Editorial
Como se sabe, a religião continua a oferecer a sua energia nas sociedades latinoamericanas - ao lado de outras instâncias mobilizadoras e instituintes do social - contribuindo, assim, para a coesão social e interagindo com as demais instâncias sociais, inclusive a política. Por isso mesmo, na América Latina a religião continua sendo um dos aspectos incontornáveis da vida social, em graus variados, porém, segundo os países e mesmo as regiões.
Se, historicamente, o catolicismo deteve o monopólio do campo religioso no subcontinente, nas últimas décadas abriu-se o leque das opções religiosas, para dentro e para fora do cristianismo, fortalecendo, assim, o pluralismo religioso.
O foco do presente volume de Ciências Sociais e Religião repousa justamente na análise do pluralismo religioso latino-americano abordando-o, sempre que possível, em perspectiva comparada.
Abrindo este dossiê, o primeiro trabalho, de Emerson Giumbelli, intitulado Regulação do religioso: discussões conceituais e panorama da situação em quatro países latino-americanos, apresenta panoramas sobre a situação em quatro países latinoamericanos - Argentina, Brasil, México e Uruguai - quanto a duas realidades: os modos pelos quais uma igreja ou grupo religioso obtém “personalidade jurídica” e a existência e o funcionamento de aparatos estatais voltados para o registro e acompanhamento desses coletivos religiosos. O objetivo deste trabalho foi entender como tais dimensões participam das condições pelas quais as religiões, em determinado contexto social, têm existência e das formas pelas quais uma sociedade - pela mediação de aparatos estatais - define o lugar do religioso. A apresentação dos dados também buscou contribuir com o estudo de características do campo religioso nos quatro países mencionados, levando em consideração suas situações contrastantes quando se usa as noções de secularização (Brasil e Uruguai) ou laicidade (Argentina e México).
A seguir, Cristián Parker Gumucio, em: Popular religions and multiple modernities: a theoretical framework for a research agenda, revela que a diversidade religiosa e o pluralismo estão aumentando na América Latina devido a alguns fatores. O campo religioso que há algumas décadas era totalmente católico mudou radicalmente, especialmente registrando o crescimento de não apenas o pentecostalismo ou o neopentecostalismo, mas também de outros evangélicos, bem como de igrejas independentes de várias denominações, além de pessoas afiliadas ou não a muitas expressões religiosas diversas (étnicas, afro-americanas, da Nova Era etc.), todas revelando certo crescimento. O principal argumento do autor é de que essas mudanças religiosas em direção ao pluralismo podem ser plenamente compreendidas no contexto da teoria das múltiplas modernidades, desde que sejam revisadas e modificadas, sendo necessária uma nova abordagem sociológica. Os conceitos e teorias sociológicas clássicas, começando pela secularização, puderam assim ser criticados e substituídos por uma visão teórica mais complexa. Os processos históricos latinoamericanos foram comparados com o que está acontecendo em outras regiões do mundo e não apenas com o Ocidente. As religiões do mundo estão respondendo a cada um por seu próprio caminho para múltiplas interações com as modernidades. Segundo o autor, a compreensão chave dessas mudanças deve vir de um olhar mais acurado das religiões populares no mundo inteiro. América Latina, Ásia Oriental, regiões islâmicas, são bons exemplos de formas populares de revitalização religiosa que contrastam com o caso do Norte da Europa, de maior secularização. Esses casos evidenciam o fato de que novas formas de buscas espirituais em áreas geoculturais não-ocidentais estão moldando relações específicas entre a religião e as modernidades e trazendo novos pluralismos religiosos.
Nesta mesma direção, em se tratando dos países do Conesul, mas tendo como crítica a relação de maior acomodação entre estes estados nacionais com as religiões cristãs e de maior conflito em suas relações com as religiões de matriz africana, o trabalho que segue, de Mauro Meirelles, José Rogério Lopes e Adimilson Renato da Silva, Religião e política no Brasil, Uruguai e Argentina: sobre uma pluralidade transnacional, discute a relação entre religião e política no contexto cisplatino, contrapondo à ideia de pluralidade e diversidade religiosa os dados estatísticos existentes nos três países e as representações gerais de que tanto católicos e evangélicos quanto afro-brasileiros possuem diferenças sobre certas visões compartilhadas e modos de ser e de estar no mundo, de forma que, do ponto de vista teológico e teleológico, a anunciada pluralidade e diversidade religiosa existente na região não é tão plural quando observada sob o aspecto da integração social que desfruta cada campo religioso em sua respectiva sociedade nacional.
Avaliando o contexto religioso latinoamericano sob o aspecto político, filosófico e pedagógico, Pia Paganelli, em: Gramsci y el factor religioso: su relación con la Teología de la Liberación latinoamericana, propõe a visão de Gramsci sobre o fator religioso da região ao perceber semelhanças deste pensamento com o projeto da Teologia da Libertação, no sentido de que ambos os pensamentos convergiram e sustentam atualmente uma aliança entre o cristianismo e o marxismo na região, ao recuperar o imanentismo marxista e a construção e difusão pedagógica sugeridas por Gramsci no contexto do Partido Comunista à sua época.
No caso do Brasil, a discussão sobre a secularização no país nos termos de seu Estado de direito tem avançado nos últimos anos. A este respeito, mas sob uma nova perspectiva, o trabalho de Francisco Antonio Morilhe Leonardo, Análise e estudo sobre o direito canônico comparado com o direito brasileiro, oportunamente realiza o estudo do Direito Canônico a fim de traçar um paralelismo entre este e o Direito Brasileiro. Nesse sentido, o autor procura mostrar que o catolicismo expõe o vínculo entre o poder espiritual e o poder temporal, mas embora o Estado Brasileiro seja laico, são abordados temas religiosos quanto às elaborações das leis e políticas públicas. Assim é avaliada em conjunto a Santa Sé, principal órgão do Estado do Vaticano, que transmite valores fundamentais aos outros povos do mundo mediante o Direito Canônico que tende a influenciar os bens jurídicos.
No cenário argentino, no que se refere à diversidade religiosa local, são raros os estudos disponíveis sobre o budismo naquele país. Denise Welsch, em: Conociendo la ley: la práctica de Nam Myoho Rengue Kyo en la Soka Gakkai argentina, avalia a presença budista no país do Prata a partir da atuação desta entidade. A Soka Gakkai consiste em uma organização budista japonesa que se transnacionalizou para diferentes partes do mundo, e este trabalho procura avaliar justamente a sua atividade fora do país de origem, a partir de instâncias como os membros atuais na Argentina e as iniciativas que se voltam ao seu crescimento, a partir de perspectivas consagradas dentro das ciências sociais que vislumbram compreender tanto práticas quanto crenças desta importante instituição do budismo transnacional.
No caso da Colômbia, Ivonne Calderón Rodríguez, em: Las escuelas radiofónicas de acción cultural popular: instrumentos para la formación cristiana y para el afianzamiento de la catolicidad en la población rural colombiana, mostra como a “Acción Cultural Popular” foi uma obra do catolicismo social tendo em vista a formação do campesinato e a modificação das realidades sociais rurais mediante as ações das Escolas Radiofônicas presentes naquele região. Neste contexto de pouco alcance de ajuda governamental, tal proposta de formação cultural assim se tornou uma opção legítima para educação popular rural, além de consistir em uma estratégia da Igreja católica para prolongar a formação religiosa daquelas populações, fazendo uso de meios de comunicação como o rádio, que facilitaram a inserção da mensagem cristã em zonas mais afastadas do país. Neste sentido, o texto argumenta que tal iniciativa não foi somente uma ferramenta pedagógica para enfrentar o analfabetismo rural, mas também um expediente ideológico de transmissão da fé católica, com desdobramentos políticos e sociais particulares.
Ainda na região norte do subcontinente, mais especificamente na Amazônia brasileira, região historicamente destinada ao protestantismo de missão, os autores Eloi Martins Senhoras, Alexandre Felipe Pinho dos Santos e Ariane Raquel Almeida de Souza Cruz, no trabalho: Expansão do protestantismo no Brasil e suas configurações na Amazônia Legal, avaliam este fenômeno ao longo do século do XX desde a perspectiva de uma etnocartografia das religiões em questão. Assim, este estudo buscou contribuir com os estudos sobre a difusão macrorregionalizada do protestantismo nacional, a partir de dados primários disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os resultados e conclusões da pesquisa apontaram para a compreensão do expansionismo protestante no Brasil como um fenômeno único e destacado na dinâmica do cristianismo que não possui características homogêneas, mas antes crescentes tendências de fragmentação e capilaridade, inclusive com um padrão de difusão das redes eclesiásticas originadas na própria Amazônia Legal.
No caribe, mais propriamente em Cuba, Heiberle Hirsgberg Horacio, no trabalho: Apontamentos sobre a (in)existência de elementos religiosos na tradição inventada cubana: subsídios para reflexões sobre uma eventual dimensão religiosa pública, analisou os elementos simbólicos, narrativos e estruturais que compõem o processo de invenção da tradição cubana permeado por traços das religiões tradicionais estabelecidas. Mais propriamente, o trabalho realizou o exame da relação entre Estado e Religião naquele país, a partir: da análise dos enunciados da imprensa cubana, especificamente do jornal “Juventud Rebelde” e de um ritual político-público cubano do dia 26 de julho, conhecido por “dia da Rebeldia Nacional”. Assim, o trabalho procurou dissociar a existência de uma religiosidade-laica em Cuba (nos termos de uma Religião da Política) da existência de uma dimensão religiosa pública, ao possibilitar reflexões que articulem essas noções e a experiência política cubana.
Encerrando este dossiê, o trabalho de Graciela Silva Oliveira e Nelio Bizzo, Os jovens brasileiros e a religião: algumas características e opiniões, procurou verificar as relações dos jovens brasileiros com a religião e caracterizar alguns grupos religiosos nacionais. Os participantes da pesquisa foram 2.404 jovens (55,1% meninas) matriculados no 1º ano do Ensino Médio de 78 escolas brasileiras. Os dados desta pesquisa foram coletados através de questionário e analisados com auxílio do Software Statistical Package for Social Science (SPSS) - versão 18.0. Como resultado, a pesquisa se remeteu à pluralidade religiosa presente no país, ao perceber o crescimento de grupos pentecostais e sem religião. Assim, a religião apareceu como um componente importante e compõe a percepção de mundo daqueles estudantes, no entanto, os valores atribuídos aos conhecimentos religiosos diferem de acordo com o gênero, a região do país e entre as denominações religiosas, causando implicações diretas e indiretas sobre seu comportamento e percepção religiosa do campo político.
Os textos do presente volume reforçam, por um lado, a noção de que na América Latina as crenças não se restringem à esfera da subjetividade; elas são compartilhadas coletivamente, alcançando a cena pública mediante práticas ritualísticas produzidas por cada uma das religiões, independentemente de sua condição jurídica ou institucional. Por outro lado, ver-se-á nos textos que seguem tanto recorrências nas histórias nacionais no que concerne às dinâmicas das relações entre religião e sociedade, quanto expressões históricas e culturais específicas que revelam a diversidade de relações existente no subcontinente americano entre Igrejas e Estado e, por via de consequência, entre a instância religiosa e as demais que conformam as sociedades, bem como os sentidos consignados às religiões pelos cidadãos latino-americanos.
Editores do Dossiê
Dr. Ari Pedro Oro
Dra. Silvia Montenegro