Artigo Original
Recepção: 02 Março 2022
Aprovação: 17 Dezembro 2022
DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v24i00.8670599
Resumo: O presente artigo desenvolve uma reflexão acerca das relações entre os aspectos sincrônicos e diacrônicos da obra de Max Weber. Mais especificamente, buscamos relacionar a gênese da racionalidade ocidental com a tipologia da ação social a partir de um mesmo arcabouço teórico, a saber, o conceito de desencantamento do mundo. Em termos metodológicos, realizamos esta empreitada a partir da análise interna de um conjunto de textos do próprio Max Weber, em especial aqueles que compõem os estudos sobre as éticas religiosas ocidentais (judaísmo, catolicismo e protestantismo). Esta análise é guiada por um modelo compreensivo da trajetória empírica do processo de desencantamento do mundo, modelo este derivado das reflexões do autor. Finalmente, concluímos apontando como a compreensão do duplo aspecto da obra de Weber lança luz sobre a institucionalização da ética religiosa no nível da ação social.
Palavras-chaves: Desencantamento do mundo, éticas religiosas, ação social, Max Weber.
Resumen: Este artículo desarrolla una reflexión sobre la relación entre los aspectos sincrónicos y diacrónicos de la obra de Max Weber. Más específicamente, buscamos relacionar la génesis de la racionalidad occidental con la tipología de la acción social desde el mismo marco teórico, a saber, el concepto de desencantamiento del mundo. En términos metodológicos, llevamos a cabo este esfuerzo a partir del análisis interno de un conjunto de textos del propio Max Weber, especialmente aquellos que integran los estudios sobre la ética religiosa occidental (judaísmo, catolicismo y protestantismo). Este análisis está guiado por un modelo comprensivo de la trayectoria empírica del proceso de desencantamiento del mundo, modelo derivado de las reflexiones del autor. Finalmente, concluimos señalando cómo la comprensión del doble aspecto de la obra de Weber arroja luz sobre la institucionalización de la ética religiosa en el plano de la acción social.
Palabras clave: Desencantamiento del mundo, éticas religiosas, acción social, Max Weber.
Abstract: The present paper develops a reflection about the relation between synchronic and diachronic aspects of Max Weber’s work. Specifically, we seek to connect occidental rationality genesis with social action typology from the same theoretical framework, namely, the concept of disenchantment of the world. In methodological terms, we realized this task based on the internal analysis of a set of text from Max Weber itself, in particular those from the studies of occidental religious ethics (judaism, catholicism and protestantism). This analysis is guided by a comprehensive model to empirical reflection of disenchantment of the world’s process, being this model derives from the author’s reflection. Finally, we conclude by pointing out how the comprehension of this double aspect of Weber’s work sheds light on the institutionalization of religious ethics at the level of social action.
Keywords: Disenchantment of the World, religious Ethics, social Action, Max Weber.
Introdução
É possível apresentar a obra do sociólogo Max Weber a partir de dois núcleos centrais. Por um lado, reflexões sobre o processo de longuíssimo prazo da constituição da moderna racionalidade ocidental, processo este cuja duração ultrapassa mais de dois milênios. Por outro, os clássicos tipos-ideais weberianos, presentes em sua maioria em Economia e Sociedade, como a tipologia da dominação, a definição de Estado Moderno ou a teoria da ação social. Na verdade, esses dois núcleos da obra de Max Weber não são estanques; pelo contrário são intimamente relacionados e, deste modo, complementares.
Esta relação pode ser observada, primeiramente, na história biográfica de produção dos escritos weberianos. Como já dito, o projeto de Economia e Sociedade compõe as principais referências do núcleo tipológico-sistemático do autor, enquanto outro projeto de mesmo teor megalomaníaco, a Ética econômica das religiões mundiais, enquadra o esforço histórico-comparativo de sua produção sociológica. Na verdade, tratam-se de empreendimentos intelectuais escritos simultaneamente ao longo da sua produção “tardia” (cf. Pierucci, 2013 [2003]: 100-101). Assim, ambos os projetos foram escritos como obras complementares, o que ilumina a compreensão (não só nossa, mas também do próprio autor) sobre a relação íntima entre esses dois núcleos centrais.
Todavia, há outro nível de análise dessa relação: a lógica interna da obra de Weber. É a partir dos tipos-ideais, enquanto instrumentos heurísticos, que Weber realiza sua análise histórica sobre as éticas religiosas; e é a análise histórica que permite ao autor conceituar seus tipos-ideais puros. Há, assim, uma clara relação entre a sociologia tipológico-sistemática de Weber (aspecto sincrônico) e a histórico-comparativa (aspecto diacrônico). Podemos ver essa relação a partir de uma miríade de ângulos. Se pensarmos no caso específico da teoria da ação, um clássico tipo-ideal weberiano – talvez o mais “ideal” dos “tipos” –, existe um estreito vínculo com as análises acerca da gênese histórico-cultural da moderna racionalidade ocidental.
É essa relação, entre a teoria da ação e a gênese da racionalidade ocidental, que o presente artigo buscará analisar. Argumentamos que o conceito histórico de “desencantamento do mundo” pode ser mobilizado como chave interpretativa da passagem analítica da ação tradicional em direção à predominância da ação racional. Assim, nosso objetivo será duplo. Em um nível mais geral, visamos expor a relação estrita entre o aspecto sincrônico e o aspecto diacrônico da obra de Max Weber. Importante frisar que não propomos uma análise inovadora, mas uma demonstração minuciosa de um dos possíveis pontos de contato entre esses dois lados das análises weberianas. Em outro nível mais específico, pretendemos propor um quadro típico-ideal a partir da própria reflexão de Weber para, na sequência, utilizá-lo como um esquema de interpretação das reflexões do autor acerca do conceito de desencantamento do mundo no interior das diferentes formações religiosas ocidentais.
O artigo seguirá da seguinte forma. Inicialmente, visitaremos o conceito de “desencantamento do mundo”. Na literatura mundo afora, há uma extensa revisão que aborda o conceito de desencantamento do mundo, mas pelas vias de outro conceito, a saber, o de racionalização (e.g. Habermas, 2016 [1981]; Hennis, 1983; Schluchter, 1981; Tenbruck, 1980; Turner, 2000). No Brasil, há um debate incipiente, mas deveras instigante (cf. Sell, 2014: 16), sobre o conceito de desencantamento do mundo, produzido principalmente por Antônio Flávio Pierucci e Carlos Eduardo Sell. Enfocaremos no desdobramento deste debate em solo brasileiro. Na sequência, discorreremos acerca de alguns aspectos teóricos basilares das análises histórico-comparativas de Weber para, a partir deles, construir o esquema interpretativo proposto. Com base nesse esquema, demonstraremos como, no interior das grandes formações religiosas ocidentais, a saber, o judaísmo, o catolicismo e o protestantismo, se desenrolou o processo que culminou num mundo crescentemente desencantado onde predomina a ação em suas formas racionais. Em seguida, comentaremos brevemente como esse processo de desencantamento do mundo criou condições de possibilidade para a autonomização das distintas esferas de valor e do correlato processo de secularização, o que permitiu a emancipação dos tipos racionais de ação do meio religioso. Por fim, concluiremos reafirmando a importância da compreensão do duplo movimento da obra de Weber, simultaneamente sincrônico e diacrônico, em especial no que se refere à teoria da ação social e aos estudos de sociologia da religião comparada.
O debate sobre a conceituação do desencantamento do mundo
A noção de “desencantamento do mundo” em Weber já foi amplamente debatida na literatura internacional. Todavia, muitos teóricos levaram adiante importantes reflexões sobre o conceito apenas de modo subordinado à noção mais geral e abrangente de “racionalização”. É o caso de Friedrich Tenbruck (1980), que define racionalização como o processo geral e desencantamento como um processo específico no curso da racionalização europeia. Este segundo termina com o desenvolvimento da ética protestante, desdobrando-se em outro momento distinto da racionalização, a saber, a modernização. O mesmo movimento também pode ser percebido nas reflexões de Jürgen Habermas (2016 [1981]), que, ao sistematizar a teoria da racionalização de Weber, aponta uma dupla dimensão do conceito: de um lado, o desencantamento das imagens de mundo religioso-metafísicas (racionalização cultural); de outro, a consolidação da racionalidade prática na ação (racionalização social). Já em seus primeiros trabalhos sobre a teoria da racionalização, Wolfgang Schluchter (1981) aponta o desencantamento do mundo como uma conquista, que só foi obtida com o desenvolvimento da moderna racionalidade ocidental. Por fim, Wilhelm Hennis (1983) admite uma correlação mais direta entre os dois conceitos. Não obstante, somente o faz devido a sua intenção de se opor à predominância deles no debate weberiano especializado. O autor defende a existência de um outro problema – este sim central – na obra de Weber: o interesse antropológico sobre o desenvolvimento da humanidade.
O debate brasileiro, por sua vez, acabou por estender-se especificamente sobre o “desencantamento do mundo”. Neste debate, longe de ser um termo polissêmico – uma “metáfora viva”, para usar as palavras de Paul Ricoeur1 –, o conceito possui sentidos estritos e constitui-se como um operador analítico de grande importância na obra de Max Weber. Dentre a literatura especializada produzida em solo brasileiro, as análises de dois sociólogos são dignas de nota: Antônio Flávio Pierucci e Carlos Eduardo Sell. Nas linhas que seguem, enfocaremos na contribuição dos dois autores no que se refere à conceituação do “desencantamento do mundo” em Weber, para que possamos, mais à frente, relacioná-la com a teoria da ação social. Com isto não queremos apresentar um veredicto sobre qual concepção está correta, mas apenas expô-las para que possamos, em maior ou menor grau, mobilizá-las nas seções subsequentes.
Por mais que as concepções dos dois autores possuam pontos de contato, há um aspecto central que as distancia. Esta pode ser claramente explicitada através das palavras de Sell:
Também dialogando com o trabalho de Pierucci, argumento que o processo de desencantamento do mundo, em Weber, possui duas vias, mas não dois significados. Assumir tal hipótese implicaria em uma inevitável contradição, pois o mesmo conceito não poderia possuir dois significados distintos. (Sell, 2013: 234)
Para Pierucci, o conceito de desencantamento do mundo possui dupla acepção. Por um lado, e como lócus original do processo, o desencantamento do mundo remete-se ao processo de desmagificação religiosa iniciada ainda na profecia emissária do judaísmo antigo e atingindo seu ápice no protestantismo ascético. O ponto central deste aspecto do conceito é o longo processo pelo qual os sacramentos religiosos perdem seu caráter mágico e a salvação, ou ao menos seus indícios, passa a estar vinculada às ações intramundanas dos indivíduos. Esvaziando todo caráter mágico da prática religiosa, o protestantismo ascético levou até às últimas consequências o processo de desmagificação no interior da religião e, com efeito, produziu um mundo onde a ação transformadora do próprio mundo não era só uma possibilidade, mas uma necessidade.
Chegado o desencantamento religioso, abre-se a condição de possibilidade para o livre desenrolar de um último passo decisivo: o desencantamento do mundo pela ciência. Nesse momento, o conceito adquire seu segundo significado, isto é, a perda de sentido. Ora, um mundo desprovido de forças mágicas e aberto à intervenção transformadora dos indivíduos é o palco para que tudo seja passível de ser calculado e medido, o lugar para que tudo se dobre à gélida concatenação entre meios e fins. Em suma, um mundo despossuído de um sentido geral que tudo englobe, sem uma visão de mundo unificadora, mas retalhado em variadas esferas de valor com suas lógicas próprias.
Entre os dois sentidos do conceito, há o protestantismo ascético, um incontornável ponto de conexão entre sentidos até então não conectáveis. Ele opera enquanto cume do desencantamento do mundo religioso. Mas, que fque claro, apesar do puritanismo ser a última etapa do processo de racionalização religiosa, ela é apenas o início do fim. “É a religião de saída da religião, sim, só que ainda é religião” (Pierucci, 2013 [2003]: 211, grifo nosso). O protestantismo ascético está no limiar entre o tradicionalismo e a modernidade; na motivação religiosa que acaba por engendrar a saída da religião; no “nó” histórico em que a produção religiosa de um sentido para o mundo inicia um processo de impiedosa retirada de sentido pelas ciências empíricas.
Em relação a análise de Pierucci, podemos dizer que há um certo “etapismo” na sua interpretação do conceito, que talvez possa ser o reflexo de sua posição enquanto cientista: “De confuso e embaralhado, basta a vida real [...]. Os conceitos, as categorias, as definições são nossas ferramentas de trabalho, e ferramentas têm de ser boas e adequadas para o que delas se espera” (Pierucci, 2013 [2003]: 37). De todo modo, há uma clara separação entre o “sentido (a)” – a desmagificação do desencantamento do mundo religioso – e o “sentido (b)” – a perda de sentido do desencantamento do mundo pela ciência. Não apenas uma separação analítica, mas também histórica; o primeiro é uma importante condição de possibilidade para o desenvolvimento do segundo.
Vejamos agora a posição de Sell. Como citado acima, suas análises defendem a ideia de uma dupla via para o desencantamento do mundo, mas não de um duplo significado, como argumenta Pierucci. Se, para o último, a análise científica possui uma vocação de clarificar e organizar a embaralhada realidade, Sell realiza uma interpretação do conceito mais aproximado de seu fluxo histórico. O desencantamento do mundo é, assim, um processo que se desenrola em longuíssimo prazo e segue duas vias paralelas. Por um lado, o desencantamento científico que tem como ponto de partida o desenvolvimento do “conceito” ainda no mundo Helênico. Por outro, o desencantamento religioso que remonta às profecias emissárias do judaísmo antigo.
Para Sell, ao invés de uma sucessão, o desencantamento do mundo opera na união entre essas duas vias:
Ambos os processos [desencantamento religioso e desencantamento científico] operam de forma concomitantemente e inter-relacionada e não podem ser lidos como um processo que se desenrola apenas em etapas sucessivas, como se o segundo operasse exclusivamente após o outro ter atingido seu término. (Sell, 2013: 240, grifo do autor)
A poderosa afinidade eletiva entre a tradição judaico-cristã e a filosofa grega possibilitou que esses dois núcleos se reforçassem mutuamente, desencadeando a exacerbação de ambas as vias do processo.
A via científica, tendo por marco inicial a criação do “conceito” pela filosofa grega, atingiu novos patamares quando, no período renascentista, produziu-se o método da experimentação racional, que se trata de um dos pilares das ciências modernas; a via religiosa, como já dito, inicia-se no interior da tradição judaico-cristã e que, com avanços e retrocessos, alcança seu ápice no protestantismo ascético. Para Sell, a afinidade entre essas duas vias é clara: uma representação de mundo desmagificada. Na tradição judaica e, posteriormente, nas seitas ascéticas, não havia controle mágico possível de se realizar sobre o único Deus todo poderoso e, por esta razão, toda a prática religiosa desembocou na ação intramundana dos agentes. E, por outro lado, um mundo desmagificado onde não há atuação de seres mágicos significava um mundo aberto à experimentação, à compreensão de seu funcionamento e, como consequência, à possibilidade de seu domínio racional.
No entanto, note-se bem, a afinidade entre as duas vias históricas se esgota no momento em que, atingindo o máximo do desenvolvimento da desmagificação religiosa no protestantismo ascético, a via teórica científica se volta contra um aspecto caro para qualquer religião: a produção de um sentido unificado para o mundo – uma teodicéia. Se o puritanismo aboliu todos os sacramentos e organizou completamente a prática religiosa no interior da vida mundana era, justamente, porque o mundo fazia sentido, porque havia a salvação da alma ou o castigo eterno num breve horizonte; era nessa fé, na busca firme por indícios da sua salvação, que o crente agia no interior do mundo. Já para a ciência, o mundo passa a ser representado como mero mecanismo causal completamente desprovido de um sentido unitário.
Em síntese, se Pierucci atribui ao desencantamento do mundo pela ciência o significado de perda de sentido, Sell esvazia esse conteúdo do conceito. Para o segundo, as duas vias do desencantamento possuem o mesmo significado: desmagificação. O desenvolvimento da ciência impõe uma substituição dos “meios mágicos” pelos “meios técnicos”, em que o mundo se torna passível de ser medido através do cálculo. O desencantamento do mundo pela via científica eliminou a magia, assim como a via religiosa a retirou enquanto meio de salvação, mas no que se refere ao mistério do mundo, diferiu da religião ao colocá-lo inteiramente à disposição de ser dominado. A perda de sentido, para Sell, é apenas consequência da vocação da ciência em substituir os “meios mágicos” por “meios técnicos” e tudo dominar pelo cálculo; expressa não uma definição do conceito, mas um ponto no qual as duas vias históricas, pelas quais o desencantamento enveredou, deixam de se reforçar e passam a operar em confito.
Antes de finalizarmos esse debate, será interessante realizar uma breve nota acerca da história bibliográfica dessas publicações. O precursor trabalho de Pierucci foi publicado em 2003, enquanto o livro que contém a “réplica” de Sell, em 2013. Entre essas duas datas, está a publicação do livro O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber (2014 [2009]), um esforço mais recente – e de outra orientação da obra já citada – de Wolfgang Schluchter, referência bibliográfica de ambos os autores. Essa obra de Schluchter, em específico, pôde servir como referência para Sell, mas não para Pierucci, dado as datas de publicação. Inclusive, para enfatizar sua interpretação de que o desencantamento do mundo pela ciência se “une” ao desencantamento do mundo pela religião, ao invés de “sucedê-lo”, Sell cita essa obra de Schluchter como fundamentação para sua interpretação: “Realmente, Weber vê, ao lado do processo de desencantamento histórico-religioso do mundo, um segundo processo, com o qual ele está diversamente entrelaçado: o desencantamento do mundo pela via do conhecimento racional” (Schluchter, 2014: 41apudSell, 2013: 240).2
Não obstante, não podemos parar por aí. O acesso a este livro no decurso da formulação conceitual de Sell não faz com que a análise de Pierucci seja, de modo algum, “ultrapassada”. Primeiro porque Schluchter não procura realizar a defesa enfática de uma definição para o conceito, tal como Sell e Pierucci buscam fazer. Ou seja, sua análise do conceito é mais difusa, uma vez que busca decifrar especificamente como o processo histórico-cultural de desencantamento do mundo afeta a visão de Weber sobre a modernidade. Em segundo lugar, por mais que Sell o utilize para consolidar sua definição, há passagens no livro de Schluchter que parecem ir mais ao encontro da visão de Pierucci, pois, segundo ele, “trata-se de dois processos que devem ser inteiramente diferenciados. Ainda que eles estejam entrelaçados, um segue, em certo sentido, o outro: primeiro o desencantamento do mundo pela religião, depois pela ciência” (Schluchter, 2014 [2009]: 33, grifo do autor).
Com essa nota, não queremos afirmar que há alguma concepção conceitual necessariamente correta ou errada, mas apenas a contínua pertinência deste debate.
Os desencantamentos do mundo: seu desenrolar e sua relação com a tipologia de ação
Nesta seção, buscaremos desdobrar as linhas tortas em que o processo histórico do desencantamento do mundo se escreveu. Nosso olhar será guiado pelos tipos de ação que esse processo acabou por engendrar, em suas diferentes etapas e momentos, avanços e retrocessos. Do ponto de vista global, atentaremos para a passagem da preponderância da ação tradicional, típica do “jardim encantado” (Weber, 2016a [1920]) do mundo tradicional, para ação racional com relação a fins, do mundo desencantado ocidental moderno. Ora, independente das contradições existentes no curso desse processo, há uma certa tendência histórica, que não é natural e nem mesmo inerente, mas que se desenrola dentro das casualidades da história humana. Essa tendência, o próprio desencantamento do mundo, é a gestação do mundo moderno, assim como de seu tipo característico de ação.
Comecemos com algumas considerações teóricas. O início da constituição do mundo moderno desencantado foi a luta encarniçada da religião contra a magia; a intelectualização religiosa que arranca homens e mulheres de um mundo em que todos estavam à mercê de variadas forças mágicas e nada tinham a fazer, senão tentar constranger e instrumentalizar essas forças. Note-se bem, a magia é um instrumento, um meio, pelo qual homens e mulheres podem coagir os deuses a intervir em seu favor nas questões deste mundo e só deste mundo. Nas palavras de Pierucci (2013 [2003]: 80), “nada aí é metafísico, nada é para o outro mundo, nada é para o lado de lá”. Trata-se de uma visão monista (apenas neste mundo), enquanto a religião opera uma visão dual (este mundo e o mundo de lá).
Mas engana-se quem pensa que é a ênfase nos interesses mundanos que distingue a magia da religião. Os bens de salvação prometidos pelas religiões muito dificilmente foram aqueles ligados ao “Outro mundo”, mas, de modo semelhante aos expedientes mágicos, ligavam-se a bens intramundanos, como saúde, riqueza e vida longa (Weber, 2016b [1913]: 33). A real diferença entre religião e magia é que, enquanto a magia possui um caráter parcial e imediato (Bourdieu, 2015 [1971]: 84) que não funda uma organização moral e continuada da vida dos indivíduos, na religião
surge uma demanda propriamente ideológica, isto é, a espera de uma mensagem sistemática capaz de dar um sentido unitário à vida, propondo a seus destinatários privilegiados uma visão coerente de mundo e da existência humana, e dando-lhes os meios de realizar a integração sistemática de sua conduta cotidiana. (Bourdieu, 2015 [1971]: 86)
O eixo fundamental da luta da religião contra a magia é, portanto, a produção de um mundo repleto de sentido em que as ações dos indivíduos podem ser sistematicamente organizadas e vinculadas à uma ordem cosmológica mais geral. Com a religião, não se trata mais de atos isolados e puramente interessados, mas também a obediência e a retidão da conduta que conduz a salvação. E se este é o primeiro momento do grande processo de desencantamento do mundo, não deixa de ser interessante notar que tudo se passa como se ele “significasse justamente o contrário do que dele se esperava, a saber, a saída de um mundo incapaz de sentido e o ingresso num universo significativamente ordenado pelas ideias religiosas” (Pierucci, 2013 [2003]: 88).
O processo de ordenação religiosa do mundo iniciou-se no seio das cinco religiões que Weber chamou de “Religiões Mundiais”, isto é, Confucionismo, Hinduísmo, Budismo, Cristianismo e o Islamismo, somado ao Judaísmo que, segundo o autor, impactou de modo imprescindível o Cristianismo e o Islamismo, além de possuir grande significância no desenvolvimento da ética econômica ocidental (Weber, 2016b [1913]: 19). Como veremos adiante, Weber postula a importância fundamental das camadas sociais predominantes no início de cada um destes sistemas religiosos; no entanto, para a constituição inicial de uma imagem ordenada do mundo, a importância dos intelectuais foi decisiva (Weber, 2016b [1913]: 37). Seu papel primordial foi vincular a redenção prometida pelo sistema religioso com uma imagem de mundo racionalizada que tornava claro “do quê” e “para quê” se precisava ser redimido e, com isto, permitiu uma tomada de posição, uma conduta de vida, do crente diante do mundo (Weber, 2016b [1913]: 37-38).
Essa intelectualização religiosa, com efeitos teóricos e práticos, configurou-se como o primeiro fundamento do processo de desencantamento do mundo. É, propriamente, um primeiro processo de racionalização. Mas muito cuidado, pois, ao contrário do que pode parecer, este processo de intelectualização/racionalização não tem como correlato o desenvolvimento de alguma modalidade de ação de tipo “racional”, conforme a tipologia de Weber. A ação ainda estava completamente orientada por motivações tradicionais e, quanto mais avançava essa forma de racionalização levada adiante pelos intelectuais, tanto mais a religião rumava para o irracional.3
Se a intelectualização religiosa que produz uma imagem de mundo é o primeiro momento do processo de desencantamento, a intelectualização excessiva, por sua vez, acabou por travar este processo. Conforme Weber, naquelas religiões mundiais cujos estratos principais eram altamente intelectualizados, o bem de salvação mais excelso vinculou-se a estados extra-cotidianos de fuga do mundo que, de modo algum, engendraram uma conduta sistematizada nas massas. A predominância de um estrato prático, por outro lado, orientou a religiosidade de modo intramundano, direcionando o principal bem de salvação em sentidos opostos aos estados místicos de contemplação. Como sugere Weber,
foi precisamente na burguesia [estrato prático mais polivalente], embora em graus muito diversos, que existiu permanentemente, em conexão com a tendência ao racionalismo técnico e econômico, a possibilidade de emergir uma regulação eticamente racional da vida. (Weber, 2016b [1913]: 43, grifo do autor)
Com base nesse ponto da exposição, é preciso fazer um esclarecimento teórico. O conceito de desencantamento do mundo nos escritos weberianos aparece de dois modos. Primeiro, como um conceito histórico-desenvolvimental, um processo amplo que corresponde à progressiva desmagificação do mundo, tanto pela via religiosa quanto pela científica. Em segundo lugar, este conceito também se refere ao resultado desse processo, isto é, como característica central da modernidade. Nas palavras de Weber (2011 [1917]: 62), “o destino de nosso tempo [...] se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo ‘desencantamento do mundo’”. A fim de evitar confusões, reservaremos o termo desencantamento do mundo para o caráter processual deste conceito, enquanto nos referiremos como mundo desencantado4 para o resultado deste processo.
Esta distinção é de suma importância, pois, além de dois modos de enxergar o desencantamento do mundo – como processo e como resultado –, cada um desses elementos se refere a coisas distintas. Essa distinção pode ser vista no seguinte trecho:
Para que isso [o virtuosismo religioso desembocasse numa seita propriamente ascética] pudesse chegar a acontecer no sentido mais exato possível, era preciso que se cumprissem duas condições prévias. Em primeiro lugar, o supremo bem de salvação não devia ser de natureza contemplativa, isto é, não devia consistir na fusão com um ser transcendente e eterno que justamente por essas qualidades se contrapusesse ao mundo, nem tampouco numa unio mystica a ser consumada mediante orgia ou êxtase apático. Pois tais estados de união com o divino sempre estão fora do agir cotidiano, sempre levam para além do mundo real, sempre se distanciam dele. Em segundo lugar, a religiosidade devia despojar-se ao máximo do caráter puramente mágico ou sacramental dos meios de graça. Pois também esses meios sempre desvalorizam a ação no mundo, atribuindo-lhes uma significação religiosa apenas relativa e ligam a decisão quanto a salvação ao êxito de procedimentos que escapam à racionalidade da vida cotidiana. As duas condições: desencantamento do mundo [segundo lugar] e deslocamento da via de salvação, que se transfere da “fuga do mundo” contemplativa para a “transformação do mundo” acético-ativa [primeiro lugar], só foram plenamente efetivadas nas grandes formações de igrejas e seita do protestantismo ascético no Ocidente. (Weber, 2016b [1913]: 50, grifos do autor)
Em suma, para chegarmos em um mundo desencantado religiosamente – desencantamento do mundo como resultado –, são necessárias duas condições (cf. fig. 1). A primeira condição consiste no deslocamento da via contemplativa para a via ativa de salvação. Isto é, o bem de salvação mais excelso deveria se desviar dos estados contemplativos e direcionar a prática religiosa para o mundo real e a vida cotidiana do crente. Como dito mais acima, este desvio só foi possível quando as camadas portadoras possuíam orientação prática. Foi esse aspecto que abordamos nas últimas páginas, a partir de um viés teórico.
Todavia, para além desse deslocamento das vias de salvação, há outra condição ainda mais crucial para instaurar-se esse mundo desencantado, a saber, o desencantamento do mundo como processo estrito. Este processo consiste no despojar da magia dos meios de graça, isto é, a eliminação da magia na prática religiosa ou, em outros termos, da ação social do crente. No decurso desse processo, a prática religiosa assume um caráter estritamente ético, em que a própria conduta se torna o critério determinante. Dessa forma, despreza-se todos os elementos externos ao próprio sujeito como meio de alcançar a graça divina. O eixo central da prática religiosa se torna a ação do crente que, orientada por um conjunto de princípios éticos, vincula os sujeitos internamente.
Ora, todo esse processo, nomeado por nós de desencantamento do mundo em lato sensu, alavancou uma modalidade de ação diametralmente oposta àquela que reinava no ponto de partida deste processo. Vejamos. A lógica elementar da magia é a coerção dos deuses através de determinados rituais, objetivando pragmaticamente benefícios para o “aqui e agora”. Ela nada mais é do que a “busca irracional por salvação” (Weber, 2019 [1920]: 15);5 afinal, a ação mágica deposita confiança num conjunto de meios que se legitimam pela simples crença e pela força do hábito. Nas palavras de Pierucci (2013 [2003]: 175), “magia é fixidez, cristalização, inércia e repetição. Em jargão weberiano, isso quer dizer tradicionalismo, ação tradicional no sentido mais puro de um tipo-ideal”. Assim, a ação mágica nada mais é do que uma ação tradicional, “uma reação opaca”, isto é, irrefletida, “a estímulos habituais, dirigida conforme uma atitude já arraigada” (Weber, 2016c [1921]: 636).
Por sua vez, no mundo desencantado inaugurado pelo desencantamento do mundo religioso, predomina a ação em suas formas racionais, seja em direção a valores ou a fins. O núcleo central da ação orientada por valores está na “elaboração consciente dos princípios últimos da ação e por orientar-se por eles de maneira consequentemente planejada” (Weber, 2016c [1921]: 637). Todo sentido está na própria ação, não se direcionando a considerações utilitárias sobre resultados, pois o objetivo é o mero cumprimento exemplar das exigências que o indivíduo, conscientemente, entende ser direcionadas a ele. Diferentemente se dá com a ação racional orientada aos fins. Nela, o sentido está na concatenação entre os meios, os fins e as consequências, avaliando conscientemente as diferentes implicações possíveis entre estes termos. De todo modo, as duas modalidades de ação se fundamentam no deslocamento do hábito e da reação emotiva em direção à deliberação interna e refletida a partir de preceitos racionais.
Ora, a passagem entre as duas formas de ação delineadas acima tem como eixo central o processo histórico condensado na fórmula “desencantamento do mundo”. Como já dissemos, não se trata de um processo límpido nem linear, muito menos livre de estágios intermediários. No entanto, é neste amplo processo que, por vias históricas deveras tortuosas, verificamos o abandono de formas tradicionais de ação e o evolver da ação em suas formas racionais. Esse processo acaba por ligar pares opostos, a saber, a magia/ação tradicional e o mundo desencantado/ação racional, imbricando uma sistematização histórico-analítica com as formas tipológicas de ação social. Assim, como argumentamos na introdução, as análises sincrônicas da obra de Max Weber estão intimamente conectadas com as reflexões de ordem diacrônica.
O judaísmo antigo
A partir de agora, veremos como ocorreu a confluência histórica, isto é, empírica, dos processos até aqui descritos que culminam na racionalidade desencantada ocidental. Partiremos daquela religião que, segundo Weber, possui significação histórica ímpar nos desenvolvimentos do mundo ocidental: o judaísmo antigo. O processo de desencantamento do mundo em lato sensu, como já dito, tem como ponto de partida a ordenação religiosa do mundo através da luta contra a magia. No caso do judaísmo, os sacerdotes levíticos, enquanto camada portadora religiosa legítima, foram agentes fundamentais para os primeiros passos desse processo de racionalização religiosa.6 A instauração da hegemonia dos sacerdotes no período da história judaica nomeada de “pré-exílico” representou, em dado momento, a vitória de um certo tipo de racionalidade contra os cultos orgiásticos, as práticas de sacrifícios e os oráculos videntes, em suma, meios mágicos de determinação da vontade divina. Nas palavras de Weber (2019 [1920]: 259): “Em Israel havia toda a espécie de magos. Mas os círculos iahwistas determinantes, sobretudo os dos levitas, não eram magos, senão detentores de saber”.7 Eles, enquanto verdadeiros zeladores de Iahweh, possuíam uma instrução peculiar da torah levítica, cuja comunicação desse saber com os demais grupos conduzia a um forte acento no “ater-se aos seus mandamentos” (Weber, 2019 [1920]: 260). Era necessário segui-los, pois caso não obedecessem e não demonstrassem completa confiança em Iahweh, este responderia com as desgraças da vida, um ato de sua própria vontade. Em suma, “em Israel, onde todo mal era punição ou decreto do poderoso Deus, opôs-se ao desenvolvimento da defesa mágica contra os demônios o desenvolvimento da confssão dos pecados e da torah sacerdotal puramente ética” (Weber, 2019 [1920]: 263, grifo do autor).
A sistematização religiosa levada adiante pelo judaísmo antigo produziu uma representação de mundo deveras específica em que três características podem ser apontadas como fundamentais para o processo aqui desdobrado. Em primeiro lugar, o Deus do judaísmo era uno e transcendente. Com isso, enfatiza-se, primeiramente, o caráter supramundano do Deus de Israel, isto é, acima da ordem natural das coisas; um Deus “de lá” e o mundo “daqui”. Essa transcendência, no quadro de representação do judaísmo antigo, constituiu um Deus estritamente ético. Assim, o judeu se vinculava ao seu Deus a partir da observância de preceitos éticos que deviam conformar sua conduta no mundo e, ao mesmo tempo, Deus assumia o status de autoridade moral.
Mas não podemos parar por aí. Por que seria estritamente no judaísmo que o deus ético faz avançar o desencantamento do mundo? Afinal, há tantos deuses, inclusive deuses supramundanos ou éticos, em religiões politeístas. A resposta para essa pergunta está no caráter uno de Iahweh. Ora, conforme nos lembra Pierucci (2013 [2003]: 106), “o monoteísmo não é o único a poder reivindicar a qualificação ética da divindade. (...) Só que, enquanto no politeísmo o deus ético não passa de um entre vários deuses, no monoteísmo o deus ético é o único deus”. Na ausência de outras divindades que poderiam se opor às exigências de Iahweh, os seus mandamentos assumem uma força coercitiva sem precedentes sobre toda comunidade religiosa.
Em segundo lugar, Iahweh era um deus de plebeus. Isso não quer dizer que era um Deus que respondia às demandas das massas. Todavia, justamente as camadas plebeias (as massas religiosas) acabaram por constituir os círculos de devoção mais fortes. Se as massas de religiões afins estão normalmente ainda bastante encantadas, “aqui, e somente aqui, [as] camadas plebeias se tornaram expoentes de uma ética religiosa racional” (Weber, 2019 [1920]: 265, grifo do autor). Em um primeiro olhar, isso pouco pode parecer relacionado com o esquema teórico exposto (cf. fig. 1). Todavia, o processo de desencantamento do mundo somente pode ser, de fato, efetivo na medida em que largas parcelas dos religiosos estejam vinculadas às exigências de regulação ética da conduta. Se não for assim, a religiosidade, ainda que tenha algum potencial ético condutor de uma ação religiosa racionalizada, ficará restrita a uma classe de virtuoses e não terá efeitos práticos sobre as massas. É essa confluência entre religião de massas e religião de virtuoses uma das marcas que singulariza o judaísmo antigo entre os vários sistemas religiosos da antiguidade.
Por fim, Iahweh também era um deus da história, mais especificamente da história político-militar. Na teologia judaica, o mundo não era o cenário da contínua repetição e reencenação, como nas demais religiões orientais, mas uma arena aberta em que as ações divinas estavam em íntima relação com o destino de seu povo. Iahweh era o deus da guerra, que ajudava os fiéis quando estes necessitavam durante os confitos. Por isso, não era possível que a aliança dos humanos com o divino fosse alcançada através da contemplação. Iahweh era um deus personalístico que o crente deveria diretamente obedecer: “Ele tinha dado seus mandamentos positivos; a estes se haveria de ater” (Weber, 2019 [1920]: 266). Considerando que Iahweh age na história, suas ações estão, novamente, intimamente vinculadas à conduta do povo hebreu e, portanto, a prática religiosa, no que se refere à via de salvação, também se desloca em direção à ação ativa dos fiéis no mundo.
Toda essa representação de mundo, essa representação de deus, foi produzida naquele arranjo religioso em que dominavam os sacerdotes. Não obstante, Weber aponta uma fase subsequente em que este quadro e, consequentemente, os processos daí derivados, avançam significativamente, quando o arranjo religioso passa a ter os profetas como atores predominantes. A racionalidade tipicamente profética aprofundou o processo de deslocamento das vias contemplativas de salvação para as vias ativas, iniciada ainda na época sacerdotal. Se todas as adversidades da vida eram consideradas como a vontade de Iahweh, a anunciação profética radicaliza essa interpretação considerando que seria o próprio Deus que traria as desgraças da vida a seu povo. Essa sutileza interpretativa é fundamental, pois possibilita o caminhar do desenvolvimento de uma ética sistemática da conduta de vida; afinal, “Israel haverá propriamente de ser punido por toda falha” (Weber, 2019 [1920]: 348, grifo do autor). Tratava-se, aqui, de uma representação do divino deveras específica, uma teologia da desgraça. Para evitar as desgraças que se anunciavam, era necessário evitar toda e qualquer conduta inapropriada. Assim, “tudo dependia do agir moralmente correto, em especial do agir em conformidade com a moralidade cotidiana” (Weber, 2019 [1920]: 342, grifo do autor). O sentimento de medo das punições divinas gerado pelos pronunciamentos dos profetas, desencadeou uma transformação da ética judaica em um código moral que requer o comprometimento total da personalidade do crente (Love, 2000: 209).
Todavia, para além de aprofundar o processo de deslocamento das vias de salvação, a racionalidade profética foi fundamental para a eliminação da magia dos meios de graça, isto é, do desencantamento do mundo em stricto sensu. Vejamos. As profecias visavam compreender o conselho divino e aplicá-lo em situações do dia a dia (Love, 2000: 208). Elas não estavam orientadas para questões míticas, especulações metafísicas, nem eram uma manifestação direta da mão de Deus à salvação. Assim, os profetas ofereciam ao crente uma instrução, um auxílio para a salvação. Nunca era a salvação em si que estava em voga nas profecias, pois, mesmo com elas, os crentes se viam obrigados a traçar seu próprio caminho para alcançá-la. Não havia nenhuma manifestação mágica que pudesse agir no curso de sua jornada.
Em ambos os processos concomitantes, os profetas encarnam o tipo ideal puro da profecia emissária (Sell, 2013: 206), o tipo mais racional dentro do judaísmo antigo. Weber volta a mencionar essa profecia quando fala do protestantismo ascético, dada a poderosa afinidade eletiva entre ambos. Como Weber dirá:
Aquele grande processo histórico religioso do desencantamento do mundo, que teve início com as profecias do judaísmo antigo (...), repudiava como superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação, encontrou aqui [no protestantismo ascético] sua conclusão. (Weber, 2004 [1920]: 96)
Mas, se o judaísmo desenvolveu tanto o processo de desencantamento do mundo, por que ele não alcançou um mundo propriamente desencantado? Para compreender isso, é necessário observar alguns elementos internos da ética profética. Ora, a racionalidade profética culminou endogenamente para uma nova fase do judaísmo, dominada pela racionalidade rabínica. Isso aconteceu pela racionalidade profética não ser, no limite, universal, mas sim dividida em uma moral dupla: uma interna, dos judeus, e outra externa, dos não judeus (Sell, 2013: 208). Com isso, o povo hebreu se isolou ritualisticamente, impedindo que o tipo de ação aqui desenvolvida se disseminasse. Esse sectarismo foi fortemente reforçado durante o exílio do povo hebreu de Israel, ainda mais devido ao estatuto de “povo pária” ser glorificado pelos profetas, glorificação esta que se manteve com os rabinos e fariseus.
O cristianismo primitivo e catolicismo
As relações entre o judaísmo antigo e a constituição do cristianismo primitivo são perpassadas por continuidades e rupturas. De todo modo, é razoável postular que a ordenação religiosa mais geral, produzida no judaísmo antigo, foi mantida nos primeiros movimentos do cristianismo primitivo. Mais ainda, as inovações mentais da missão paulina foram tão importantes quanto o profetismo judaico (Schluchter, 2014 [2009]: 74), na medida em que estenderam a possibilidade da salvação cristã a todos, e não somente a um povo. Desta forma, aquele impulso de regulação ética e continuada da conduta, associada a uma prática religiosa desmagificada, atingiu um potencial de universalização que, essencialmente, o povo judeu não possuía. Assim, os fundamentos para a constituição – obviamente não intencionada – e disseminação da ação em suas formas racionais, adquiriram o potencial de alcançar amplas massas mundo afora.
No entanto, este quadro se complexifica na medida em que o cristianismo primitivo se institucionaliza na forma da Igreja Católica. De partida, é fundamental considerarmos algumas importantes alterações que a Igreja Católica produziu naquela representação de mundo construída pelo judaísmo antigo. Primeiramente, a fé católica reabilitou uma série de canais entre o crente e o sagrado – “como os sacramentos da Igreja, a intercessão dos santos, a erupção recorrente do ‘sobrenatural’ em milagres” (Berger, 2013 [1969]: 124). Assim, àquele monoteísmo e àquela transcendência radical encontradas no povo judeu, se não foram totalmente negadas, foram fortemente ressignificadas. Em segundo lugar, a Igreja Católica abre mão da generalizada exigência ética do profetismo judaico, produzindo importantes consequências no plano prático da regulação das condutas. Aqui não houve nada que se assemelhava à devoção radical do povo judeu.
Passemos agora às consequências da ordenação católica do mundo sobre as duas condições fundamentais do processo amplo de desencantamento. Como esquematizado na figura 1, são duas as condições básicas: 1) deslocamento da via de salvação dos estados contemplativos para estados ativos intramundanos; 2) desmagificação da prática religiosa. Em pouquíssimas linhas, já é possível apontar que a religiosidade católica foi na contramão da segunda condição. Isto porque o mundo para o católico volta a ser uma espécie de “jardim encantado”, perpassado por elementos e seres sagrados os quais o crente poderia acessar para obter a salvação. Diferentemente, a análise do modo como a Igreja Católica obstaculiza a primeira condição requer uma análise dos efeitos dessa religiosidade sobre dois grupos diferentes de fiéis, aos quais eram endereçadas exigências muito distintas. Por um lado, um grupo pequeno de virtuoses – aqueles de alta qualificação religiosa – e, por outro lado, as massas – aquele conjunto vasto de crentes cuja religiosidade não passava de estados medianos de qualificação religiosa.
A religiosidade dos virtuoses manteve um conjunto amplo de exigências éticas que desembocavam numa regulação estrita e continuada da conduta com fortes traços ascéticos. No entanto, a prática religiosa do virtuose tensionava-se com o “mundo”, na medida em que este aparecia como repleto de tentações que poderiam desviar o crente e, ao mesmo tempo, como o lugar da frugalidade dos deveres cotidianos que dominam a vida do indivíduo religioso médio (Weber, 2009 [1913-4]: 365). Sendo assim, o movimento característico da prática religiosa que atingia os estratos mais qualificados do catolicismo foi a “fuga do mundo” em direção aos monastérios, para que o crente se concentrasse exclusivamente na sua fé e na salvação da alma.
Por outro lado, a Igreja Católica se constituiu enquanto instituição administrativa da graça divina na forma de uma hierocracia que monopoliza os bens de salvação e os oferece de modo sacramental. Para todos aqueles que alcançavam somente um grau médio de qualificação religiosa, a orientação geral e prática era simples: “cumprir as exigências de Deus, de tal modo que basta para a salvação o acréscimo da graça dispensada pela instituição” (Weber, 2009 [1913-4]: 375). Para o crente de qualificação mediana, os sacramentos consolidaram uma prática religiosa consideravelmente afrouxada em suas exigências éticas, abrindo espaço para o “vaivém católico e autenticamente humano entre pecado, arrependimento, penitência, alívio e, de novo, pecado” (Weber, 2004 [1920]: 107). A ação religiosa isolada, bem como os atos de bondade, poderia compensar os pecados, assim excluindo da prática religiosa a exigência de um “habitus global da personalidade” (Weber, 2009 [1913-4]: 376, grifo do autor).
Em resumo, para um grupo muito restrito de religiosos altamente qualificados, a Igreja Católica teve êxito em produzir uma regulação ética e continuada da conduta, porém, não intramundana. O lugar da religiosidade que vinculava de modo radical o fiel não era o mundo, muito menos os deveres cotidianos, mas um lugar afastado: os monastérios. De outro lado, uma religiosidade muito fexível, que tinha na Igreja Católica uma instituição administradora da graça divina. Ela produziu para as massas um cenário em que “o pecador sabe que sempre de novo obterá a absolvição de todos os pecados mediante uma ação religiosa ocasional” (Weber, 2009 [1913-4]: 376). Se entre os virtuoses o catolicismo falhou no deslocamento da via de salvação para estados ativos intramundanos, no que se refere às massas, a Igreja Católica não teve êxito em produzir estímulos para uma regulação ampla e sistemática da conduta dos seus fiéis. Em ambos os aspectos, mesmo com a ampliação do escopo de fiéis, o judaísmo antigo esteve mais próximo de um mundo desencantado do que a religião católica.
Protestantismo ascético
Falar de protestantismo ascético é falar de um conjunto variado de formações religiosas que tomaram lugar na Europa a partir da reforma protestante do século XVI. No entanto, a despeito da relativa diversidade, essas formações religiosas reavivaram e radicalizaram uma imagem de mundo muito próxima daquela produzida pelo judaísmo antigo. Antes de tudo, a divindade assumiu um caráter altamente transcendente e imperscrutável em seus desígnios. Todas as intermediações produzidas pelo catolicismo, os santos e os sacramentos, tornaram-se inacessíveis para o protestante ascético que se viu sozinho no mundo: “um sentimento de inaudita solidão interior do indivíduo” (Weber, 2004 [1920]: 95, grifo do autor). Nunca antes o crente esteve tão só: no judaísmo ele tinha toda sua comunidade dentro da aliança com Iahweh; no catolicismo, a salvação era conduzida pela Igreja; já no protestantismo ascético, “ninguém podia ajudá-lo” (Weber, 2004 [1920]: 95). Isto já nos leva a um ponto importante no que se refere à racionalização da ação. Uma vez sozinho, o único capaz de induzi-lo a agir é ele mesmo. Ora, não é mais possível se apoiar em nenhum preceito externo de regulação, tal como ocorria no catolicismo e no judaísmo. É a deliberação interna e refletida do agente, na conversa de si consigo, que é a base da ação.
A ausência de todo e qualquer vínculo externo que ligasse o crente a essa divindade altamente transcendental, produziu um cenário em que a segurança psicológica do crente, quanto à salvação de sua alma, precisou se endereçar para outros canais. Assim, não surpreende que o traço comum das várias seitas ascéticas seja justamente “a crença na necessidade de ‘comprovação’ da salvação” (Sell, 2013: 226). Ora, é sobre a necessidade de comprovação, mediante a ação no mundo, que se desenrolam as duas condições fundamentais do desencantamento do mundo em sentido amplo, a saber, o deslocamento para a via ativa de salvação e a eliminação da magia (cf. fig. 1).
Comecemos pelo desencantamento do mundo stricto sensu. Ora, se a comprovação da salvação é uma exigência, é preciso reconhecer que o protestante ascético não estava em posição tão confortável para provar para si sua condição de eleito. Isto porque, como dissemos acima, ele estava sozinho e não havia nada nem ninguém que pudesse auxiliá-lo. Não havia nenhuma forma de sacramento que o crente pudesse recorrer para garantir alguma segurança subjetiva, nem mesmo para compensar falhas cometidas ao longo de sua vida. Se “o católico tinha à sua disposição a graça sacramental de sua Igreja como meio de compensar a própria insuficiência” (Weber, 2004 [1920]: 106, grifo do autor), não havia nenhum meio pelo qual o protestante ascético pudesse garantir, em absoluto, sua salvação.
A ascese dessas seitas protestantes, portanto, também está intimamente ligada ao caráter austero da prática religiosa. O aspecto altamente transcendental da divindade tornou o mundo, e tudo que nele há, “mundano”, isto é, desprovido de toda e qualquer sacralidade. E, no mesmo movimento, qualquer expediente mágico tornou-se, necessariamente, diabólico (Weber, 2016a [1920]). A radicalidade com que o protestantismo ascético extirpou a magia, inclusive na forma sublimada dos sacramentos, chegava a tal ponto que “o rigoroso puritano mandava enterrar os cadáveres e seus queridos sem nenhuma formalidade, para assim impedir no nascedouro qualquer suspeita de superstição” (Weber, 2016a [1920]: 335). Assim, o fo comum que perpassava a prática religiosa das várias seitas do protestantismo ascético foi uma radical desmagificação.
Uma das condições para o desencantamento do mundo em sentido amplo estava, de partida, assegurada. Todavia, a desqualificação de meios mágico-sacramentais como forma de garantir a salvação, num cenário em que a salvação da alma era uma necessidade de primeiríssima ordem, impôs ao crente a busca de caminhos alternativos para verificar sua condição de eleito. Ora, “o radical desencantamento do mundo [leia-se desmagificação da prática religiosa] não deixava interiormente outro caminho a seguir a não ser a ascese intramundana” (Weber, 2004 [1920]: 135). Isto é, era a partir de sinais obtidos no bojo da vida cotidiana que o crente poderia ter um mínimo de segurança psicológica sobre sua condição de eleito. Entramos, portanto, na segunda condição para o desencantamento do mundo lato sensu, pois o caminho para a salvação se inclinava em direção à ação ativa no mundo, condenando à mera contemplação.
No entanto, o deslocamento para a ascese intramundana coloca uma contradição de grande monta. Isto porque o protestantismo ascético, enquanto religião de salvação, entendia o mundo e suas ordens como um “receptáculo de pecado” (Weber, 2016a [1920]: 348). Ora, se o mundo é a sede do pecado, como será nele que o crente poderá obter sinais da sua salvação? A conciliação desta contradição está justamente no ressurgimento da profecia emissária em que o crente se entendia como uma ferramenta na mão do divino – e não um receptáculo, como no catolicismo –, para transformar o mundo racionalmente segundo os desígnios divinos e aumentar sua glória na terra. É justamente a presença desta profecia em solo puritano que permite que o mundo seja negado, mas, ao mesmo tempo, que a conduta exigida do crente não seja mística, mas sim ascética e intramundana.
Assim, a comprovação do estado de graça se vincula a uma determinada conduta de vida assumida pelo crente na qual ele se assegure que, a todo instante, está sendo um instrumento para aumentar a glória divina. Mas note-se bem, não se obtém a certeza de ser um instrumento nas mãos de Deus através de obras isoladas. É somente através da constituição de uma sistemática de vida que o crente demonstra para si mesmo que sua ação está completamente assentada numa força que se direciona para aumentar a glória de Deus neste mundo (Weber, 2004 [1920]: 107-108). No centro dessa sistemática está a vida profssional tida como dever. Era na sóbria/ascética entrega ao trabalho profssional que o crente podia manter-se apartado do gozo descomprometido e manter uma contínua racionalização da conduta de vida. A profssão nunca era um fim em si mesmo, mas um meio. O controle sistemático da conduta nas raias de uma profssão conferia ao crente poderosos prêmios psicológicos, isto é, fazia com que ele alcançasse aquele “bem supremo a que aspirava essa religiosidade: a certeza da graça” (Weber, 2004 [1920]: 104).
Finalmente, e valendo-se de Weber, “as duas condições: desencantamento do mundo e deslocamento da via de salvação (...) só foram plenamente efetivadas nas grandes formações de igreja e seita do protestantismo ascético no Ocidente” (Weber, 2016b [1913]: 50). A junção de uma prática religiosa desmagificada com uma via de salvação ativa e intramundana permitiu que o desencantamento do mundo avançasse de modo único na história. O protestantismo ascético, com suas representações muito peculiares, promoveu uma conformação da conduta dos indivíduos no limiar de motivos tradicionais e racionais-modernos; era uma ação completamente racional em seus meios, mas movida por motivações tradicionais. O protestante que se dedicava a sua profssão e conduzia sua vida sistemática, metódica e rigorosamente, estava movido por interesses puramente tradicionais-religiosos, isto é, tratava-se de uma ação de tipo tradicional. Mas ao fazê-lo num mundo desprovido de seres mágicos e aberto à intervenção humana, acabou por criar um ambiente propício para a gestação e disseminação da modalidade de ação típica da modernidade ocidental, isto é, a ação racional. Nas palavras de Weber (2004 [1920]: 139, grifo nosso), “essa racionalização da conduta de vida no mundo, mas de olho no Outro Mundo é o efeito da concepção de profssão do protestantismo ascético”. Em uma palavra, foi o olhar tradicional para o mundo metafísico que engendrou uma ação racional no mundo físico.
Se o protestantismo ascético produziu as condições de possibilidade para a disseminação da ação em suas formas racionais, é importante lembrar novamente com Pierucci (2013 [2003]: 211, grifo nosso) que é a “religião de saída da religião, sim, só que ainda é religião”. Trata-se, aqui, do ponto de infexão da predominância da ação tradicional como modo padrão de conduta das mulheres e homens para a predominância da ação racional. Mas foi necessário que a ação racional se emancipasse do meio religioso para que pudesse alcançar suas últimas consequências – em especial a ação racional com relação a fins, a ação típica do mundo desencantado. Mas isto já é assunto para a próxima seção.
Desencantamento do mundo, autonomização das esferas de valor e secularização
Toda religião de salvação – aqui incluído os monoteísmos, em geral, e o protestantismo ascético, em particular – possui uma relação confituosa com o mundo (Weber, 2016d [1913-15]). Nem o protestantismo mais ascético dispensa essa tensão; afinal, mesmo ele sendo uma religião de dominação do mundo, é, simultaneamente, uma religião de negação do mundo. Ao contrário, essa tensão apenas se fortalecia dentro do protestantismo. Ora, o bem almejado pelo protestante, a saber, a certeza da salvação eterna, só pode ser alcançada a partir da dominação do mundo de forma desinteressada, abnegando quaisquer prazeres materiais em prol da vontade divina; ao mesmo tempo, a racionalidade gestada por essa religião induzia os indivíduos a uma ação racional tendo em vista a transformação do mundo, a partir do encadeamento calculado entre meios e fins.
Mesmo com essa tensão, esse estímulo a uma ação racional levou adiante uma crescente racionalização do mundo, fazendo com que diferentes esferas de valor se emancipassem da vida religiosa e se constituíssem enquanto autônomas. Nas palavras de Weber:
Com efeito, a racionalização e a sublimação consciente das relações dos humanos com as diferentes esferas da posse de bens, interiores e exteriores, religiosos e mundanos, levaram que as legalidades próprias das diferentes esferas se tornassem conscientes quanto à sua coerência interna, e isso faz com que se acirrassem aquelas tensões recíprocas que haviam permanecido ignoradas enquanto reinou a ingenuidade primitiva na relação com o mundo exterior. (Weber 2016d [1913-15]: 368, grifos do autor)
Isto possibilitou a emergência de uma série de esferas diferenciadas, regidas por valores a alhures da religião, a saber, a econômica, política, estética, erótica e intelectual, cada uma com sua legalidade própria. Mas, obviamente, na medida em que essas outras esferas foram ganhando terreno, a religião foi perdendo o monopólio que tinha de ordenação da vida; afinal, diferentes instituições, antes incrustadas na vida religiosa, foram se emancipando. Em cada uma dessas esferas constituiu-se um tipo de ação dominante que rege a ordenação desse cosmos. No caso, a economia e a política, os dois domínios soberanos do mundo desencantado, são regidos unicamente pela racionalidade com relação a fins, enquanto restou para a esfera religiosa a ação afetiva ou a racionalidade com relação a valores (cf. Sell, 2013: 288).
À guisa de exemplo, a empresa racional moderna torna-se um empreendimento regido exclusivamente pela otimização entre meios e fins com vista à obtenção contínua do lucro (Weber, 2016e [1920]: 17). Já na política, o funcionário especializado tornou-se o pilar do Estado moderno e, com ele, constitui-se a lógica burocrática estabelecida a partir de fins racionais (Weber, 2016e [1920]: 16). Percebe-se como, nos dois casos, a ação racional perdeu qualquer finalidade no “mundo de lá”, destinando-se unicamente para o “mundo daqui”. O encadeamento calculado entre meios e fins, posição fundante da ação racional com relação a fins, perdeu qualquer relação com a religião. Instaurou-se, aqui, um mundo praticamente desencantado, em que a ação é racionalizada do começo ao fim.
Esse processo de emancipação da tutela da tradição religiosa, alçando ao primeiro plano a ação em suas formas racionais, é o que Berger chamou de “secularização”:
Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. Quando falamos sobre a história ocidental moderna, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seu controle ou influência. (Berger, 2013 [1969]: 119)
De modo geral, o avanço da secularização faz com que a pretensão da religião de conduzir todas as instâncias da vida e governar o indivíduo por completo torne-se ilegítima (Hervieu-Léger, 2008: 33-34). O que se vê a partir daí é um cenário de “pluralismo” intra e extra religioso. Por um lado, a religião perde espaço para outras instituições que emergem de esferas autônomas, dotadas de legalidade própria, e cujos fundamentos não dependem da lógica religiosa. Por outro lado, nenhuma cosmovisão religiosa é mais capaz de impor significativamente sua definição de mundo e, por consequência, as várias religiões passam a competir entre si (Berger, 2013 [1969]: 149).
Mas sigamos o fo do argumento. O desencantamento do mundo que se inicia no interior da religião desemboca na autonomização de esferas de valor que tem como correlato o processo de secularização do mundo. A pergunta que se impõe é: “o processo de emancipação das esferas conduz a um mundo sem religião?”. Essa pergunta foi encarada de modo bastante crítico por diferentes sociólogos da religião. Para Stark e Bainbridge (2008), a secularização contribui não para o desaparecimento da religião, mas para seu forescimento. Segundo os autores, nas sociedades em que avançam processos de secularização, o que se fragiliza é a condição monopolista de certas religiões/igrejas. Por outro lado, o desejo humano por recompensas indisponíveis permanece, porém num cenário em que a mudança denominacional é facilitada. O resultado dessa combinação é a proliferação de seitas que acomodam aqueles que não são alcançados ou não se contentam com recompensas fornecidas por outras esferas, como a econômica e a política (Stark & Bainbridge, 2008: 388-396). Da mesma forma, Casanova (1994) entende que a religião não está, no mundo moderno, relegada à esfera privada e a um posto de marginalidade. Ao invés disso, o autor demonstra, através de diferentes estudos de caso, como movimentos religiosos tem se colocado de modo atuante na esfera pública, inclusive desafiando a legitimidade e autonomia das esferas que emanam do processo de desencantamento do mundo.
A argumentação colocada por este artigo pode contribuir com todo este debate ao deixar claro que “desencantamento do mundo” não é o mesmo que “secularização”. Sob um olhar atento ao desencantamento do mundo, percebe-se como o protestantismo ascético acabou por produzir uma tensão inexorável entre criador e criatura, isto é, entre a religião e a racionalidade que ela gestou. Isso levou à emancipação da modalidade de ação racional de seu domínio de origem e a consequente emergência de esferas de valor autônomas. Assim, o desencantamento religioso do mundo produziu transformações societais e culturais que desembocaram numa modernidade que, em certa medida, luta contra a religião (Pierucci, 1998). A religião perde a potência de outrora, mas de modo algum está condenada ao desaparecimento. Até porque, uma vez que as modalidades racionais de ação assumem o primeiro plano, é a ciência que herda a tarefa de continuar a “desencantar” o mundo; só que, agora, para além de eliminar a magia dos esparsos terrenos restantes, ela opera retirando o sentido do próprio mundo. A secularização avançaria concomitantemente ao desencantamento científico. Todavia, além disso ser uma outra história a ser contada que vai muito além dos objetivos deste artigo, também permanece aberta a questão do quanto a ciência possui, de fato, vigor para realizar tal empreitada.
Considerações finais
Gabriel Cohn (2016), no prefácio à edição brasileira do primeiro volume da Ética Econômica das Religiões Mundiais, afirma que toda análise weberiana tem como ponto de partida a ação social. Mais do que isso, a problemática de pesquisa de Weber seria justamente a “expansão por todas as áreas da vida humana da ação racional” (Cohn, 2016: 9, grifo nosso). Nessa afirmação de Cohn, está implícito nosso argumento neste artigo, isto é, que os aspectos sincrônicos e diacrônicos da obra de Weber são inseparáveis. Ora, se a motivação de pesquisa de Weber é na gênese histórica (diacrônica) do tipo-ideal de ação racional (sincrônica), de partida há uma clara confluência dessas duas instâncias nos textos weberianos.
É nessa seara que Weber encontrou o estudo das éticas religiosas como objeto privilegiado de análise da gênese histórica da ação racional. Começou, assim, a realizar o estudo minucioso dos grandes sistemas religiosos. Mas isso não quer dizer que Weber abandonou sua preocupação com a ação social ao abarcar temas religiosos. Isso é claro nas próprias palavras de Weber, citadas exaustivamente por Pierucci (2013 [2003]: 15-24) na introdução de sua obra-prima O desencantamento do mundo:8 “antes de mais nada, uma tentativa como esta em sociologia da religião deve e quer ser ao mesmo tempo uma contribuição à tipologia e sociologia do próprio racionalismo” (Weber, 2016d [1913-15]: 363). A partir da comparação dessas religiões, Weber buscava destrinchar suas éticas, os tipos de racionalidades que cada um desses sistemas engendra. O estudo histórico não era um fim em si mesmo, mas um instrumento para a análise da racionalidade e, porque não, das modalidades de ação.
Dito isso, com esse artigo buscamos elucidar como Weber faz essa relação histórico-analítica entre a teoria da ação social e o longo processo de desencantamento do mundo. Ora, segundo Sell, em Weber, “a racionalidade protestante institucionaliza-se no nível da ação social” (Sell, 2013: 270). Isso é verdade, mas as análises das reflexões mais amplas de Weber sobre a religião demonstram como esse processo de institucionalização da racionalidade religiosa no nível da ação social não ocorre apenas na ética protestante; ele é uma constante ao longo da história, nas diferentes éticas religiosas, e está intimamente conectada com os avanços e retrocessos do tortuoso processo de desencantamento do mundo.
À guisa de conclusão, para além de buscar esclarecer a relação interna entre a sincronia e a diacronia na obra de Weber, acreditamos que o presente artigo oferece um esquema heurístico de análise do desencantamento do mundo. A partir desse quadro de análise, simplificado na fórmula presente na figura 1, pudemos observar a compreensão empírica, isto é, na história de fato, realizada por Weber sobre o decurso desse longo processo histórico. É possível, com ele, apreender até onde cada uma das religiões ocidentais (e, porque não, nas orientais também) chegou no desencantamento do mundo e como, no nível da ação social, a ética religiosa estimulou condutas racionalizadas ou, pelo contrário, acomodou-se no confortável seio da vida tradicional, na sedução do “jardim encantado”.
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Notas
Autor notes