primeira parte do texto, elencamos alguns contextos, complexos e com nuances internas. O primeiro tem a ver com o embate entre concepções religiosas exclusivistas e inclusivas. O discurso exclusivista propagado por cristãos e católicos conservadores e tradicionalistas (por líderes da RCC, por exemplo), ataca denominações heterodoxas e alternativas, taxando yoga como uma prática religiosa hinduísta, como vetor da Nova Era e, consequentemente, como obra demoníaca. Daí a necessidade enfrentada por padre Haroldo e os seguidores de seu método de desmistificarem o yoga, o que acaba passando pelo filtro de discursos terapêuticos e psicologizados. Neste sentido, o yoga em si é dissociado do conceito de religião e tratado como uma filosofia ou “ciência ascética”, capaz de gerar efeitos psicológicos e fisiológicos positivos, de trazer bem-estar físico, espiritual e mental.
Tais processos de desmistificação preparam terreno para compatibilização entre elementos do yoga e a experiência cristã, o que depende de traduções e paralelismos, feitos tanto por padre Haroldo, quanto pelos seguidores de seu método, de modo prático e teórico. As traduções e paralelismos propiciam a continuidade entre o yoga e o cristianismo, ou melhor, a adaptação do yoga para um contexto cristão/católico.
Em 2021, um grupo de estudos sobre o livro Yoga Cristã e Espiritualidade de Santo Inácio de Loyola, foi criado por quatro professoras de yoga cristã. Ao participar das reuniões do grupo, vi de perto paralelos sendo realizados entre yoga e a espiritualidade inaciana. Por exemplo, em uma delas, uma professora associou o conceito de “pratyahara” (abstração dos sentidos), um dos oito passos do yoga, ao que padre Haroldo chamava de “aplicação dos sentidos”. A reflexão sobre a relação entre estes conceitos permitiu que fronteiras entre a “yoga cristã” e a “yoga indiana” fossem estabelecidas. Conclui-se, através da leitura do livro, que a aplicação dos sentidos na meditação e oração seria uma prerrogativa cristã. Outras associações entre conceitos filosóficos oriundos do yoga foram realizadas, como a associação entre o “sutra 6” do “Yoga Sutras” de Patânjali, que fala sobre as cinco “atividades da mente” (conhecimento correto, engano, dúvida, sono e lembrança) com as faculdades mentais trazidas por Santo Inácio de Loyola (memória, entendimento, imaginação e vontade) e registradas por padre Haroldo em seu livro (Rahm, 2007: 37).
Neste processo de compatibilização de contextos distintos de sentidos e práticas, alguns elementos são traduzidos ou simplesmente evitados. Uma das professoras, por exemplo, afirmou não falar em chakras em suas aulas, preferindo fazer referência a uma anatomia física e emocional, dizendo, por exemplo, “vamos trabalhar o coração, quadril, abrir o coração”, se referindo às glândulas, mas não falando do nome dos chakras, por receio de gerar confusão.
Outro contexto se refere à necessidade de se construir uma identidade espiritual ou religiosa que faça sentido na vida dos indivíduos. As identidades compõem-se no campo das trocas, entre alianças e oposições. A maneira como um indivíduo assume e expressa sua fé publicamente, enquanto identidade pessoal, diz muito sobre a forma e os graus de filiação que este estabelece com a religião que de forma abrangente ele professa. Contemporaneamente, é comum encontrarmos, por exemplo, “católicos reencarnacionistas”, ou seja, pessoas que diante de sua religiosidade individual, não “compram o pacote inteiro” da doutrina oficial católica, ao ter como crença uma não verdade para a ortodoxia. No decorrer da descrição etnográfica, vimos distintos modos de ser católico/a: “católica ritualística”, “católica conservadora”, “98% católico”, “católica universalista”. A yoga cristã abre um novo caminho identitário entre tais modos, que “podem variar das formas mais tradicionais às mais político-libertárias ou emocional-carismáticas” (Steil, 2001: 117), institucionalizadas ou não, ortodoxas ou alternativas. Enquanto tradição inventada, ela opera estrategicamente ampliando o horizonte de identidades, ao mesmo tempo em que ancora uma denominação não só para o catolicismo, obviamente, mas para todo o cristianismo.
Por fim, há uma dimensão sociológica que entendo também dar sentido ao caso estudado, que se refere à uma tendência de preferência por aspectos experienciais da religião em detrimento dos doutrinais. A socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger (2008) afirma que a cena religiosa contemporânea pode ser “caracterizada por um movimento irresistível de individualização e de subjetivação da crenças e práticas” (Hervieu-Léger, 2008: 139). Ou seja, há um forte movimento de privatização da religião, no qual o individualismo se impõe, permitindo aos indivíduos que se movimentem com mais facilidade pelas opções do campo religioso e construam religiosidades idiossincráticas, baseadas, por exemplo, em experiências subjetivas e vivenciais da religião.
Porém, como destaca Hervieu-Léger (2008), engana-se quem pensa ser o individualismo religioso – tanto em seu formato místico quanto ético – algo tipicamente recente. A tradição mística cristã surgida no século XVI, por exemplo – resgatada pelas reflexões de padre Haroldo ao inventar a yoga cristã –, reelaborou a concepção de sagrado, migrando de uma espiritualidade que incorporava subjetivamente determinado esquema cosmológico externo e já dado, para uma espiritualidade pautada na expressão da subjetividade, em uma descoberta individual realizada em si mesmo e por si mesmo. Santa Teresa D’Ávila é um forte exemplo desta forma de vivenciar o sagrado, que faz o sujeito encontrar “o sinal de Deus, certeza doravante estabelecida sobre uma consciência de si. Ele descobre em si próprio aquilo que o transcende e aquilo que o fundamenta na existência” (Certeau apud Teixeira, 2019: 43).
Assim, o que caracterizaria o cenário religioso contemporâneo não se trata do individualismo em si – já desenvolvido em tempos pretéritos –, mas a absorção que o individualismo faz da religião. Ou seja, são os tempos individualistas que englobam o individualismo religioso, sob a égide da valorização do mundo e afirmação total da autonomia do sujeito. Observa-se a emergência de um individualismo que valoriza a realização psicológica do indivíduo e que, ao englobar o universo religioso, destaca experiências afetivas e subjetivas como momentos por excelência de encontro com o divino. O apelo contemporâneo a práticas psicocorporais orientais vai neste sentido, de dar destaque à experiência subjetiva, corporal e psicológica dos praticantes. E a yoga cristã, por sua vez, também cumpre este papel, almejando aproximar seu praticante de uma experiência mística.
Sob este paradigma contemporâneo submerge redes de circulação de indivíduos que a bibliografia já totalizou em diferentes categorias: “circuito alternativo” (Carozzi, 2000), “circuito neo-esotérico” (Magnani, 2000), “nebulosa místico-esotérica” (Champion, 2001), etc. Redes formadas basicamente por habitantes urbanos, de classe média, trocando e circulando por uma ampla variedade de técnicas nutricionais, terapêuticas, esotéricas, espirituais, etc, tais quais o yoga, acupuntura, medicina tradicional chinesa, astrologia, etc. Novos grupos diversificados surgindo dentro e fora das instituições religiosas, marcados por práticas esotéricas, sincretismos psicoreligiosos e a “interpenetração entre o religioso, o espiritual e o terapêutico” (Maluf, 2003). A compreensão de unidade deste conjunto implica em ter o indivíduo, sua realização pessoal e auto aperfeiçoamento como foco, objetivos acessíveis por meio de práticas psicocorporais e comumente atreladas a uma concepção intramundana da salvação e monista do sagrado.
A yoga cristã contempla boa parte destes objetivos. Em um capítulo do livro Yoga Cristã e Espiritualidade de Santo Inácio de Loyola, intitulado “Ação do Divino Espírito em nosso Espírito”, padre Haroldo destaca práticas psicocorporais como relaxamento, concentração, mantras, músicas e exercícios energéticos, que seriam “elementos fundamentais para que se dê a entrada na consciência universal que nos leva ao Cristo Cósmico” (Rahm, 2007: 71). Como vemos, o padre destaca uma concepção impessoal e monista de Cristo, o Cristo Cósmico, conceito que encontra ressonância na cosmologia da Antroposofia de Rudolf Steiner (Bastos, 2019),14 mas que, na verdade, foi criado pelo jesuíta Teilhard Chardin. E, na visão de padre Haroldo, o Cristo Cósmico consiste em uma concepção holística de Cristo, segundo a qual praticamente não há distinção entre ele e o mundo:
Cristo cósmico quer dizer o cristo universal que é a palavra, o Logos de Deus, e Cristo Cósmico está em todos os lugares, em todas as coisas. Não só criou mas sustenta todo o universo, cada bicho, cada árvore, cada folha, cada pessoa e cada unha de cada pessoa. Cristo Cósmico quer dizer Cristo dentro de todas as coisas. Primeiro versículo de Gênesis fala: “Deus criou o céu e a terra, mas Deus falou, seja Luz”. E esta palavra é Cristo Cósmico, que é Jesus. (Entrevista, Pe. Haroldo Rahm, Campinas, 01/09/2016)
A partir da observação participante realizada e da análise de alguns documentos, julgo também constatar a entrada de padre Haroldo e sua yoga cristã em uma rede de circulação fluída semelhante à descrita pela bibliografia. Para essa análise, contribuíram sobretudo dois aspectos: o primeiro deles seria o de que o padre, levantando a bandeira da yoga cristã, eventualmente oferecia retiros, aulas e palestras em encontros de meditação e yoga realizados em diversos lugares e cidades,15 além de já ter sido homenageado por profissionais do yoga e um colunista em um jornal “esotérico-espiritual” da cidade de Campinas (SP), o Jornal Zen. Neste sentido, duas incursões a campo me marcaram bastante: a primeira se refere a uma palestra com o tema “ecumenismo entre as religiões”, oferecida por ele em um centro espírita em 2017; e a segunda foi uma benção e participação na abertura de um festival intitulado “Festival Zen: mais que um evento, uma experiência da Nova Era”, onde haviam práticas de yoga e meditação, leituras de tarô, venda de produtos esotéricos, etc.
O segundo aspecto referente à análise de padre Haroldo e sua yoga cristã como um “espaço” de um certo circuito alternativo, seria o de que os próprios retiros oferecidos em seu Instituto eram um ponto de encontro, ou melhor, uma vivencia para uma diversidade de indivíduos: espíritas, católicos, praticantes e profissionais de yoga, e pessoas sem religião definida que estavam em busca de uma “transformação espiritual”. Na maneira descentralizada e errante típica de uma experiência new age.
Argumentei neste texto que a yoga cristã, criada pelo jesuíta Haroldo J. Rahm, pode ser considerada como uma tradição inventada – nos termos hobsbawnianos – que estabelece continuidade com o passado cristão resgatando a mística católica, principalmente de Santo Inácio de Loyola e seus Exercícios Espirituais, mas também de outros místicos do século XVI como São João da Cruz e Santa Teresa D’Ávila. Inventando junto deste movimento uma modalidade de prática psicocorporal e espiritual que toma emprestado, traduz e estabelece paralelos com elementos teóricos e práticos da “yoga indiana”, como os asanas (posturas físicas), prana (“sopro do Espírito”), mantras (cânticos), chakras (centros de energia e “amor”), samadhi (“vida no Espírito”). A yoga cristã criada por padre Haroldo é recente, fundada oficialmente em 2007, mas ao se referir à mística do século XVI, ganha uma legitimação e autoridade fundamentais para responder aos contextos contemporâneos que a interpelam.
E como vimos no segundo tópico do artigo, destacamos como contextos que se impõem sobre ela e justificam sua criação. O primeiro deles trata dos discursos exclusivistas, baseados em lemas literais como “fora da Igreja não há salvação”, que condenam a yoga, entendendo suas práticas como vetores do demônio. Mesmo que a prática seja focada em sua dimensão física, nas posturas físicas de equilíbrio, força e flexibilidade, ou nos exercícios respiratórios, para alguns cristãos e católicos conservadores e tradicionalistas, yoga seria incompatível com a fé cristã, uma vez que, na visão deles, seria impossível dissocia-lo de seu referencial hindu, reencarnacionista e panteísta, segundo o qual tudo é deus e os indivíduos são divinos.
O segundo contexto destacado alude à “desregulação identitária” vivenciada pela Igreja Católica por outras tradições religiosas, que na modernidade encontram extrema dificuldade em transmitir, de forma regular, os valores e as práticas religiosas ortodoxas para seus fiéis. Isso acaba exigindo e incentivando uma maior criatividade e atualização nos processos de invenção e reinvenção da religião. Neste sentido, a yoga cristã se torna possibilidade espiritual para cristãos e católicos afeitos à estética e às experiências psicofísicas propiciadas por ela, uma tradição complexa e também polissêmica, que se expande mercadologicamente de forma expressiva em diferentes países.
Já o terceiro contexto que em minha consideração a yoga cristã oferece resposta diz respeito sobre a tendência contemporânea observada no campo religioso que enaltece a autonomia e a realização psicofísica dos indivíduos, que acabam por preferir usufruir da religião mais enquanto experiência e vivência do que enquanto doutrina. Neste sentido, a religião e a religiosidade são boas porque fazem bem, causam bem-estar e conforto psicológico. O que é comum nestes casos é a intersecção entre discursos religiosos e terapêuticos.
A força das intersecções apontadas se observa, em parte, na conformação de circuitos, formados por trajetos, lugares e pela circulação de pessoas e coisas por entre universos classificados como religiosos, esotéricos, espirituais, alternativos e terapêuticos. Como anunciava Carozzi (2000) no início do milênio, era difícil encontrar um habitante urbano de classe média do mundo ocidental que não houvesse consumido ao menos uma vez algum destes serviços ligados ao circuito alternativo. Parece que já há um bom tempo, alguns membros e líderes da Igreja Católica começaram a perceber e a se posicionar diante destas mudanças culturais e sociais. Enquanto alguns as combatem, outros as abraçam, absorvem, dialogam e se encarregam inclusive de “desmistificar” métodos orientais difundidos nas sociedades contemporâneas. E, para tanto, acabam criando tradições capazes de compatibilizar tais métodos com o cristianismo.
Para fechar a reflexão deste texto, gostaria de pegar emprestado a metáfora criada por Mermis-Cava (2009), segundo a qual a tradição inventada pode representar para sua denominação de origem tanto uma “âncora” quanto uma “vela”. Ou seja, pode reforçar ou de algum modo renovar a religiosidade base de quem a inventa e a adota. Assim, me questiono: em que sentido a yoga cristã representa uma âncora e uma vela para o cristianismo e, em particular, para o catolicismo?
Enquanto vela, ela permite a incorporação de elementos ausentes ou esquecidos da tradição cristã, que no caso específico referem-se sobretudo à valorização e uso do corpo físico como meio de oração e fonte de experiência mística, capaz de gerar a sensação da presença divina. E que assim se cruze fronteiras tradicionais e consagradas da religião, legitimando um modo de ser cristão e católico novo, no caso um cristão que pratica yoga, ou um “yogue cristão”.
Enquanto âncora, ela reafirma e renova a identidade cristã, a atualizando. Interessante neste sentido o depoimento de padre Haroldo ao dizer que sua “virada ao Oriente” objetivava enriquecer sua vida espiritual como cristão, já que a vida religiosa cristã “pode ser capaz de assimilar tradições ascéticas e contemplativas, cujas sementes foram algumas vezes já plantadas por Deus”. Além disso, enquanto âncora, a yoga cristã também estabelece fronteiras claras com o que padre Haroldo chama de “yoga indiana”. Vimos que na yoga indiana procura-se a abstração dos sentidos, enquanto que os cristãos oram e meditam aplicando os sentidos, por exemplo. Quanto a incorporação dos chakras, na yoga cristã eles são aceitos, mas de modo particular. Se na “yoga indiana” se medita sobre eles de baixo para cima, simbolizando a transmutação das energias humanas em direção ao espiritual, o que depende do esforço humano, na yoga cristã, há uma inversão de direção e se medita de cima para baixo. Pois se entende que a conexão espiritual do ser humano com Deus é fruto da graça divina e não do esforço humano. Observa-se, assim, que a compatibilização dos chakras passa por uma ressignificação, tendo em vista a necessidade de não incorrer contra o dogma católico de que, em última medida, a elevação espiritual é fruto de uma dádiva divina, e não da divinização do ser humano.
Um ponto fundamental neste movimento é sua justificação baseada nos documentos oficiais da Igreja Católica, produzidos pelo Concílio Vaticano II, pela Congregação para Doutrina da Fé, pela tradição teológica e pelas diretrizes da Companhia de Jesus, principalmente a partir de suas Congregações Gerais. Sem tais legitimações institucionais, a invenção da tradição não seria possível, ou permaneceria marginalizada.