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MULHERES, RELIGIÃO E NACIONALIDADE NA DIÁSPORA DO SANTO DAIME EM PORTUGAL: UMA ANÁLISE INTERSECCIONAL
MUJERES, RELIGIÓN Y NACIONALIDAD EN LA DIÁSPORA DE SANTO DAIME EN PORTUGAL: UN ANÁLISIS INTERSECCIONAL
WOMEN, RELIGION AND NATIONALITY IN THE SANTO DAIME DIASPORA IN PORTUGAL: AN INTERSECTIONAL ANALYSIS
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Campinas, vol. 24, pp. 1-31, 2022
Universidade Estadual de Campinas, Brazil

Artigo Original


Recepção: 14 Dezembro 2021

Aprovação: 12 Julho 2022

DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v24i00.8670900

Resumo: Neste artigo, discutirei “mulheres”, “religião” e “nacionalidade” como eixos interseccionais de grande relevância para o estudo sobre a diáspora do Santo Daime em Portugal. As reflexões partem da análise sobre como estes elementos atuam na configuração deste campo que, a despeito de ser majoritariamente composto por portugueses e portuguesas, tem como figuras mais relevantes, brasileiras daimistas de classe média. Os dados foram coletados durante minhas pesquisas de conclusão de curso e de mestrado, por meio de observação participante e realização de entrevistas semiestruturadas e em profundidade que ocorreram entre os anos de 2017 a 2021. A partir destas pesquisas, foi possível identificar que mulheres, religião e nacionalidade atuam efetivamente nas negociações relativas à diáspora do Santo Daime em Portugal e tecem os contornos dessa religião no país.

Palavras-chave: Santo Daime, Portugal, interseccionalidade, mulheres, diáspora.

Resumen: En este artículo, discutiré “mujeres”, “religión” y “nacionalidad” como ejes interseccionales de gran relevancia para el estudio de la diáspora de Santo Daime en Portugal. Las reflexiones parten del análisis de cómo estos elementos actúan en la configuración de este campo que, a pesar de estar compuesto mayoritariamente por portugueses y portuguesas, tiene como figuras más relevantes mujeres daimistas brasileñas de clase media. Los datos fueron recolectados durante la realización de mi carrera y la investigación de maestría, a través de la observación participante y entrevistas semiestructuradas y en profundidad que se llevaron a cabo entre los años 2017 a 2021. A partir de estas investigaciones, fue posible identificar que las mujeres, la religión y la nacionalidad actúan efectivamente. en las negociaciones sobre la diáspora del Santo Daime en Portugal y tejer los contornos de esta religión en el país.

Palabras clave: Santo Daime, Portugal, interseccionalidad, mujeres, siáspora.

Abstract: In this article, I will discuss “women”, “religion” and “nationality” as intersectional axes of great relevance to the study of the Santo Daime diaspora in Portugal. The reflections start from the analysis of how these elements act in the configuration of this feld that, despite being mostly composed by Portuguese men and women, has as its most relevant figures, female middle-class Brazilian daimistas. Data were collected during my course completion and master’s research through participant observation and semi-structured and in-depth interviews that took place between the years 2017 to 2021. From these researches, it was possible to identify that “women”, “religion” and “nationality” effectively impact in the negotiations regarding the Santo Daime diaspora in Portugal and weave the contours of this religion in the country.

Keywords: Santo Daime, Portugal, intersectionality, women, diaspora.

Introdução

A partir da década de 1980, o Brasil passou a se inserir na cartografia global das religiões, configurando um fenômeno designado por Cristina Rocha e Manuel Vásquez (2016) como a diáspora das religiões brasileiras. Foi também na década de 1980 que o Santo Daime, uma religião brasileira de origem amazônica fundada em 1930, entrou nos fluxos globais da religião, e hoje está presente em todos continentes habitados e em pelo menos 43 países, conforme apontou Assis (2017).

Pesquisas recentes (Groisman, 2000; Hanegraaf, 2011; Plas, 2011; Meeus, 2018; Balzer, 2005; Rohde & Sander, 2011; Blainey, 2013; Menozzi, 2011; Pavillard & Casas, 2011; Greganich, 2016) têm constatado que, uma vez inserida em dinâmicas globais, bem como em novas paisagens locais, essa religião vem sendo confrontada com uma série de desafios. Pontuo aqui, como o principal deles, os constrangimentos ligados à guerra internacional às drogas tornadas ilícitas (Karam, 2013), que coloca em xeque o uso religioso da bebida ayahuasca,1 tida como um sacramento dentro das cerimônias daimistas. Além disso, ao sair da foresta para contextos urbanos e internacionais, é importante pontuar que o Santo Daime sofreu uma mudança no perfil de seus adeptos: de seringueiros com pouca ou nenhuma escolarização formal a pessoas da classe média altamente escolarizadas (Assis & Labate, 2014; Assis, 2017). Como parte deste processo, foi possível identificar que o comando das cerimônias, que até então era tradicionalmente destinado aos homens, passou a ser partilhado também por mulheres (Assis, 2017) e, em alguns casos, como ocorre em Portugal, a ser protagonizado por elas. Além disso, a globalização do Santo Daime também tem trazido à baila a importância das origens brasileiras dessa religião, colocando a nacionalidade como importante capital simbólico dentro do campo daimista internacional (Assis, 2017).

No presente artigo, observo como “mulheres”, “religião” e “nacionalidade” se apresentam como eixos interseccionais destacados na diáspora do Santo Daime em Portugal. Para levantamento destes dados, foram utilizadas as técnicas de observação participante, a aplicação de questionário e a realização de entrevistas semi-estruturadas. Ao longo da pesquisa, houve 24 respondentes para os questionários e, para as entrevistas semi-estruturadas, foi possível acessar 32 daimistas, o que indica maior aderência deste público a este tipo de entrevista. Destas pessoas, 12 eram mulheres e entre elas, 5 eram brasileiras (Valamiel, 2021). É válido pontuar também que minha inserção no campo ocorreu de forma privilegiada no que toca a proximidade com os agentes em função de meu lugar hibrido como mulher lésbica daimista pesquisadora, o que não me deixou isenta de conflitos e negociações extensas com um campo relativamente fechado. Isso ocorre, pincipalmente, em função do temor dos atores de serem expostos, tendo em vista o lugar de marginalidade ocupado por sua religião no país estudado. Por esse motivo, tanto os nomes dos atores quanto dos grupos situados em Portugal serão ocultados neste artigo.

De maneira geral, no que diz respeito aos estudos sobre as diásporas religiosas, é claro que o elemento da nacionalidade dos atores no campo sempre aparecerá de alguma forma, uma vez que se constitui como fundamental nas análises. Isso não exclui, no entanto, outros fatores que também atravessam a configuração dessas diásporas e que merecem destaque. Até o presente momento, alguns trabalhos (Alves & Vasquéz, 2016; Bahia, 2020; Téchio, 2020) vêm dando atenção à interseção entre a diáspora das religiões brasileiras e questões de gênero e sexualidade, por exemplo. Nessas pesquisas, vemos como as religiões que passam a se configurar fora de seu contexto de origem funcionam como parte importante da negociação de identidades de imigrantes brasileiros no exterior, especialmente quando falamos de mulheres e imigrantes LGBTQIA+.

Para realizar a análise que aqui proponho, adotarei uma perspectiva interseccional, isto é, que olha para a interação entre múltiplos eixos de subordinação (Cho, Crenshaw & Maccall, 2013; Piscitelli, 2008; Collins & Bilge, 2021; Singh, 2015) presentes no contexto de diáspora do Santo Daime em Portugal. Nos tópicos a seguir, tecerei, a princípio, algumas considerações acerca de “mulheres” e “religião” como eixos interseccionais de grande relevância para a análise de diásporas religiosas. Mais adiante, serão feitas algumas reflexões sobre as mulheres no Santo Daime em seu contexto de globalização. Preparado o solo, discutirei a configuração do Santo Daime em Portugal, sua organização e disputas.

Mulheres e religião como eixos interseccionais no contexto de diásporas religiosas

É importante demarcar que, neste artigo, a utilização da categoria “mulheres” como um dos principais eixos interseccionais ocorre em correspondência com o que os atores do campo entendem enquanto “mulheres”. Isto é, na estrutura binária daimista que organiza toda a religião, o significante “mulheres” é entendido, principalmente, como indivíduos do sexo feminino que compartilham entre si, a despeito de sua pluralidade, socializações e construções subjetivas estruturalmente semelhantes baseadas em seu sexo biológico. Muito embora se tenha notícia da entrada de pessoas trans em alguns grupos daimistas espalhados no Brasil e no restante do mundo, até o momento que findei minha pesquisa, não havia em Portugal a presença destes sujeitos nos grupos pesquisados (Valamiel, 2021).

Nessa direção, para esta análise, retomo a utilização de “mulheres” resultante dos feminismos da década de 1980 e que fora pensado pelas mulheres negras e do dito “terceiro mundo” (Rosado, 2015). Ainda que os chamados “estudos de gênero” após a década de 1990 refitam sobre o aspecto relacional desta categoria e tenham grande aderência nas ciências sociais produzidas no Brasil, na presente análise “mulheres” será tratado como um eixo interseccional que possibilita agregar a partir da identidade, ou seja, como propõe Claudia de Lima Costa (2002), “mulheres” enquanto posicionalidade.

É também a partir da compreensão sobre “mulheres” trazida pelos feminismos da década de 1980, que algumas camadas de diferença se tornam relevantes para a própria complexidade de seu uso enquanto eixo interseccional. A interseccionalidade foi pensada a princípio como um conceito por Kimberlé W. Crenshaw (1989) para compreender os problemas sociais nos Estados Unidos. Enquanto ferramenta analítica, a análise interseccional auxilia no entendimento de como relações pulverizadas de poder organizam a configuração social de um grupo. Isto é, este tipo de análise se volta sobretudo para o que os eixos de diferença produzem e não para definições sobre o que eles são (Cho, Crenshaw & Maccall, 2013).

Ao olhar para o Santo Daime em Portugal, foi possível compreender, a partir de sua complexidade, que “mulheres”, “religião” e “nacionalidade” são eixos de articulação destacados no campo. Deste modo, se “a interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas” (Collins & Bilge, 2021: 17), ela aparece aqui como uma forma de compreensão da configuração de uma diáspora religiosa em Portugal. Nesse sentido, ainda que o Santo Daime não se configure como uma religião de imigrantes no país estudado, tendo uma maioria de adeptos e adeptas de nacionalidade portuguesa, em que medida ter como principais lideranças duas mulheres brasileiras afeta a configuração do Santo Daime no país estudado?

As interações entre mulheres e as religiões revelam novos aspectos da pluralidade de experiências femininas que são produzidas e que também produzem e modelam o poder institucional - até mesmo porque não se pode esperar que as formas de liberação sejam menos plurais que as de opressão (Spelman, 1988). Para isso, é necessário um olhar que não restrinja a agência das mulheres na religião apenas como experiência negativada (Singh, 2015), ou seja, subalterna, que ceifa a agência e a subjetividade destas mulheres. É necessário observar também o valor ou o ganho das práticas religiosas para elas, bem como os impactos de sua agência na própria existência da religião em um determinado contexto.

Em se tratando de diásporas religiosas, Manuel Vásquez e José Cláudio de Souza Alvez (2016) identificam a importância do Vale do Amanhecer nas negociações das identidades das mulheres imigrantes pertencentes a essa religião em Atlanta, nos Estados Unidos. Neste espaço, o papel da mediunidade e da cura desempenhado por mulheres brasileiras no Vale do Amanhecer as auxilia nos conflitos relativos à mudança de seus status com relação ao papel da mulher no ambiente doméstico em seu processo de migração (Vásquez & Alves, 2016). Isto ocorre uma vez que predomina entre o grupo que esta religião tem sua presença no país justificada por um trabalho de limpeza cármica que visa uma preparação para o fim da época presente e o início de uma nova era. Tal narrativa religiosa proporciona, para estas imigrantes, uma sensação de conforto e controle sobre suas vidas. Além disso, na esfera privada, estas imigrantes encontram negociações pacificadoras na narrativa religiosa oferecida pelo Vale do Amanhecer no que diz respeito aos conflitos relativos à ascensão das mulheres na hierarquia familiar via independência financeira enquanto imigrantes, uma vez que a religião propõe uma relação de complementaridade entre homens e mulheres.

O artigo de Cristina de Castro e Igor Caixeta (2021) sobre as mulheres muçulmanas em Belo Horizonte identifica como a importância dada ao casamento e à constituição de uma família compõem traços da mineiridade que estabelecem afinidades eletivas com a centralidade do casamento para os muçulmanos. O entusiasmo com o casamento com um homem muçulmano - independentemente de sua nacionalidade - corre uma vez que a religião, com a proibição do namoro, assegura o casamento e proporciona uma ética para os homens que faz com que eles priorizem em suas vidas a responsabilidade perante a família. Foi também observado um maior rigor religioso por parte das mulheres muçulmanas pesquisadas, uma vez que elas se apresentavam menos fexíveis que o próprio sheikh da mesquita localizada na cidade.

No que diz respeito à vida de mulheres imigrantes em Portugal, Kátia Téchio (2020) identificou a religião evangélica como um importante mediador na vida de mulheres, em especial, brasileiras e africanas. Essas mulheres recorrem à religião para as negociações relativas aos temas de gênero e família, bem como para a eliminação de estigmas coloniais sobre seus corpos (Téchio, 2020). Por outro lado, Joana Bahia (2020) observa como religiões afro-brasileiras, por meio da figura da Pomba-Gira, oferecem negociações com o campo da prostituição vivido por mulheres e travestis imigrantes em Portugal. Neste trabalho, a autora percebe como estas religiões e religiosidades possibilitam a criação de novas feminilidades vindas do Sul global, como é o caso da Pomba-Gira, caracterizadas por atitudes ou feminilidades transgressoras.

Para saber aqui sobre como os eixos interseccionais “mulheres”, “religião” e “nacionalidade” se apresentam na diáspora do Santo Daime em Portugal e tecem os contornos deste campo, é de suma importância apresentar um panorama geral sobre as relações entre as mulheres daimistas e sua religião no contexto de sua internacionalização. Para isso, vale ponderar que a descrição feita adiante se baseia sobretudo no Santo Daime – Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal (ICEFLU), em virtude de seu protagonismo como principal vertente expansionista da religião daimista, atuando como modelo para a maior parte de grupos fliados à instituição e até mesmo para grupos não fliados.

Panorama geral das mulheres no Santo Daime: uma relação reflexiva

Semelhantemente ao que fora observado por Paul Heelas (2009) sobre as religiões Nova Era, o Santo Daime se caracteriza como uma religião de alta reflexividade. Nesse sentido, Glauber Assis (2017) compreende que existiria uma tensão primordial referente à expansão do Santo Daime, na qual duas forças se destacam interagindo em sua dinâmica expansiva: uma força centrífuga (da foresta para o mundo) e outra centrípeta (do mundo para a foresta). Em se tratando da atuação das mulheres na configuração de um campo daimista internacional, é possível identificar que a globalização do Santo Daime em si conta com a sua participação e, ao mesmo tempo, implica em mudanças no interior da religião, especialmente no que diz respeito ao lugar dessas mulheres e seu papel.

Na perspectiva das cerimônias daimistas, a diferença entre os gêneros é marcada pela diferença entre os sexos, o que organiza vestimentas, distribuição de funções, bem como se apresenta na disposição dos corpos no salão: homens de um lado, mulheres do outro; nas vestimentas gerais denominadas “fardas”: homens de calça, mulheres de saia; e, além do mais, mulheres utilizam roupas mais paramentadas que os homens. O comando das cerimônias daimistas ocorre, tradicionalmente, em uma perspectiva de casal heterossexual (Assis, 2017). Em geral, principalmente no Brasil, o comandante dos trabalhos, intitulado “padrinho” é um homem que conduz todo o ritual. Quando casado – o que também significa capital simbólico no Santo Daime (Assis, 2017) –, sua esposa, a “madrinha”, tende a ser responsável pelo “batalhão feminino”. Caso não seja casado, a função de conduzir o “batalhão feminino” é atribuída a uma mulher que se destaque pelo seu carisma dentro do grupo. Por se tratar de um comandante geral, a autoridade do “padrinho” também tende a prevalecer sobre a da “madrinha” e, portanto, sobre o “batalhão feminino” (Assis, 2017). O comandante do grupo também é, tradicionalmente, o responsável por abrir e encerrar as cerimônias. As mulheres, por sua vez, têm tradicionalmente a função de “puxar” as orações, bem como os hinos cantados durante todo o ritual.

No que diz respeito ao sacramento religioso da ayahuasca, que no Santo Daime recebeu o nome de “daime”, sua distribuição também é comumente realizada por homens. Para produzir a bebida ocorre o rito do “feitio”, que tem sua organização completamente marcada pela ordem sexuada presente nesta religião. Fazer o daime, em grande parte das igrejas daimistas localizadas no Brasil, é um processo coletivo. Ainda assim, a maior parte do conhecimento sobre a produção da bebida é dos homens, que transmitem este saber a outros homens. Desse modo, durante os feitios, mulheres que não estejam menstruadas participam da coleta e da limpeza das folhas da “rainha” que serão adicionadas ao cipó “jagube”, colhido e preparado pelos homens (Arrais & Albuquerque, 2019). Nos contextos internacionais, como é o caso de Portugal, muitas vezes o daime é importado do Brasil. Para isso, o líquido é reduzido, de modo que ao chegar em seu destino, será diluído pelo comandante ou a comandante na igreja (Assis, 2017), isto é, cria-se uma etapa pela qual passa o sacramento e que é mais permeável e acessível às mulheres.

Ao falar sobre a liderança carismática de Padrinho Sebastião Mota de Melo, fundador do Santo Daime (ICEFLU) e da comunidade Vila Céu do Mapiá, a autora Vera Fróes Fernandes (2019) pontua sua “abertura dada às mulheres”.2 O líder religioso também constatava que a humanidade estaria vivendo o início do tempo das mulheres, uma vez que elas se destacariam no exercício do ensinamento cristão do “amor ao próximo” (Albuquerque, 2021). Em função disso, o líder escolheu algumas mulheres da comunidade para acompanhá-lo em seus trabalhos espirituais. Além do crescente carisma dessas mulheres tidas como “companheiras do Padrinho Sebastião”, as funções desempenhadas por elas passaram a ter grande valor dentro da comunidade do Santo Daime que ali estabeleceuse.

Com a globalização do Santo Daime, estas mulheres, agora anciãs da doutrina, vêm sendo tratadas como de suma importância para a própria manutenção da tradição daimista na comunidade, bem como para sua expansão, inspirando diversas outras mulheres daimistas. Também em função deste processo, o carisma de algumas mulheres daimistas têm excedido a direção dos rituais dentro e fora do Brasil, estando presente em uma série de outros fatores e papéis, como relações de parentesco, o bom desempenho de funções que envolvem habilidades musicais (especialmente o canto e o domínio de instrumentos), dedicação às atividades dentro e fora do contexto das cerimônias, como a participação no corpo institucional das igrejas, o partejar, a zeladoria do espaço da igreja, dos hinários,3 assim como a oferta de hinos,4 a educação das crianças, confecção das fardas,5 além do cuidado com a horta e a cozinha do grupo.

Fora da foresta, principalmente no cenário internacional, cabe destacar que, como venho verificando em minha pesquisa de doutorado, 6há uma crescente emergência de “comandantes” mulheres que atuam na configuração dessa religião em países como Holanda, Bélgica, Itália, Espanha, Finlândia, Portugal, Canadá, Estados Unidos, Japão, Israel e em algumas regiões do Brasil. Isso tem impactado nas flexibilizações realizadas por essa religião nestes novos contextos nos quais se insere. Ocorre, no entanto, que muitas vezes, como Cristina Castro e Igor Caixeta (2021) observaram acerca das muçulmanas em Belo Horizonte, estas mulheres preferem algum tipo de manutenção da tradição, uma vez que isto significaria maior alinhamento às raízes de sua religião e, portanto, ganho de legitimidade dentro do campo daimista mais amplo. No que diz respeito ao diálogo entre o Santo Daime e o espaço público, essas mulheres atuam como mediadoras, enfrentando longas batalhas judiciais para legitimar essa religião fora de seu país de origem, como ocorre em Portugal (Valamiel, 2021).

É claro que há contradições envolvendo os lugares ocupados pelas mulheres dentro do Santo Daime. Se por um lado mulheres daimistas sulistas, sudestinas e não brasileiras passam a desempenhar a função do comando das cerimônias e grupos daimistas, é incomum que mulheres de origem amazônica desempenhem este papel. De acordo com Glauber Assis (2017), mulheres nascidas na comunidade Vila Céu do Mapiá mas não pertencentes às famílias fundadoras, possuem baixa possibilidade de mobilidade social, trabalhando muitas vezes como empregadas domésticas, faxineiras e/ou lavadeiras de roupas de daimistas (homens e mulheres) vindos do Sul e do Sudeste, assim como de demais países do globo (Assis, 2017). Para elas, o casamento com um daimista forasteiro pode significar melhorias em suas vidas, bem como de toda sua família (Assis, 2017). Para estes forasteiros, por outro lado, se casar com uma mulher brasileira, principalmente de origem amazônica, pode significar ganho de capital simbólico dentro da religião.

Entre as tantas possibilidades mencionadas acima, a diáspora do Santo Daime em Portugal conta com a participação de mulheres das classes médias do país, tendo como destaque e principais lideranças, duas mulheres brasileiras de origem carioca. O papel destas lideranças nas negociações presentes no campo daimista português convoca à reflexão sobre as contradições de como sua nacionalidade e gênero contribuem como capitais simbólicos que legitimam seu lugar de lideranças dentro do campo daimista português, mas que no cenário mais amplo, tem outro efeito. A configuração do Santo Daime em Portugal, como será discutida nos tópicos a seguir, tem a guerra internacional às drogas tornadas ilícitas (Karam, 2013) enquanto ponto nevrálgico das negociações nas quais estas mulheres têm atuado de forma ativa.

O campo daimista português: organizações e disputas internas

No dia 1º de outubro de 1988 foi registrada a primeira cerimônia de Santo Daime em Portugal. A cerimônia foi realizada na cidade de Lisboa, no pequeno apartamento de um casal gay formado por um brasileiro e um português (Valamiel, 2021). O registro pôde ser encontrado no “livro de presenças”, atualmente sob a guarda de uma daimista portuguesa, que é dirigente de um pequeno grupo localizado na cidade do Porto. Hoje, quase 33 anos após a primeira cerimônia, o Santo Daime continua a existir em Portugal a partir de uma trajetória que envolve processos de continuidades e descontinuidades. O casal gay responsável pela primeira cerimônia daimista no país já não faz parte do Santo Daime, tendo em vista seu desligamento da religião em meados da década de 1990 como efeito de conflitos e disputas intergrupais que teriam resultado em seu afastamento da ICEFLU.

Como resultante destes conflitos, surgiu a primeira “igreja” daimista - assim chamada pelos daimistas em função do seu aspecto institucional mais burocrático - e que foi fundada por uma mulher portuguesa. Sobre este grupo, foi possível localizar e entrevistar apenas sua “vice comandante”, outra mulher portuguesa que mais tarde tornouse, por um curto período de tempo, sua comandante propriamente dita. Segundo ela, sua liderança foi questionada pelos homens da igreja, o que a levou a abandonar o posto, resultando no fechamento desta igreja no início dos anos 2000 (Valamiel, 2021). De acordo com sua descrição sobre o grupo, as cerimônias realizadas eram, de alguma forma, legitimadas pelos daimistas brasileiros que os visitavam e que pareciam admirar sua performance ritual tão alinhada à liturgia daimista, mesmo “sem ter nenhum brasileiro para explicar” (Entrevista, M.C., 2020).

A fala desta interlocutora aponta para algo importante na compreensão das dinâmicas referentes ao Santo Daime no país estudado. A brasilidade aparece aqui como parte de um capital simbólico, bem como um elemento legitimador para os daimistas. Acontece que este capital não aparece como um elemento essencial, uma vez que “não havia brasileiros para explicar” e, mesmo assim, as cerimônias supostamente se alinhavam à tradição. Como mencionado nos tópicos anteriores, embora seja uma religião de origem brasileira, o Santo Daime não se configura como uma religião de imigrantes no país estudado. Isto não significa, no entanto, que não haja brasileiros daimistas no país. Muito pelo contrário, pouco menos da metade de seus adeptos é brasileira (Valamiel, 2021).

As mulheres daimistas portuguesas e brasileiras que pude observar e entrevistar durante a pesquisa, trabalham, em sua maioria, com terapias alternativas, artes e agricultura familiar, e, no caso mais específico das duas atuais lideranças brasileiras, vive-se do recebimento de aposentadoria no Brasil, aluguéis de imóveis também localizados em seu país de origem e pequenas heranças (comunicação pessoal). Além das mulheres tidas como membros permanentes dos grupos, existe uma circulação de mulheres imigrantes brasileiras que estão em Portugal em função de estudos acadêmicos e especializações. Normalmente, elas têm como renda as bolsas de estudo e pesquisa. Com isso, é relevante pontuar que as damistas estudadas pertencem às camadas das classes médias do Brasil e de Portugal. No caso das imigrantes, estas se adequariam à categoria dos chamados “bons imigrantes” pela mídia portuguesa (França & Padilla, 2018).

Até o momento, dentro do campo daimista português contemporâneo, existem em torno de três grupos daimistas mais significativos. Dois deles estão localizados na região metropolitana de Lisboa e o outro, relativamente menor e já citado neste tópico, na região do Porto (Valamiel, 2021). Embora exista mais de um grupo daimista no país, é consenso entre os daimistas em Portugal que há uma única “igreja” de Santo Daime e que os demais grupos seriam apenas “grupos familiares”. Vale pontuar também que nesta “única igreja daimista” localizada em Portugal, a “presidência”, ou seja, o comando das cerimônias, assim como sua direção espiritual e administrativa, é exercido pelas duas mulheres brasileiras já mencionadas, e cujo carisma excede os limites de seu grupo.

A contraposição entre “igreja” e “grupos familiares” para os daimistas de Portugal demarca poder dentro do campo e se baseia em alguns critérios de distinção, isto é, para ser uma “igreja”, é preciso manter uma “fliação espiritual” e institucional com outra “igreja” localizada no Brasil. A partir deste entendimento, uma “igreja daimista” também se caracterizaria por realizar todo o calendário de cerimônias oficiais do Santo Daime. Outros fatores de grande importância para meus entrevistados são a existência de um estatuto interno, a distribuição de funções como presidência e tesouraria, o pagamento e a cobrança de mensalidades, além de alguma legitimidade pública. Em Portugal, a “igreja” possui um Número de Identificação Fiscal (NIF), sendo reconhecida como uma “associação em defesa do meio ambiente” para o Estado – e não uma igreja -, mas que traduz, entre outras coisas, um modo de presença do Santo Daime pelas vias do ambientalismo, como identifiquei em minha dissertação (Valamiel, 2021).

O assim chamado “grupo familiar” também localizado na região metropolitana de Lisboa se constitui como o maior concorrente da “igreja”. Nele, existe um maior número de pessoas frequentes, maiores flexibilizações quanto ao calendário, ao pagamento de mensalidades e ao uso de outros psicoativos, como a cannabis, entendida por alguns grupos daimistas no Brasil e no mundo como “Santa Maria”. Este grupo tem como comandante um homem português e uma maioria de mulheres (portuguesas e brasileiras) em sua membresia, o que se contrasta com o perfil de adeptos da “igreja”, que como observei até o fim da pesquisa, a despeito da liderança feminina, possui uma maioria de homens como adeptos. Este “grupo familiar”, ao se colocar deste modo dentro do campo, acaba se esquivando de questões institucionais e se isenta das negociações mais diretas com o Estado. Para seu comandante, tratase de uma estratégia que os torna “invisíveis” às possíveis retaliações vindas do Estado, tendo em vista as circunstâncias de ilegalidade relativas à ayahuasca sobre as quais me aprofundarei mais adiante. Por não terem gastos com advogados ou mesmo com aluguéis (o grupo até o fim da pesquisa se reunia em um espaço na casa de seu comandante, ao contrário da “igreja” que mantinha um espaço alugado), não havia necessidade de cobrança de mensalidades ou contribuições. Seus gastos se restringiam, em sua maior parte, às despesas relativas à importação da ayahuasca.

Há uma disputa intrínseca aos dois grupos como resposta à pluralização deste campo, que passa a ter ofertas de “diferentes daimes” à medida que se constrói. O ponto de maior tensão entre ambos consiste nos posicionamentos dissonantes a respeito do diálogo com o Estado realizado pelo Santo Daime no país, o que é comumente chamado entre os adeptos de “processo de legalização do Santo Daime”. Este processo é um projeto vinculado à “igreja”, empreendido por suas comandantes brasileiras e que não conta com a participação dos “grupos familiares” liderados por portugueses. Em entrevista, estas pessoas relataram acreditar que o processo não terá muito sucesso e, além disso, poderia até vir a prejudicar a liberdade do Santo Daime em Portugal.

Mas do ponto de vista prático, legal, da legalização, eu acho que é uma vontade, mas que é utópico. É um pouco utópico, mas por essa questão de estarmos lidando com uma máquina muito pesada, ultra burocrática e uma máquina que não dá abertura pra essa visão, porque “o que não é católico, não é bom”. (...) Eu acho que se acontecesse [a legalização], nossa liberdade estaria muito mais privada do que é agora (Entrevista, J.L., 2020, grifos meus)

Eu cheguei a um ponto que eu admiro a determinação e a resiliência das madrinhas. Mas eu confesso, Paulina, que eu cheguei a um ponto, que eu disse “eu acho que o caminho não é esse” (...). A última vez que perguntei, talvez foi no ano passado, já era constrangedor ela própria explicar, porque ela já estava tão triste... Acho que a própria vida já está a manifestar que o caminho não é esse (Entrevista, M.C., 2020, grifos meus).

A despeito disso, como é possível identificar em um dos trechos das entrevistas acima, são unânimes e bastante enfatizados o respeito e a admiração de todos pelas comandantes brasileiras da “igreja”, seus saberes e sua dedicação à causa. Este respeito à figura das “madrinhas” refetiu muitas vezes nas negociações necessárias durante a realização das entrevistas. Muitos temiam que suas respostas ou mesmo sua participação na pesquisa pudesse impactar na “legalização do Santo Daime” e que com isso estas pessoas sofressem retaliações das comandantes da “igreja”, independente de várias delas pertencerem ao “grupo familiar”. Estas questões internas não se encontram, no entanto, isoladas das dinâmicas e estruturas presentes na sociedade mais ampla, como questões ligadas ao lugar das mulheres brasileiras no Norte global, bem como a fragilidade da categoria “religião” como constructo ocidental.

Em direção à “legalização do Santo Daime em Portugal”

Quando o Santo Daime passou a ser transplantado para outras regiões do Brasil e do mundo a partir de meados da década de 1980, acabou, ao mesmo tempo, ganhando visibilidade em um mundo secular que interpreta a religião como uma esfera distinta (Assis & Labate, 2014). Como consequência, essa religião, junto às demais religiões ayahuasqueiras (União do Vegetal e a Barquinha), passou por investigações relativas ao uso da ayahuasca em seus rituais. Isto ocorreu em virtude das porcentagens da substância dimetiltriptamina presentes na bebida. Com a inclusão do DMT enquanto substância de tipo A sujeita a controle internacional pela Convenção de Viena de 1971,7 essas religiões vêm sofrendo constrangimentos legais no Brasil e principalmente em outros países onde se insere. O uso da ayahuasca, para instituições seculares, borra a legitimidade do Santo Daime.

No Brasil, a última resolução referente ao Santo Daime é a resolução nº 1 de 2010, publicada no dia 26 de janeiro no Diário da União.8 Embora tenha sido retirado de tramitação em fevereiro de 2022, também circulou na Câmara dos Deputados desde o ano de 2020, o Projeto de Lei nº 179/20209 proposto pela deputada Jéssica Salles (MDB). O PL 179 visava regulamentar o uso da ayahuasca sem diálogo com grupos ayahusqueiros e com os povos originários. Por este motivo, o PL foi duramente criticado por estes agentes, com exceção da União do Vegetal (UDV), que se manteve em silêncio a respeito.10 Tal situação faz com que os princípios estabelecidos pela resolução 001/2010 continuem a funcionar, entre tantas coisas, como base para negociações legais internacionais envolvendo a ayahuasca.

No plano internacional, o parecer final emitido pelo INCB International Narcotics Control Board (INCB),11 no que diz respeito ao uso da ayahuasca, pontua que a bebida passa do controle internacional ao controle nacional de cada país, de modo que caberá a cada governo a tomada de medidas a respeito de seu uso. Quanto ao Santo Daime, essa religião tem utilizado da lei de liberdade religiosa para legitimidade de seu uso da ayahuasca no Brasil e em alguns países do mundo, como na Holanda (iceers.org). Já houve apreensões na Alemanha (Balzer, 2005), Bélgica (Meeus, 2018), França,12 Canadá,13 Itália (Menozzi, 2011), Espanha (Pavillard & Casas, 2011) e Estados Unidos (Haber, 2011).

Diante desta fragilidade, o Santo Daime vem adotando uma política própria de expansão baseada em uma estética que denominei em trabalho anterior como “estética da discrição”, que se volta para uma política de tentativa de conciliação com o Estado (Valamiel, 2021). Embora já tenha sido legalizada temporariamente em alguns países, os últimos panoramas jurídicos referentes à ayahuasca fora do Brasil trazem notícia de uma perda de liberdade de grupos ayahuasqueiros. Além de se manter ilegal ou em zonas de acinzentamento na maioria dos países, na Holanda e na Itália, grupos ayahuasqueiros vêm perdendo seu direito de uso religioso da bebida. Em 2017, a igreja Céu de Santa Maria, localizada em Amsterdã, perdeu um processo que visava proteger o Santo Daime das apreensões que desde o ano de 2014 vinham se intensificando, de modo que a justiça passou a tratar o uso da ayahuasca por meio da vara criminal do país.14 Recentemente, em março de 2022, na Itália, o ministério da saúde italiano decretou como ilegal o uso de ayahuasca no país.15

Em Portugal, de acordo com uma das comandantes da “igreja”, o início do que ficou conhecido hoje como “processo de legalização do Santo Daime” ocorreu desde o ano de 2004. Para este fim, foi fundada pelas duas dirigentes da “igreja daimista” a Comunidade Daimista de Portugal, que visava, a princípio, a obtenção do Registro Nacional de Pessoas Coletivas (RNPC). De acordo com as autoridades do RNPC, havia no grupo um “cunho ecológico” ou “espiritual” e não haveria possibilidade de se obter um documento que pontuasse estas duas características. O grupo teria explicado a “impossibilidade de dissociar ambas as questões, uma vez que o Santo Daime se trata de uma religião vinda da Amazônia que se caracteriza por sua origem na foresta” (Entrevista, B., 2020).

O questionamento acerca da identidade do grupo teria se alongado por alguns anos, muito embora o RNPC já deixasse claro que o grupo não seria considerado religioso por utilizar do que chamaram de uma “droga” (Entrevista, B., 2020). Ao receber a negativa do RNPC, as duas mulheres responsáveis pela Comunidade Daimista de Portugal foram desencorajadas pelo órgão a recorrer, dada a inviabilidade de concederlhes este tipo de registro. Não tive acesso ao documento durante o trabalho de campo, mas, de acordo com a entrevistada, o parecer do RNPC era de que aquelas pessoas “se escondiam por trás de uma identidade religiosa para o consumo de drogas ilícitas” (Entrevista, B., 2020), o que foi encaminhado ao Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) para uma melhor avaliação.

Durante a mesma entrevista, esta liderança contou que, desde o ano de 2015, a Comunidade Daimista de Portugal encaminhou a bebida ayahuasca para análise química a fim de realizar a medição da porcentagem de DMT presente na bebida. Tal movimentação teria sido motivada em função de um processo vivido por um homem europeu diante do Estado português, que apreendeu litros de daime portados por ele em 2011. O processo fora arquivado tendo em vista a “impossibilidade do Departamento Científico da Polícia de quantificar a porcentagem de DMT presente na bebida” (Entrevista, B., 2020).

A análise química do Daime foi então encomendada pela Comunidade Daimista de Portugal ao departamento de Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (INFRAMED) do país, o que representou elevados custos à associação. Segundo minha interlocutora, a pessoa responsável pela pesquisa era “uma pessoa muito importante na área, com muitos títulos” (Entrevista, B., 2020), no entanto, desde o ano de 2015, em suas palavras, “nada aconteceu, só empecilhos” (Entrevista, B., 2020). As devolutivas dos pesquisadores eram de que “ora a pesquisadora havia engravidado, ora a máquina havia quebrado...” (Entrevista, B. 2020), o que, na Comunidade Daimista, gerou uma frustração. “Nós perguntamos, pra quê tanta negativa?” (Entrevista, B., 2020). Diante do que constataram, entre as dificuldades está o fato de que o país não pode importar as plantas para que o DMT seja analisado in natura e assim possa ser quantificado.

A Comunidade Daimista de Portugal, através de suas lideranças femininas, entende que a análise química da bebida seria uma das questões mais importantes no “processo de legalização do Santo Daime em Portugal”, uma vez que “seria provado que a quantidade de DMT presente na bebida é abaixo do que é proibido internacionalmente” (Entrevista, B., 2020). Com indignação, foi relatado que “os pesquisadores tiveram que apresentar atestado de antecedência criminal para realizar a pesquisa” (Entrevista, B., 2020). Ainda segundo ela, “na hora do DMT, ninguém conseguiu”. E finaliza de forma irônica: “de amostra em amostra, daqui a pouco eles abrem um trabalho” (Entrevista, B., 2020).

No ano de 2017 participei de uma reunião entre a Comunidade Daimista de Portugal e um dos membros da Comissão de Liberdade Religiosa do país. Sua sugestão era de que o grupo refizesse o processo, mas, desta vez, retirando a palavra “Santo” de “Santo Daime”, uma vez que a Comissão estaria tendo problemas de conceber “Santo” como referência à uma religião ou bebida. Para eles - e aqui marcando explicitamente sua visão católica sobre as religiões -, “Santo” só poderia designar um homem que fora canonizado (diário de campo).

Nos relatos trazidos pelas entrevistadas acerca do processo, mesmo a comprovação de uma porcentagem abaixo da controlada por lei parece exigir outras estratégias. Isto é, os atores do campo precisam lidar com outras barreiras. De que modo, então, o fato de ser uma religião brasileira que se apresenta a partir de duas mulheres brasileiras no espaço público em Portugal impacta na legitimação do Santo Daime em Portugal?

Agência feminina e nacionalidade nas negociações entre o Santo Daime e o Estado português

Portugal é um país que tem protagonismo histórico como vanguarda das grandes navegações que deram início ao projeto de expansão do império que se estendeu até o fim de suas colônias no século XX. A partir da década de 1980, no entanto, Portugal passou a receber grandes fluxos de imigrantes (Pontes, 2004; Machado; 2006; Rocha & Vásquez, 2016; França & Padilla, 2018). Thais França e Beatriz Padilla (2018), ao discutirem sobre a imigração brasileira para Portugal e a construção midiática da mídia portuguesa acerca do tema, propõem que haveria pelo menos três ondas referentes a este movimento e que são marcadas pela expressividade numérica dos imigrantes, sua qualificação, inserção no mercado de trabalho, bem como seus níveis de feminização.

Entre os anos de 1970 a 1990 estaria situada a “primeira onda”, marcada por pequenas levas de imigrantes com alguma especialização. Já entre 2000 e 2010, estaria a “segunda onda” que se adéqua a essa “duração” resultante do retorno de muitos imigrantes ao Brasil devido à crise econômica, e é ainda mais marcada pela feminização dessa migração, dada a grande inserção de mulheres brasileiras como mão de obra barata em empregos precários, principalmente no mercado da prostituição (França & Padilla, 2018; Gomes, 2018). Por fim, de 2016 em diante estaria a “terceira onda”, que acontece em função principalmente da crise política e econômica brasileira, que motivou a migração de brasileiras e brasileiros para Portugal. Estes, no entanto, tratavam-se em grande parte de brasileiros de classe média. Faz parte da “terceira onda” a chegada de imigrantes brasileiros acadêmicos, empreendedores e profissionais qualificados que levam investimentos financeiros ao país e são descritos pela mídia portuguesa como os “novos brasileiros” que chegaram a Portugal (França & Padilla, 2018).

Atualmente, a maior comunidade internacional em Portugal é de brasileiros, e a maior parte desses imigrantes são mulheres (Gomes, 2018). Estas mulheres trabalham, em sua maioria, com atividades ligadas ao atendimento ao público, serviços de limpeza e cuidados com a casa, com idosos e crianças (Gomes, 2018). Se, por um lado, elas exercem funções estruturalmente ligadas à divisão do trabalho por gênero, por outro, ser uma mulher imigrante também corresponde a um projeto pessoal e de autonomia. Ao chegarem na antiga metrópole colonial, embora essas mulheres tenham a possibilidade do ganho de independência econômica, muitos são os estigmas e exotismos enfrentados. Prevalecem, no imaginário português, fantasias coloniais sobre o Brasil e sobre os corpos brasileiros intrínsecas ao próprio projeto imperialista e colonizador que atribuiu a estes corpos um lugar de sensualidade e passividade (Mcclintock, 2010).

Este tipo de construção acerca desses corpos tangencia parte de conflitos de grande proporção midiática ocorridos no país com relação à imigração de brasileiras. Cito aqui, a título de exemplo, o movimento Mães de Bragança,16 de 2003, que teve seu início a partir da inquietação de mulheres portuguesas residentes em Bragança e arredores acerca do mercado sexual de mulheres imigrantes presentes na região. Centenas de mulheres portuguesas, na época, cerraram fleiras contra as supostas invasoras brasileiras, as quais, com suas “falinhas meigas, canas-de-açúcar e droga à mistura” roubavam seus maridos (Pais, 2010: 11).

De acordo com José Machado Pais (2010), as Mães de Bragança estavam seguras de que as brasileiras também utilizavam de seus sortilégios, realizando feitiços para conquistarem os maridos das portuguesas. Para muitos dos homens que se demonstravam arrependidos com os adultérios, havia concordância com a existência de um poder místico das “prostitutas brasileiras” que, por sua vez, foram “enviadas pelo demônio” para roubar seu dinheiro e destruírem seus casamentos (Pais, 2010). É interessante observar que o discurso de acusação passava por uma linguagem religiosa. A chave do “sortilégio” e de uma “magia” que são atribuídos às mulheres brasileiras se estrutura a partir de uma narrativa colonial, forjada pelo catolicismo, que dividia mulheres europeias em “Marias”, “mães”, “esposas” e mulheres colonizadas como “Evas”, “pecadoras”, “prostitutas” (Gomes, 2018).

Outro caso interessante envolvendo elementos ligados à portugalidade católica e à imigração de brasileiros que levaram consigo suas respectivas religiões a Portugal, foi o conflito ligado ao veto de compra do Coliseu do Porto pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em 1995, especialmente por este constituir-se como um espaço tradicional, muito caro à elite intelectual e artística do país (Oro, 2004). Muitos foram os discursos xenofóbicos que buscavam na portugalidade uma chave de legitimação de sua contestação. A IURD também empreendeu tentativas de fundar um partido político em Portugal, o “Partido Gente”, o que também não teve sucesso. Mesmo assim, a IURD encontrou estratégias para permanecer e crescer no país (Oro, 2004).

Os apontamentos acima proporcionam um vislumbre de algumas tensões específicas envolvendo a imigração brasileira a Portugal e que, de algum modo, se relacionam com questões ligadas à identidade religiosa e com ruídos ainda deixados pelo colonialismo. No caso das mulheres, mesmo diante da “terceira onda” e de uma nova imagem de brasilidade, ainda existem estigmas coloniais. No caso mais específico das duas lideranças daimistas femininas destacadas no campo estudado, além de sua nacionalidade, elas lidam com a publicização de uma religião altamente estigmatizada e de origem brasileira, que embora tenha fortes influências cristãs, leva a Portugal fortes traços dos saberes afroameríndios nos quais uma bebida psicoativa passa a compor a dimensão do sagrado.

Durante a já citada reunião com um membro da Comissão de Liberdade Religiosa, havia uma preocupação destas mulheres para que estivessem presentes ali uma maioria de portugueses daimistas para que, através dessa presença, o Santo Daime também pudesse ter maior legitimidade diante daquela autoridade, não se apresentando apenas como uma “coisa de brasileiros” (diário de campo). Estas mulheres pareciam estar cientes de que ocupam um lugar de extrema fragilidade no espaço público, o que faz com que a própria tentativa de diálogo com o Estado tenha como estratégia de legitimação de sua religião certo afastamento da brasilidade. Ao serem questionadas pelo membro da Comissão sobre a razão do desejo em legitimar o Santo Daime em Portugal, foi destacado por elas “queremos entrar pela porta da frente e não queremos ser confundidas com bandidos” (caderno de campo), o que explicita a tentativa de diferenciação de seu grupo e de si mesmas do lugar de marginalidade onde estes atores já são inscritos pelo Estado. Este movimento, ao mesmo tempo, retorna para o campo daimista português como mais um elemento de poder exercido por essas mulheres sobre o campo.

Mulheres e nacionalidade dentro do campo daimista português

Como foi pontuado nos tópicos anteriores, a presença de mulheres na expansão do Santo Daime tem sido de suma importância. Um exemplo emblemático é o da holandesa Geraldine Fijneman, uma das lideranças mais destacadas da expansão do Santo Daime, que participou efetivamente da batalha judicial pela liberdade dessa religião fora do Brasil. Após seu falecimento, a igreja Céu de Santa Maria, fundada por ela, segue com o comando feminino, agora com a holandesa Liesbeth. Ainda na Europa, outro exemplo é o da italiana Tiziana Vigani, comandante de uma igreja daimista em Assis conhecida mundialmente - a quem também tive a oportunidade de entrevistar. Na percepção delas, bem como na percepção das duas lideranças brasileiras de Portugal, ser mulher é um importante capital simbólico dentro do Santo Daime. Para uma das “madrinhas” de Portugal a questão se organiza da seguinte forma:

Eu tenho assim, a sensação de que, se por exemplo, nós somos visitados por algum homem que tenha alguma dificuldade com autoridade feminina, certamente ele não pode se adequar aqui, mas aí é problema dele, né. [risos] Deve ter algum problema com autoridade, ou com a mãe, com o feminino dentro dele, não sei. Mas de modo geral, eu sinto assim, uma coisa. Uma relação de fraternidade, de respeito, da minha parte também, eu acho assim, que de fato ser uma mulher também facilita muito no receber, no aconchego, no cuidado, no zelo, na criatividade, esses atributos que a gente fala muito que são atributos femininos. (Entrevista, B. 2020)

Novamente, diferentemente da origem europeia de Fijneman, Liesceth e Vigani, a origem brasileira das lideranças daimistas de Portugal funciona como mais um capital simbólico dentro do campo daimista do país. Nesse caso, se no espaço público português a interseção entre “mulheres”, “religião” e “nacionalidade” operam como pontos de fragilidade para elas e para o Santo Daime, dentro do campo, estas relações sofrem uma inversão.

Dentro do Santo Daime em Portugal, é curioso que, ao contrário do lugar de “Evas” geralmente dado às brasileiras, a figura da “Virgem Maria” como produtora de uma feminilidade dentro do contexto daimista – como fora observada por Pietro Benedito (2019) –, acaba sendo uma alternativa à marca colonial da sexualização e funciona como lugar de poder para estas mulheres. Como “mães”, “cuidadoras” e “receptoras”, elas se legitimam dentro de uma religião desconhecida e exotizada. Tendo em vista a liderança altamente centralizada na figura das brasileiras, também pude perceber entre os homens o esforço para performar o papel de bons filhos a partir da obediência ao comando (diário de campo). Estar próximo das comandantes, ou mesmo executar tarefas solicitadas, se apresentava como forma de obtenção de carisma dentro do grupo. O lugar materno dessas mulheres pode ser verificado em um trecho do hino recebido por um membro da “igreja” de Santo Daime em Portugal e ofertado a uma de suas comandantes, em que se afirma: “tenho alegria de fazer essa oferta a quem em uma mãe se transformou” (diário de campo).

Verifiquei nos relatos de campo que, muitas vezes, o esforço e dedicação destes homens ao Santo Daime impactava em sua vida pessoal, especialmente no que diz respeito à família dos homens portugueses, que tendia a ver com suspeita a ausência de seus maridos durante ao menos duas noites do mês. De acordo com alguns deles, as esposas pareciam não entender e se incomodar com o uso da bebida ayahuasca nos rituais, bem como com o comando feminino e brasileiro da casa. Sobre isso, ao fim de uma cerimônia, ao dar os recados finais, uma das comandantes brasileiras enfatizou que “não queria ser motivo de conflitos entre casais” (caderno de campo) e que portanto estava aberta a flexibilizações no calendário de cerimônias.

Sobre a acomodação do “grupo familiar” na sociedade portuguesa, pude observar durante o trabalho de campo que, em função de seu comando masculino e de origem europeia, existe maior liberdade na realização de flexibilizações. Seu grau de ajustamento à sociedade portuguesa, como homem europeu de classe média, contribui para que, comparado às brasileiras e brasileiros imigrantes, existam maiores possibilidades de redução dos estranhamentos da sociedade mais ampla. Isso ilustra que, ainda que as questões ligadas à guerra internacional às drogas tornadas ilícitas (Karam, 2013) estejam postas para a grande maioria dos grupos daimistas fora do Brasil, seus riscos são distribuídos e experienciados de formas distintas (Beck, 2010).

Não temos, não sentimos que temos a obrigação de dar alguma satisfação, porque não estamos fazendo nada de errado. Entende? Não estamos fazendo nada nocivo, né... Pra ninguém. É... Não estamos utilizando uma droga, estamos utilizando um enteógeno, né... Dentro de um contexto ritualístico, né, sagrado, com regras, com cuidados, com acompanhamento. (...) Então isso vale mais, a gente investir a nossa energia, o nosso tempo, é... Cuidando diretamente das pessoas que chegam no nosso ponto do que fazer agora todo um movimento super complexo que ninguém tem pernas, ninguém tem bolso, sabe? E que ia ser uma coisa contraproducente porque é... ia tirar o foco do nosso trabalho, entende? Assim... Exige muita energia da gente e a gente prefere usar essa energia em fazer o trabalho. (Entrevista, R., 2020, grifos meus)

Então, o Santo Daime ele é muito marginalizado. Mesmo sendo legal no Brasil. Mesmo sendo reconhecido... Mesmo nós tendo alcançado uma legislação favorável... É muito marginalizado. Então a legalização, ela é importante nesse sentido. Né, de nós podermos demonstrar que somos pessoas normais, que temos nossas vidas, nossas casas, nossas profissões e que encontramos através do Santo Daime, através da doutrina do Santo Daime, uma forma de nós nos desenvolvermos espiritualmente, de nós professarmos a nossa fé e também dá a segurança de que nós estamos fazendo algo totalmente legítimo, dentro da segurança, dentro dos parâmetros que forem acordados entre a nossa associação e as instituições governamentais. Porque, na verdade, o que a gente quer é oportunizar para aqueles que querem uma experiencia significativa nas suas vidas. (Entrevista, B. 2020, grifos meus)

Ao optar por uma liderança flexível, o “grupo familiar” comandado pelo homem mencionado acima tem recebido mais brasileiros e brasileiras que passam a “abrasileirar” suas cerimônias. Como ainda estão se ajustando no país, o fato de não exigir contribuições financeiras torna o grupo mais acessíveis a estas pessoas. Durante entrevista com uma das daimistas de Portugal, foi pontuado que mesmo sendo liderado por um homem, o “grupo familiar” possuía maior “energia feminina” (Entrevista, C., 2020). Neste grupo, também tem ocorrido um crescente movimento de feminização, uma vez que, por ser um homem solteiro, este senhor daria mais espaço a lideranças femininas que passam a se destacar no grupo. Além disso, o “feminino” no “grupo familiar” é especialmente representado pela consagração da cannabis como Santa Maria, o que, muitas vezes, funciona como grande atrativo dentro da clientela daimista. Nesse caso, é possível que ser mulher facilite a receber novos adeptos, mas não é suficiente para mantê-los.

Considerações finais

A partir da análise interseccional da configuração do Santo Daime em Portugal, foi possível refletir sobre as relações entre “mulheres”, “religião” e “nacionalidade” enquanto eixos que estruturam a realidade estudada. Assim como pontuou Singh (2015), estes eixos não se sobrepõem entre si, mas estão imbricados na complexidade da diáspora do Santo Daime em Portugal. Como foi possível observar, estes eixos não dizem apenas sobre relações de subalternidade, mas sobre como estes eixos interseccionais produzem e formatam uma religião em diáspora. Se ser uma brasileira daimista dentro do campo desta religião pode significar ganho de capital simbólico, esta mesma identidade, no espaço público, indica a fragilidade destas agentes.

Neste trabalho, verifiquei que a agência das mulheres no Santo Daime em Portugal diz também de experiências que produzem e são produzidas por diferentes significados atribuídos a gênero, religião e nacionalidade em duas diferentes esferas (religiosa e pública) que apesar de distintas, estão relacionadas entre si. A tentativa empreendida pelas brasileiras daimistas de legitimar o Santo Daime como religião neste país diz de sua fragilidade no contexto português, funcionando como tentativa de negociação de sua presença no país. Ao mesmo tempo, isso retorna para o campo como mais um elemento que se soma ao seu capital religioso e que assegura seu lugar de representantes de sua religião no país. Mesmo assim, estas articulações tendem a resultar em posturas mais rígidas e em uma “igreja” de maior aspecto institucional e, portanto, menos flexível. Ainda que isso resulte em uma menor clientela religiosa, se comparado ao “grupo familiar” que é gerido por um homem português, o poder institucional do Santo Daime neste país pertence às mulheres daimistas brasileiras justamente por serem elas a fazer a mediação entre sua religião e o Estado.

Aqui, como observou Piscitelli (2008) ao estudar as imigrantes brasileiras em Portugal, a nacionalidade é um grande marcador das diferenças de gênero e merece atenção. Ainda que o “grupo familiar” tenha uma maioria de brasileiros, especialmente brasileiras, a abertura de seu dirigente à participação de brasileiras e brasileiros agrega à sua legitimidade dentro do campo. Em contrapartida, a portugalidade presente na “igreja” a partir de uma maioria de homens portugueses na composição do grupo funciona como elemento que agrega na legitimação do Santo Daime diante do Estado. Isso ocorre pois a própria origem brasileira do Santo Daime e sua característica psicoatividade (Assis, 2017) podem reforçar o estigma da marginalidade associada a essa religião em Portugal. Em oposição à fantasia colonial sobre a “sensualidade” e a “marginalidade” dos brasileiros que na visão do Estado português se reuniriam por traz de uma falsa identidade religiosa para o consumo de drogas ilícitas, a importância da portugalidade aparece de formas distintas nos grupos estudados, ainda assim, possuem o efeito comum de reforçar a legitimidade dessa religião no país.

Portugalidade e brasilidade não se apresentam aqui, no entanto, como complementares, mas como elementos que fazem da nacionalidade uma categoria que também sustenta o campo estudado. Retomando à agência feminina e identidade religiosa, observa-se que a identidade religiosa das damistas brasileiras em Portugal as transforma de possíveis “Evas” a representantes da “Virgem Maria”, que, portanto, detém do cuidado materno enquanto uma das ofertas disponíveis no Santo Daime em Portugal e reforçam seu lugar de poder dentro da religião.

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Notas

1 A bebida de origem ameríndia, comumente chamada de ayahuasca, é normalmente feita a partir da cocção das plantas amazônicas Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis (Moreira & Macrae, 2011; Assis, 2017). A ayahuasca recebe os mais variados nomes, entre os di-versos povos indígenas onde é consumida, como entre os Aruák, Tukano (Luz, 2009), Huni Kui (Deshayes, P., & Keifenheim, 2003), Yawanawá (Platero, 2018). Além de ser consumida entre povos indígenas, essa bebida tornou-se parte da vida de muitos seringuei-ros que trabalhavam na região amazônica, participando do intercâmbio entre culturas pre-sentes naquele cenário a partir de seringueiros, indígenas e caboclos. Nesta bebida, encon-tram-se algumas porcentagens da substância dimetiltriptamina, que foi sujeita a controle internacional desde a Convenção de Viena de 1961, que a colocou como substância de tipo A.
2 I Encontro de Pesquisadores do Santo Daime - Mesa de abertura: Histórias do/com o Padri-nho Sebastião. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=QiYjn5FSy80&t=6s> Acesso em: 14/09/2021.
3 O Santo Daime é uma religião musicada. Os “hinários” são os cadernos que possuem mais de um “hino”, podendo chegar a centenas deles. Geralmente, são “recebidos” do transcendente e não compostos. (Kastrup, 2011).
4 Os “hinos” do Santo Daime são recebidos do transcendente e podem ser “ofertados” a diferentes pessoas, funcionando assim, como produtores de socia-bilidades dentro da religião daimista.
5 Nome dado às roupas utilizadas pelos iniciados na religião do Santo Daime durante as cerimônias.
6 Atualmente, desenvolvo minha pesquisa de tese intitulada “Uma análise da agência das mulheres na transnacionalização do Sant Daime” no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGS/UFMG) com a orientação da professora Cristina Maria de Castro e coorientação de Glauber Loures de Assis.
8 Resolução n.1, de 25 de janeiro de 2010. Disponível em: <https://www.bialabate.net/wp-content/uploads/2008/08/Resolucao-Conad-_1_25_01_2010.pdf>. Acesso em: 10/03/2022.
10 Perspectivas indígenas sobre o “Marco Temporal” e o PL da Ayahuasca. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yADUokKgs40&t=16s>. Acesso em: 20/03/2022.
11 Contribution of the International Narcotics Control Board. .Disponível em: <http://www.incb.org/documents/Publications/E-Publication_FINAL.pdf>Acesso em: 21/03/2022.
12 A batalha pela liberdade do Santo Daime na França. Entrevista de Claude Bauchet concedida em 8 de abril de 2022 ao site espanhol <plantaforma.org>. Disponível em: <https://chacruna-la.org/a-batalha-pela-liberdade-do-santo-daime-na-franca/>. Acesso em: 07/08/2022.
13 Como a nossa igreja do Santo Daime recebeu uma isenção para o uso da ayahuasca no Canada. Disponível em: <https://chacruna-la.org/como-a-nossa-igreja-do-santo-daime-recebeu-uma-isencao-para-o-uso-da-ayahuasca-no-canada/> Acesso em: 17/04/2022.
15 Il Ministero della Salute ha reso illegale l’uso di ayahuasca in Italia. Disponível em: <https://www.lindipendente.online/2022/03/17/ministero-della-salute-ha-reso-illegale-luso-di-ayahuasca-in-italia/> Acesso em 21/03/2022.
16 “Mães de Bragança” foi um grupo formado com o objetivo de protestar contra as mu-lheres brasileiras que trabalhavam no mercado da prostituição entre Bragança (Portugal) e a Espanha (Pais, 2010).

Autor notes

i Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGS/UFMG). E-mail: valamielpaulina@gmail.com. ORCID iD: <https://orcid.org/0000-0002-7114-8091>.


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